Ao Cair da Noite: os desatinos da condição humana, a sugestão e o triunfo da morte.

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Numa casa isolada, um pai está determinado a proteger seus entes queridos a qualquer custo de uma ameaça que os rodeia, e, para isso, ele estabelece uma tênue ordem doméstica. Mas tudo acaba sendo posto à prova quando outra família desesperada chega em busca de refúgio.

O texto a seguir pode conter spoilers. 

Sobrevivência. Ta aí um tema que pode ser qualquer coisa, menos fácil. Ainda que a base de muita controvérsia, há quem julgue o material desgastado, afinal, o que não falta por aí é obra que aborde o assunto. Mas fácil – veja bem, fácil , de simples concepção (por quem cria) e compreensão (por quem consome), definitivamente não é.

A sobrevivência é, antes de muita coisa, um aspecto fundamental da natureza humana. Falo isso porque, mesmo na condição de seres humanos, muitos de nós passamos a vida inteira sem entender os meandros desse aspecto motor da nossa condição – e friso o termo em itálico porque, mesmo em pleno século 21, ainda é muito ressonante a descrença numa natureza humana. Nas Humanidades, por exemplo, o que não faltam são autores de renome que ainda acreditam que o ser humano, em sua constituição psicológica principalmente, é uma entidade completamente desprovida de condição humana, ou seja, de uma natureza que, entrelaçada às dinâmicas sociais, nos torna este complexo amálgama de imperativos naturais e artificiais. É o velho dogma da Tabula Rasa, um dos ledos enganos mais insistentes que se tem notícia no mundo intelectual.

Mas do que se trata essa nossa tão primordial fração, afinal de contas? Seria sobreviver apenas o ato de evitar a própria morte? Digo, de buscar por modos de viver que se distanciem de riscos que ponham à prova a nossa total integridade física? Então, sobreviver constitui-se, mais ou menos, da árdua tarefa de não deixar-se sucumbir diante de perigos extremos, de buscar por mantimentos e coisas que facilitem a manutenção da nossa vida. Correto? Ou será que sobreviver envolve, também, que nós, enquanto espécie, busquemos por formas de evitar não somente a própria morte, mas a morte de semelhantes e entes queridos? Teimo em acreditar que, em qualquer contexto factível, a segunda hipótese seja a mais razoável. É óbvio que a vida, por si só, é finita, e que nada nesse destino muda com a presença de outras pessoas, mas a vida é complexa e tortuosa demais para que, em todas as suas curvas, alguém se furte de contato humano. Apoio nenhum é mal-vindo. Sobretudo, em circunstâncias que nos impelem a ter em quem confiar. Sobreviver é um exercício existencial que exige de nós não somente o manejo de nossa própria vida, mas da vida em contato com o próximo. É somente junto desse próximo que tecemos as nossas relações, edificamos vínculos, valores e todos os demais constructos importantes na nossa vida em sociedade. E, da mesma forma, por este nosso ímpeto tão comum, somos capazes de ruir. E Ao Cair da Noite, em muito, trata disto.

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Imagine um cenário apocalíptico. Imaginou? Agora retire desse ambiente todas as firulas hollywoodianas de um pós-apocalipse, tipo toda aquela sujeira desgraçada, os prédios destruídos, mato tomando de conta das construções, fileiras de carros abandonados, etc. Agora imagine que, longe das grandes cidades, numa casa quase isolada em meio a floresta, vive uma família. Uma mãe, um pai, um filho e um avô. Fez isso? Pois é: é mais ou menos nesse ambiente que se passa Ao Cair da Noite, segundo filme da carreira de Trey Edward Shults, um refinado Thriller apocalíptico que nos leva a um passeio impetuoso pelos limites da nossa essência.

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Fruto de mais uma incursão da A24 no árido terreno do Terror, Ao Cair da Noite é outro ótimo título do estúdio, que, dentro do gênero, figura facilmente ao lado de A Bruxa e Corra! como um dos melhores trabalhos da década – mesmo sendo patentemente subestimado. Apesar disso, há algo nesse filme que provavelmente incomodou aquele espectador que costuma acompanhar cada detalhe da divulgação de um filme: há a existência nivelada de um Drama muito carregado. Quem seguiu de perto os passos do marketing, com certeza foi pego de surpresa com o que viu no cinema. E é perfeitamente compreensível tal confusão. Tudo no marketing do filme sugeria uma produção de Terror direta, convencional: temos, logo de cara, o título do filme, It Comes at night (título original do longa que indica que algo vem a noite), depois, uma série de trailers que apresentam ingredientes comuns em obras do tipo, como um ambiente pós-apocalíptico, uma casa no meio do nada, pessoas com máscaras de gás, armas e um cara macabro sangrando de um jeito macabro pela boca. Não tem outra: depois de assistir aos trailers, a primeira coisa que vem à cabeça é mesmo um retumbante “credo” seguido de “isso parece que vai prestar, hein?

Só que, indo na contramão da maiorias das reclamações, o que nós temos aqui anda longe de não ser um Terror (apenas não o é per si), e muito menos de ser um filme ruim. Ao Cair da Noite apenas abre mão de uma abordagem mainstream do gênero, dando preferência a um Terror que aloja seus componentes sob camadas subjetivas, e as apresenta em graus menos expressivos, em termos visuais; introjetando nessa relação o outro lado da obra: onde um Drama pungente e tenso se incube de versar sobre relações humanas, família, decisões e morte. Basicamente, no que diz respeito ao gênero, não há nada entre o marketing e o produto entregue que sugira qualquer espécie de propaganda enganosa: o que estava lá, está aqui. Mas há de se convir que o tom empregado ao marketing do filme, que dá preferência mais a um do que a outro, foi, de fato, problemático.

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Muito dessa verve em percorrer um caminho diferente do comum se deve à própria vida do diretor. “Eu não me propus a fazer um filme de Terror em si”, diz Shults. “Eu simplesmente me propus para fazer algo pessoal, e foi no que isso se transformou. Coloquei muitos dos meus próprios medos nisso e, se o medo for igual ao horror, sim, [isso] é horror. Mas não é um filme de terror convencional”. Sob os panos do cenário comum, há algo curioso surgindo no Terror cinematográfico, um movimento silencioso de cineastas que resolveu voltar a questionar as convenções do gênero, numa reformulação que questiona, acima de tudo, os horizontes pouco explorados do campo, ainda que na história do Terror existam vários exemplares. E essa reformulação já tem nome: post-horror (ou pós-terror), como vem sendo chamado lá fora este (não tão?)¹ novíssimo sub-gênero do Terror.

Para testar a sua ideia, antes de realizar o filme, Shults conta que desligou todas as luzes de sua casa, no Texas, e ficou perambulando por ela com uma tocha na mão – tal qual faz Travis no filme, só que com uma luminária. Além disso, ele também pesquisou sobre genocídios e ciclos sociais de violência para ter uma ideia de como se comportariam seus personagens. Mas, mais importante do que isso, a composição do filme conta com um singular componente: as ansiedades pessoais de seu criador. Shults fala sobre a relação com seu pai, que era viciado e acabou falecendo antes que ele começasse a escrever o filme; ele conta, também, que o pai confessou seu pesar pelo filho no leito de morte. “A morte é o desconhecido, você nunca sabe. E isso é sempre terrível. Mas, mais ainda é o arrependimento. Como você conduziu a sua vida, as decisões que você tomou. Isso me aterroriza o tempo todo”, conta Shults, que decidiu mudar radicalmente de vida: abandonou a escola de administração e decidiu se dedicar ao cinema, após trabalhar para Terrence Malick em A Árvore da Vida (2011). “Eu não sei se ele sabe, mas ele mudou o curso da minha vida inteira”, conta. “O que me inspirou foi o quão pouco ortodoxo você pode ser. Apenas pense fora da caixa e encontre o caminho certo para fazer um filme seu”.

E, bom… Daí você tira que o intento de Ao Cair da Noite nunca foi ser convencional – o que deveria, pelo menos em tese, eximir quaisquer culpas que se administrem ao filme.

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Depois de assistir a esse filme pela segunda vez, saí pensando o seguinte, além de muitas outras coisas: é impossível que algum expectador exigente assista a esse filme e lhe aplique a pecha de ruim. Cheguei a essa conclusão porque, a despeito de quaisquer desgostos surgidos das expectativas em choque com a realidade da obra, o esmero de Trey Edward Shults com essa produção resultam num trabalho e tanto. Em Ao Cair da Noite, a condução de Shults consegue nos submergir por completo na tensão e no drama da situação vivida pelas duas famílias, construindo nos mínimos detalhes uma trama muito bem encorpada, onde o clima se torna mais e mais denso na medida em que a narrativa avança (o que me lembrou, nesse aspecto, as tramas Slow Burn), sempre tornando a execução de seus planos um exercício cinematográfico, com planos longos e, melhor, bem desenhados. É comum que, ao analisar um filme, elenquemos uma ou mais cenas que julgamos desnecessárias, mas felizmente, este não é o caso. Tudo nesse filme tem alguma importância – e nem mesmo um simples quadro pendurado na parede escapa de uma função, como explicarei mais adiante.

A trama do filme, cujo texto também é de Shults, acompanha a difícil vida de uma família que vive isolada no meio da mata, se protegendo a todo custo de uma perigosa epidemia. Em linhas gerais, a história de Ao Cair da Noite investiga a natureza humana, mais especificamente sobre como se desdobram as relações das pessoas em situações que põem em jogo a sua própria sobrevivência e a de seus entes queridos. O filme vai fundo, principalmente, numa exploração do comportamento humano diante de incertezas – e faz disso parte fundamental do filme. Mas há ali também, como pano de fundo, algo que, pelo visto, é uma predileção do diretor: uma forte ligação com dinâmicas e disfuncionalidades familiares (que se apresentam tanto na estrutura das famílias, ambas nucleares, quanto na severidade do patriarca principal, que transita entre a proteção e a constrição). Shults também trabalhou com esse tema em seu primeiro longa-metragem, Krisha, de 2015.

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A construção exemplar da atmosfera de Ao Cair da Noite, além da interessante premissa narrativa de acompanhar Travis em suas andanças noturnas, é resultante de um de seus maiores trunfos: o uso da sugestão como artifício substantivo do filme. A partir do segundo ato, ela está presente em todos os momentos da trama, e não larga da sua mão até o final do filme. Em nível de exemplo, justamente sobre esse aspecto do filme, observemos uma cena (da imagem acima), que ocorre no clímax do filme. Nela, Kim (de joelhos) clama por sua vida, amedrontada, no momento em que as duas famílias entram em conflito por conta da suposta infecção do filho do segundo casal (Kim e Will). O que não percebemos neste frame, entretanto, é que atrás dela está o seu filho, de, mais ou menos, 4 anos de idade. Nesse e em outros planos (anteriores e posteriores), o diretor opta por ângulos que nunca mostram claramente o rosto ou quaisquer características físicas da criança que sejam relevantes para que tanto os personagens do filme (no caso, Paul, Sarah e Travis) quanto nós, que assistimos, não saibamos se a criança está, de fato, doente, ou se tudo não passa de uma desesperada paranoia.

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A sugestão assume um caráter medular para o filme, porque é ela a responsável pelos vários questionamentos que ficam no ar ao fim da projeção. E, acredite, não são poucos:

O que foi que o cachorro viu ou ouviu para sair correndo daquele jeito? Ao seguir seu cachorro floresta adentro, o que Travis ouviu ao ponto de lhe deixar atônito? Será mesmo que ele ouviu algo? Se sim, o que será que havia ali? Quem entrou na casa e trouxe de volta o cachorro, doente e sangrando? Aliás, o cachorro estava mesmo doente? Foi alguém de fora? Se não, quem foi? Será mesmo que a criança era sonâmbula e foi parar no antigo quarto do avô de Travis sozinha? Será que a criança estava realmente doente, ao fim de tudo? Ou não? Será que Travis sofria de sonambulismo? Será que foi Travis que trouxe de volta seu cachorro para casa? Será que… Os sonhos de Travis possuíam algum conteúdo que dava pistas sobre todos esses questionamentos? Seriam seus pesadelos, além de representações de seus medos mais pungentes, um retrato do que ele havia feito sem se dar conta?

Me fiz e refiz todas essas perguntas… Para nenhuma delas obtive resposta. E, sejamos francos: nunca vou obter.

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É inevitável que, ao fim do filme, não nos mergulhemos numa infinidade de questionamentos sobre os momentos abertos da trama. Ter no que pensar, definitivamente, não será um problema aqui. E é exatamente esse um dos principais papeis da sugestão: de nos pôr à pensar em cada ponta deixada propositalmente solta nos durantes do filme; em mais um desses diálogos perenes que a arte tece com o espectador. Certa vez, quando questionado sobre os porquês de nunca revelar os significados de seus filmes, o cineasta David Lynch disse: “O filme é auto-contido, é completo. Nada deve ser tirado dele, nada deve ser colocado nele. Tenha a experiência deste filme. Entre neste mundo. E depois dessa experiência, você cria a sua explicação… Ela é válida.” E, muito embora eu tenha lá as minhas ressalvas quanto a esse entendimento lynchiano (haja visto que o cinema de Lynch é algo diferente de qualquer coisa), há em Ao Cair da Noite algo que lembra muito as obras de Lynch,² e que se apresenta como regra: a impossibilidade de se encontrar respostas ou significados objetivos num nível superficial.

Contudo, mesmo atestando essa impossibilidade, minha teimosia ainda se sobressai. E ficará aqui, à nível de hipótese, só pra não deixar passar: sob meu ponto de vista, é razoável crer que os pesadelos de Travis, além de uma visão horrenda de seus desejos e medos, davam indicativos sobre as incógnitas deixadas no filme. Acho, por enquanto, que eles podem pavimentar o caminho até possíveis respostas. Mas não me pergunte como. Boa parte do que me leva a julgar esta como uma hipótese factível, se dá no fato de que isso faria dos pesadelos de Travis componentes determinantes na narrativa do filme, em vez de somente lapsos oníricos a representar os maiores medos e distorções de desejos do rapaz. Cabe um apontamento: o Horror de Ao Cair da Noite, às dúvidas que ainda insistem em surgir sobre essa parcela genérica do filme, reside justamente nas representações visuais dos sentimentos de Travis (os sonhos), que em sua maioria vêm carregadas de conteúdos atinentes ao Horror, e isso leva o filme à algo além da pura tragédia das relações – mesmo que o Terror, nessa faceta onírica, não assuma um caráter de importância maior que o da própria tragédia. Portanto, ter nos pesadelos de Travis, mesmo que uma pontinha de concretude, faz com que seus pesadelos rompam a barreira do irreal e façam parte do espaço diegético do filme de modo mais material. Nesse tocante, a propósito, talvez fosse interessante nos perguntarmos:

O que, afinal de contas, vem a noite?

 

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Outras duas peças fundamentais em Ao Cair da Noite são sua montagem e seu nível de linguagem – uma influenciando a outra, obviamente. A montagem do filme exerce papel de suma importância, sobretudo, nos pesadelos de Travis, pois consegue transmitir perfeitamente o tom de desordem e agonia daquelas experiências. Ao passo que a linguagem do filme dá ainda mais poder de atuação à sugestão, estabelecendo uma comunicação virtuosa entre o filme e o espectador, denotando um tremendo talento de Shults em desenhar suas cenas. Exemplo da óbvia importância dessas duas coisas se encontra logo após o clímax. Em dado momento, o filme passa a intercalar dois planos simultaneamente: num, adotamos a perspectiva de Travis, provavelmente deitado, olhando para Sarah, sua mãe, enquanto a mesma fala que “tudo ficaria bem”; no outro, observamos Travis vagando pela casa, munido de sua fiel luminária, seguindo em direção à porta onde basicamente tudo teve início, atravessando-a e adentrando a escuridão. Essa sequência é um primor de sensibilidade, e não custa explicar: ao fim de tudo, nos damos conta de que Travis, na verdade, havia sido infectado e que a cena dele vagando pelo corredor, atravessando a porta e desaparecendo na escuridão era uma representação de sua morte – era, simbolicamente, ele se destituindo da realidade e indo em direção ao escuro desconhecido da morte. Sem poupanças, tudo desmorona. E nem os pais de Travis escapam; a cena em que eles se encontram sentados à mesa, um de frente para o outro, carrega um peso enorme. Seus semblantes não exprimem somente culpa, mas também desesperança: a morte é iminente… Basta esperar.

É uma baita execução!

Há também nas atuações um desempenho vital ao longa. Joel Edgerton, Kelvin Harrison, Carmen Ejogo, Christopher Abbott e Riley Kenough formam um time que, mesmo não repleto de grandes estrelas, entrega um trabalho perfeito em termos de implosão – e entendam isto da melhor maneira possível. A fotografia de Drew Daniels é outro ponto forte do filme. Em sua segunda parceria com o diretor, Daniels dá a forma perfeita à toda a situação vivida pelas duas famílias, conseguindo evocar todo o tom de reclusão e desalento necessários pra compor o contexto da trama. Isso, sem esquecer que os momentos em que Travis caminha pela casa com sua luminária, sempre demonstram o quanto aquela situação lhe é repressora, sinalizada pela acachapante escuridão em sua volta. Há composições realmente muito bonitas em todo o filme.

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The Triumph of Death, 1562, de Pieter Bruegel, o Velho.

Ainda em tempo, é válido dedicar uma fraçãozinha desse texto para explicar o que eu quis dizer lá em cima quando me referi a um “simples quadro pendurado na parede [que não] escapa de uma função”. O tal quadro que dá o ar de sua graça durante o filme é esse que vocês estão vendo aí em cima: Triunfo da Morte, de 1562, de Pieter Bruegel

— Tá, mas o que tem essa figura? Aliás, por que falar sobre essa figura?, você questiona. E a resposta é simples: penso que, ao contrário do que sugere ser em primeira análise (um simples plano de complemento aleatório), a escolha desta obra de arte em específico reitera parte fundamental do mote argumentativo do filme: a ideia de que, ao fim de tudo, a morte sempre prevalecerá – e, principalmente, em circunstâncias caóticas. A pintura de Bruegel nada mais é que o retrato desta ideia, porém alegorizando a Peste Negra, que assolou a Eurásia durante o século XIV. Com seu exército de esqueletos, a Morte se alastra e deixa um rastro de destruição por toda a paisagem, desde o horizonte, passando por cima de tudo o que encontra pelo caminho. O céu negro em fumaça, várias figuras mortas pelo chão, cabeças separadas dos corpos, lutas e um desesperado agrupamento de pessoas fugindo da Morte, que se prontifica ao centro da tela, montada em seu raquítico cavalo e segurando o emblema que lhe demarca desde muito tempo: uma gadanha.³ Pode parecer redundante, talvez, mas veja só você o nome dessa obra de arte. Triunfo da Morte. Vai por mim: se ela estava ali, qualquer coisa poderia ser, menos à toa.

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Opressão, impasse, paranoia, culpa, arrependimento… Ao Cair da Noite é, por fim, um retrato angustiante e melancólico do ser humano quando confrontado com seus próprios dilemas. Onde a luta pela sobrevivência fala mais alto que tudo e passa por cima de quaisquer intempéries, deixando toda e qualquer moral aos frangalhos. Este último e bem resolvido longa de Trey Edwards Shults é de um brio pouco visto no cinema de gênero, e consegue, imerso num apocalipse de dramas humanos, entregar uma obra que cumpre, tim-tim por tim-tim, seus objetivos. Se encerra, enfim, como um exemplar filme de arte.⁴

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Por: Ericson Miguel
Entre os dias 06 e 08/07/1017
Posteriormente publicado no Steemit do autor.


[1]: Talvez seja interessante fazer uma análise retrospectiva na história
     do Horror cinematográfico para determinar se o Pós-Terror é, de fato,
     algo novo, ou se ele não é apenas algo já conhecido e que, somente
     hoje, resolveram nomear. Afinal, filmes que se estruturam e dinamizam
     os componentes naturais do Horror de modo diferente do cenário comum,
     não são exatamente uma novidade.
   
     É uma análise que não pode ser feita de supetão. Mas bom... Por um ou
     por outro, há um fato inescapável aqui: existem Terrores. Sim, no plu-
     ral. Se resolveram simplesmente dar um nome para um deles, seja antigo
     ou novo, qual o problema?
   
[2]: Entenda: eu não estou comparando integralmente o cinema de Lynch com
     o Cinema de Trey E. Shults, mas apenas pincelando semelhanças no que 
     diz respeito à ausência, em nível superficial, de significados obje-
     tivos nos detalhes dos filmes de ambos os diretores – e no caso de 
     Shults, somente neste filme.

[3]: É, eu sei que você está aí tipo: “Nossa, mas como assim ~gadanha? O 
     que diabos é gadanha?” Pois bem: gadanha é o nome correto dado àquele
     objeto que nós sempre vemos nas mãos da figura da Morte – e que a 
     gente sempre chamava de foice, que é uma outra ferramenta.
   
     Curiosidade: somente no século XV é que a Morte passou a ser perso-
     nificada como uma figura esquelética, com vestes negras longas e 
     tendo em suas mãos uma gadanha (sim, eu também acho esse nome engra-
     çado).

[4]: Com o perdão pelo uso dessa terminologia rsrs

10 comentários sobre “Ao Cair da Noite: os desatinos da condição humana, a sugestão e o triunfo da morte.

  1. Deu vontade de assistir esse filme.
    Uma sugestão: como tuas críticas (esse artigo é uma crítica do filme, né? ) são enormes, tu poderia publicar um livro com elas… talvez falando sobre os gêneros… falando da evolução dos filmes… eu compraria o livro xD

    PS: Não gostei de A Bruxa, mas gostei de Corra!

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  2. Yan do filmow aqui.
    Rapaz, fico até com vergonha de você falar que meu desabafo/comentário tem algo a ver com o teu belo texto! Excelente o teu texto, Ericson. Em especial o teu esmero e fluidez com as palavras para descrever o filme. mas, concordo que partilhamos de certas impressões! Sinto-me apenas um pouco divergente quanto a teu posicionamento no início do texto a respeito da presença de uma essência humana. Inclino-me mais para acreditar em uma psicologia das contingências. Tocando nesse assunto, e não fugindo do tema sobrevivência, queria saber se tu já assistiu “The rover”, também da A24. Queria saber das tuas impressões!
    Agradeço pelo convite de vir até a tua página!
    um abraço!

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    1. Sem problemas, Yan. Divergências sempre existirão, e que bom, né? Mas quanto a The Rover, ainda não assisti, apesar de todo esse tempo. Mas irei dar, sim, uma conferida e lhe direi minhas impressões lá pelo filmow.

      E, mano, muito obrigado pelo comentário?

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  3. Oi, Ericson. Adorei sua crítica e, com certeza, lerei outras daqui em diante.
    Sei que a discussão é sobre o filme, mas fiquei curioso mesmo sobre a sua opinião da condição humana e a teoria da tábula rasa. Li uma vez um livro do Erich Fromm, psicanalista, e ele tratava justamente sobre a questão de não existir uma condição/natureza humana universal e intrínseca. Que o homem é um ser construído biopsicossocialmente e que somos construídos TAMBÉM a partir do meio.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Oi, Erick! Muito obrigado pela curtida e pelo comentário. Fico feliz de que tenhas gostado do texto.

      Em relação à sua dúvida(?) sobre meus pontuamentos a respeito da condição humana: infelizmente nunca li as contribuições do Erich Fromm – não tive muito contato com ele em minha formação –, mas muito ajuda você pincelar o fato de que ele era um psicanalista – porque obfuscações sobre esse tema costumam fazer parte da cartilha da Psicanálise. Fromm não está errado quando diz que o homem é um ser biopsicossocial (essa é uma asserção um tanto óbvia nos dias de hoje, mas que, na época em que Fromm era vivo, servia como contraponto cabal à completa biologização da vida humana; é de se entender), e ele tampouco está errado quando diz que nós somos, TAMBÉM, influenciados pelo meio. Entretanto, há ressalvas muitíssimo profundas e objetivas a serem feitas quanto a sua negativa de que não há uma condição humana intrínseca – pelo menos foi isso que compreendi do seu comentário (se houve erro em minha interpretação, peço perdão pelo vacilo).

      A visão de que o ser humano é um produto do meio, pura e simplesmente – ou que o meio é tão mais influente do que aquilo que nos é natural –, é também comungada por outra faceta da Psicologia, a Psicologia Social do pós crise de 1970, que tem papel determinante nessa concepção. Bock, doutora e influente psicóloga sócio-histórica brasileira, diz o seguinte: “Não existe a natureza humana: o homem tem sido pensado, na Filosofia e em várias ciências, a partir da ideia de Natureza Humana concebida como uma essência universal e abstrata, o que o caracteriza desde sua origem. É a forma humana do Absoluto. Nestas concepções há sempre um homem apriorístico dentro do homem […] Há uma natureza em cada homem, natureza esta que o faz homem e que determina suas possibilidades.”¹ Não sei de onde Bock tirou, por exemplo, que a natureza humana denota abstratez (haja visto o quão complexa e tangível ela é), e de que ela determina nossas escolhas. Isso é, provavelmente, e teimo em achar que estou certo, fruto de falta de leitura sobre o tema junto de muito engessamento ideativo. Por si só, veja bem, a negativa de uma natureza humana já deveria pôr em cheque uma infinidade de aspectos motores da nossa vida enquanto homo sapiens, aspectos que “já vem com a gente de fábrica”, como é o caso da linguagem (ou a propensão para), por exemplo, sem a qual absolutamente ninguém se comunicaria (e que objetivamente influiria no fenômeno psicológico humano). A linguagem humana propriamente dita, em nível neurológico, não é uma construção, mas sim um dado natural, evolutivo.² O que se constrói na verdade são as suas variações de expressão e língua, basicamente. Mas Bock parece não se preocupar com as coisas que a sua negação deixa de lado. E acredite, elas muitas.

      Muito embora soe estranho (estou inferindo isso, não sei se você acha o mesmo rsrs), esse modelo de pensamento não é um privilégio de Ana Maria Bock, demais psicólogos sociais e de Psicanalistas. Ele é compartilhado massivamente na academia, academia essa que, sob certa perspectiva, se habituou a ter um ranço inexplicável pelas ciências naturais. Noções de que a natureza humana é desimportante para o que se entende sobre o ser humano, ou que possui ação ínfima na constituição do homem, após serem promulgadas na academia, acabaram se infiltrando na mentalidade popular, e muita gente as aderiu, mesmo quando a maioria das evidências, em Ciências Cognitivas, Genética e Psicologia Evolutiva, aponte para o contrário.

      Agora note algo importante: no texto, fiz questão de pontuar “uma natureza que, *entrelaçada às dinâmicas sociais*, nos torna este complexo amálgama de imperativos naturais e artificiais.” Cito isto porque, ao atestar a existência patente e influente de uma natureza humana, é bastante comum que se interprete que, com isso, se está deixando de lado as complexidades da nossa vida em sociedade, de como o ambiente também nos é determinante. Não se trata disso. O ambiente exerce, SIM, um papel categórico na constituição humana, e não SOMENTE aquilo que nos é natural. É uma pequena dinâmica entre leis e conteúdos. Leis presentes e conteúdos adquiridos. Espero que isto tenha ficado claro: meus pontos nunca foram um rechaço ao papel do ambiente para o ser humano.

      Infelizmente, Erick, essa discussão é longa, e provavelmente se mostrará perene. Ela definitivamente não cabe aqui (não no sentido de que sua dúvida não seja boa, ou que não possa ser feita aqui, ela pode e deve, obviamente; mas no sentido de que, para ela, precisaríamos de muito mais linhas de texto para discutir).

      Contudo, se posso lhe servir com algumas indicações de leitura, recomendo três livros e meio, sem os quais a discussão sobre a Natureza Humana fica ridiculamente incompleta: “Tabula Rasa”, de Steven Pinker, que absolutamente seminal nessa questão. “A Paisagem Moral”, de Sam Harris. Para ajudar, recomendo também a leitura do ótimo “Just Babies”, do Paul Bloom (que ficou com o péssimo título “O Que nos Faz Bons ou Maus”, aqui no Brasil). E, por último, se você não tiver problemas com leituras mais técnicas, recomendo passagens bem pontuais da obra “E O Cérebro Criou o Homem”, de António Damásio: o segundo capítulo, intitulado ‘Da Regulação da Vida ao Valor Biológico’ e uma sessão, ‘Natureza e Cultura’, do último capítulo do livro, ‘Viver com Consciência’.

      Perdão se houver algum erro gramatical no texto. Forte abraço, e fica ligado aí que mais críticas serão publicados no blog.

      ___________________

      [1]: A passagem, e muitas outras na mesma direção, podem ser encontradas no artigo “Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico”, disponível no link: http://bit.ly/2wibgMo.

      [2]: Para mais sobre o assunto especificado, ler “O Instinto da Linguagem” (1994), de PINKER, e o capítulo “O Poder do Balbucio: A evolução da linguagem”, presente no livro “O Que o Cérebro tem Para Contar”, de RAMACHANDRAN.

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    2. Uma coisa que esqueci de pontuar no texto anterior, e que é importante: essa concepção de homem enquanto produto do meio não nasce com o advento da Psicanálise e nem da Psicologia Social. Ela tem um legado profundo na história humana, bem mais antigo do que essas abordagens – datando de Locke, Rousseau e do advento das religiões institucionalizadas. O que essas facetas da Psicologia fazem é apenas usar essas noções para fundamentar suas visões de homem. Isso não é, de modo algum, um problema automático. Mas é preciso salientar que essa noção, tanto antigamente quanto nos dias de hoje desempenha um papel controversamente medular nas raízes de muitas ideologias políticas.

      O importante, e talvez mais do que saber quem ta certo ou não, é pensar como essa noção de homem enquanto agente passivo do meio influenciou e continua influenciando a nossa vida política – o que afeta nos imediatamente.

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  4. Cara, muito boa sua crítica! Mas, de verdade, achei MUITO prolixo. Muitos parágrafos que podiam ser resumidos em palavras. Não estou falando de forma depreciativa, apenas construtiva. Tente sintetizar mais suas idéias e escrever o que pensa de forma mais objetiva. Parabéns pela análise de qualquer forma! 🙂

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    1. Muito obrigado pelo comentário, Joaquim. Quando escrevi esse texto sobre o filme, já aguardava que comentários na mesma direção que o seu fossem surgir, e até que demorou rsrs Me parece, no entanto, bastante desafiador escrever uma análise detalhista, e não uma crítica stricto sensu, sobre esse filme me usando de poucas palavras. Mas tentarei, sim, ser mais enxuto das próximas vezes. E muito obrigado, de verdade. Críticas assim serão sempre bem vindas!

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