O bom gigante amigo (2016)

Por André Dick

O bom gigante amigo 19Há cinco anos, Steven Spielberg realizou sua primeira animação, As aventuras de Tintim, baseado no personagem de Hergé, e obteve sucesso com um realismo atípico para o gênero, mesmo com sua revolução contínua. Depois de uma série de filmes baseados na história, a exemplo de Cavalo de guerra, Lincoln e Ponte dos espiões, ele regressa com uma animação mesclada com humanos intitulada O bom gigante amigo, com base num livro de Roald Dahl, o mesmo de O fantástico Sr. Raposo e A fantástica fábrica de chocolate. A adaptação do livro de Dahl, publicado em 1982, foi o último trabalho de Melissa Mathison, a autora de E.T. – O extraterrestre, também desse ano, e Spielberg utiliza seu manancial de imagens para compor uma história melancólica, talvez a mais intensa sua desde A.I. – Inteligência artificial.
Sophie (Ruby Barnhill) é uma jovem que mora num orfanato de Londres e determinada noite ela ouve barulhos da rua, vendo um gigante idoso (Mark Rylance), que a leva para seu país onde há inúmeros gigantes ameaçadores. O gigante, que se intitula Big Friendly Giant (no Brasil, BGA), avisa a Sophie que ela deve ficar no lugar, pois caso contrário poderia contar aos outros sobre a sua existência. Quando um dos gigantes maus, Bloodbottler (Bill Hader), entra em sua casa, Sophie é obrigada a se esconder num vegetal chamado de snozzcumber.

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BFG conta à menina que ele captura sonhos em forma de vaga-lumes num determinado lugar – que parece uma mescla das árvores de Guerra dos mundos com as de Inteligência artificial, além de evocar a majestosa nave de Contatos imediatos do terceiro grau – e os leva para casa, trabalhando-os como poções. Depois, o gigante espalha esses sonhos luminosos com um trompete gigante enquanto as crianças dormem. No entanto, o grande inconveniente da vida de BFG é enfrentar esses gigantes: além de Bloodbottler, há Bonecruncher (Michael David Adamthwaite), Gizzardgulper (Chris Gibbs), Manhugger (Adam Godley), Childchewer (Jonathan Holmes) e Butcher Boy (Daniel Bacon), entre outros. A história vai guiar BFG e Sophie a Elizabeth II (Penelope Wilton), Rainha do Reino Unido, no Palácio de Buckingham, com sua empregada Maria (Rebecca Hall) e seu mordomo, Mr. Tibbs (Rafe Spall).
Com a trilha incessante de John Williams, o início de O bom gigante amigo lembra bastante a adaptação de Spielberg para Peter Pan, Hook – A volta do Capitão Gancho e o episódio que ele dirigiu para No limite da realidade (sendo que neste o espaço era um asilo em que os idosos queriam se transformar novamente em crianças), também escrito por Mathison. Em razão da fraca interpretação de Barnhill, Spielberg não consegue desenvolver o arco da personagem de Sophie de modo a princípio envolvente, mesmo com a boa atuação de Rylance como o gigante e uma sequência irrepreensível em que ele vai se ocultando nas ruas de Londres, passando-se por postes de luz, para não chamar a atenção de moradores.

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À medida que a fotografia de Janusz Kaminski começa a se destacar, Spielberg desenha um universo atrativo: a habitação de BFG é um primor de concepção visual e remete a detalhes de Indiana Jones e o templo da perdição, enquanto sua caminhada atrás de sonhos no lado invertido de uma árvore dialoga com o melhor da animação japonesa e com a parte final de A.I., misturando cores vivas e um tom mais sóbrio. Para um cineasta, no entanto, sempre interessado no universo infantil, é de se surpreender com o fato de que ele não selecionou uma boa atriz para o papel central nem trabalha com o sentimento de solidão da infância como em Império do sol, independente de o tom da história ser mais infantil. Spielberg prefere, aqui, mostrar uma espécie de amargo envelhecimento, por meio da figura do gigante, sempre sendo importunado pelos companheiros com quem não se identifica, inclusive porque perto deles tem um tamanho quase minúsculo e porque, principalmente, ele não devora humanos (a quem os gigantes maus se referem como feijões). O trecho em que ele tenta expulsá-los de sua casa é certamente um dos mais angustiantes da carreira de Spielberg, como se não houvesse tranquilidade aparente à vista. O Palácio de Buckingham se torna aquele espaço em que o gigante se torna ao mesmo tempo admirado e acolhido, e pode-se dizer que é o filme do diretor de Indiana Jones que mais presta tributo a uma certa devoção à tradição real inglesa (spoiler: se, em certo momento, há a presença de militares é porque, para os desavisados, isso já aparece no texto original). E Dahl sempre esteve sob observação de Spielberg, tendo escrito nos anos 40 um livro chamado The Gremlins, sobre criaturas que sabotavam aviões britânicos.

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Pela atuação de Rylance, cujo Oscar de ator coadjuvante por Ponte dos espiões, no lugar de Stallone, foi a surpresa deste ano, BFG é certamente o personagem mais triste da exitosa carreira de Spielberg. Ele tem uma sensação de estar sempre deslocado não apenas pelo tamanho como também pelo que parece ter insegurança para dizer, a exemplo do que acontece no encontro com a rainha, e é isso que mais realça esta obra que se transformou numa das piores bilheterias da carreira do diretor (para um orçamento de 140 milhões de dólares, ele recuperou até agora a metade). Misturando animação e atores reais, o que faz lembrar obras como Uma cilada para Roger Rabbit e Se minha cama voasse, no entanto com uma estranha indeterminação, nesse sentido, O bom gigante amigo não se destina nem especialmente a crianças, e talvez sua história não seja a mais adequada para um público adulto interessado por uma trama mais desenvolvida. A sua autenticidade se localiza num meio-termo entre o talento de Spielberg para compor imagens e sua habilidade em mostrar seres deslocados no espaço. No roteiro, também é possível ver elementos que interessam a Mathison, que escreveu nos anos 90 o filme Kundun para Scorsese, sobre o Buda, uma espécie de solidão cósmica que já se entrevia no seu grande sucesso E.T. No entanto, falta um elo de ligação entre as camadas do filme que poderiam aproximá-lo ainda mais do espectador, que, no entanto, é recompensado por sua beleza plástica de evidente talento e um traço mais contemplativo que pouco lembra outras animações mais comerciais.

The BFG, EUA, 2016 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Mark Rylance, Ruby Barnhill, Jemaine Clement, Rebecca Hall, Penelope Wilton, Bill Hader, Rafe Spall Roteiro: Melissa Mathison Fotografia: Janusz Kaminski Trilha Sonora: John Williams Duração: 117 min. Produção: Frank Marshall, Sam Mercer, Steven Spielberg Distribuidora: Walt Disney Pictures Estúdio: Amblin Entertainment / Kennedy/Marshall Company, The / Reliance Entertainment / Walt Disney Pictures

Cotação 3 estrelas e meia

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2 Comentários

  1. fredmorsan

     /  8 de agosto de 2016

    Infelizmente, tive que assistir ao filme dublado. Não que a dublagem esteja ruim, mas gosto de ver o trabalho original. Achei interessante Spielberg não perder tempo no início do filme para explicar quem é a órfã e quem é o gigante e seu mundo. Essa apresentação é feita ao longo da projeção, mas confesso que os primeiros 40 minutos do filme foram bem tediosos. Interessante que gosto de assistir a filmes infantis em sessões mais cedo onde terá o público infantil em peso e observar as reações dos pequenos. E dava pra perceber que esse início foi bem cansativo para elas. Um menino atrás da minha poltrona comentava o filme todo e estava reclamando do filme, que estava muito chato. Mas incrivelmente o filme dá uma guinada e o filme começa a ficar divertido. A cena do café da manhã é das melhores e todos os pequenos caíam na gargalhada (e como é bom de ouvir). No final da projeção, o mesmo menino que estava achando o filme chato disse que aquele era o melhor filme que ele já tinha visto.

    Gostei muito do filme e recomendei a todos os meus amigos que tem filhos a assistir.

    E parabéns por mais uma ótima crítica.

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    • André Dick

       /  9 de agosto de 2016

      Prezado Fred,

      agradeço por seu comentário generoso! Assisti ao filme no original e não sei se na dublagem a atuação da atriz Ruby Barnhill foi em parte salva; achei o ponto mais fraco do filme. Gostei muito das participações de Rylance e Hader. Tive a mesma impressão sua: os 40 primeiros minutos são um tanto lentos e depois o filme melhora consideravelmente. Interessante o que comenta sobre a reação das crianças ao filme. A cena do café da manhã é realmente a melhor do filme, e mais ao final há uma ressonância mais interessante na amizade entre os personagens. No entanto, acho que é uma obra bastante melancólica. Como disse, desde Inteligência artificial não via Spielberg desse modo. Não tenho dúvida de sua influência, aqui, de Miyazaki, principalmente na cena da árvore. Lembro ainda que, dia desses, fui ver A era do gelo: o Big Bang, realmente mais infantil, e a reação foi quase indiferente ao que acontecia, com a sessão lotada de crianças. Entre os dois, no entanto, eu recomendaria O bom gigante amigo com facilidade.

      Volte sempre!

      Abraços,
      André

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