A bela e os cães (2017)

Título original: Aala Kaf Ifrit / La belle et la meute

Título em inglês: Beauty and the dogs

Países: Tunísia, França, Suécia, Noruega, Líbano, Catar, Suiça

Duração: 1 h e 40 min

Gêneros: Crime, drama, thriller

Elenco principal: Mariam Al Ferjani, Ghanem Zrelli, Noomen Hamda

Diretora: Kaouther Ben Hania

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt6776572/


Cães são animais. Seres humanos são animais. Cães têm quase nenhuma racionalidade. Seres humanos são as criaturas mais racionais do planeta. Contudo, a característica mais diferenciadora entre os seres humanos e os cães, a racionalidade, que é a capacidade de exercer a própria razão, às vezes desaparece e os seres pensantes se tornam irracionais, assim como os animais – movidos por instintos. Além dessa constatação, há, em “A bela e os cães“, uma série de pontos de interesse que devem ser digeridos pelo espectador e que se adequam à realidade da sociedade tunisiana contemporânea, na qual as mulheres começam a adquirir alguns direitos, principalmente a liberdade quanto a diversos aspectos da vida no país, entretanto toda grande mudança de comportamento e pensamento demanda tempo e nem sempre é de fácil aceitação, principalmente pelas pessoas que preferem vivenciar o passado que melhor lhes convinha – como alguns homens. Por se tratar de uma narrativa que versa sobre um sobre estupro cometido por policiais, automaticamente vem à mente temas como misoginia, que era latente na Tunísia de outrora e hoje é relativizada devido às mudanças que acontecem em todo o mundo, principalmente referentes à inclusão e a igualdade entre as pessoas. Trata-se de um filme angustiante, que representará muito bem o país na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2019.

A história gira em torno da jovem Mariam, a qual está organizando uma festa para seus amigos em uma boate. Após trocar de vestido no banheiro do estabelecimento, pois o seu havia se rasgado , e colocar uma peça bastante sensual – parecia uma camisola – trazida por sua amiga, ela volta para a pista de dança e troca olhares com um rapaz misterioso chamado Youssef. Após se conhecerem, os dois saem para dar uma volta na praia e um grave incidente acontece: Mariam é estuprada e então começa uma jornada, entre hospitais e polícia, pela  busca da dignidade perdida.

A narrativa é contada explicitamente em 9 capítulos. Cada um desses capítulos mostra um plano-sequência, que, na linguagem cinematográfica, é um plano que registra a ação de uma sequência inteira, ou seja, sem cortes. O primeiro, na boate; o segundo, na rua e em uma clínica particular, com Mariam em estado de choque após o estupro; e assim sucessivamente. Assim, a história vai sendo contada de forma didática. Um bom artifício se não existissem pontas soltas que vão sendo deixadas para trás e não são explicadas ao longo das cenas subsequentes. Como acontece em vários outros roteiros, há informações que ficam subentendidas, que ficam à mercê da imaginação do espectador. Nem o próprio ato criminoso é mostrado escancaradamente – só relances que são mostrados num celular ao lado do corpo desmaiado de Mariam no chão da delegacia, na cena que considero a mais forte do filme -, numa tentativa de conceder mais mistério ao roteiro, pois o primeiro suspeito é, sem dúvidas, Youssef. Mesmo após as revelações de Mariam, ainda assim um clima de dúvida paira no ar por algum tempo, até quando os fatos vão sendo elucidados. De qualquer forma, trata-se de um filme não conclusivo e que deve ser interpretado ao pé da letra em relação ao título: o mote é a interação entre a bela e seus agressores, os cães, diga-se, os policiais.

A peregrinação nos hospitais lembra bastante o filme romeno “A morte do Sr. Lazarescu“, que já foi comentado no blog e cuja crítica pode ser acessada clicando-se aqui. Burocracia, medo da polícia, ineficiência e descaso são apenas alguns aspectos que a jovem tem que lidar em sua aventura humilhante nos hospitais em busca de um documento que comprove a sua violação – primeiro passo para a busca de seus diretos -, entretanto, o contexto policial é o que adquire maior importância, afinal os bandidos estão dentro da corporação. A partir daí o filme entra no modo angústia máxima e começa a provocar revolta. A narrativa começa a inserir atitudes de misoginia – como já comentado anteriormente -, abuso de poder e intimidação por parte dos policiais para encobrir os fatos e colocar um peso imensurável sobre as costas da protagonista, que só tem 21 anos. Toda a sua resiliência é posta à prova, mesmo tendo Youssef como uma espécie de escudo, mas, no fim das contas é a bela jovem que deve suportar toda a pressão a que está sendo submetida – que é facilmente passada para o espectador.

Ademais, há resquícios da aplicação de tradições do país, principalmente relacionadas às restrições impostas ao sexo feminino, desnudadas nas poucas cenas em que Mariam interage com seu pai, mesmo que indiretamente. Uma mulher que perde sua virgindade, mesmo que num estupro e mesmo com a mudança de paradigmas sociais já aludida, ainda terá muitos problemas em sua vida por isso e será mal vista pela sociedade local. A honra é um valor muito importante em alguns países do mundo, principalmente no que tange ao comportamento sexual das pessoas, diga-se, das mulheres. Quando o cinema mostra a realidade, sempre é muito bem-vinda, para que nos aproximemos dos problemas do mundo e das mais variadas e particulares variáveis que os países do mundo utilizam em busca de uma solução para eles. Cada país administra as condutas de seus cidadãos de acordo com suas leis, sua cultura e suas tradições, entretanto, o estupro é um crime universal, que não pode ser relativizado em hipótese alguma. É bom informar que o filme é livremente inspirado em um caso real ocorrido na Tunísia e, como não mostra algum tipo de desfecho – como o julgamento dos agressores, por exemplo -, fica a cargo do espectador imaginar uma saída para o caso baseando-se no que foi mostrado. Uma mulher que o destino guiou para o covil dos homens. Isso é “A bela e os cães“. Apenas isso!

O trailer, com legendas em inglês, segue abaixo.

Adriano Zumba

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