Interestelar (2014)

Por André Dick

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O gênero de ficção científica costuma ter como parâmetro, quando se trata sobretudo de uma equipe de astronautas viajando ao espaço, dois filmes: 2001 – Uma odisseia no espaço e Solaris. No entanto, se considerássemos o que Tarkovsky achava do filme de Kubrick, certamente só haveria Solaris como exemplar do gênero e se fôssemos considerar a opinião geral não teria existido outros filmes depois, tão interessantes, a exemplo do recente Gravidade e da esquecida obra-prima Os eleitos. Quando Tarantino afirma que não esperava, com o recente Interestelar, de Christopher Nolan, o aprofundamento de obras como 2001 e Solaris, já sabemos que o filme de Nolan terá como ponto de comparação esses dois, pelo menos para quem calcula as probabilidades do filme para as categorias do Oscar. Para Nolan, o ponto de comparação parece um privilégio, à medida que ele é considerado um cineasta de grande estúdio, talhado para fazer blockbusters conceituais, pelo menos desde Batman – O cavaleiro das trevas e A origem.
Interestelar, em termos visuais, pode não superar o antológico 2001, mas colocá-lo em ponto de comparação com Solaris, mesmo considerando a época em que este foi feito, é uma injustiça com Nolan, o cineasta de blockbusters certamente com mais requinte visual. Se não há uma correspondência efetiva entre experiência e história em Amnésia e  A origem se sustenta mais em suas imagens inesquecíveis do que numa qualidade narrativa, assim como O grande truque se baseia numa ideia de montagem enigmática, ele conseguiu transformar Batman, no primeiro filme e em seu último, num herói bastante interessante, com o auxílio da fotografia notável de Wally Pfister.

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Tarkovsky era um excelente cineasta de imagens naturais, como em O espelho e Nostalgia – obras belíssimas –, mas sua visão do universo científico não tinha interessante o suficiente para desenvolver discussões sobre a influência do planeta Solaris na mente de alguns integrantes de uma estação espacial. O elemento teatral de Tarkovsky não é correspondido por uma montagem e por atuações vigorosas. Cada cena de Solaris traz um manancial de questões – quando, na verdade, estamos diante de algo mecânico e remoto, ou seja, Tarkovsky avaliava que 2001 era “frio”, mas é exatamente seu filme que possui essa característica. Perto dele, qualquer filme, e com Interestelar não seria diferente, parece envolver melodramas fáceis.
Em termos de roteiro, Interestelar mistura Os eleitos, Campo dos sonhos e Contato, mas sem diluí-los. Cooper (Matthew McConaughey) trabalhou como piloto de avião, mas depois de um acidente, passou a se dedicar à sua fazenda, onde vive com os dois filhos, Murphy (Mackenzie Foy) e Tom (Timothée Chalamet), e o avô, Donald (John Lithgow). Numa época em que as expedições espaciais caíram em descrédito e uma praga tem atormentado a vida na fazenda, destruindo as plantações e trazendo correntes de poeira, Cooper espera por um milagre. A filha se inclina a seguir seu interesse pela ciência, enquanto o filho deseja continuar com sua trajetória na fazenda. Ambos são complementares, e daí a Cooper ter contato com um antigo professor, Brand (Michael Caine), Amelia (Anne Hathaway), Romilly (David Gyasi) e Doyle (Wes Bentley), é um passo para o roteiro ir estabelecendo seus caminhos que se destinam ao espaço e às estrelas, numa narrativa capaz de mesclar a estrutura de um sucesso comercial com a física e a filosofia, o que rende diálogos bastante incomuns, alguns com o peso da exposição científica, auxiliada pela presença do físico Kip Thorne e suas teorias. De algum modo, o filme lida de maneira interessante sobre as percepções, pois trata também do conhecimento capaz de transformar, ao contrário do que aponta uma auxiliar da escola de Murphy. Depois de conseguir compor uma unidade visual em torno do mundo dos sonhos em seu A origem, Interestelar estabelece uma ligação entre o espaço e as plantações da fazenda de Cooper. O homem só pode se salvar e se manter como indivíduo quando visualiza algo que está além do seu horizonte e dos planos imediatos. Tudo é simbolizado por meio de uma biblioteca, como se o sentimento da humanidade fosse eternizado nela e nada pudesse escapar ao seu redor. Escapa – mas neste imprevisível Interestelar isso significa adentrar no espaço.

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Chama a atenção como o cineasta, sempre mais ocupado com a arquitetura do que está acontecendo (desde seu interessante filme de estreia Following, que acompanhava uma dupla de assaltantes imprevista), consegue introduzir as questões científicas levantadas numa espécie de emoção em sintonia com uma trilha absolutamente memorável de Hans Zimmer, cujo trabalho consegue recuperar tanto os melhores momentos das sinfonias selecionadas por Kubrick para 2001 quanto várias notas do trabalho de Angelo Badalamenti para David Lynch, fazendo o filme de Nolan adquirir uma intensidade emocional quase ausente em A origem, mas já existente no final espetacular de Batman – O cavaleiro das trevas ressurge, no qual há talvez os melhores momentos isolados da trajetória de Nolan. Há diversos momentos filmados por Nolan com uma capacidade visual e emocional de um grande cineasta, com uma escala épica, fazendo o espectador esquecer possíveis grãos espaciais não tão necessários. Para essa característica, é de vital presença a fotografia de Hoyte Van Hoyteman, que iluminou o universo futurista singular de Ela, de Spike Jonze, além dos efeitos especiais e da direção de arte espetaculares.
Embora Nolan continue um cineasta dividido entre o trabalho que se considera artístico – mais silencioso, voltado às imagens – e o blockbuster – e pelo menos ele não nega essa característica de sua obra –, numa busca pelo vilão de uma história, por exemplo, certamente o ponto mais falho de Interestelar, talvez ele nunca tenha se mostrado também tão ressonante. Pela primeira vez de fato, ele consegue, por meio das interpretações, sintetizar suas ideias a respeito da composição não apenas do universo no sentido cósmico, como também no plano familiar e individual. Para o sucesso efetivo de Nolan, a interpretação de Matthew McConaughey, um pouco marcada no início por seu sotaque característico, é absolutamente verdadeira e menos voltada à emoção registrada pelo físico vista em Clube de compras Dallas; trata-se de uma das grandes atuações do ano, em seu ato derradeiro ao mesmo tempo sentimental e consciente. Menos presente, mas do mesmo modo efetiva, é Anne Hathaway, enquanto Jessica Chastain surge como uma das personagens com mais idade e Michael Caine consegue, com poucos diálogos, traduzir uma ligação com sua filha, em mais uma parceria com o diretor depois da série Batman e de A origem. Além de Mackenzie Foy ser uma boa revelação. Esse elenco consegue, de algum modo aparentemente disperso, traduzir a base do roteiro de Nolan com seu irmão: há mais do que uma visão sobre como o amor une as pessoas no sentido material. Em Interestelar, e poucos filmes conseguem isso com a mesma ênfase e sem reduzir os personagens a símbolos, o amor se revela no plano da memória, mas uma memória sem tempo definido. Filhos encontram pais e vice-versa, mas não sabemos quais são aqueles capazes de demonstrar melhor a memória da humanidade. Podem existir outros planetas, mas quem fornece sentido a eles é a ligação entre seres diferentes. Mesmo que haja uma parcela espetacular nas ações de Interestelar, Nolan está mais interessado na afetividade e no resultado que ela proporciona às pessoas: naves, planetas e buracos de minhoca significam, além da viagem, uma permanência intransferível a cada um de nós.

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Trata-se de um argumento aparentemente simples, mas Nolan, de algum modo, consegue torná-lo sólido apresentando um agrupamento constante de imagens e personagens em situações diferentes, mas interligados por uma constante sensação de procura no espaço e no tempo. A vida e a morte se reproduzem ao mesmo tempo, assim como o gelo de um determinado planeta e o fogo nas plantações. E, mais do que tudo: assim como se tenta salvar a humanidade, pode ser, ao mesmo tempo, que tente se salvar apenas uma família perdida no campo. As tentativas parecem destoar em grandeza, mas, para Nolan, colocando-as lado a lado, são iguais, épicas e históricas, cada um a seu modo. Todas as ações repercutem entre si: aquelas do passado e as do futuro, e Interstelar busca uni-las numa mesma visão.
São várias as passagens de Interestelar em que os pontos de humanidade se mostram interessantes: desde aqueles nos quais os personagens se introduzem num ambiente desconhecido e visualmente fantástico até aqueles nos quais estão divididos entre a permanência com os familiares e a passagem no tempo. Nolan, no que talvez supere toda a sua obra, mostra a base de uma tradição familiar de maneira estranhamente original, ainda baseado em certa iconografia dos Estados Unidos, mas conseguindo desenhar as tentativas de sobrevivência e de manter a figura humanas em lugares diferentes no espaço e no tempo. Trata-se de um caminho próprio: enquanto Kubrick estava interessado no mistério que compreende as estrelas, em nossa origem, Nolan fixa o ponto no fato de que as estrelas podem trazer nossas próprias lembranças, já vividas. Interestelar é justamente sobre a passagem do tempo e a memória reservada às pessoas próximas, de como o sentimento se constrói, na verdade, independente de lugares e da distância. É isso que o torna uma obra tão fascinante.

Interstellar, EUA, 2014 Diretor: Christopher Nolan Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Michael Caine, Jessica Chastain, Wes Bentley, John Lithgow, Casey Affleck, David Gyasi, Bill Irwin, Mackenzie Foy, David Oyelowo, Topher Grace, Ellen Burstyn Roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan Fotografia: Hoyte Van Hoytema Trilha Sonora: Hans Zimmer Produção: Christopher Nolan, Emma Thomas, Linda Obst Duração: 169 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Lynda Obst Productions / Paramount Pictures / Syncopy / Warner Bros. Pictures

Cotação 5 estrelas

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16 Comentários

  1. Fábio M

     /  16 de novembro de 2014

    Excelente análise do filme, transmite exatamente o que o filme propõe. Parabéns.

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    • André Dick

       /  17 de novembro de 2014

      Prezado Fábio,

      agradeço por sua mensagem sobre a análise e pela visita.
      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  2. Ótima critica, parabéns!

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  3. Parabéns pela crítica. A melhor que eu li até então. O filme é sensacional e um prato cheio para os amantes de ficção científica.

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    • André Dick

       /  17 de novembro de 2014

      Prezado Marcelo,

      também achei o filme extraordinário, capaz de agradar a quem aprecia o bom cinema e o gênero de ficção científica, ao mesmo tempo, o que é cada vez mais raro de se conseguir.
      E fico feliz que tenha apreciado a crítica.
      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  4. Guilherme

     /  17 de novembro de 2014

    Li uma péssima resenha no omelete do Hessel. A única coisa que me salvou naquela página for ter encontrado o link para esta. Muito obrigado. Ótima resenha.

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    • André Dick

       /  18 de novembro de 2014

      Prezado Guilherme,

      agradeço pelo comentário de apreciação desta resenha e pela visita!

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  5. Eu que sou pai, me identifiquei muito com o filme.

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    • André Dick

       /  18 de novembro de 2014

      Caleb,

      Realmente é um dos filmes que melhor tratam da relação entre pais e filhos e da passagem de tempo.
      Além de ser uma grande ficção.

      Um abraço,
      André

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  6. Acho que o filme tem diálogos demais e poucos momentos para a “contemplação”, e isso pesa mais no final do filme.
    Mas sem dúvida é um excelente filme, que fala de seres humanos, é fantástico aos olhos, aos ouvidos, e aos sentimentos, coisa de o Mathem McCoughney faz com maestria (especialmente na cena das mensagens do filho). Também adorei os robôs.

    Aliás, excelente crítica. Muito bons os paralelos que fez com outros filmes.

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    • André Dick

       /  19 de novembro de 2014

      Prezado Samir,

      Agradeço por seu comentário sobre o filme e a crítica. Também considero que há passagens com alguns diálogos em excesso, mas, mesmo com o peso da exposição científica, eles não chegaram particularmente a me incomodar, pois considero que fizeram um bom equilíbrio com o lado mais emocional, aos ouvidos e sentimentos, como observa. McConaughey realmente fez um grande papel, quando parecia, no início, repetir alguns de seus anteriores: da metade para o final ele dá a chave para o filme ser tão interessante do ponto de vista humano – mesmo que os robôs também tragam esse lado (e entendo que fizeram um bom meio termo entre o de 2001 e o de Lunar), além do design realmente criativo e inovador (SPOILER: quando ele resgata a personagem de Hathaway em determinado momento).
      Obrigado pela visita e volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  7. Gente me ajuda, eu não compreendi a questão dos humanos conseguirem voltar no passado! Para Cooper conseguir voltar no passado ele precisa ter ido para a missão em algum momento, certo? Que momento foi esse? Rsrsrsrsr

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  8. Sidarta

     /  19 de maio de 2015

    Prezado André,

    Parabéns pela análise do filme, muito sensível e rica. Concordo inteiramente com sua visão do filme. Se fosse mais sutil (alguém disse que achou muitos diálogos no filme – eu vejo a mesma coisa mas sob a forma de uma necessidade, pelo diretor e roteiro, de dar muitas explicações para o que vemos na projeção), se sugerisse um pouco mais do que explicita, eu colocaria o filme como comparável, em termos artísticos e filosóficos, a 2001. Aliás, acho que trazer Solaris e 2001 para dialogar com o filme de Nolan é na verdade um indicador da grandeza de Interestelar. Por outro lado, não há comparação possível com outros filmes de sci-fi recentes, como Prometheus e Oblivion – Interestelar é indiscutível e imensamente superior a estes (Prometheus prometia, mas ficou na promessa, e Oblivion é resultado de uma mente criativa (Kosinski) ainda imatura, embora com potencial. Enfim, nada mais justo do que aproximar Interestelar do panteão em que reina 2001. De novo, parabenizo você pelo texto.

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    • André Dick

       /  20 de maio de 2015

      Prezado Sidarta,

      Agradeço por seu ótimo comentário sobre o filme e pelas palavras generosas a respeito da crítica, o que me deixa feliz. Também acredito que a principal diferença de Interestelar, e talvez isto crie certa relutância em comparar a esses clássicos (particularmente sobretudo 2001, pois Solaris realmente não chega a estar entre meus favoritos), é seu roteiro mais expositivo, como observa. Ou seja, onde Nolan poderia conduzir o espectador através apenas das imagens, ele prefere complementá-las com seu discurso, o que é uma característica incômoda em A origem, mas não me parece aqui. Acredito que esse tom de emoção só é alcançado pelo envolvimento entre o pai e a filha, por exemplo; a realização de 2001 interfere num plano emocional mais estético, a meu ver, não exatamente dramático, embora essas características se misturem em grandes obras. Em relação a outras ficções científicas, sou um admirador de Prometheus, embora saiba das críticas que tem o filme; Oblivion realmente não me agrada (de Kosinski, prefiro, com certas ressalvas, Tron – O legado). De vinte anos para cá, apenas Contato e Cloud Atlas (que não é estritamente FC), talvez Inteligência artificial numa revisão mais recente, pareciam arriscar, antes de Interestelar, este diálogo com uma ficção mais reflexiva. Nolan realmente atinge notas raras, como a trilha de Hans Zimmer. E, como 2001, acredito que apenas a distância dos anos vai realmente mostrar o que o diretor realizou.

      Agradeço novamente por seu comentário e volte sempre!

      Um abraço!
      André

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