O que o novo filme Bourne pode ensinar ao Brasil?

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Bourne, M.I.A. e Snowden: a ficção da franquia Bourne é muito mais real do que gostaríamos

Este mês chegou aos cinemas o novo filme da franquia Bourne, baseado no agente secreto dos livros de Robert Ludlum, e são muitas as razões pelas quais o filme vale o ingresso, além da própria diversão em si.

Vale a pena porque marca a volta de Matt Damon ao papel principal, já que ele não estava no filme anterior da série. O Legado Bourne (Bourne Legacy, 2012) foi estrelado por Jeremy Renner, o Gavião Arqueiro dos Vingadores da Marvel, e dirigido por Tony Gilroy, ao invés do Paul Greengrass dos filmes anteriores. Além destas baixas o Legado não era baseado em um livro de Ludlum, criador da série. Por todas essas razões existia uma possibilidade enorme dessas mudanças não colarem e de fato não colou. Depois disso, sempre sondado para retornar ao personagem, Matt Damon condicionou sua presença a volta de Greengrass e este, por sua vez, não queria retornar a franquia por falta de um roteiro que o convencesse após os descaminhos do quarto filme. Mas, para a alegria dos fãs, a exigência de Matt foi atendida.

Então este Jason Bourne (2016) traz o ator e o diretor de volta a seus postos como nos melhores filmes da série. Mas não são apenas nas glórias passadas que se apoia a nova empreitada e as novidades também valem o ingresso. Uma delas está na escalação do elenco.

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Vincent Cassel estréia na franquia

O agente rival de Bourne da vez ficou na mão de Vincent Cassel. Isso mesmo, Vincent Cassel (já pode chorar). Embora o ator não entregue uma performance memorável, Vincent Cassel é Vincent Cassel e qualquer filme com ele não precisa de outros motivos pra existir. É só emoção tê-lo na série Bourne e contracenando com Damon.

Há também a estreia da atriz Alicia Vikander na saga, num papel que normalmente seria entregue a um ator, seja em outros momentos da indústria cinematográfica ou em outras franquias, já que em Supremacia e Ultimato Bourne (2004 e 2007 respectivamente) a atriz Joan Allen já desempenhava um papel similar. Nisso, os filmes de Jason Bourne se distanciam enormemente da outra serie protagonizada por um agente secreto com as mesmas siglas JB. Bond, James Bond.

Existe até um termo para as coadjuvantes dele, as Bond Girls, que não são muito mais que apenas um rostinho bonito e par romântico erotizado. Mas convenhamos, desde Identidade Burne (2002) de Doug Liman que esse outro agente secreto poderia ter se aposentado.

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Alicia Vikander como Heather Lee

Completam o maravilhoso elenco o veterano Tommy Lee Jones e Julia Styles. Esta vinda dos outros capítulos com sua personagem Nicky Parson, que aqui é essencial para o inicio da trama e nos introduz numa mudança sensível, mas, fundamental no tema da série. Se até os filmes anteriores a ação estava centrada no risco de divulgação de projetos secretos envolvendo assassinatos de políticos e lideres influentes pelo mundo – sendo Bourne um agente secreto treinado para ser um assassino em nome do governo e que acaba se rebelando e fugindo do programa – desta vez o escândalo é a expansão do controle informacional por parte do governo norte americano invadindo o direito à privacidade de pessoas no mundo todo.

Parson se une a um hacker e planeja divulgar um novo programa secreto de monitoramento baseado nos dados de usuários de uma rede social. Bingo.

Com isto a série se renova e ao mesmo tempo que se reconecta com os melhores momentos dos filmes anteriores, também se conecta com a realidade que eles já prenunciavam.

O filme Ultimato Bourne foi lançado seis anos antes de Edward Snowden divulgar um programa secreto americano de monitoramento global que poderia usar dados do Google ou Facebook, por exemplo. O PRISM e outros programas revelados ao jornalista Glen Greenwald e a cineasta Laura Poitras, foram expostos no jornal The Guardian e forçou a fuga de Snowden bem como complicações aos demais envolvidos. Em um dos episódios reais, o presidente Evo Morales fez um pouso de emergência na Áustria por falta de combustível, pois teve autorização de voo sobre o espaço aéreo negado em quatro países europeus. Isso porque o governo dos Estados Unidos acreditou que Snowden estivesse também a bordo, e capturá-lo era valioso o suficiente para arriscar derrubar um aviação com um chefe de estado latino.

Edward Snowden Gives First Interview In Russia
o ex-analista de sistemas da NSA, Edward Snowden

Mas o que isso tem a ver com os filmes Bourne?

Só para exemplo, em uma cena do citado filme de 2007, sem merecer grande destaque, uma tecnologia de monitoramento global, muito similar as reveladas por Snowden, é utilizada para monitorar ligações de celular e a agencia NSA também está envolvida. Na ficção, um programa emite um alerta quando um jornalista inglês diz uma palavra-chave, no caso o nome de um projeto secreto: Blackbriar. E para que jornal ele escrevia? Isso mesmo, o The Guardian que publicou as denuncias de Snowden mais tarde. O jornalista não era uma pessoa monitorada em especial, era só mais um monitorado no mundo, assim como se provou por extensos documentos ser a realidade.

Quantas pessoas não devem ter julgado serem alucinações do cinema pop de espionagem e teoria da conspiração. Mas o filme foi perdoado mesmo antes de provar estar certo, afinal era apenas ficção.

Quem não foi perdoada foi a M.I.A., que abriu seu álbum de 2010,  /\/\/\Y/\, com a musica The Message, que também versava sobre monitoramento norte americano através do Google. Na época, as criticas vieram de todos os lados, pixando como rap paranoico, infantil, de teoria da conspiração e uma forma constrangedora de iniciar um álbum que se pretende ser levado a sério. Quando em 2013 o caso Snowden veio a tona no jornal inglês, ela revidou. M.I.A. publicou em seu Tumblr diversas das matérias que riram de The Message, de Washington Post a Pitchfork. M.I.A. triunfava e a realidade se mostrava tão perversa quanto a ficção Bourne. O analista de sistemas da NSA foi inclusive comparado ao personagem em uma matéria da revista The Diplomat, Edward Snowden: the real Jason Bourne?

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M.I.A.

As revelações sobre o serviço de inteligência dos EUA jogou sujeira para todos os lados, inclusive para o Brasil, criando uma saia justa diplomática quando se revelou que a presidenta Dilma também tinha suas ligações monitoradas. O alvo? A Petrobrás.

Mais recentemente, quando Dilma foi novamente monitorada, desta vez pelo juiz de primeira instancia Moro, e os áudios foram expostos no Jornal Nacional no mesmo dia em que foram gravados, Snowden publicou em seu Twitter: “Três anos após as manchetes de escuta a @dilmabr ela ainda está fazendo chamadas não criptografadas”.

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Hoje, a teoria da conspiração envolvendo o afastamento da presidenta Dilma Roussef é de que não passa de um golpe branco, protagonizado por seus antagonistas políticos nacionais com apoio norte americano. Um dos divulgadores lunáticos da teoria conspiratória é, vejam só, novamente Glen Greenwald, o jornalista da versão real da história. Outro que também aderiu a ideia foi o foragido Julian Assange, que, como Glen, também prestou apoio a Snowden.

Tanto Assange quanto Snowden pediram asilo ao Brasil. Em uma videoconferência que tive o privilegio de estar presente, no auditório do Centro Cultural São Paulo, o ativista do Wikileaks também pediu a Dilma asilo a jornalista americana Sarah Harrison, parceira no Wikileaks

Agora, a série toma consciência de sua pertinência no tema que antes era apenas periférico na trama, e se conecta de vez com estes personagens reais que estão certamente entre os mais importantes deste inicio de século. No novo filme o próprio Snowden é citado. A preocupação de Greengrass com o roteiro rendeu belos frutos.

No roteiro de Jason Bourne, há ainda outro personagem muito interessante, uma versão ficcional de Mark Zuckenberg. Riz Ahmed interpreta Aaron, o criador de uma rede social que pretende coletar dados de seus usuários para utilização escusa governamental e quando as coisas se complicam e ele pensa em pular fora da parceria, a primeira opção para persuadi-lo a reconsiderar a parceria com o governo é justamente a ameaça de iniciar um processo jurídico que pretende esmiuçar as contas da empresa para detectar irregularidades.  Sem precisar ser didático demais, a relação disso com uma justiça messiânica contaminada por agendas político partidárias brasileira é fácil demais. A saga tem mostrado, desde sempre, as tendências de um estado totalitário perpetuado da forma mais insuspeita possível e os roteiros parecem escritos sob medida para nosso momento.

De volta a versão real, nenhum dos pedidos de asilo foram atendidos pela presidenta que hoje está afastada e com a reputação manchada por sucessivos casos de corrupção em seu governo, os mais alardeados envolvendo a estatal Petrobras, por coincidência, a mesma espionada. Inclusive a Petrobrás está presente noutro vazamento famoso, o Cablegate do Wikileaks. A divulgação de telegramas diplomáticos estadunidense que colocou Assange no topo dos mais procurados pelo EUA revelou troca de emails em que o político profissional José Serra lhes promete o petróleo do pré-sal, até então, de exclusividade nacional. Hoje, ele é Ministro das Relações Exteriores do governo acusado de golpe e foi autor do projeto de lei que desobrigava (adoro a cara de pau dessa palavra) a estatal a explorar sozinha o pré-sal. Curioso como os personagens e fatos se conectam nessa grande coincidência.

Na videoconferência, Assange afirmou que 98% da comunicação da America Latina passa pelos EUA, mesmo a comunicação interna de seus governos.

Tudo paranoia rapper naif, claro.

O brasileiro deveria assistir mais a saga Bourne. Ver e rever e tirar alguma coisa daí.

Uma suspeita… de que sua ficção é mais real do que gostaríamos que fosse.

Jason-Bourne

 

Publicado por desorel

Membro do grupo de quadrinistas Aicopop, membro da banda Lex Complex, escritor.

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