O Conto / The Tale (2018): vale a pena mentir para seguir em frente?

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
6 min readAug 19, 2018

--

Laura Dern e Isabelle Nélisse (Imagem: reprodução)

ALERTA: SPOILERS E GATILHO PARA ABUSO SEXUAL

A vida da documentarista Jennifer Fox (Laura Dern) segue sem problemas até que sua mãe (Ellen Burstyn) descobre um conto que Jennifer escreveu aos 13 anos e liga para a filha, preocupada. Jennifer pensa que o conto é sobre seu primeiro namorado – o que no fundo é, pelo menos para Jennifer. O conto é sobre como ela foi manipulada por dois adultos até ser estuprada.

Aos 13 anos, Jenny (agora interpretada por Isabelle Nélisse) foi passar as férias na fazenda de Jane Gramercy, ou Sra. G (Elizabeth Debicki), para ter aulas de hipismo, e lá conhece o técnico de corrida Bill (Jason Ritter). No final das férias, Bill e a Sra. G começam com um estranhíssimo e sedutor papo de “formar uma família” com Jenny, tendo como base a ausência de mentiras. Eles começam contando para ela que são amantes – algo muito bizarro para ser contado para uma menina que está entrando na adolescência.

Bill (Jason Ritter) e a Sra. G (Elizabeth Debicki) (Imagem: reprodução)

Mas Jenny acha isso o máximo. A fazenda se torna seu refúgio de final de semana, e Bill e a Sra. G uma alternativa moderna e compreensiva à numerosa e aparentemente chata – na verdade, zelosa – família de verdade de Jenny.

Não demora para que ela fique sozinha com Bill, estimulado pela senhora G., e ele, dizendo que ela era “intensa” e “diferente das outras meninas”, a convence a lhe mostrar os seios, a beijá-lo na boca e, mais tarde, a transar com ele. Nesse momento, ele diz a nojenta frase “temos que abri-la devagar”, se referindo ao fato de Jenny ser virgem. Sim, são muitas transas, ou melhor, estupros. E não é porque a menina foi convencida a transar que deixa de ser estupro: ela tinha 13 anos e ele, 40.

As histórias que contamos para nós mesmos

Mesmo assim, Jenny acreditava que Bill a amava. Por isso, mesmo no presente, com quase 50 anos, ela ainda acredita que aquela história é sobre seu primeiro namorado. Ela escreveu o conto mudando algumas coisas, e depois disse à professora que era tudo inventado, assim adiando seu grito de socorro – grito que, se foi dado no filme, foi logo depois da cena final.

E aqui está o problema de Jennifer – embora ela não seja mostrada como problemática antes de sua mãe desenterrar o conto. Mais cedo ou mais tarde teremos de enfrentar nossos traumas e tudo que eles nos causaram. Quando Jennifer faz isso, ainda que estimulada pelo gesto da mãe, ela fica obcecada em lembrar cada detalhe, em reconstituir cada momento, para ter certeza de que sua memória não a está traindo. Ela para de viver no presente quando as lembranças tomam conta de seus pensamentos.

(Imagem: reprodução)

Às vezes, a memória não nos trai, mas sim prefere modificar a verdade para que possamos, num primeiro momento, apenas seguir em frente. É como se tivéssemos um mecanismo como o do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), só que não tão perfeito. Esquecemos o que nos convém, mudamos a verdade para suportá-la. Foi isso que aconteceu com Jennifer ao escrever o conto.

No editorial Nós não vamos desistir do cinema, eu menciono que fui assediada sexualmente em uma sala de cinema. Meu mecanismo de sobrevivência foi, ao mesmo tempo, igual e diferente do de Jennifer. Eu não me esqueci. Lembro-me do filme, de como ele acabava em um atropelamento e de como eu desejei semelhante morte ao assediador, lembro-me das roupas que eu usava: roupas de frio, estava com o corpo todo coberto (por isso posso dizer que “não estava pedindo” caso a patrulha que não acredita em cultura do estupro venha insinuar) e usava um casaco que nunca mais tive coragem de vestir. Não contei para minha família na época, quando eu tinha 18 anos, porque achei que eles não acreditariam – Jennifer não contou para a família porque estava se rebelando, e porque acreditava que Bill a amava. Mas eu também escrevi um conto para sobreviver. Nele, catarticamente matei o assediador – sim, foi uma mentira que me ajudou a seguir em frente.

Esta foi minha jornada. Para outras vítimas de assédio e abuso, pode ser diferente. Para Jennifer, foi diferente. Aliás, ela sequer suportava ser chamada de vítima, pois ainda estava em negação, acreditando que tudo havia sido um romance que poucos poderiam compreender. Ela inclusive tenta relativizar a situação, dizendo que tudo aconteceu “em outros tempos”, nos anos 70 do amor livre, e por isso não era nada assim tão grave. É só quando ela trilha seu caminho – que envolve refazer os passos, voltar ao local do trauma e inclusive procurar Bill – que ela vai se curando. E quem disse que se curar é fácil?

Isso significaria então que não devemos acreditar na vítima, porque ela estará quase sempre mentindo, em negação – quando diz que nada aconteceu e quando diz que aconteceu? De maneira alguma. Denunciar o assédio é complicado demais exatamente por causa do julgamento e dos incrédulos, céticos ou simplesmente odiosos. Denunciar o assédio é parte da recuperação, nada tem a ver com vingança e é um ato de empatia – porque um assediador raramente faz uma só vítima.

A jovem Jenny (Imagem: reprodução)

Falar sobre o trauma é a essência da psicanálise – mas é preciso falar a verdade para que a terapia funcione. Filmar o trauma também pode ajudar – e é isso que a diretora de “O Conto” fez. O nome desta diretora? Jennifer Fox. Sim, é a história real dela que vemos na tela. Ela escolheu, aos 13 anos, congelar os abusadores no tempo através de seu conto e seguir sua vida – assim como Bill e a Sra. G seguiram as deles, fazendo mais vítimas ao longo do caminho.

Jennifer Fox começou a desconfiar do romance que moldou seu caráter em 2006, quando fazia o documentário “Flying: Confessions of a Free Woman” e ouviu muitos relatos de abuso que era iguais ao “romance” que ela havia vivido. Foi o estopim para ir atrás do conto e então encarar os fatos – incluindo o fato básico de que sua mente não via abuso, mas seu corpo via porque ela vomitava quando pensava em Bill e na Sra. G.

“O Conto” demorou para ser financiado, mas chega em boa hora. Em tempos de #MeToo, todas as mulheres merecem ser ouvidas, mesmo aquelas que romantizaram o abuso. Talvez elas sejam as que precisam ser ouvidas mais que quaisquer outras, para que elas falem e falem sobre o ocorrido, até aceitarem que viveram algo horrível e que precisam de ajuda. A curto prazo, mentir para si mesmo para sobreviver pode ser necessário, mas a longo prazo você só supera um trauma falando a verdade – por mais doloroso que isso seja.

--

--