Eu não sou um homem fácil (2018) e o mundo que nós feministas queremos
Damien (Vincent Elbaz) é um homem machista. Todas as suas atitudes são machistas, tanto é que os primeiros minutos do filme são cheios de reviradas de olhos por parte da espectadora do gênero feminino. Isso até que, ao virar-se para assobiar para duas meninas, Damien bate a cabeça em um poste e perde ligeiramente a consciência. Ao acordar, ele está num mundo invertido.
Neste mundo, as funções, estereótipos, abusos e preconceitos com relação a homens e mulheres foram invertidos. As mulheres têm a maioria dos cargos de chefia, e não veem problema em assediar seus funcionários do gênero masculino. A maioria dos livros foi escrita por mulheres, e sobre mulheres. A maioria dos prêmios científicos e acadêmicos também é entregue para mulheres. Os homens cuidam das tarefas domésticas, dos filhos e têm pouco destaque na vida social. As mulheres seduzem os homens e colecionam conquistas, e muitas inclusive os usam e jogam fora, como faz a escritora Alexandra Lamour (Marie-Sophie Ferdane).
Neste novo mundo, as mulheres assobiam e fazem gestos obscenos para os homens vestidos de short curto e blusa transparente. Damien não fica confortável com essa nova dinâmica. Ele também não aceita o avanço sexual da chefe e não vê razão por seu projeto de aplicativo ter sido recusado e no local encomendado o projeto de uma mulher. Ele não gosta do jeito independente de Alexandra, nem da maneira como ela objetifica os homens a seu redor — a começar por seu assistente.
O mundo invertido não é o mundo que as feministas querem. Ele é apenas invertido. E por isso mesmo a reflexão funciona: se tudo fica tão absurdo quando os homens são objetificados e considerados inferiores, por que todas estas mesmas situações parecem tão normais quando são as mulheres que estão sendo oprimidas?
Não, não é porque “o mundo é assim mesmo”. Não é porque seu “deus” quis assim. Não está escrito na Bíblia. Não é a lei da natureza. É o que foi normalizado durante séculos de domínio do patriarcado e, apenas quando visto de modo invertido, pode ser totalmente compreendido como imoral, ilegal, absurdo e sufocante — porque as situações pelas quais toda mulher já passou de repente parecem insuportáveis para um homem como Damien, que era ele próprio um agente do machismo.
Ao descobrir que este filme entraria no catálogo da Netflix, um misto de animação e medo tomou conta de mim. Animação por poder ver mais um filme dirigido por uma diretora francesa, e ainda falando sobre desigualdade de gênero, e medo de o filme fazer mais mal do que bem para o debate sobre feminismo, dissipando ideias errôneas. Felizmente, meu medo se mostrou infundado, porque a competente Éléonore Pourriat foi a responsável pela direção e por parte do roteiro.
Assim como eu, você já deve conhecer Éléonore, mas não está ligando o nome à pessoa. Ela dirigiu, em 2011, um curta exatamente sobre o mesmo tema, chamado “Majorité Opprimée” (Maioria Oprimida), que teve grande repercussão, inclusive se tornando viral. Éléonore tinha mais do que o necessário de experiência e boa visão para um filme sobre feminismo — e ainda conseguiu criar um final criativo que, apesar de não agradar a todos, fugiu dos clichês.
Já disse que nós não queremos um mundo machista — dominado pelo homem — nem femista — dominado pela mulher. Feminismo não é sobre superioridade, é sobre igualdade. Colocar homens e mulheres no mesmo patamar de poder, de direitos, de renda, de tudo, será benéfico para todos — inclusive para os homens, que deixarão de acreditar que “homem não chora”, cuidarão melhor da saúde física e mental e verão que muitas das características da masculinidade não são nada saudáveis.
“Eu não sou um homem fácil” é ágil e louvável. O filme funciona como uma introdução à igualdade de gêneros, talvez um “feminismo para iniciantes”. Ele toca na ponta do iceberg da desigualdade, e pode — deve! — servir de ponto de partida para outros debates, reflexões, discussões e questionamentos sobre igualdade de gênero.