O irlandês (2019)

Por André Dick

Aguardado por alguns anos e depois de vários contratempos para conseguir orçamento necessário (em torno de 160 milhões de dólares), O irlandês acabou se tornando um dos destaques da Netflix antes de ser lançado. Não apenas por ser de Martin Scorsese, mas também por sua ousadia em fazer o rejuvenescimento de atores com efeitos visuais que acabaram prolongando a pós-produção.
Lançado finalmente, estamos diante de uma história com 209 minutos, no melhor estilo dos clássicos da Nova Hollywood dos anos 1970. Scorsese marca seu retorno depois de seu experimental Silêncio, sobre a ida de jesuítas para o Oriente a seu espaço mais habitual: o que enfoca mafiosos, sejam declarados ou não. Para isso, ele acompanha, desde o início, a viagem de Frank Sheeran com Russell Bufalino (Joe Pesci), com suas respectivas esposas, Irene (Stephanie Kurtzuba) e Carrie (Kathrine Narducci). As lembranças começam quando eles param perto de um posto de gasolina. Sheeran recorda que ali ele conheceu, nos anos 50, o amigo quando teve problema em seu caminhão no tempo em que transportava carne. Nesses transportes, ele conhece Felix “Skinny Razor” DiTullio (Bobby Cannavale), com o qual passa a fazer combinações criminosas. Depois de um acerto com o advogado sindical Bill Buffalino (Ray Romano), Sheeran acaba finalmente sabendo quem é Russell, amigo de Angelo Bruno (Harvey Keitel). Ele passa a trabalhar para ele no universo de gângsters da Filadélfia, também integrando o sindicato dos caminhoneiros dos Estados Unidos. É então que ele conhece Jimmy Hoffa (Al Pacino), o grande líder da União dos Teamsters, mestre em longos discursos e promessas de união entre os integrantes da categoria, que se torna, junto com sua esposa Jo (Welker White) e o filho adotivo Chuckie O’Brien (Jesse Plemons), amigo de Sheeran e, mais do que próximo, parceiro de crime. Hoffa também cria um laço de afeto com Peggy (Lucy Gallina na infância e Anna Paquin na vida adulta), filha de Sheeran, e, em meio aos problemas do sindicato, quer deter o crescimento de Anthony “Tony Pro” Provenzano (Stpehen Graham).

Nos anos 90, Os bons companheiros focava uma máfia de origem pedestre. Isso porque podemos ver que O poderoso chefão, de Coppola, é mais sofisticado e seus mafiosos estão sempre um pouco afastados do cotidiano, mais próximos de uma tragédia grega, em que cada elemento familiar pode também representar uma traição e o pecado. Em Scorsese, por sua vez, os mafiosos até então apareciam à solta pela rua e arranjam brigas de bar com a mesma facilidade com que se barbeiam, além de ostentarem dinheiro, mesmo inconscientemente, ao invés de tentar escondê-lo em algum banco. Os companheiros de Scorsese são, em última instância, pop stars do crime, expondo-se em bares ou salões de jogo com suas amantes (e os personagens do cineasta nunca foram exatamente discretos; basta lembrar, por exemplo, o açougueiro feito por Day-Lewis em Gangues de Nova York). Em O irlandês, mesmo porque Hoffa é uma figura também política respeitada, os mafiosos se comportam de maneira obscura, e Sheeran ao longo da narrativa parece mais um vulto do que qualquer outro, com uma atuação contida, emocional e detalhada de De Niro, por trás de um CGI de rejuvenescimento adequado na maior parte do tempo, a não ser num breve momento em que aparece na Segunda Guerra Mundial.

Em Os bons companheiros, toda essa tentativa que Scorsese vinha tendo em sua carreira anterior, de mostrar o universo da máfia, mas já no início com Caminhos perigosos – a máfia no Little Italy – e Touro indomável (não por acaso com dois atores de Os bons companheiros), se encontra maximizada. Não por acaso, ele faria em meados dos anos 90 Cassino, com De Niro e Pesci também como mafiosos em Las Vegas.
O irlandês é uma mescla desses dois filmes com o humor impagável de O lobo de Wall Steet. O seu roteirista Steve Zaillian já havia escrito O gângster para Ridley Scott e aqui segue o caminho de subtramas acumuladas, a partir do livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, distribuindo gags funcionais ao logo de algumas cenas extremamente bem construídas, por meio dos diálogos e das atuações.
Scorsese, com um brilhantismo auxiliado pela montagem de Thelma Schoonmaker, em seu auge aqui, consegue delinear, neste caos narrativo e nesta desregularização dos valores – há valores aqui, mas mundanos – uma certa referência familiar e mesmo de saudosismo. Para os personagens, a família tem um significado intenso, mesmo que ele em determinados momentos não importe, pois os negócios e a influência vêm em primeiro lugar. Uma cobrança de Sheeran ao dono de uma mercearia sobre o tratamento dado à sua filha Peggy é exemplar nisso. De Niro empreende a mescla entre ser oculto e extremamente violento, embora Scorsese nunca esclareça muito bem seus objetivos, o que era tão forte com os personagens centrais de Os bons companheiros e O lobo de Wall Street.

Na verdade, todos agem em conjunto para manter exatamente este domínio sobre as coisas que podem perder o controle. Castas são colocadas em jogo, mas nunca totalmente, e, por baixo de uma camada de violência e mesmo de secura e tragédia, uma espécie de olhar para as coisas realmente importantes e mais permanentes, tanto para Frank quanto para Jimmy e Russell.
Que O irlandês seja um filme sobre a máfia e sobre os mafiosos, ninguém duvida, no entanto ele, antes disso, mostra a decadência de um personagem, atraído pelo status do desaparecimento, e depois sua tentativa, afinal, de viver aquilo que antes criticava. Nesse sentido, como Os bons companheiros e O lobo de Wall Street, também é uma crítica ferina a um certo modo de vida e uma constatação já tardia para Scorsese de que não vale a pena viajar para fora da cidade sem ter certeza se irá voltar. Mesmo os trechos passados na cadeia são cômicos, na tentativa tanto de torná-la uma extensão de uma sorveteria quanto de um bar. A questão é que Scorsese, em O irlandês, mesmo com o tom épico, nos designs de produção e figurinos valiosos, trata do pano de fundo político da década de 60 em alguns momentos, com Hoffa (interpretado nos anos 90 por Jack Nicholson) sendo perseguido pelo filho de Kennedy, Robert (Jack Huston), e testemunhando a invasão na Baía dos Porcos em Cuba, momento em que o filme dialoga diretamente com JFK – A pergunta que não quer calar, de Oliver Stone.

De Niro consegue oferecer seu elemento meio cômico e dramático típico, enquanto Pesci se mostra pela primeira vez comedido. Já Al Pacino parece fazer uma boa mescla entre o Big Boy Caprice de Dick Tracy e o tenente-coronel Frank Slade de Perfume de mulher. Por sua vez, os coadjuvantes, como Romano e Plemons, mereciam mais tempo de cena, principalmente pela duração de 3 horas e meia, no entanto é plausível que Scorsese se sinta mais confortável em centralizar a história do trio de amigos por interesse. Aliado à encenação irretocável em tribunais, evocando O poderoso chefão II, O irlandês adota uma dramaticidade baseada no biografismo e sem ceder a alguns exageros típicos dos filmes antigos do cineasta, em que a violência era quase fantasiosa de tão acentuada, e entre essas obras se inclui Os infiltrados. Se em meio a esse universo a figura da mulher se perde (e ela era presente em Os bons companheiros com Lorraine Bracco, em Cassino com Sharon Stone e em O lobo de Wall Street com Margot Robbie), é porque Scorsese parece estar tratando do auge e do aprisionamento da figura clássica e queda da figura masculina entre os anos 50 e início dos anos 80. Novos gângsters ainda viriam, no entanto Scorsese prefere mesclar uma espécie de sentimento religioso e de desapego às relações para mover sua obra em direção a uma coda melancólica e impecavelmente habitada nos longínquos anos 70. Tudo soa como um testamento do cineasta, desde a escolha dos atores que o acompanharam ao longo de sua carreira até os momentos mais próximos de um afeto já perdido, quando o olhar diante dos filhos em relação às ações de uma vida toda não se faz mais possível. Mesmo a narração de Sheeran soa desanimada, diante de um universo conturbado e impecavelmente bem desenhado.

The irishman, EUA, 2019 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Bobby Cannavale, Anna Paquin Ray Romano, Jesse Plemons, Stephanie Kurtzuba, Kathrine Narducci, Jack Huston Roteiro: Steven Zaillian Fotografia: Rodrigo Prieto Trilha Sonora: Robbie Robertson Produção: Martin Scorsese, Robert De Niro, Jane Rosenthal, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler, Gerald Chamales, Gastón Pavlovich, Randall Emmett, Gabriele Israilovici Duração: 209 min. Estúdio: TriBeCa Productions, Sikelia Productions, Winkler Films Distribuidora: Netflix

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4 Comentários

  1. Gustavo

     /  1 de dezembro de 2019

    Boa crítica para um dos melhores filmes, senão o melhor, do ano. Adorei as atuações de De Niro e Pacino.

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    • André Dick

       /  1 de dezembro de 2019

      Prezado Gustavo,

      Obrigado por sua mensagem e é realmente um dos melhores filmes do ano, atendendo às expectativas. De Niro e Al Pacino estão ótimos, voltando aos melhores momentos que tiveram no cinema.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  2. Pablo Caldas

     /  4 de dezembro de 2019

    Uma belíssimo filme, que faz a gente lembrar de Os Bons Companheiros, O Poderoso Chefão, Cassino etc… Filmes que tinham uma estética, uma personalidade própria e a marca de seus diretores em cada cena.
    Eu achei muito interessante O Irlandês, a começar pelo brilhante trabalho de rejuvenescimento dos atores, passando pela história toda interligada entre os personagens e terminando com a fotografia e os cenários, mas não podemos esquecer das atuações de De Niro e Joe Pesci e do elenco de apoio também.
    Ainda bem que temos a Netflix hoje em dia, porque eu acho que só assim mesmo para vermos um filme de gangster e com mais de 3h de duração ser feito nos dias de hoje!

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    • André Dick

       /  6 de dezembro de 2019

      Prezado Pablo,

      agradeço por seu comentário sobre esta belíssima obra de Scorsese, talvez a última que represente o cinema da Nova Hollywood dos anos 70, em termos de estética e autoria. O que mais me deixava em dúvida, pelos trailers, era justamente o trabalho de rejuvenescimento, mas, tirando uma ou outra cena, em que parecia haver mais dificuldade de esconder o processo para se chegar ao resultado, ficou excelente. E é cada vez mais raro conseguir ver um elenco atuando em alto nível como aqui, com um orçamento de fundo que corresponde ao divulgado na recriação de um contexto de época. Por isso, concordo que o diretor encontrou uma excelente parceria na Netflix, pois, se lançado por uma outra distribuidora, ele possivelmente teria no máximo 3 horas. A meia hora a mais é vital para desenhar, de forma lenta, o destino de cada um desses personagens.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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