As Boas Maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJun 8, 2018

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(Foto: reprodução)

Se há uma coisa que o brasileiro sabe fazer bem, é contar histórias. O folclore brasileiro, por exemplo, é riquíssimo. Eu sempre me perguntei por que o cinema não bebe mais na fonte do folclore — por que o cinema nacional insiste em apostar na pior comédia pastelão, na trama romântica manjada ou na produção de remakes de filmes europeus e de outros países latino-americanos?

Felizmente, alguém escutou meu questionamento silencioso. Na verdade, foram dois “alguéns”: Juliana Rojas e Marco Dutra, os roteiristas e diretores de “As Boas Maneiras”, filme de terror / fantasia que já ganhou mais de 20 prêmios em festivais internacionais, incluindo o prêmio de melhor filme no Festival Internacional do Rio e o prêmio do júri do Festival Internacional de Cinema de Locarno. E não é para menos: “As Boas Maneiras” trouxe um frescor fantástico para o cinema brasileiro.

Marco Dutra, Marjorie Estiano, Juliana Rojas e Isabél Zuaa em Locarno (Foto: reprodução)

Clara Macedo (Isabél Zuaa) responde a um anúncio de emprego como babá. Ela não tem formação, experiência nem nada — está certamente muito aquém da candidata que a precedeu na entrevista, uma matrona experiente e careira. Porém, ao ajudar a patroa Ana (Marjorie Estiano) quando esta sentiu uma dor lancinante no ventre, Clara acabou ficando com o emprego.

O anúncio é para uma babá, mas Ana exige que a contratada também lhe ajude com as tarefas domésticas, cozinhe, limpe e durma no apartamento — exatamente como muitas patroas da classe média-alta estão exigindo em contratações sem noção e sem um pingo de humanidade. Ana, entretanto, se mostra bem menos prepotente do que se podia imaginar em um primeiro momento. Ana é muito humana — exceto em noites de lua cheia.

Ana vem de uma fazenda em Minas Gerais — o sotaque entrega o estado de origem logo na primeira cena. Ao engravidar de um homem que ela viu apenas uma vez, ela é levada pelo pai para São Paulo para fazer um aborto — ela usa a expressão “tirar” — mas desiste. O noivo, que não era o pai da criança, termina com Ana, e ela fica de vez em São Paulo, sozinha em um grande apartamento. Nas noites de lua cheia, tomada por uma força sobrenatural, ela se torna sonâmbula e comete atos muitos questionáveis.

(Foto: reprodução)

Ana é a anti-Rosemary. Ao contrário da doce e submissa dona de casa protagonista do suspense “O Bebê de Rosemary” (1968), Ana é espalhafatosa, usa saltos altos, dança como se não houvesse amanhã e não vê problema em tomar uma cervejinha para comemorar seu aniversário — só uma garrafa não vai fazer mal ao bebê, não é? Seu tipo, menina com certeza abastada, mas ainda profundamente caipira, ingênua e cheia de dúvidas, é familiar a pessoas, como eu, que são de Minas Gerais.

Vemos as dinâmicas nas relações entre patroa e empregada e também entre mãe e filho. Ao contrário da maioria dos filmes sobre relacionamento entre patroa e empregada — e aqui os primeiros que vêm à mente são “Histórias Cruzadas” (2011) e “Que Horas Ela Volta?” (2015) — “As Boas Maneiras” não traz o conflito de classes que comumente é o foco destas produções. Ana e Clara, apesar de todas as diferenças, são amigas, parceiras e confidentes. Este companheirismo é raro em todas as produções protagonizadas por mulheres, e mais ainda nos filmes sobre patroa e empregada — aliás, ao pesquisar “filmes sobre relação entre patroa e empregada”, a maioria dos resultados logo na primeira página do poderoso Google foi de filmes… pornô. Triste sinal, não?

Ana (Marjorie Estiano) e Clara (Isabél Zuaa) (Foto: reprodução)

O relacionamento entre mãe e filho já foi muito explorado pelo cinema, em todos os seus ângulos. Em “As Boas Maneiras”, é hora de questionar até onde a proteção e devoção maternas vão — o filme leva diversas variáveis, como hereditariedade e origem, ao limite para fazer estas perguntas.

Tudo isso se desenrola na cidade de São Paulo, onde, apesar do ar cosmopolita, lendas interioranas sobrevivem. O final, inclusive, mostra que multidões raivosas com tochas em riste não são exclusividade de pequenas cidades e vilarejos como o de “Frankenstein” (1931). O que estas tochas simbolizam, aí já vai da interpretação de cada um.

Na parte técnica, destaco o excelente enquadramento, trabalho com a câmera e os efeitos especiais. Uma sequência de flashback é apresentada através de uma curta animação com narração voice-over — é o “causo” mineiro, a lenda folclórica, mistura de lobisomem com boto, ganhando vida de uma maneira única e, se não assustadora aqui, essencial para o entendimento do filme.

“As Boas Maneiras” é diferente de tudo que eu já vi no cinema brasileiro. É um filme ousado, inteligente sem ser petulante, e acima de tudo, surpreendente. Você vai se lembrar dele mesmo muitos anos depois de tê-lo assistido.

(Foto: reprodução)

A suffragette Jéssica Bandeira também escreveu sobre “As Boas Maneiras” e seu viés de crítica social no site Valkirias. Clique AQUI para ler.

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