O Som ao Redor é roteiro e fotografia nacional de qualidade

O Som ao Redor é uma crônica e crítica social sobre a vida nas grandes cidades brasileiras. Com essa obra, Kleber Mendonça Filho apresenta um retrato da classe media atual, alienada às questões sociais e trancafiada com os seus próprios medos. Existem muitos pontos explorados nessa narrativa que se conectam pelo local onde vivem, neste caso, a Zona Sul de Recife.

As principais questões abordadas nesse drama são a verticalização das cidades e o medo da violência. O diretor é muito feliz em fotografar situações que compõem o dia a dia sem glamour das pessoas dessa camada social, como as crianças brincando no playground, a dona de casa a volta com os seus eletrodomésticos e as empregadas mulatas e negras nos condomínios.

Retratando cenas do cotidiano, Kleber Mendonça inicia sua narrativa lenta e sem pressa de definir uma linha condutora para a história. Ele apresenta fragmentos das pessoas até a chegada do grupo de milicianos oferecendo segurança para o bairro. A situação gera a desconfiança do dono da maioria da casas da rua, no entanto, os moradores aceitam sua permanência e pagam para se sentirem mais protegidos. Com uma atuação espetacular, mais uma vez, Irandhir Filho toma conta do filme e se sobrepõe ao papel principal de Gustavo Jahn.

Apesar da história não proporcionar uma atmosfera de suspense e/ou terror, o trabalho de direção consegue transformar algumas sequências em verdadeiros momentos de tensão e medo. Por meio dos sonhos dos seus personagens, ele consegue transmitir o verdadeiro pavor que existe dentro de nós. A utilização do zoom e do enquadramento lembra bastante Feliz Natal, o primeiro filme de Selton Mello. Assim como, nos remete à obra O Pântano, de Lucrecia Martel, em que a história transcorre sem grandes emoções e surpreende o espectador nos minutos finais.

Todas as cenas apresentam um propósito denunciativo ou crítico sobre a nova classe média e, porque não, a nova cara do Brasil. Uma das melhores sequências é a reunião de condomínio, em que alguns moradores tratam o porteiro de anos como um utensílio descartável, porque ele não rende tanto quanto no passado. Eles, entretanto, são contra pagar os benefícios salariais para dispensá-lo. Do outro lado da rua, uma dona de casa dá uma bronca na empregada por ter queimado seu aparelho eletrônico. Desse modo, Kleber nos mostra que, apesar do período feudal ter acabado, a sociedade ainda é dividida entre senhores de engenho e vassalos.

Nas mãos do diretor momentos considerados banais no nosso cotidiano ganham força dramática, como uma massagem nos pés ou um beijo entre dois adolescentes no muro do condomínio. Esta é a principal artimanha de O Som ao Redor, mostrar como os barulhos da cidade, cada coisa, interfere na nossa vida e como aprendemos a lidar com elas. O final do filme é recompensador, pois faz a gente analisar tudo de novo e ver onde deixamos escapar aquele fio explicativo.

É raro ver um filme nacional trabalhar tão bem as técnicas cinematográficas. O Som ao Redor é um respiro de originalidade em um cinema brasileiro tão massificado de filmes esquematizados para gerar público e pouca qualidade. Uma história não precisa se mastigada e cuspida para o público, Kleber Mendonça escolhe não mostra o óbvio, permitindo o espectador pensar.

Publicado por Letícia Alassë

Jornalista pesquisadora sobre comunicação, cultura, linguística e psicanálise. Mestranda de Jornalismo Internacional na Universidade Paris VIII, na França. Nascida no Rio de Janeiro, apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quando diante da tela. Mora atualmente na Cidade Luz.

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