Eu não sou um homem fácil (2018) e o mundo que nós feministas queremos

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readApr 27, 2018

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(Imagem: reprodução)

Damien (Vincent Elbaz) é um homem machista. Todas as suas atitudes são machistas, tanto é que os primeiros minutos do filme são cheios de reviradas de olhos por parte da espectadora do gênero feminino. Isso até que, ao virar-se para assobiar para duas meninas, Damien bate a cabeça em um poste e perde ligeiramente a consciência. Ao acordar, ele está num mundo invertido.

Neste mundo, as funções, estereótipos, abusos e preconceitos com relação a homens e mulheres foram invertidos. As mulheres têm a maioria dos cargos de chefia, e não veem problema em assediar seus funcionários do gênero masculino. A maioria dos livros foi escrita por mulheres, e sobre mulheres. A maioria dos prêmios científicos e acadêmicos também é entregue para mulheres. Os homens cuidam das tarefas domésticas, dos filhos e têm pouco destaque na vida social. As mulheres seduzem os homens e colecionam conquistas, e muitas inclusive os usam e jogam fora, como faz a escritora Alexandra Lamour (Marie-Sophie Ferdane).

Homens belos, recatados e do lar (Imagem: reprodução)

Neste novo mundo, as mulheres assobiam e fazem gestos obscenos para os homens vestidos de short curto e blusa transparente. Damien não fica confortável com essa nova dinâmica. Ele também não aceita o avanço sexual da chefe e não vê razão por seu projeto de aplicativo ter sido recusado e no local encomendado o projeto de uma mulher. Ele não gosta do jeito independente de Alexandra, nem da maneira como ela objetifica os homens a seu redor — a começar por seu assistente.

Além de ser assediado nas ruas, Damien tem apenas a opção de usar roupas que o objetificam (Imagem: reprodução)

O mundo invertido não é o mundo que as feministas querem. Ele é apenas invertido. E por isso mesmo a reflexão funciona: se tudo fica tão absurdo quando os homens são objetificados e considerados inferiores, por que todas estas mesmas situações parecem tão normais quando são as mulheres que estão sendo oprimidas?

Não, não é porque “o mundo é assim mesmo”. Não é porque seu “deus” quis assim. Não está escrito na Bíblia. Não é a lei da natureza. É o que foi normalizado durante séculos de domínio do patriarcado e, apenas quando visto de modo invertido, pode ser totalmente compreendido como imoral, ilegal, absurdo e sufocante — porque as situações pelas quais toda mulher já passou de repente parecem insuportáveis para um homem como Damien, que era ele próprio um agente do machismo.

Homens seminus na publicidade e o movimento masculista pelos direitos iguais (Imagem: reprodução)

Ao descobrir que este filme entraria no catálogo da Netflix, um misto de animação e medo tomou conta de mim. Animação por poder ver mais um filme dirigido por uma diretora francesa, e ainda falando sobre desigualdade de gênero, e medo de o filme fazer mais mal do que bem para o debate sobre feminismo, dissipando ideias errôneas. Felizmente, meu medo se mostrou infundado, porque a competente Éléonore Pourriat foi a responsável pela direção e por parte do roteiro.

Assim como eu, você já deve conhecer Éléonore, mas não está ligando o nome à pessoa. Ela dirigiu, em 2011, um curta exatamente sobre o mesmo tema, chamado “Majorité Opprimée” (Maioria Oprimida), que teve grande repercussão, inclusive se tornando viral. Éléonore tinha mais do que o necessário de experiência e boa visão para um filme sobre feminismo — e ainda conseguiu criar um final criativo que, apesar de não agradar a todos, fugiu dos clichês.

Já disse que nós não queremos um mundo machista — dominado pelo homem — nem femista — dominado pela mulher. Feminismo não é sobre superioridade, é sobre igualdade. Colocar homens e mulheres no mesmo patamar de poder, de direitos, de renda, de tudo, será benéfico para todos — inclusive para os homens, que deixarão de acreditar que “homem não chora”, cuidarão melhor da saúde física e mental e verão que muitas das características da masculinidade não são nada saudáveis.

“Eu não sou um homem fácil” é ágil e louvável. O filme funciona como uma introdução à igualdade de gêneros, talvez um “feminismo para iniciantes”. Ele toca na ponta do iceberg da desigualdade, e pode — deve! — servir de ponto de partida para outros debates, reflexões, discussões e questionamentos sobre igualdade de gênero.

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