“Aftersun” é um filme que fica com você. Mais que isso, ele cresce com você depois de assistir porque a história inteira é uma leitura nas entrelinhas, e estas são tão pesadas que depois que o espectador repara, fica difícil desviar o olhar.
Todo o filme mostra pai e filha (Calum e Sophie) passando alguns dias de férias juntos na Turquia. E só.
Claro que não é só. Algo parece não estar encaixado. Em algum momento percebemos que parte disso é uma lembrança, o que não é spoiler, pois consta como fato. Encaixando as peças do que vemos, com o que não vemos e apenas sentimos, vamos montando um quebra-cabeças emocional sem precedentes e que tem tudo a ver com o momento atual.
Começando pelo elenco, difícil dizer quem é o melhor: Paul Mescal de “A Filha Perdida” tem a grande missão de ser o personagem mais complexo e agarra no exato equilíbrio que o papel precisa e ele é parte do filme ser tão instigante; enquanto a garotinha Frankie Corio, escolhida numa audição com cerca de 800 candidatas, não poderia ter sido melhor, pois ela encanta quando é espontânea e traz a inocência de quem está presenciando algo junto a seu pai que nem ela mesmo consegue explicar, preferindo assim continuar a se divertir, mesmo com esse leve incômodo que mais tarde voltará como lembrança.
Então chegamos à direção da estreante Charlotte Wells que está impecável. Ela aponta a câmera para um lado, mas deixa uma pontinha do outro lado que é justamente onde está a entrelinha. Também brinca com a filmagem em primeira pessoa – quando a menina usa uma filmadora para documentar as férias – e consegue dar significado a cada tomada.
A diretora junto com o design de produção espalham pistas sobre quando a história acontece, o que é lembrança e o que é “filmado para o espectador ver”, além da performance da dupla de protagonistas jogarem a isca das camadas emocionais de seus personagens.
Quando chegamos no desfecho, há uma sensação de epifania e de também querer ver tudo de novo, justamente para ter um novo olhar sobre cada detalhe.
E parafraseando uma amiga: “A cena da dança com Under Pressure de David Bowie no último ato vem para dilacerar o espectador“.
“Aftersun” é um recorte intimista de duas vidas cujo momento fica eternizado pelo amor e pela dor que ainda virá. Intocável.
Obs: Caso alguém viu e tenha passado batido em alguma coisa, leia a parte de SPOILERS mais abaixo.
Curiosidades:
- Todos os livros que Calum traz na estante do hotel são de meditação e tai-chi.
- A bebida que eles tomam na loja de tapetes persa é o tradicional chá turco.
- O tapete que Calum compra pode ser visto no flat de Sophie quando ela já é adulta.
***SPOILERS – SÓ LEIA DEPOIS DE TER ASSISTIDO AO FILME***
- Colocando de maneira objetiva Calum (o pai) está com uma forte depressão enquanto passa as férias com Sophie. Ele pouco transparece quando está na presença dela e o espectador só consegue começar a vislumbrar em cenas dele sozinho, que não são lembranças, mas filmadas para o público pescar o que acontece. Há várias cenas que denotam a depressão com tendência suicida: quando ele fica em pé na varanda se equilibrando, quando atravessa a rua sem ver o ônibus, quando mergulha sem o aparelho necessário, quando entra no mar de madrugada, quando coloca uma toalha molhada em sua cabeça (técnica usada para tortura na guerra) e talvez na mais explícita, quando chora copiosamente sem motivo algum.
- O desfecho é pesado e ambíguo, porque pelas lembranças de Sophie, tem-se a impressão de que aquela foi a última vez que Sophie viu o pai, o que significa que ele pode ter conseguido levar a cabo seu suicídio.
Ficha Técnica:
Elenco:
Paul Mescal
Frankie Corio
Celia Rowlson-Hall
Sally Messham
Direção:
Charlotte Wells
História e Roteiro:
Charlotte Wells
Produção:
Mark Ceryak
Amy Jackson
Barry Jenkins
Adele Romanski
Fotografia:
Gregory Oke
Trilha Sonora:
Oliver Coates