Serras da Desordem (2006)

por Gustavo Menezes

Sempre que se fala em “descolonizar o olhar” – no cinema como em outros campos – corre-se o risco de a conversa descambar para conjecturas e teorizações incertas, infrutíferas e até sem sentido. O que define o olhar colonizado? Qual seria seu oposto? Seria retratar propriamente “o outro”? Mas o que é “o outro”? O que é “a voz do outro”? E qual seria o modo adequado de retratá-lo? Adotar sua voz, afinal, seria empoderá-lo ou utilizá-lo como instrumento para beneficiar o cineasta?

Se discutir esse processo já gera tantos problemas, pô-lo em prática, então, é empreitada ainda mais incerta. As diversas tentativas de descolonização no cinema já geraram representações etnicamente problemáticas, como o clássico Como Era Gostoso o Meu Francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), e interessantes abordagens modernas como O Abraço da Serpente (Ciro Guerra, 2015).

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Mas Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, vai além no objetivo. E não poderia escolher desafio mais difícil. Basta dizer que o centro da obra é o índio Carapirú, solitário representante da etnia Awá-Guajá, último falante de uma variante arcaica do tupi e completamente iletrado em português.

Sua história, resumidamente, é a seguinte: após sobreviver ao massacre de sua família, ele vagou por uma década dentro da mata, sendo acolhido por uma família no sertão da Bahia e por fim levado por um sertanista à FUNAI, de onde foi redirecionado para um assentamento indígena.

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Qualquer documentarista de primeira viagem lançaria mão de um narrador que explicasse cronológica e didaticamente a trajetória do biografado, e que servisse de ocasional dublador/intérprete, vertendo suas falas para o português. Tonacci percorre o caminho oposto: jamais traduz coisa alguma, jamais tenta explicar ou interpretar o que quer que seja.

Tonacci sabe, afinal, que todo esforço que fizesse nesse sentido descaracterizaria Carapirú e sua história; e, mais do que isso, não traria ao público “civilizado” a real compreensão daqueles eventos.

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O tema e a abordagem não são estranhos a Tonacci. Em Conversas no Maranhão (1983), o cineasta já excluía o narrador didático típico do documentário de aspirações antropológicas, praticamente anulava-se enquanto intermediador e mesmo dedicava trechos longos a falas não legendadas em idiomas indígenas ou num português parcialmente compreensível.

Aqui, no entanto, ele atinge outro nível. Consciente da distância intransponível entre a figura central do filme e seus eventuais espectadores, Tonacci prefere deixar a obra a cargo dos retratados, convidando a Carapirú e aos outros personagens reais a reencenarem os fatos narrados.

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Porém, não apenas o idioma e a lógica das encenações fogem do padrão a que estamos acostumados, como a montagem, a trilha sonora e a fotografia. Todo o filme é uma mescla de vídeos de câmeras digitais e analógicas, reportagens jornalísticas, fotografia em luz natural e efeitos especiais.

Se havia uma forma ideal de fazer o “civilizado” entender o drama de Carapirú, esta era a mais próxima. O índio está o tempo todo deslocado, em todos os sentidos, das realidades em que se vê forçosamente inserido. Então, o que Serras da Desordem faz é nos inserir, deslocados, na realidade de Carapirú. Se nossa dificuldade de entendê-lo é imensa, imagine-se a dele em relação a nós.

Por isso, pode-se dizer que Serras da Desordem é um dos mais bem-sucedidos esforços de cinema descolonizado já realizados.
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