O apartamento (2016)

Por André Dick

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O cineasta Ashgar Farhadi vem se destacando desde À procura de Elly, de 2009, mas foi com A separação, de 2011, que ele recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. Dois anos depois, ele tentou repetir o êxito com O passado, mas contava com uma história excessivamente calculada. Sua volta se deu no Festival de Cannes com este O apartamento, em que Emad (Shahab Hosseini) e sua esposa, Rana (Taraneh Alidoosti), se mudam para um novo apartamento em razão de o prédio antigo onde moravam estar condenado pela falta de infraestrutura. Ele é professor e ambos atuam numa adaptação de A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller, da qual faz parte Babak (Babak Karimi), que lhes indica a nova moradia.
O filme inicia com o cenário dessa peça de teatro, com neons multicoloridos indicando um cenário norte-americano, mas o peso da cultura iraniana se impõe aqui como um subterfúgio para o estilo do cineasta. O que acontece em seguida é impactante: tendo sido um apartamento habitado antes por uma prostituta, e com objetos ainda dela nos cômodos (em certo momento, mostra-se um armário cheio de sapatos dos mais diferentes tamanhos), alguém se dá a liberdade de atacar Rana, fazendo com que ela seja conduzida para um hospital.

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No entanto, ela não se mostra propensa a contar sua história para a polícia, por vergonha. A partir daí, o desentendimento entre os dois se acentua, e Emad, antes agradável com os alunos, se torna mais violento e impaciente. Ele, de qualquer modo, passa a investigar o que pode ter acontecido no dia fatídico, não sem tentar colocar a culpa em Babak, que lhe indicou o imóvel, falando dos vizinhos pouco agradáveis.
Como em seus outros filmes Ashgar Farhadi utiliza um acontecimento do cotidiano para traçar uma visão humana de notável percepção, em que os indivíduos se movem pela dor e pela irracionalidade diante de uma situação. Não por acaso, a mulher que é vítima aqui sofre um corte na altura do olho e passa a usar um curativo onde antes usava o véu, como se este fosse uma imposição violenta do Estado, não apenas para cobrir o rosto, e sim suas perspectivas de mudança. Ao dialogar com a peça de Miller, O apartamento se sente com referências não apenas ao recente Birdman, mesmo sob outro ponto de vista, assim como a Noite de estreia, o clássico de John Cassavetes, em que o comportamento da atriz fora dos ensaios influenciava diretamente o resultado da peça a ser concretizada. No filme de Farhardi, a peça teatral se sente como uma extensão de suas vidas, e Emad passa a acrescentar diálogos mostrando seu incômodo com a situação à qual ele e sua esposa são conduzidos.

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Trata-se de uma obra especialmente surpreendente tanto pelo elenco extraordinário quanto pela atmosfera de insegurança e angústia que proporciona: temos aqui o Farhardi de A separação, com os pés inseridos na condição humana, e menos em O passado, que se baseava mais em conceitos e tinha um elenco menos forte. Na realidade, ele trata de como o ser humano reage diante de uma violência: ele deve buscar a própria alternativa para se vingar ou seguir as autoridades e mesmo a compaixão.
Farhadi, exímio em colocar o espectador em dúvida quanto à moral de seus personagens, faz com que se tenha uma certa compaixão mesmo diante da agressão cometida. É inegável que ele produz um sentimento conflitante no espectador, fazendo com que pensemos no indivíduo responsável pela agressão como uma figura tão destituída de qualquer misericórdia que se torna insuficientemente incapaz de produzir um sentimento de justiça. Alguns indicam que este é um thriller de investigação à moda iraniana: não chegaria a tanto. Ele possui uma atmosfera ameaçadora do prédio que remete aos melhores momentos de O som ao redor, no qual certamente vai buscar influência.

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Como A separação e mesmo À procura de Elly, que tinha uma primeira metade esplendorosa para uma segunda de menos impacto, O apartamento joga com o sentimento do espectador de modo a fazê-lo entender os sentimentos de vingança e de perdão em igual sintonia. Sabemos por que a raiva transborda e entendemos quando ela deixa de ter efeito, quando as pessoas se desnudam diante de um acontecimento e se mostram simplesmente pelo que são. Há uma influência visível do cinema de Abbas Kiarostami, recentemente falecido, e dos irmãos Dardenne, que no Festival de Cannes de 2016 lançaram A garota desconhecida, uma espécie de thriller envolvendo uma médica.
Vencedor dos prêmios de melhor roteiro e ator em Cannes, O apartamento é um dos indicados com merecimento ao Oscar de filme estrangeiro e sua qualidade se dá nessa base narrativa situada entre o universo iraniano e a peça de origem norte-americana de Miller, instituindo um paralelo entre os personagens representados e os da realidade, assim como o belo cenário teatral cria um contraste com o apartamento real cheio de rachaduras e ainda não habitado por completo, à medida que o casal deseja sair dele. Quando Rana se sente mal na peça, é evidente que aquele cenário escapista com neons não satisfaz a uma mudança que deve ocorrer. Para Rana, haverá esquecimento do que aconteceu apenas quando abandonarem o apartamento. Mas abandonar o apartamento não significa abandonar o que aconteceu: segundo Farhardi, é justamente na lembrança que o ser humano constrói sua base de confiança e percepção sobre a realidade. Seu filme é o exemplo mais claro desta audácia de mostrar que somos feitos de cotidiano e o olhar que ele lança sobre o envelhecimento é, ao mesmo tempo, terno e sem sentimentalismo.

فروشنده, Irã, 2016 Diretor: Asghar Farhadi Elenco: Shahab Hosseini, Taraneh Alidoosti, Farid Sajjadi Hosseini, Babak Karimi, Mina Sadati, Mojtaba Pirzadeh, Ehteram Boroumand, Shirin Aghakashi, Emad Emami, Sam Valipour Roteiro: Asghar Farhadi Fotografia: Hossein Jafarian Trilha Sonora: Sattar Oraki Produção: Alexandre Mallet-Guy, Asghar Farhadi Duração: 125 min. Distribuidora: Pandora Filmes Estúdio: arte France Cinéma / Farhadi Film Production / Memento Films Production / The Doha Film Institute

cotacao-5-estrelas

 

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2 Comentários

  1. Boa análise.

    Se me permite, colocarei um comentário interessante que eu li em outro lugar sobre esse filme e gostaria que vc comentasse:

    “Não é a toa que o Asghar Farhadi consegue financiamento francês para fazer qualquer filme. De todos os cineastas contemporâneos ele é o que melhor incorpora elementos do cinema francês.

    Forushande por exemplo é puro Alain Resnais, ele utiliza um ensaio metalinguístico para mostrar o desespero existencial que existe entre os personagens. Cada cena da peça é uma reconstrução da vida deles, um momento notável é o que o Emad mostra através do Willy uma parte de suas insatisfações em não conseguir lidar com algumas situações cotidianas da história de vida do personagem, algo que transfigura aquilo que ele vivencia fora dos palcos, puro Resnais.

    Claude Chabrol foi um cineasta bem diferente do Resnais e da para identificar alguns traços de semelhança na forma como Farhadi trabalha com questões de ética, identidade e moralidade (reconhecemos isso em A Separation e também em Forushande, mais neste na parte de confrontação).

    Vendo a forma como ele trata a religião na construção da identidade, relações e atitudes (principalmente pelo comportamento dos vizinhos e do receio da mulher ir a polícia) conseguimos aproximar os trabalhos dele com traços do Éric Rohmer… apenas traços, pois eles apresentam diferenças muito marcantes, principalmente pelo tecido sociocultural que o Farhadi trabalha.

    E por fim nos gestos, na predestinação, na angustia e nos modelos (emoção, contenção, impotência, raiva) reconhecemos um cinema com influencias do Robert Bresson.

    Resumindo: É uma obra muito mais que A Separation, quem conhece a obra do Arthur Miller através da literatura ou de adaptações cinematográficas vai gostar muito das reencenações feitas por Emad, Rana & Cia, que não são fragmentos desorientados. Na minha opinião faltou mais Resnais (a diferença é que este trabalha de forma mais abstrata enquanto Farhadi de forma mais completa) ele poderia ter trazido mais fragmentos de Death of a Salesman para incrementar o filme em momentos importantes, reencena-los em situações determinantes, intercalando realidade com ficção.”

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    • André Dick

       /  27 de fevereiro de 2017

      Prezado Alan,

      agradeço por sua mensagem e pelo envio desta análise interessante sobre O apartamento. Eu decisivamente aprecio essa interpretação de que Farhardi dialoga com o cinema francês de Resnais, Chabrol, Bresson e Rohmer, embora eu acredite que seu retrato mais realista se baseie principalmente na filmografia de Abbas Kiarostami. Não estou falando que Kiarostami não tem influência de alguns desses mesmos diretores, mas já é sob outro ponto de vista, principalmente nos meios de filmagem. Também acho realmente que Farhadi se baseia bastante no cinema norte-americano, principalmente de John Cassavetes, e, especificamente neste, pega traços de O som ao redor e Birdman (em outro contexto). As obras de Farhadi não têm o lado mais romantizado de Rohmer (não é demérito, fique claro) nem aplicam exatamente uma metalinguagem como Resnais em Vocês ainda não viram nada! ou Medos privados em lugares públicos, mais filosófica: a metalinguagem de Farhadi fica nas entrelinhas. Ele situa os personagens entre o cotidiano e a arte, mas nunca, da mesma maneira que nos filmes de Kiarostami, a arte fica em primeiro plano. Paradoxalmente, isso fortalece exatamente seu meio de fazer arte. De qualquer modo, como falei, aprecio esta análise que envia.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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