Conflitos de uma casa grande

O filme começa com o plano-sequência de um homem que se banha e ouve música em sua jacuzzi rodeada de um suntuoso jardim, no quintal de um casarão imponente que, em segundo plano, ocupa o centro da tela.

Enquanto vemos os créditos iniciais, o homem sai lentamente de seu banho, cobre-se, rodeia a piscina entra em casa e desliga a música. A partir daí, acompanhamos de longe (a câmera ainda está no mesmo lugar) as luzes da mansão sendo apagadas e as várias trancas de portas e janelas sendo acionadas. Quando a última luz se apaga, surge, em letras garrafais, o título: Casa Grande.

Curiosamente, assim que o letreiro que intitula o filme de Fellipe Barbosa desaparece, a janela de um dos quartos se ilumina e a cena termina. Somos, então, apresentados a Jean, um adolescente de 17 anos que, agora, tenta sair silenciosamente da mansão, desvencilhando-se das trancas e alarmes sem acordar a família, a fim de chegar ao quarto de Rita, uma das empregadas, com quem terá um breve diálogo e alguma intimidade.

Para além das questões sociais que permeiam todo o filme e que se evidenciam mais à medida que a narrativa evolui, parece ser, na verdade, esta dialética familiar a questão central de Casa Grande: de um lado, um pai que tenta a todo custo manter o padrão e o status de sua família de classe média alta enquanto as finanças não vão nada bem; do outro, um filho que vê suas vontades entrarem em conflito com as projeções e desejos dos pais – se Hugo, o pai interpretado com sobriedade por Marcelo Novais, quer que Jean (Thales Cavalcanti) estude Economia, o menino quer estudar Comunicação; se a determinação é que o garoto chegue em casa em certo horário, em dado momento ele chegará atrasado e não fará questão de se importar em não acionar os alarmes; eis uma quase arquetípica representação de uma relação familiar conturbada.

Ainda que não determine de fato, esse embate direto ao menos ensaia uma discussão sobre a dissolução da família (e da classe média, talvez) que, no filme, se torna ponto de partida para uma crítica sociológica sobre as estruturas que funcionam e regem o país desde os tempos do Brasil Colonial.

É, por exemplo, quando pai e filho brigam fisicamente, à beira da piscina, em certa altura do filme, que ouvimos a constatação daquilo que pode ser visto como um sintoma dessa dissolução: a mãe, aparentemente deslocada em cena, grita sem saber o que fazer. “A gente não faz isso nessa casa!”, ela diz. Ou, ainda, na emblemática cena do falso sequestro. Aqui, todas as peças estão em jogo, cumprindo seus papéis – o primogênito ausente, a mãe desesperada que acha que reconheceu a voz de Jean ao telefone, a filha mais nova que, apesar de ser claramente a personagem mais sensata do filme, nunca é ouvida e, por fim, o pai que oferece uma quantia ínfima para o resgate do menino e que, ao constatar que se trata de um trote, declara sua sentença: “Então, mata!”.

Embate esse que também sugere incomunicabilidades. Entre gerações – a imagem de Hugo e Jean, pai e filho, um em cada lado de uma das portas do casarão, batendo e socando a porta enquanto trocam ofensas através da madeira – e entre classes – o incômodo silencioso de Jean, no ônibus, quando um homem negro senta ao seu lado, ou a cena do churrasco em que Luiza, a namorada parda e cotista do rapaz, defende com unhas e dentes o sistema de cotas.

Assim, não é à toa que Jean (com pronúncia francesa, s’il vous plaît), filho de família rica e aluno de escola particular em bairro nobre do Rio de Janeiro, só encontre algum refúgio e paz no quarto da empregada, na companhia do motorista Severino, ou no forró onde aprende a dançar com Luiza, a namorada moradora de São Conrado (que Jean confunde com a Rocinha).

É como se Casa Grande, que o diretor Fellipe Barbosa não por acaso dedica para seu pai, sua mãe e seus irmãos, fosse um ensaio sobre a crise da família enquanto modelo estrutural de sociedade e, por consequência, sobre o Brasil em tempos de crise.

Assim, Casa Grande talvez seja uma constatação um tanto quanto conformada, ainda que contrariada; uma análise inconclusa de sintomas que se evidenciam no choque de realidades; uma investigação diagnóstica, ainda em curso, ainda aberta (como uma ferida), da sociedade brasileira.

 

Gustavo Guilherme

Vitória, 2015

 

(texto publicado na Revista Pensar do jornal A Gazeta em 30/05/2015)

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