Tony Manero (2008)

por Thiago Campelo

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Em 10 de agosto de 1978 estreava em Santiago do Chile, Saturday night fever, ou melhor, Fiebre de sábado por la noche e John Travolta era imortalizado na mente de grande parte dos chilenos como Tony Manero, um jovem desgostoso com a sua própria vida e que usava a dança na discoteca como escape de sua rotina angustiante. O filme de John Badham tomou proporções mundiais e, ainda hoje, quase 40 anos depois, é muito marcante como retrato de uma década e da música disco. Saturday night fever se tornou um grande marco de uma confluência mercadológica entre a indústria fonográfica e a cinematográfica e também uma boa representação de uma juventude desiludida com as perspectivas de um futuro asfixiante. Em muitas obras mais recentes, tanto o filme quanto as músicas do período, já serviram de pano de fundo ou referências temporais, mas Larraín é o primeiro a utilizá-lo como alegoria para abordar um dos períodos mais nefastos da história do Chile.

Nos anos 70, no sul da América, ditaduras militares se perpetuavam no poder pela manutenção da violência contra sua própria população e, nesse quesito, o governo de Augusto Pinochet é um dos mais destacáveis. É justamente nesse recorte de tempo entre 1978 e 79 que, intensificadas as matanças promovidas pelo Estado e o auge da disco music, Pablo Larraín discorre sobre a afetação psicológica de seu personagem, Raúl Peralta (Alfredo Castro), um dançarino de uma companhia de dança de fundo de quintal que faz de tudo para ser tal qual o Tony Manero interpretado por Travolta.

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O filme inteiro se dá no intervalo de 7 dias que Raúl precisa esperar para conseguir se apresentar num concurso de TV feito para eleger “o melhor Tony Manero”. Enquanto o tempo passa ele tenta montar, em um bar que vai de mal a pior, um show baseado no filme de Badham. O palco do estabelecimento é deplorável e, após um ataque de raiva que o faz destruir parte do tablado, Raúl parte na tentativa de conseguir montar um palco de vidro com luzes em baixo. É a partir desse desenho da fixação de Peralta pela figura de Tony Manero que o filme é construído.

Entre 1975 e 1980 se deu o início da aplicação de uma política econômica neoliberal no Chile, que se transformou quase num “cada um por si” social. Juntando isso a violência escancarada do regime militar e uma figura fictícia capaz de transmitir grande carga de amargura é que Raúl se configura como um personagem ameaçador, dotado de uma enorme força agressiva contida.

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Raúl é um homem incapaz de aceitar sua condição, de lidar com as interdições que lhe são impostas socialmente, mas ao contrário de Tony Manero que consegue dar vazão à sua angustia através das pistas de dança, Raúl não tem para onde escapar. Nas incontáveis vezes em que foi ao cinema ver Saturday night fever Peralta se permitiu experimentar quase uma forma de regressão, de internalização e exteriorização na tela dos seus próprios desejos. Sua admiração pelo personagem de Travolta acontece por um processo de identificação; ele vê seus problemas nos problemas de Tony. A questão é que lhe falta a capacidade de distinção entre o que é tangível e as projeções imagéticas proporcionadas pelo cinema e é justamente isso que faz dele um psicopata. Raúl busca resolver a sua agonia da mesma forma que Tony, porém obviamente não consegue.

Sua fraqueza moral e a demente lógica pela qual rege seus atos, no entanto, são reflexos da forma como o regime militar age. É possível o Estado agir arbitrariamente, torturar e matar as pessoas sem sofrer nenhum tipo de punição, sendo assim, ele se julga com os mesmos direitos. Dessa maneira é possível uma comparação entre Raúl Peralta e Augusto Pinochet bem como é possível fazer uma relação com grande parte de figuras tiranas da história. Para além da obstinação como característica inerente aos dois, visto que tanto Raúl quanto Pinochet não mediram esforços para conseguir atingir seus objetivos – claramente feita a diferença entre manutenção do controle e poder sobre um país e montar um espetáculo de dança. Os assassinatos cometidos pelo dançarino se misturam com as cenas de violência cometidas pela DINA (Dirección de Inteligencia Nacional) e pela polícia em perseguição ideológica; são diferentes faces, de proporções distintas da mesma esquizofrenia. Raúl trata sua companhia de dança com força e austeridade que também são reflexos da política do Estado. Não são permitidas divergências de pensamento sobre a proposta de como deve ser o show. Exemplo disso, nessas duas esferas destacadas, é a figura de Goyo (Hector Morales) que faz parte de um movimento contrário ao regime militar comandado pelo general Pinochet ao mesmo tempo em que dança na companhia e questiona a autoridade de Raúl enquanto líder. Goyo é duplamente agredido: por Peralta e pela polícia. O personagem vivido por Alfredo Castro é praticamente uma sátira da figura do ditador, uma transposição em menor escala de Augusto Pinochet.

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A relação de como um filme estrangeiro pode ser tão caro a um público que “não seja o seu” é outra relação destacável do filme. Saturday night fever provocou reverberações mundiais e não foi diferente no Chile e em nenhum outro país da América do Sul. No entanto, para além de toda a exaltação da cultura disco, as ideias de liberdade de poder de divergência, de exaltação da juventude parecem estar deslocadas. Esse discurso parte quase exclusivamente de um ponto de vista exterior, um ser outro que define por qual ótica esses temas devem ser observados. Isso tanto é evidenciado no filme de Larraín que Raúl, enquanto permanece na sua saga de se tornar Tony Manero, só consegue falar de liberdade, da sua angústia, em inglês e reproduzindo as falas ditas por Travolta. Raúl cada vez se apaga mais para que a versão psicótica de Tony venha à tona, uma variação entre o Manero e o Montana, de Scarface (1983).

A fotografia e operação de câmera conduzidas por Sergio Armstrong e também feita pelo próprio Larraín, também responsável pela foto de No (2012) e La nana (2009), tem papel importantíssimo no filme. A câmera na mão sempre junto ao personagem principal é constituinte de uma ambientação suja de baixa intensidade. Confere ao filme a capacidade de trabalhar sobre o tema com um ar realista e sóbrio, mas sem demonstrar nenhum traço de humanidade ao personagem.

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Outro ponto forte é a atuação de Alfredo Castro que também escreveu o filme juntamente com Larraín e Mateo Iribarren. Por mais que a semelhança física com Al Pacino seja grande, sua atuação é única. Sua capacidade de leitura e introjeção do personagem que ajudou a criar são bem executadas, variando muito bem dos momentos em que Raúl é um psicopata capaz de tudo aos momentos êxtase enquanto dança.

Tony Manero é o segundo longa-metragem de Pablo Larraín, mais do que competente realizador também do longa-metragem No que conta com Gael García Bernal como protagonista. Uma obra que se detém minuciosamente sobre a construção de um personagem completamente perdido e que trabalha bem com as metáforas que propõe, desde a presença do Estado ditatorial chileno quanto a capacidade que o cinema nos dá de fotografar nossos próprios desejos e movimentos.