Eu me importo (2020)

Por André Dick

Alguns filmes acabam surgindo sem grande publicidade e surpreendem. Talvez Eu me importo seja um dos que mais se pronunciam na temporada de premiações de 2021. Indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz de comédia ou musical, Rosamund Pike interpreta Marla Grayson, uma mulher que tem como principal objetivo ficar atrás de idosos a fim de ser tutora legal deles e, assim, lucrar com possíveis heranças.
Ela tem como parceira a médica Amos (Alicia Witt), que lhe indica as vítimas, o responsável por uma casa de repouso, Sam Rice (Damian Young), e costuma comparecer na seção do juiz Lomax (Isiah Whitlock Jr.), que simpatiza com ela. Ao seu lado, está sempre a amante Fran (Eiza González). A atriz Pike ficou conhecida principalmente por sua atuação com a esposa conturbada de Garota exemplar, de David Fincher. Se naquele filme ela utilizava uma certa frieza e Fincher extraía dela uma certa violência sociopata, em Eu me importo não é muito diferente. À medida que ela transita pela exploração a figuras idosas, o que já é imprestável, o diretor J Blakeson faz um paralelo com sua vida em academias de ginástica e um certo glamour pessoal, circulando por seu escritório como se tivesse um negócio muito respeitável.

Certo dia, ela, em combinação com a médica que a ajuda a enganar os idosos, acaba indo atrás de Jennifer Preston (Dianne Wiest), uma mulher de idade, mas que possui plenas condições de viver sozinha. Não para Marla, que passa a ser sua tutora, levando-a para sua clínica preferida, com o intuito de acessar as possíveis riquezas dela. O que acontece a partir daí é exatamente o retrato desta mulher em todos os níveis de exploração, uma versão feminina do psicólogo feito por Jack Nicholson em Tratamento de choque nos momentos em que está no tribunal. O diretor constrói a situação implausível de maneira eficiente, comparando Marla a uma espécie de vampira no sentido simbólico (ela fala em determinado momento em sugar a vida alheia), que não ousa colocar os pés dentro da casa da vítima sem permissão.
Em seu caminho, surge um advogado (Chris Messina), com uma maneira de falar capaz de encobrir nervosismo com certa tranquilidade, a mando de Roman (Peter Dinklage), que também trabalha com um chofer, Alexei (Nicholas Logan). A ligação entre esses personagens é o que vai levar a trama à frente. Impressiona como o diretor utiliza as atuações como ponto de partida para desenvolver uma trama extremamente ágil, com uma edição que funciona nas quebras e nas continuidades de modo desenvolto. A trilha sonora tecnológica de Marc Canham também remete àquela de Trent Renzor e Atticus Ross, de A rede social, assim como a atmosfera lembra a da obra de Fincher com elementos mais pop.

Também chama a atenção que o diretor e roteirista J Blakeson seja o mesmo de A quinta onda, um filme apocalíptico bastante desencontrado, com Grace Chlöe Moretz e vários jovens em atuações problemáticas. Não apenas Blakeson consegue desenvolver um filme com imagens fortes e atrativas, ao contrário deste anterior, como distribui a trama de maneira lúcida, levando a personagem de Pike a caminhos diferentes. Do mesmo modo, ele trabalha o visual dela de modo muito interessante, situando-a sempre com cortes de cabelo simétricos, como se fosse um reflexo de sua obsessão pela matemática dos roubos que comete.
Pike consegue transitar entre uma certa ousadia, uma frieza e traços de sociopatia, no entanto ela consegue ser tão verossímil que, por alguns instantes, parece ter algum sentimento principalmente em relação à amante, mesmo que seja pelo posicionamento incontornavelmente absurdo. Não se deve buscar em suas atitudes um elemento didático: ela é quase alguém inatingível pelas ações que retoma. E, apesar da crítica ao sistema de saúde, não há nada que se aproxime de Steven Soderbergh, mesmo que o tema remeta ao seu Distúrbio, em que uma pessoa era aprisionada numa clínica. Ao mesmo tempo, não é possível levar a sério a trama, mesmo quando ela atinge pontos dramáticos, para não sentir certa frustração.

Embora não seja exatamente um filme engraçado, o que vai acontecendo à personagem é digno de uma sátira com a sociedade de modo geral. Eu me importo tem como sua principal característica colocar em xeque a relação ao domínio do homem em determinado universo e de como certas ameaças podem não ressoar tão plenamente em relação a Marla. Isso não soa previsível como poderia, mas adquire uma grande margem de abertura, não apenas pela atuação de Pike, como também pelas ótimas participações de Dinklage, Wiest e Logan, além de González ser vulnerável nos momentos certos. Dividido com clareza por meio de uma edição fluida, o filme de Blakeson alcança um êxito inesperado mesmo quando a história se encaminha para algo ainda mais inexplicável. Não foge aos percalços do gênero, em que boa parte das ações acontece fora de qualquer programação, no entanto entrega bem mais do que se espera da situação, criando um desenvolvimento inteligente para atingir seus objetivos.

I care a lot, EUA, 2020 Diretor: J Blakeson Elenco: Rosamund Pike, Peter Dinklage, Eiza González, Chris Messina, Macon Blair, Alicia Witt, Damian Young, Isiah Whitlock Jr., Dianne Wiest Roteiro: J Blakeson Fotografia: Doug Emmett Trilha Sonora: Marc Canham Produção: Teddy Schwarzman, Ben Stillman, Michael Heimler, J Blakeson Duração: 118 min. Estúdio: STXfilms, Black Bear Pictures, Crimple Beck Distribuidora: Netflix

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