Gritos e sussurros: Bergman e o filme de câmara

Ingmar Bergman possui uma obra cinematográfica extensa e diversificada. Abordando temas que percorrem toda sua filmografia como a morte, a religião, a solidão, o abandono de Deus, a velhice, dramas familiares, problemas existenciais e conflitos da alma, Bergman adotou, por um período de sua carreira, o conceito do filme de câmara, termo cunhado pelo próprio diretor e que tinha como inspiração as peças de August Strindberg, dramaturgo sueco muito admirado por ele. O filme de câmara procede, inicialmente, da música de câmara e subsequentemente do teatro de câmara. A música de câmara consiste em um grupo  pequeno de músicos que se apresentam em uma câmara de um palácio. O teatro de câmara compreende três atos dramáticos com um elenco pequeno de atores em uma locação. Essa transposição do conceito de câmara feita por Bergman tinha a intenção de transmitir os efeitos dramáticos de uma peça teatral de câmara utilizando apenas um conjunto pequeno de personagens e que interagissem entre si em uma locação, compondo o relacionamento entre eles como uma peça musical constrói uma atmosfera íntima e intensa por meio dos instrumentos.

Bergman obteve sucesso e reconhecimento mundial nos anos 1950, em especial com Morangos silvestres e O Sétimo selo, ambos de 1957. A partir da década de 1960, os filmes de Bergman, constantemente influenciados pelas peças de Strindberg, passam por uma mudança narrativa e se concentram apenas em alguns personagens. Suportados por imagens simbólicas ou sugestivas, a redução considerável do diálogo abre espaço para o diretor dar uma nova abordagem aos seus temas. Birgitta Steene diz que “o diálogo relativamente esparso dos filmes de câmara não é apenas uma manifestação de Bergman como cineasta na tentativa de se livrar do domínio verbal, mas é também seu questionamento, através do cinema, da confiabilidade da palavra falada.” Ainda sobre seus filmes de câmara, o próprio Bergman fala que “Através de um espelho e Luz de inverno e O silêncio e Persona, eu chamei de peças de câmara. Existe música de câmara - música que, com um número extremamente limitado de vozes e pessoas, explora a essência de um número de temas. O fundo é extrapolado, colocado em segundo plano. O restante é a essência.”

Uma das obras desse período é Gritos e sussurros, escrita e dirigida por Bergman e que narra a história de três irmãs, Agnes (Harriet Andersson), Maria (Liv Ullman) e Karin (Ingrid Thulin), em uma mansão do século 19, no período em que uma delas, Agnes, agoniza de dor até a morte devido ao câncer que a consome. Anna (Karin Sylwan), criada da família há anos, também se junta a Maria e Karin para ajudar na crise de Agnes. A agonia e o medo da morte suscita nelas uma dor emocional e física que gera uma atmosfera densa, carregada de frieza, angústia e culpa. No roteiro do filme, Bergman começa com uma declaração interessante e fundamental: “Quando penso nesse projeto, nunca o vejo completo. Ele se assemelha a uma correnteza negra que flui: faces, movimentos, vozes, gestos, exclamações, luz e sombra, ânimos, sonhos. Nada fixo, nada mais tangível do que o momento, e apenas um momento ilusório. Um sonho, um anseio, ou talvez uma expectativa, um medo, que para ser temido nunca é colocado em palavras.”

O enredo do longa é baseado, essencialmente, na relação entre as irmãs e a falta de humanidade que elas compartilham. No entanto, podemos encontrar outros temas no subtexto do filme que são conhecidos na obra de Bergman: a representação da religião através do padre que administra os últimos ritos de Agnes e demonstra falta de fé; o paralelo entre Agnes e Jesus Cristo e o seu papel de mártir; a repressão sexual de Agnes; casamentos fracassados que se sustentam em volta da aparência social e geram consequências extremas como o suicídio e a autoflagelação. Esses são alguns dos temas que o diretor organiza em uma narrativa que oscila entre o presente, os últimos dois dias de vida de Agnes, e flashbacks que remontam momentos da vida de cada uma das personagens. Essas sequências inseridas entre os momentos de sofrimento de Agnes podem ser vistas quase como sonhos ou versões subjetivas da realidade dessas mulheres.

Tão importante quanto as personagens é a mansão onde a história ocorre. Utilizada para reforçar a claustrofobia emocional que as quatro mulherem sentem, Bergman as confina naquele labirinto de salas, corredores, e quartos sombrios dominados pelo vermelho do veludo que cobre tudo. Segundo Bergman: “Todos os meus filmes podem ser pensados em termos de preto e branco, com exceção de Gritos e sussurros. No roteiro, eu disse que pensei na cor vermelha como o interior da alma. Quando eu era criança, eu pensava na alma como um dragão sombrio, azul como fumaça, pairando como uma enorme criatura alada, meio pássaro, meio peixe. Mas dentro do dragão, tudo era vermelho.”

Bergman raramente nos diz quando estamos lidando com sonho ou realidade. Somos colocados neste labirinto com quatro personagens que pouco conhecemos de suas vidas, pois a angústia, a culpa e o ressentimento que as envolvem nos impede de conhecê-las por completo. A câmera controlada e precisa de Bergman nos mostra o palco por onde aquelas mulheres andam com seus longos vestidos e se comportam como fantoches coreografados em uma peça de teatro, vulneráveis pela morte que se aproxima. 

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