Mr. Mercedes é legal?

mr mercedes

2017 está sendo um bom ano para o bolso de Stephen King. Tem It e A Torre Negra nos cinemas, tem O Nevoeiro, que saiu para a televisão em junho, além de Mr. Mercedes que estreou em agosto. Tenho certeza de que a conta não para aí. Deve haver alguma coisa perdida lá no primeiro semestre – boa sorte para quem for fazer a lista completa das adaptações de King para todas as mídias. Eu não posso dizer que criei uma relação especial com o autor, nem que conheço tudo o que ele fez de cabo a rabo. Lembro que comecei por It. Muito tempo depois veio Novembro de 63. E agora em 2017 eu li Mr. Mercedes sem saber que uma série de tevê estava a caminho. Acho que fiquei levemente desapontada. Não me encantei, mas terminei a leitura. Sabe o que isso quer dizer? Quer dizer que eu estou apta a ser a pessoa insuportável que viu Mr. Mercedes, a série, e ficou comparando com o que acontecia (e como acontecia) no livro. Só que nesse quesito tudo deu certo. O espírito do romance está todo na tela. O que é que deu errado, se é que algo deu errado?

O tal Sr. Mercedes é um assassino em massa que conseguiu escapar. Ninguém sabe seu verdadeiro nome. Em 2008, no auge da última grande crise econômica americana, ele atropelou mais de uma dezena de pessoas numa fila para conseguir emprego, com um Mercedes Benz roubado. Muita gente morreu. O detetive Bill Hodges ficou obcecado com o caso e perdeu uma parte da sanidade, teve que se aposentar. Nos dias atuais, encontramos Bill em modo autodestrutivo, desgostoso da vida, viúvo, numa casa bagunçada, sem fazer a barba e bebendo a qualquer hora do dia. O que vai tirá-lo desse torpor é a vaidade do Sr. Mercedes. O assassino não se contentou com o anonimato: ele quer fazer joguinhos, quer brincar com a cabeça do velho detetive e começa a se corresponder com ele. A perseguição recomeça, mas o ritmo de Bill não é lá essas coisas.

Há muitas pontos legais nos quatro episódios que eu vi. Qualquer um que tenha assistido a um filme americano lançado nos últimos dez anos vai poder identificar, em Mr. Mercedes, aquela desolação bem característica das obras que retrataram o pior da crise e suas consequências de longa duração. Carros velhos, interiores arruinados, personagens aguentando pequenas e grandes humilhações pela preservação de empregos sufocantes, vizinhanças depauperadas. Esses elementos dispensam diálogos explicativos: está na cara que todo mundo empobreceu, que a vida urbana nessas condições convida à paranoia e à alienação, que o mundo é uma máquina de moer gente.

Esse recado foi dado com a ajuda, ainda por cima, de um elenco muito bom. Do detetive ao assassino, todos mantém Mr. Mercedes naquele nível em que a gente consegue levar o que está acontecendo a sério. Deixa eu dar um exemplo. Harry Treadaway, o ator que faz o assassino, poderia ter ido muito mal – e isso nem é spoiler já que nós, o público, descobrimos sua identidade logo no piloto – pois a tarefa dele era bem complicada. O Sr. Mercedes é um homem, no fim dos 20 ou começo dos 30 (agora eu não me lembro se isso foi especificado, mas não mais de 35), que tem um trabalho chatíssimo e pouco recompensador, uma mãe com muitos probleminhas, e um porão trancado à chave em que ninguém pode entrar. No porão não há uma coleção de cadáveres nem de mulheres sequestradas, mas um monte de computadores, luzinhas piscando, aparelhinhos sobre os quais ninguém explica nada, paredes pintadas de preto. Tudo isso para dizer que o Sr. Mercedes não é só um louco que entrou num carro e teve vontade de passar por cima dos outros – ele também é um competentíssimo hacker. Não há computador ou sistema de segurança que esteja a salvo de um cara como ele. Qual é o problema? Bom, a gente sabe que o cinema (e a televisão, por consequência) tem certa dificuldade com a figura do hacker.

Primeiro porque a habilidade de um hacker, num roteiro que precisa de um hacker habilidoso, sempre acaba se transformando em um elemento mágico. É um recurso excelente porque resolve pontos complicados. Se você pergunta qual é a origem da renda do hacker, a resposta dirá que ele hackeou um banco. Se você pergunta como é que ele conseguiu invadir uma prisão de segurança máxima, a resposta dirá que ele hackeou o sistema de segurança e abriu todas as portas. O hacker descobre os podres dos inimigos sem mover uma palha, apaga arquivos que precisam sumir e todas essas coisas. Pior do que isso: quando os estúdios escalam atores para interpretar hackers, a regra é a afetação e não é difícil que tudo termine em constrangimento. Do ponto de vista de Harry Treadway, então, o personagem já era complicado porque o roteiro incluía todos esses cacoetes identificados com quem mexe com computadores e, ainda para ajudar, o Sr. Mercedes tinha que parecer um psicopata que transa com a própria mãe mas passa abaixo do radar daqueles que não prestam atenção, ou seja: tinha que parecer uma pessoa comum. O resultado final não é ruim. O Sr. Mercedes de Treadway é cínico, raivoso, passivo-agressivo; da aparência normal, com um rosto quase bonitinho, ele vai para uma expressão quase monstruosa e claramente perturbada. Tem cara de hacker, tem cara de funcionário de loja de informática, mas também tem cara de assassino atropelador, stalkeador vingativo, manipulador sem piedade. Não é nada que vá levar o ator a um monte de premiações, mas poderia ter sido bem pior.

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Só que esses pontos positivos não conseguiram me segurar em Mr. Mercedes. O problema principal é uma insistência em fazer tudo dentro do convencional, com mínima dose de surpresa. Mr. Mercedes usa sem moderação alguns dos recursos mais chatos e velhos da tevê. Para reforçar o ponto de vista do detetive e estabelecer no público uma identificação com ele, qualquer outro personagem precisa subestimá-lo: ninguém acredita no que o velho Bill fala, seu ex-colega nem quer ouvi-lo, os vizinhos são inacessíveis mesmo quando estão do lado dele; quando ele tem razão, os outros dão uma volta imensa para dizer que ele está errado – a ideia é que nos irritemos com a burocracia da polícia e o desinteresse do mundo, mas o descompasso soa forçado e inverossímil porque é mal escrito, todo esquemático. Muitas coisas acontecem porque têm que acontecer, a série tem vícios que parecem ter saído direto dos anos 1980, sem qualquer adaptação. Um exemplo é o romance que o detetive Bill engata com uma mulher bem mais jovem. Pessoas de diferentes idades se apaixonam desde sempre, tudo bem, mas qualquer romance que vá ocupar tempo de tela, desviando o espectador daquilo que é o centro da história, precisa acontecer depois que a gente tenha conseguido entender o que é que leva uma pessoa a se interessar por outra, não é? O que é que levou essa mulher jovem, rica e bonita a se interessar por um senhor autodestrutivo e decadente, desinteressado e bem longe de irrestível? Ela pode ser uma dessas mulheres com uma queda por tipos assim. Pode ser que ela queria consertá-lo (o que é um clichê chatíssimo, mas beleza), sei lá, ela pode ter qualquer razão: Mr. Mercedes não apresentou sequer uma. O que ganhamos, portanto, é um romance que aconteceu porque o roteiro quis que acontecesse e uma personagem sem vida própria: ela dá conselhos, oferece cama, mesa e banho, é bonita (é a Mary-Louise Parker) e só.

Depois da paixão que ninguém conseguiu explicar eu não tive mais paciência para continuar acompanhando, mas, para falar a verdade, acho que a irritação com os defeitos de Mr. Mercedes depende mais das coisas que estão no repertório de quem está assistindo. Eu tive minha cota de detetives angustiados e mulheres mal escritas, geralmente aos sábados no Supercine, e por isso para mim as coisas não funcionaram lá muito bem, mas Mr. Mercedes não é horrível. É uma história de conflito de gerações, de um velho que mal sabe usar o computador contra um jovem que só consegue viver porque tem uma tela entre ele e o resto do mundo, ambos muito deslocados, um a serviço do mal e o outro ali tentando consertar as coisas.

 

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