Retratos Fantasmas | Crítica
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  • Foto do escritorMessias Adriano

Retratos Fantasmas | Crítica

Atualizado: 2 de dez. de 2023


Cachaça, seriguela e limão. Esse foi o cheiro que senti enquanto eu caminhava alguns quarteirões do centro da minha cidade até chegar ao cinema no qual veria Retratos Fantasmas. Um grupo de 4 ou 5 pessoas bebia e jogava baralho na calçada em uma mesa de plástico com patrocínio de cerveja. E aquele odor imediatamente levou minha memória a um mercado público, também no Centro, e ao período no qual lá eu trabalhava. Não poderia haver introdução melhor para o filme de Kleber Mendonça Filho que eu estava prestes a assistir.


Pois é. Mal sabia eu que as memórias relacionadas a um centro urbano também seriam a força motriz desse documentário (sim, eu evito ler sinopses). Com imagens de arquivos e muito material de pesquisa, Retratos Fantasmas investiga a evolução do Recife em termos físicos e emocionais, tendo os cinemas de rua como principais pontos de interesse na trama que quer contar, narrada pelo próprio diretor Kleber Mendonça Filho.


O filme se propõe a ser elástico, indo do geral ao particular e do particular ao geral de forma fluida: vamos do mapa dos quarteirões ao apartamento onde o diretor morou, da vizinhança, ao cinemas no centro, dos filmes clássicos que marcaram a memória de Kleber, aos próprios filmes do diretor cujas inspirações ficam mais claras e cujas imagens são mostradas no documentário (Vinil Verde, O Som Ao Redor, Aquarius, etc). Em meio a tudo isso, ele manipula sentimentos de forma inteligente, forte e assumidamente melodramática: “A gente tem que dizer “eu te amo” pra quem a gente ama”, é o que o diretor narra logo após ouvirmos "O Meu Sangue Ferve Por Você", de Sidney Magal, e vermos imagens do centro do Recife, local e personagem da afeição.

Pessoas em frente a um cinema de rua

Em uma das justificativas para essa declaração de amor, há um momento no qual o diretor constata que nos cinemas do centro pode até haver o escape ou denúncia dentro da sala, enquanto rola o filme. Ao sair da sessão, no entanto, o espectador é lançado de volta à rua, de volta à realidade de forma muito mais abrupta e forte do que quando sai de uma sala num shopping, com luzes e porcelanatos brilhantes, falsa impressão de realidade perfeita. É como se o Centro da cidade também fizesse parte do papel de formação humanista que o cinema tem, complementando e nos lembrando que a tela diverte ou protesta, mas é na rua que o concreto, o real acontece. E esse real normalmente não é perfeito ou belo.


Toda essa narrativa, se trabalhada de forma diferente, desbancaria muito facilmente para o melancólico e hagiográfico, um saudosismo vazio e reclamações aborrecidas sobre os tempos atuais. Não é o caso aqui. É como se Kleber e o Centro reconhecessem que a cidade muda, como mudam todas as coisas. E tudo bem. Não há necessariamente que se reclamar disso, porque talvez não esteja no nosso alcance frear todas as ondas individualmente. Aliás, o narrador também passa longe do intelectualismo pedante que as alguns poderiam esperar de um cineasta (“eu gosto de animais, mas pqp, esses gatos tavam enchendo o saco demais”).


Dentro da lógica dos artistas que precisam ser criativos, há quem defenda que, na concepção de uma obra, “o mais pessoal é o mais importante”. Nesse sentido, o montador Matheus Farias equilibra bem fatos curiosos universais com memórias privadas. Se há um momento no qual a mãe de Kleber fala da pesquisa sobre história oral em uma entrevista antiga, aquilo está ali de forma justificada, não só porque aquela personagem possui importância na arquitetura da casa e da vida de Kleber, mas também porque o próprio discurso sobre história oral tem a ver com as memórias das quais o filme trata. Ainda na montagem, há também a inclusão de rimas visuais divertidas, como no momento que se fala de uma grande parede no qual cartazes de filmes eram expostos, que fora naquela vitrine que Kleber descobriu O Império Contra-Ataca quando pequeno, apenas para o corte seguinte mostrar crianças acompanhadas dos pais passando pelo mesmo paredão, mas sem cartazes, vazio e apático, com um dos meninos inclusive segurando um folheto publicitário. Ou então o momento que vai de um cinema exibindo Suspiria, filme de bruxa de Dario Argento, ao corte brusco para um culto evangélico em um antigo cinema que virou igreja: do templo da arte contestadora ao templo supostamente divino e comportado.

um homem em frente a um cinema de Recife

Igrejas viraram cinemas e cinemas viraram igrejas, numa mutação que talvez esteja longe demais do nosso alcance e controle individual, numa transformação não é particular de Recife, Fortaleza ou São Paulo, mas inerente a praticamente todo grande centro urbano. Ele conta que cachorro que latia na casa vizinha morre, assim como falece a mãe do narrador, numa transformação que não é particular somente de Kleber, mas que, bem, poderia ser de qualquer pessoa, certo? Essas mudanças no espaço físico e emocional ocorrem porque assim é a vida. Passam as coisas, animais e pessoas, restam as memórias.


Minha rotina de trabalho diária no centro passou, ficou a memória olfativa que talvez sempre irá me acompanhar quando eu sentir cheiro de seriguela, limão e cachaça. A cidade muda, a vida muda. Casas charmosas viram grandes torres residenciais sem graça, cinemas de rua desaparecem e viram “locais fantasmas”. No filme, o cachorro do vizinho morre, mas vira fantasma no latido da tv. A mãe de Kleber morre, mas vira fantasma na entrevista, talvez até seja ela na fotografia misteriosa. E nós também vamos desaparecer, ficar invisíveis, sumir, quem sabe virar fantasmas no cinema, na tv ou nas memórias de alguém.


Mas por enquanto, a vida real se desdobra. E as farmácias se multiplicam.


 

Nota: 5/5


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