Sob as sombras

Não é novidade que o Irã possui um dos mais interessantes e talentosos cinemas desde a década de 1970. Após a Revolução de 1979, diversas restrições foram adicionadas à produção de filmes no país, o que influenciou todos os cineastas a partir da década de 1980. Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Mohsen Makhmalbaf, Majid Majidi, Ashgar Farhadi, são alguns diretores que ganharam reconhecimento da crítica e dos festivais ao redor do mundo com seus filmes dramáticos, poéticos, pessoais e críticos em relação aos costumes e a situação política do Irã. À primeira vista, Sob as sombras é um filme de terror convencional que consegue explorar muito bem os padrões do gênero, mas o diretor Babak Anvari consegue, além disso, traçar um retrato contundente e atual da repressão vivida pela mulher iraniana.

Durante a guerra entre o Irã e Iraque, Shideh (Narges Rashidi) e sua filha Dorsa (Avin Manshadi) se refugiam em seu apartamento dos ataques de mísseis à cidade. Aos poucos, a cidade se esvazia e o prédio onde elas moram também fica deserto, sobrando apenas mãe e filha. Apesar dos pedidos do marido ausente Iraj (Bobby Naderi), Shideh não vai até a casa dos pais dele, pois se sente incompreendida e oprimida pelo esposo. Quanto mais tempo as duas permanecem em casa, mais eventos estranhos e inexplicáveis acontecem. Mãe e filha brigam constantemente, Dorsa adoece e fica obcecada com o sumiço de sua boneca, Shideh vê pessoas no seu quarto, tem sonhos estranhos, mas é relutante em acreditar que algo sobrenatural esteja acontecendo.

A parte inicial do filme é usada para estabelecer alguns pontos cruciais que serão utilizados ao longo da narrativa e servirão de base para as relações entre marido e esposa, e mãe e filha. Shideh tenta retornar para universidade e terminar seu curso de medicina, mas seu pedido é negado devido as suas posições políticas durante a Revolução. Ela tenta argumentar que era jovem e inocente, que não sabia sequer a diferença entre a esquerda e a direita política, que não gostaria que um erro infantil acabasse com o maior sonho da vida dela que é ser médica, mas nenhum apelo ou argumento faz diferença; afinal, aos olhos do governo, ela é só uma mulher. Além de ter seu pedido negado e ser desprezada pelo homem que poderia ajudá-la com essa situação, seu marido tão pouco demonstra apoio ou a encoraja – “Talvez seja melhor assim mesmo.”, ele diz. A relação fria do casal é vista na falta de carinho e proximidade entre os dois. O diretor Babak Anvari retorna a essa frieza e distância entre os dois nos momentos em que Iraj está na guerra trabalhando como médico e eles conversam por telefone em ligações que falham, são difíceis de compreender e acabam em discussões.

Além do relacionamento conturbado com o marido, a relação entre Shideh e Dorsa piora depois que esta escuta de um órfão que está morando com o zelador, que o prédio é assombrado por um djinn, uma criatura da mitologia islâmica, fazendo com  que a menina tenha pesadelos, escute coisas e comece a adoecer. Quando sua boneca favorita some e ela suspeita que sua mãe a escondeu, as duas entram em conflito e Shideh não tem paciência para lidar com a situação, o que só piora o convívio entre elas. A boneca é um objeto importantíssimo para a narrativa do filme, pois a lenda diz que os djinn “viajam pelo vento, indo de um lugar a outro até que encontrem alguém para possuir”, além de serem mais presentes quando “há medo e ansiedade”. Com o sumiço de sua boneca, Dorsa não quer ir embora de casa enquanto seu brinquedo não for achado, forçando a mãe a lidar com o quer que esteja assombrando ela e a filha.

O isolamento de Shideh e Dorsa só aumenta a sensação de que algo as assombra, e o cansaço e a privação de sono de Shideh a deixa cada vez mais vulnerável às ideias de que algo sobrenatural esteja ameaçando ela e a filha. Shideh não é uma mãe ruim, mas a sua paciência com a filha vai se esgotando com as constantes brigas. A pressão externa que a obriga a viver de um modo que ela não quer – seja ao ter que se vestir apropriadamente para receber o homem que veio consertar a janela ou ao ter que fechar as cortinas da própria casa para fazer seus exercícios físicos vendo o VHS da Jane Fonda na tv – e a morte recente de sua mãe contribuem para que seu estado psicológico fique cada vez mais abalado. Sob as sombras mostra a mãe passando por um inferno psicológico e social, mas tira bom proveito disso ao criar uma mulher complexa que não desiste de proteger a filha e luta contra a sensação de estar perdendo a sanidade por conta da maternidade.

Depois que todos esses problemas familiares são apresentados, o diretor desenvolve uma atmosfera no apartamento cheia de suspeita e dúvida. Objetos somem e aparecem em outro apartamento, barulhos estranhos durante à noite e alucinações que se confundem com pesadelos fazem com que Shideh comece a duvidar dela mesma. O diretor de fotografia Kit Fraser faz um ótimo trabalho ao filmar os momentos mais tensos do longa de um modo que ajude a representar o estado emocional e psicológico das personagens. Os planos que mostram Shideh deitada na cama nos períodos de insônia e giram conforme ela se levanta, quebrando, assim, a horizontalidade do plano, e as sequências de correria na escada até o bunker antibombas do prédio e a sensação de agonia e claustrofobia que elas provocam são bons exemplos disso.

Uma das sequências mais interessantes do filme com certeza é a que Shideh e Dorsa fogem do apartamento no meio da noite após testemunharem o teto rachado, devido ao impacto do míssil no prédio, abrigar algo desconhecido e ameaçador, e uma mulher aparecer no quarto para conversar com Dorsa. Desesperada e temendo pelo bem-estar de sua filha, Shideh sai em disparada pelo meio da rua, até encontrar um veículo da polícia. Quando o policial se aproxima, ele não se preocupa em saber se elas estão bem ou precisam de ajuda – afinal, são duas pessoas correndo no meio da madrugada sozinhas em uma cidade em guerra –, ele se atenta ao fato dela não estar usando a roupa obrigatória das mulheres, o khimar, e a prende. Na delegacia, ela é liberada, mas não sem antes ouvir um sermão sobre como o comportamento dela foi vergonhoso, que uma mulher deveria sentir mais medo de ser expor publicamente do que qualquer outra coisa, e como os homens estão lutando e se tornando mártires para garantir esses preciosos valores para as mulheres.

Em seu primeiro longa-metragem, Babak Anvari consegue fazer a transição do drama natural familiar para o terror de modo imperceptível. O sub-texto que explora a situação da mulher iraniana em seu país é sutil, valoriza a narrativa e enriquece o filme. Sob as sombras utiliza as agonias e frustrações da natureza feminina para mostrar a força de uma mãe que enfrenta qualquer coisa para salvar sua filha, seja sobrenatural ou não.

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