Primeira adaptação Hollywoodiana de um livro de Ryu Murakami é digna do autor

Piercing

Um brutal mergulho num submundo de sexo e autodestruição, Piercing segue sem lançamento no Brasil

Lançado no primeiro dia de fevereiro deste ano nos EUA e sem previsão de estreia no Brasil até o momento, o filme de Nicolas Pesce é modesto em tudo, exceto em seu resultado cinematográfico preciso. Um tortuoso embate entre vitima e assassino, onde ambos se igualam em insanidade.

Podemos dizer que o escritor Ryu Murakami, autor do romance que deu origem ao filme, é um privilegiado quando o assunto é ter sua obra revisitada sob o olhar de outro artista. Seu romance Audition, adaptado para o cinema em 1999 por Takashi Miike, transformou-se num marco para o cinema extremo, aplaudido pela critica internacional e entrando seguramente para a história do horror no cinema. Mesmo com suas características peculiares, o filme Audition (O Teste Decisivo no Brasil) conseguiu transpor as barreiras do seu nicho ganhando até mesmo espaço no 1001 Filmes que você deve ver antes de morrer, popular livro de referencia organizado por Steven Schneider.

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Com tamanho sucesso, Ryu Murakami se empolgou tanto com adaptações para o cinema a ponto de deixar carta branca para que Takashi Miike filmasse qualquer outro livro que quisesse de sua autoria. E de fato, informações de que o diretor japonês – cultuado por figuras como Quentin Tarantino e Robert Rodriguez – levaria ao cinema outro romance do autor percorreu o mundo da cinefilia.

Desde então muito tempo se passou e esse projeto pareceu esquecido no meio da produção frenética do diretor, um dos maiores workaholics do cinema contemporâneo, com uma média de quatro filmes por ano.

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Até que surgiu o trailer desta adaptação hollywoodiana de Piercing, romance de Murakami lançado em 1994 e traduzido para o inglês em 2007. A direção ficou por conta de Nicolas Pesce, sendo este seu segundo longa, precedido pelo bem sucedido Os Olhos de Minha Mãe. Ainda assim, mesmo que indiretamente, Takashi Miike teve seu mérito para que esta obra ganhasse vida. Seu nome está lá nos créditos finais, mais precisamente nos agradecimentos.

Acontece que Pesce é outro grande fã de Audition, e o filme japonês foi sua porta de entrada para o universo desconcertantemente cru de Murakami, cujo livro de estreia Azul Quase Transparente impactou a cultura japonesa ainda na década de setenta justamente por, entre outras qualidades, esta sua característica. Para o novaiorquino, o filme lhe indicou o livro e o livro o fez ter certeza de que gostava do autor. E foi ainda durante a produção de Os Olhos de Minha Mãe (Eyes of my Mother, 2016) que Pesce leu descompromissadamente Piercing e o impacto que teve sobre ele já sabemos.

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Na trama, não é segredo que Reed, encarnado lindamente por Christopher Abott, é um homem extremamente desequilibrado já que logo na primeira cena do filme o vemos com um picador de gelo pronto para assassinar seu próprio filho recém nascido enquanto este dorme, sendo interrompido por sua esposa que desperta no meio da noite. A esposa é vivida pela atriz espanhola Laia Costa, a mesma do longa plano sequencia Victoria (2015). Daí em diante vemos o atormentado arquiteto – no livro ele era um designer gráfico – preparar-se para uma viagem que afirma ser profissional, mas que na realidade trata-se de parte de seu meticuloso plano para cometer um assassinato.

Além de Miike e Murakami, Pesce conjura um universo de outras influências que vão desde a moda até as artes plásticas, passando pelo design de telefones Iugoslavos e as belas maquetes da cidade, que dão um show a parte ao serem evidenciadas a cada tomada. Entre tantas referencias e preciosidades, como obras de Vik Muniz e Nobuyoshi Araki, salta aos olhos o clima giallo, em cores fortes, split de tela e até mesmo trilha sonora do grupo Goblin, cujo filme empresta faixas dos clássicos Tenebre (Tenebrae, 1982) e Preludio para Matar (Profondo Rosso, 1975), ambos dirigidos por Dario Argento e com trilha do grupo de rock progressivo.

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split de tela mostra personagens em diferentes cidades simultaneamente

Detalhista ao extremo, o psicótico Reed vê-se num dilema ao descobrir que a mulher que havia contratado, supostamente para sexo, não estará disponível na hora planejada, o que faz com que ele – obcecado por minucias que incluem a hora de começar e o tempo exato que necessitaria para concluir seu crime – substitua a profissional por qualquer outra prostituta disponível no horário correspondente ao seu plano de assassinato. E assim a trama nos introduz a personagem Jackie, interpretada pela gigante indie Mia Wasikowska.

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Mia Wasikowska é Jackie

Com Mia vem outra contribuição para o universo de influências do filme. Além de sua atuação impecável, um trabalho maduro, de grande entrega e muita verdade, ela trouxe também know-how colhido de seu trabalho com Chan Wook-Park, no filme Segredos de Sangue (Stoker, 2013), o que partilhou com Nicolas Pesce ao longo das filmagens e segundo o diretor teve sua contribuição no resultado final.

Apesar de estar candidato à filme cult e preciosidade escondida daqui a alguns anos, Piercing é mais uma vez em que Murakami vê seu legado respeitado em toda sua sublime sordidez.

Publicado por desorel

Membro do grupo de quadrinistas Aicopop, membro da banda Lex Complex, escritor.

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