Crítica: 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros (2019, de Filipe Valerim e Lucas Ferrugem) Loucura Falsamente Documentada

*Atenção, a matéria a seguir critica o filme em questão e pode apresentar imagens de vítimas da ditadura, que podem ser fortes aos mais sensíveis.

Definição da palavra verdade: o que está de acordo com os fatos ou a realidade; conformidade com o real; autenticidade, exatidão, veracidade. 
– Dicionário Michaelis.


Definição da palavra mentira: ato ou efeito de mentir; cantiga, fraude, pomada; afirmação que se opõe à verdade; informação enganosa ou controvertida; enredo, moca. 
– Dicionário Michaelis.


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1964 – O Brasil Entre Armas e Livros é um “documentário” brasileiro que narra algumas opiniões sobre a ditadura militar. É produzido pelo Brasil Paralelo, uma iniciativa privada do Rio Grande do Sul, de ideologia de direita política, cuja proposta de trabalho é contar fatos históricos, políticos e sociais do nosso país sob uma ótica “neutra” e que foge daquilo que os livros contam de forma “ideológica” sobre alguns assuntos, como a ditadura militar. Aqui neste primeiro parágrafo já temos três problemas, apontados por aspas propositalmente.

As mentes por trás deste falso documentário.
O primeiro ponto é que “isso daqui” em questão é um falso documentário, uma fake news em forma de filme. O segundo ponto consiste no fato desta neutralidade que o Brasil Paralelo diz possuir é outra mentira, uma vez que praticamente tudo que é dito no documentário, de alguma forma condena o lado político de esquerda e elogia ou ameniza os danos do lado político de direita. O terceiro ponto é o fato de se ridicularizar, menosprezar e rebaixar o valor profissional e histórico do que os professores e livros dizem, acusando-os de serem peças de uma ideologia e manipulação comunista. Vou falar mais disto daqui a pouco, mas antes vamos ao filme em sua análise técnica. 


Datado, clichê e pessimamente construído, ele tem características de cinematografia defasadas. E o pior, toda a edição do filme é feita de um modo que tenta forçar a quem assiste a se envolver de alguma forma, de acreditar piamente naquilo, de se revoltar com um lado específico e de se deixar levar pelas edições visuais e sonoras, recursos utilizados de tal forma para dar razão aos absurdos apresentados. Vou dar exemplos: há alguns nomes que dão seus depoimentos e opiniões, para logo em seguida o narrador do filme falar a mesma coisa que já foi dita, numa tentativa de reafirmar e “enfiar” dentro da cabeça das pessoas, de forma manipulativa, suas distorcidas observações. 


Ao contrário do que aponta o documentário, a maioria não apoiava o regime militar.

Extremamente sensacionalista, mas o tempo todo vendido como neutro, os excessos já começam na sinopse quando dizem: “este é o maior documentário já produzido no país sobre o período do Regime Militar brasileiro.” Na mesma sinopse é dita que a equipe buscou documentos na extinta Tchecoslováquia. Este detalhe foi amplamente utilizado no marketing do filme, na sinopse, no trailer e no início da obra, mas tal fato não dura 5 minutos em mais de 2 horas de “exibição”. Isso destoa completamente do prometido. 


A trilha sonora é exageradamente pesada. Toda vez que falam de “ameaça comunista”, o som aumenta e vem uma faixa sonora tensa e ameaçadora, parece que a qualquer momento Thanos entrará estalando seus dedos na cena ou algum grande vilão surgirá atacando e metade da vida desaparecerá. Tenta-se ter uma dinâmica fluída nas cenas e ter um filtro visual e fotografia agradáveis, únicas ressalvas que tornam assistir a todo o filme uma experiência menos enfadonha, mas ainda assim revoltante.

Todos esses problemas apontados, como já devem ter percebido, revelam-se não apenas como empecilhos técnicos, mas éticos também. E é agora que entro mais a fundo nos três problemas apontados no início do texto. 

O Brasil Paralelo diz com orgulho ser neutro. Neutralidade vilanizando um tipo de político e colocando como salvação necessária um outro tipo? Ora, na verdade não existe problema na direita fazer um documentário se defendendo, é algo natural, é algo que faz parte do processo ideológico de cada lado. O problema é uma instituição que se diz privada, fazer isso mentindo que está sendo neutra. Só o fato de mentir, já aponta algo perigoso.  Além de soarem covardes de não assumirem seu lado, também soam manipulativos por tentarem ganhar a atenção do expectador na base da mentira.

O que estão ganhando com isso? Conquistando a atenção dos desavisados? Fazendo uma lavagem cerebral nos mais leigos? Quem está realmente por trás do Brasil Paralelo? Vieram de outra realidade paralela, do guarda-roupas de As Crônicas de Nárnia, de uma nave alienígena, acreditam em teorias da conspiração envolvendo templários? Acreditam que a Terra é plana ou em formato de rosquinha?

Repressão contra estudantes durante a ditadura militar no Brasil.
Há muito mais coisas que atestam a falta de caráter deste documentário. A todo instante falam em documentos descobertos, daí sobe um efeito visual de uma foto ou um rabisco flutuando na tela, toca uma música chocante para dar aquele efeito de “revelação surpreendente”, e é isso. Onde estão esses documentos? Em que lugar, museu, órgão, livro, com que pessoa? É apenas uma junção de “diz que me diz”. O fulano falou algo, alguém que morreu me falou … e por aí vai. Sem falar nos tais documentos da extinta Tchecoslováquia, apenas citados e nunca mostrados. Documentos secretos invisíveis de um país que já não existe mais. Fica difícil de acreditar. 


Uma única foto representa a segurança de alguns e a opressão de muitos.
Outro ápice desta mentirada é a utilização de uma foto, onde segundo o documentário, é de uma revolta contra o regime militar. Tal foto na verdade foi tirada pelo fotógrafo Sebastião Salgado na Serra Pelada, muito tempo depois dos fatos apontados. Isso é uma canastrice manipulativa enojante. Veja a foto em questão e leia uma matéria sobre sua autenticidade abaixo:



https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/filme-1964-faz-uso-indevido-de-foto-de-sebastiao-salgado.shtml




Foto de Sebastião Salgado feita no garimpo de Serra Pelada, no Pará, em meados dos anos 1980 – Sebastião Salgado

E assim o guru, astrólogo, filósofo e maluco Olavo de Carvalho e sua trupe de crentes tentam o tempo todo amenizar e tentar fazer com que o expectador aceite que o regime militar foi algo necessário. Que havia uma imensa conspiração comunista que queria dominar o mundo. Parece papo de vilão de filmes do 007! O bom é que mentira tem perna curta e os próprios mentirosos se derrubam. Que terrível e forte ameaça era essa que foi derrubada em um único dia, sem retaliações e ataques posteriores? Diz-se que a mídia apoiava o regime dos militares e que nem divulgavam material contra o governo. Ora, isso é lógico, afinal o conteúdo da TV passava por um pente fino da censura. Muitos artistas e jornalistas tiveram que sair do país por não se curvarem pra essa censura. O tempo todo temos essas inconsistências que detonam com o próprio filme, o que por um lado é ótimo.


Em dado momento diminuem o número de vítimas mortas e desaparecidas durante a ditadura, de mais de 400 para uma lista com seis nomes. Seis! Um total desrespeito e falta de empatia com o próximo. E novamente justificam, dizendo que foi como uma cirurgia necessária. Derramar sangue é necessário?





 Vladimir Herzog, torturado e morto durante a ditadura militar no Brasil. 

Na época da morte de Vladimir Herzog (foto acima), o fato foi divulgado pelas autoridades como suicídio, o que foi desmentido por jornalistas e legistas posteriormente. Leia mais em: http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/vladimir-herzog/


Mais vítimas da ditadura militar.

Em outro momento passa-se a criticar as lutas armadas contra a ditadura, como o caso do Mariguella. Menciona-se o terrorismo de tais atos, mas esquece-se que se um governo é opressor, terá resistência contra ele. Se manifestações pacíficas não funcionarem e o governo colocar tropas de choque contra o povo, a luta terá de ser por força. E se o estado opressor é formado por militares e policiais, a luta será contra os tais. Mas o documentário ameniza os atos violentos do regime militar para vilanizar àqueles que se posicionam contra ele. 


Não é à toa que nos últimos meses o filme Marighella de Wagner Moura vem sendo atacado pelos mesmos que defendem este documentário aqui. O interessante é que
Marighella é uma ficção que romantiza alguns fatos de maneira autoral e o diretor assume isso, ele fala isso em entrevistas e em momento nenhum se vende como a verdade absoluta, embora retrate de maneira real a violência da época. Já 1964 peca por justamente o contrário: se vende como verdade enquanto apresenta várias mentiras.


Que necessidade é esta de defender a ditadura militar em um momento como o que o Brasil passa atualmente, onde faz-se referência a mitos assassinos de tal período? Busca-se aqui desesperadamente conseguir-se “fiéis” que acreditem nessa trama fajuta. E ao linkar fatos reais, acontecimentos políticos da época e os últimos governos do PT que foram derrubados, a equipe do documentário tenta pegar pela memória afetiva dos mais antigos e a revolta dos mais novos para com a rede de corrupção. É como se em determinado momento se “falasse aquilo que se quer e se gosta de ouvir”, não importa se isso for irreal. Ligam acontecimentos históricos e políticos reais para justificar algo que nem deveria ter relação: o horror da ditadura. Mas usam tais acontecimentos para dar uma imagem de herói àqueles militares que governaram e não “largaram o osso” por 21 anos. Tempo esse em que não solucionaram em nada os problemas econômicos e sociais do nosso país. Caso contrário, seríamos mais desenvolvidos hoje. “Parabéns” militares!



Alguns dos desaparecidos e mortos durante a ditadura militar no Brasil.

Então chegamos ao clímax do filme, onde ele vai além e critica as instituições de ensino, as artes, filosofias, movimentos sociais, lutas por minorias e escancara todos estes discursos segregadores e irracionais que a atual gestão do Brasil gosta de criticar e combater. Interessante que na época da ditadura, havia muito mais analfabetismo. Cerca de 1/3 da população era analfabeto ou tinha estudos limitados. Os materiais de ensino eram revisados, censurados e controlados, vários educadores eram atacados, alguns ficavam exilados do país, como Paulo Freire, pois seus métodos de ensino eram considerados “comunistas” e não condiziam com os ideais manipulativos do regime. Leia mais sobre isso aqui: https://novaescola.org.br/conteudo/12558/a-educacao-era-melhor-na-epoca-da-ditadura
E aqui: https://www.brasildefato.com.br/2017/10/31/por-que-as-ideias-de-paulo-freire-ainda-incomodam/


Em dado momento diz-se que um presidente permitir e apoiar uma greve é inconstitucional. Então quer dizer se tudo estiver indo errado em uma empresa, governo ou instituição, se direitos forem tirados e os maiorais nada fizerem, paralisar, fazer greve e passeatas é algo que ofende a pátria e a constituição? Não seria justamente o contrário? Não está a luta pelos seus direitos, garantida por lei? Que necessidade é essa de doutrinar a cabeça para as pessoas acharem que greve é algo errado? Deve-se aceitar qualquer injustiça ou desigualdade de cabeça baixa e quieta diante dos grandes e poderosos? 


Realmente, o Brasil Paralelo é muito “neutro”, apenas está defendendo todas as indefensáveis regressões que estamos vivenciando a cada dia. É a doutrinação para os sem voz aceitarem tudo que os poderosos propõem, sem lutar e sem questionar. É a prova de uma argumentação elitista, de privilegiados que tem a ganhar caso as pessoas passem a acreditar neles. Privilegiados como os filhos do presidente, que antes desse documentário ser lançado, já estavam fazendo marketing do filme. E cujas ideologias do atual governo casam perfeitamente com todas asneiras apontadas aqui nesta “obra”.




Mulheres unidas em uma manifestação contra a falta de liberdade durante a ditadura militar.

O fato de o Brasil Paralelo ser do Sul do país atesta ainda mais todas as ideologias mostradas, pois é a região do país mais conservadora e que mais apoia o atual presidente. Digo com propriedade, pois também sou do Rio Grande do Sul e convivo com preconceito e militância exacerbada todo dia, isso vindo da maior parte das pessoas, infelizmente.


No filme, associa-se quem tem pensamento livre, quem trabalha com arte e professores a vagabundos, drogados, frutos de uma fantasmagórica ameaça comunista infiltrada em redes de ensino e na mídia. É um ataque claro a todos os grupos sociais nos quais a elite conservadora não apenas desdenha, mas que também gosta de controlar e oprimir. E hoje a opressão não é por força bruta, mas por ideologias disseminadas na internet, no controle financeiro e econômico, nas instituições religiosas e claro, nos produtos como este filme aqui, feito para enganar os distraídos e ser executada assim sua disseminação de ódio, mentiras e revisionismo da história. Pois o que 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros faz é isso, revisar e recontar a história ao bel prazer de quem está por trás das câmeras, não importa a verossimilhança dos fatos.


“Se a história ocorreu de tal modo e não nos agrada, vamos recontá-la nosso modo, algum desavisado irá acreditar e teremos assim mais um tolo militante.” 



Parece que é assim que a equipe do Brasil Paralelo e a gestão atual do governo do país pensam, fomentam e atuam. É como George Orwell escreveu em sua obra 1984



Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”



Pelo menos temos os livros, os professores e a história para nos lembrar dos fatos. A não ser que os mesmos comecem a ser atacados. Ah sim, isso já começou a acontecer…





*Fotos retiradas do Google Imagens, todas com fontes verificadas, pesquise você também.

*Links de conteúdos didáticos sobre o assunto, leia, informe-se:








Confira a opinião do crítico Pablo Villaça, um vídeo obrigatório:

Título Original: 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros

Direção: Filipe Valerim e Lucas Ferrugem

Duração: 127 minutos

Elenco: Olavo de Carvalho, Luis Felipe Pondé, William Waack. 

Sinopse: produzido pelo Brasil Paralelo, este é o maior documentário já produzido no país sobre o período do Regime Militar brasileiro. A equipe viajou até o Leste Europeu para buscar nos documentos, até então, secretos, do serviço de inteligência da extinta Tchecoslováquia os fatos que nos esconderam. Pela primeira vez eles irão ao público em forma de documentário.




Trailer:



Mais algumas imagens do conturbado período:







E você, também se indignou com essa mentirada? Ou também vem de uma realidade paralela? 

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