Descubra um Clássico | Uma Rua Chamada Pecado (1951)

 

Foi apenas na década de 1960 que a indústria cinematográfica norte-americana realmente quebrou a barreira da censura, onde o movimento conhecido como a Nova Hollywood explorou assuntos polêmicos de forma mais direta. Contudo, antes disso, filmes eram banidos ou montados de modo convencional para evitar que tópicos mais complexos fossem mostrados e, por consequência, discutidos.

Uma Rua Chamada Pecado é um dos poucos exemplos que, em plena década de 1950, “driblou” a censura e, de maneira hábil e inteligente, conseguiu transformar a plataforma em que está inserida para ocorrer uma análise mais profunda de temas controversos para a época, principalmente em relação à sexualidade, prostituição e o próprio preconceito.

Adaptação direta da peça teatral feita por Tennessee Williams (e o mesmo que realizou o roteiro para o cinema, sendo consagrado com uma nomeação ao Oscar), a trama se inicia no Sul dos Estados Unidos, na cidade de Nova Orleans, com a chegada de Blanche (interpretada por Viven Leigh) no lar de sua irmã mais nova, Estella (Kim Hunter), após uma sequência de tragédias, incluindo aí a perda da fazenda da família.

Elia Kazan (que ganharia, alguns anos depois, o Oscar de melhor direção com Sindicato de Ladrões) já tinha dirigido a peça teatral, portanto, sua escolha para dirigir o filme é conivente e eficaz. O diretor turco explora os cenários com extrema competência, fazendo com que o recinto se torne cada vez menor com o decorrer dos acontecimentos, além de contar com a ajuda do diretor de fotografia Harry Stradling Sr. (indicado ao Oscar pelo trabalho) para filmar seus planos num lindo contraste entre preto e branco na intenção de revelar a dubiedade dos personagens.

O embate psicológico que proporciona uma profundidade dramática gigantesca começa no momento em que a protagonista conhece o intenso e fervoroso marido da irmã chamado Stanley (interpretado por Marlon Brando, provavelmente o ator mais importante para a história do cinema e que foi nomeado pela primeira vez aqui) que não suporta a presença dela em sua casa por conta de sua índole questionável.

Com apenas 27 anos de idade, Brando “quebra” todos os padrões ao imprimir um viés cru e extremamente realista para sua atuação, já que era muito comum, até então, atuações “larger than life” para fazer com que o público escapasse, mesmo que por algumas horas, da rotina excruciante.

É interessante notar que até os personagens secundários como Stella e Mitch (Karl Malden) acompanham essa linha de atuação, porém, a mulher atormentada pelo passado vivida por Leigh quase beira o caricato de forma deliberada e não por incapacidade da atriz, já que vive numa rede de mentiras e ilusões, praticamente como se usasse uma máscara para fingir ser uma pessoa que não é — não sendo à toa que, no terceiro ato, como uma forma de exteriorizar todo esse aspecto metafórico, vemos a personagem principal sendo forçada a mostrar sua face na luz noturna, como também o fato de trajar figurinos que aparentam ser chiques para criar uma imagem distinta do resto, mas que, na verdade, são baratos.

Tratando os acontecimentos com uma precisão cirúrgica por causa do conservadorismo vigente da época, tudo é explorado de modo que o público consiga entender o que está sendo dito sem ser incisivo. Blanche se casou com um rapaz muito jovem, mas que, ao que tudo leva a crer, se matou ao se descobrir homossexual; boatos (que futuramente seriam confirmados) de que era vista acompanhada por múltiplos homens, além de ter sido expulsa da escola por ter se relacionado com meninos mais jovens — e a cena que beija o garoto que vendia jornais é a prova viva dessa sua tendência.

Contudo, o roteiro nunca a torna vilã. Muito pelo contrário; compreende que, nem sempre, é fácil visualizar a fronteira do correto e errado, logo, faz com que o espectador entenda suas falhas, mas que só por isso não merece ser rotulada da maneira mais fácil possível.

A cena que manifesta esse lado ambíguo é quando esta confessa seu passado para Mitch próximo da água encoberta (parcialmente) pela névoa: uma elegante ferramenta imagética para cimentar o paralelo metafórico dessa complexidade emocional, uma vez que a água costuma simbolizar inocência/liberdade.

De certa forma, aqueles quatro personagens estão condenados pelas suas respectivas naturezas. Mitch possui uma relação próxima com sua mãe e quer encontrar alguém para se casar, porém, apesar de sentir atraído por essa mulher amargurada, não consegue superar a barreira dos bons costumes.

Stella, dona do coração mais puro da história, sofre por não conseguir se decidir entre o marido e irmã, ainda que o primeiro revele, pontualmente, um lado animalesco e violento que a faz sair de casa devido às suas atitudes agressivas — o que faz com que a cena mais icônica da obra de 1951 seja registrada ao ter Stanley, com a camisa rasgada e um semblante de derrotado, gritando “Hey, Stella!” incontáveis vezes.

Já a relação dos dois protagonistas é bem mais profunda do que aparenta ser. Stanley não tolera Blanche por se aproveitar da bondade da esposa, pelas incontáveis mentiras e suas escolhas questionáveis de vida para o período em que estão situados, enquanto ela sente repulsa e (ao mesmo tempo) uma atração física intensa que já é premeditada nos primeiros minutos da projeção ao entrar num bonde literalmente denominado “desejo” — algo que transformou Brando em sex symbol com sua camisa encharcada de suor e músculos à mostra. Como se não bastasse, ainda existe a possibilidade de um abuso sexual por parte dele (nos momentos finais) ao retratar um selvagem contato físico visto através do espelho que é, em seguida, quebrado para manifestar a destruição do resto frágil de sanidade de Blanche, que é devidamente reforçada com seu rosto desmaiado.

A personagem de Leigh termina seu arco saindo da casa e indo direto para um hospital psiquiátrico por conta desses seus “desvios de conduta” que a afligem tanto a ponto de escutar coisas que mais ninguém escuta, mas a relação também problemática de Stanley e Stella é encerrada da mesma forma anteriormente concebida (ela subindo as escadas para o outro apartamento e ele gritando seu nome) numa cruel maneira de dizer que aquilo também é um ciclo vicioso, entretanto, mais aceito dentro daquela sociedade.

No fim, ninguém está totalmente certo ou errado. Todo mundo tem sua parcela de preconceitos, erros e acertos que os fazem estar naquela situação. E assim é a vida: algo bem diferente da utopia e do american way of life que o cinema retratava exaustivamente durante essas décadas.

Nota: ★★★★★

 

 

Ficha técnica

Nome Original: A Streetcar Named Desire

Ano: 1951

Direção: Elia Kazan

Roteiro: Tennessee Williams (adaptação da sua própria peça)

Elenco: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Malden, Rudy Bond, Nick Dennis, Peg Hillias, Wright King, Richard Garrick, Mickey Kuhn

Montagem: David Weisbart

Trilha Sonora: Alex North

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Jonatas Rueda

Capixaba, formado em Direito e cinéfilo desde pequeno. Ama literatura e apenas vê séries quando acha que vale muito a pena. Além do cinema, também é movido à música, sendo que em suas playlists nunca podem faltar The Beatles, Bob Dylan, Eric Clapton e Led Zeppelin.

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