MELHOR FILME

“Tár” mostra que a técnica sem a virtude já não é o suficiente para se manter no poder

Cate Blanchett entrega atuação irretocável digna do Oscar de melhor atriz


Avatar de Hernandes Matias Junior

Quando “Tár” começa, conhecemos sua protagonista Lydia Tár já no auge de sua carreira. Numa entrevista com Lydia, o apresentador exalta o currículo e lista todos os feitos e prêmios que a maestrina vem empilhando ao longo da sua trajetória, evidenciando que estamos diante de um talento multidisciplinar inquestionável. Mas além de possuir o dom da técnica, no seu sentido grego, de talento, dom e cultura, Lydia Tár também possui um lado mais nebuloso e de pouca estima, que será evidenciado aos poucos no filme, até a sua derrocada total.

A ausência da virtude

Lydia Tár trata-se de uma personagem controversa. Ao mesmo tempo que apoia programas de incentivo a mulheres na música, não apoia as mulheres que estão em sua volta; é capaz de chorar ouvindo sua orquestra cantar, mas ajuda com nojo a sua vizinha a colocar a mãe idosa em uma cadeira; mostra uma sensibilidade apurada para a arte, mas não possui nenhuma habilidade interpessoal, só conseguindo criar relações transacionais, objetificando todos com quem se relaciona. Esse último ponto é um dos motivos que fazem com que Lydia perca prestígio e inicie sua queda, assediando alunas, trocando favores por sexo e, por fim, descartando essas mulheres depois de conseguir o que queria.

Estruturas de poder

Foi um acerto muito grande do roteirista em criar a protagonista como uma mulher e ainda por cima lésbica. Lydia Tár transita entre as posições hora de oprimida e hora também de opressora com os seus subordinados. A escolha é muito acurada pois consegue mostrar como até mesmo nesses grupos sub-representados, como de mulheres, negros e LGBTs, existe um organograma de poder, que a teoria da interseccionalidade tenta organizar.

Discussão contemporânea

É possível apreciar o trabalho de um artista abominando suas atitudes em sua vida pessoal? Essa discussão tem se tornado frequente e é também retratada em “Tár”, quando um aluno de Lydia se recusa a tocar Bach e Beethoven, alegando não sentir-se bem reproduzindo o trabalho desses artistas que em vida tiveram uma personalidade problemática. Lydia Tár vai contra esse posicionamento contemporâneo, dizendo que as obras desses artistas possuem vida própria, já independente de quem as produziu. A própria personagem é também objeto de discussão, uma vez que é uma artista aclamada com atitudes repreensíveis.

A solidão por trás do talento

Mesmo que tenhamos conhecido Lydia Tár no auge da sua carreira, é possível imaginar o trabalho que a personagem teve para se aperfeiçoar e tudo que ela teve que abrir mão visando a sua carreira. Existe uma solidão por trás de cada talento. Lydia tem um mérito em ser muito boa no que faz, e isso vem acompanhado pela sua inaptidão quando se trata de suas relações interpessoais. É como se uma coisa explicasse a outra. Lydia Tár só conseguiu atingir o seu grau de excelência justamente por sua capacidade de se isolar dentro de si, onde o outro não existe.

Obsessão e neurose

Lydia está sempre muito preocupada com sua aparência, suas roupas, sua higiene. Trata-se de uma personagem obsessiva, neurótica e metódica, sempre em busca de manter sua imagem imaculada. Depois de perder sua orquestra na Alemanha e de não encontrar oportunidades no Ocidente, tão dominado pela régua da virtude, Lydia Tár vai trabalhar na Tailândia, em uma orquestra que acompanha a exibição de filmes, denotando a sua derrocada profissional. Ao pedir uma sugestão de casa de massagem para o recepcionista de um hotel, o homem passa para ela um endereço que presta o serviço de massagem tailandesa. Quando chega no lugar, Lydia percebe que na verdade trata-se de uma casa de prostituição, sente um mal estar físico, sai de lá e vomita na calçada. O episódio mostra a Lydia como ela é vista pela sociedade, onde a personagem pede por massagem e as pessoas ao seu redor prontamente associam aquilo a sexo.

Uma obra verossímil

“Tár” é uma obra tão verossímil e a atuação de Cate Blanchett é tão irretocável que faz com que depois de assistir ao filme o espectador sinta a necessidade de ir ao Google pesquisar se Lydia Tár foi mesmo uma pessoa na vida real. Mas é tudo ficção mesmo. Cate Blanchett merece o Oscar de melhor atriz porque sua performance está muito acima das demais, e sua derrota só será justificada pela militância e agenda progressista, que parecem favorecer Michelle Yeoh, protagonista de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”.

“Tár”, Todd Field:

Avaliação: 5 de 5.

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Comments (

1

)

  1. Melhores e piores de 2023: Enquanto “Tár” se torna um novo clássico contemporâneo, “Barbie” constrói uma hermenêutica para o povão – Café Comité

    […] Lydia Tár trata-se de uma personagem controversa. Ao mesmo tempo que apoia programas de incentivo a mulheres na música, não apoia as mulheres que estão em sua volta; é capaz de chorar ouvindo sua orquestra cantar, mas ajuda com nojo a sua vizinha a colocar a mãe idosa em uma cadeira; mostra uma sensibilidade apurada para a arte, mas não possui nenhuma habilidade interpessoal, só conseguindo criar relações transacionais, objetificando todos com quem se relaciona. Esse último ponto é um dos motivos que fazem com que Lydia perca prestígio e inicie sua queda, assediando alunas, trocando favores por sexo e, por fim, descartando essas mulheres depois de conseguir o que queria. CONTINUAR LENDO […]

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