Annabelle pode ser ainda mais sofisticado que Tarantino ao abordar Polanski

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Annabelle Tarantino

Parece que pouca gente percebeu, mas assim como o novo Tarantino, o primeiro Annabelle lida com a tragédia de Roman Polanski

Era uma vez em Hollywood é o título do nono filme da carreira do diretor Quentin Tarantino, e a posição numérica importa já que segundo o próprio afirma a anos sua aposentadoria chega no décimo e último filme da carreira. E essa foi a razão do meu espanto quando a notícia de que a esta altura do campeonato o diretor abordaria o violento racista romantizado Charles Manson e sua trupe de fanáticos e, infelizmente, incluiria ai a reencenação do assassinato brutal de Sharon Tate, atriz emergente que na época estava grávida.

Os brasileiros que reclamam de pessoas que pedem autógrafos à subcelebridade Suzane von Ritchthofen talvez não tenham a menor noção do lugar que a mídia e a cultura pop estadunidense reserva a sujeitos que fariam a filha assassina brasileira parecer uma mera patricinha inconsequente que foi longe demais. Só para nível de comparação, Charles Manson, que morreu a poucos anos, recebeu post lamentando muitíssimo sua morte de Daron Malakian, guitarrista e compositor do seminal System of a Down, que em sua defesa disse não admirar os assassinatos brutais – nove ao que se sabe – e sim “algumas” de suas idéias. Claro que qualquer um minimamente escolado em cultura pop norte-americana sabe que essa é só a ponta do iceberg, mas me pego pensando como seria se um compositor brasileiro lamentasse profundamente a morte de alguém como o Maníaco do Parque, Francisco de Assis Pereira, ou afirmasse ter-lhe homenageado em qualquer obra.

E a dúvida fica, como e para quê Tarantino foi mexer nesse vespeiro da família Manson, que sinceramente já está batido? Isso depois de anos de romantização pop em cima de um cara que tinha a suástica tatuada na testa e cujo as idéias giravam em torno do apocalipse racial, a derradeira guerra entre brancos e negros, onde, claro, ele estava ao lado dos brancos.

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o plano de Manson era incriminar a comunidade negra pelos crimes

E para surpresa de muitos, um bom meio de refletir isso é lançando um olhar sobre Annabelle. Sim, a sequela de Invocação do Mal.

Apesar de no geral ser massacrado, Annabelle, de 2014, tem seu charme. O filme circula no universo nostálgico do cinema setentista, o mesmo de Era uma vez em Hollywood, sem a metalinguagem deste e mudando o foco dos westerns para os filmes de fantasmas, casas assombradas e objetos amaldiçoados, o que tornou-se tendência depois do merecido sucesso de critica e publico do Invocação do mal (The Conjuring, 2013), de James Wan. O spin-off ainda acrescentou ao Universo The Conjuring outro tema retrô extraído do imaginário pop setentista: o satanismo. E o faz com referencia, e provavelmente prestando reverencia, ao diretor Roman Polanski, que embora tenha uma extensa carreira onde não se deixou aprisionar por qualquer gênero cinematográfico, marcou profundamente o cinema de horror. Inclusive é atribuída a sua Trilogia do Apartamento a gênese de uma das mais populares expressões do gênero, e que talvez esteja vivendo seu auge neste inicio de século: o terror psicológico.

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cena de Annabelle (2014)

O terror psicológico é a vertente mais sútil e refinada do gênero, onde saem de cena os Monstros da Universal ou a fantasia gótica da Hammer e entram em seu lugar obras sugestivas, implícitas e psicológicas como O Iluminado (The Shining, 1980, dir. Stanley Kubrick). Abordagem que já era possível ver em obras como Sangue de Pantera (Cat People, 1942, dir. Jacques Tourneur) ou Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage, 1960, dir. Georges Franju), mas que em O Bebê de Rosemary, segundo filme da Trilogia do Apartamento de Polanski, ganha sua forma definitiva.

O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby) foi lançado em 1968, mesma data em que se passa a primeira cena de Annabelle (2014), o encontro do casal Warren com a boneca. Em seguida a dupla de ocultistas sai de cena e a trama retrocede um ano para contar a história de Mia.

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à esquerda Annabelle (2014) e à direita poster de Rosemary’s Baby (1968)

Como uma releitura da paranoia de O Bebê de Rosemary, Mia Form, protagonista de Annabelle, está às voltas com vizinhos suspeitos, seitas satânicas e gestação traumática. Coincidência ou não, a atriz que interpreta Mia chama-se Annabelle também, no caso Annabelle Wallis. Por sua vez o nome verdadeiro da boneca não é esse, o temido brinquedo na vida real – aprisionado numa caixa de vidro dentro do museu dos Warren – chama-se Raggedy Ann. O nome que a boneca recebeu na ficção foi provavelmente pinçado de um personagem do seriado Além da Imaginação, do episodio chamado Living Doll sobre uma boneca falante.

Voltando a personagem Mia Form, impossível ignorar a referencia à atriz que protagonizou O Bebê de Rosemary, Mia Farrow. Mia, a personagem, é atacada por um grupo de hippies fanáticos homicidas depois de testemunhar o assassinato de seus vizinhos, os Higgins. E se até então o filme trazia referencias da obra de 1968, agora ele evidentemente amplia seu universo de citações para a própria vida pessoal de seu realizador: Roman Polanski.

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casal John e Mia de Annabelle e John (Cassavetes) e Mia (Farrow) de Rosemary’s Baby

Também em Annabelle, como no novo Tarantino, temos a reencenação da morte de Sharon Tate, atriz em ascensão no final dos anos 60s e esposa de Roman Polanski. Tate não sobreviveu ao brutal ataque do grupo liderado por Charles Manson à casa dos Polanski, falecendo aos 26 anos, quinze dias antes de dar a luz ao seu bebê e cerca de um ano depois do lançamento de O Bebê de Rosemary.

A escolha de John R. Leonetti, diretor de Annabelle, foi encenar a morte de Sharon Higgins, a personagem assassinada pelo bando no filme, fora de tela. Decisão acertada, já que a morte da Sharon real é considerada um dos mais bárbaros crimes da história forense dos EUA não à toa. Tate foi assassinada com 16 facadas, boa parte delas na barriga, prestes à dar luz. Infelizmente, a delicadeza de Leonetti não deve ser esperada de Quentin Tarantino, autor de, entre outras obras, Assassinos por Natureza (Natural Born Killers, dir. Oliver Stone), filme de 1994 que retrata a jornada de um casal de assassinos romantizados bem à moda do culto a figuras como Manson.

No Universo Invocação do Mal não fica claro se os assassinos,entre eles a filha do casal Higgins, pertencem a mesma seita apocalíptica liderada por Manson, mas, a tal Família Manson está lá de qualquer forma, em cenas de noticiário logo no inicio do filme, quando o próprio Charles Manson aparece na TV.

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Annabelle

Annabelle, o filme, não é tão sutil quanto a obra de Polanski. O filme é muito prejudicado por pequenos exageros desnecessários, especialmente nos encerramentos de sequencias sobrenaturais. Esses exageros soam tão dissonantes da condução geral do filme que arrisco dizer que são enxertos impostos pelo estúdio Warner Bros. Pictures com medo da condução elegante de Leonetti não ser efetiva o suficiente para as novas plateias, em boa parte composta por pessoas que já não são tão intimas de O Bebê de Rosemary, e que até por isso, de fato não tenham notado a enormidade de referencias ao filme e seu realizador.

No entanto, menos sutil ainda é o estilo de Quentin Tarantino, que por outro lado é um excelente diretor e roteirista que conquistou seu direito a ter o corte final de seus filmes sem intervenção dos estúdios. Talvez essa falta de sutileza é que tenha motivado o pronunciamento de Emmanuelle Seigner, atual esposa de Polanski que após a estreia de Era uma vez em Hollywood em Cannes teceu fortes criticas ao seu diretor.

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Leonardo Di Caprio em Once Upon a Time in Hollywood (2019)

Annabelle passou longe de qualquer polêmica do tipo, mesmo sendo um filme de enorme sucesso nos cinemas, muito diferente de obras menores como Helter Skalter (2004, dir. John Gray) e The Haunting of Sharon Tate (2019, dir. Daniel Farrands).

Por enquanto, o filme de Tarantino não fez o barulho que se espera do diretor, levando-o até mesmo a dizer que poderia vir a fazer um novo corte antes de lançar comercialmente. No Brasil, seu nono filme estreia em agosto e só então poderemos julgar por nós mesmos onde o diretor foi se meter à beira da aposentadoria.

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Sharon Tate e Roman Polanski

Publicado por desorel

Membro do grupo de quadrinistas Aicopop, membro da banda Lex Complex, escritor.

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