Crítica: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (2019, de Marcelo Gomes)

O barulho das máquinas se repete, assim como as imagens das mãos operantes. Sequências de planos de trabalhadores exercendo o mesmo ofício na cidade de Toritama (PE) é o que alimenta o cerne narrativo da obra. Junto a isso, a narração do diretor, Marcelo Gomes, rememorando seu passado em meio à cidade hoje modificada, conduz o espectador por esta odisseia que se propõe a refletir sobre um fenômeno. Este, a produção massiva de jeans que move a economia do local. Em algum momento do longa, o entrevistador pergunta a um trabalhador, “Qual o seu sonho?”, ao que o outro responde, “Ser rico”.

Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar é um documentário dirigido pelo cineasta Marcelo Gomes, que revisita suas memórias pela cidade de Toritama, no agreste pernambucano, sob o efeito econômico da fabricação de jeans. O diretor busca explorar não apenas como funciona a cidade atrelada à produção, comparando-a com seu lembrar, mas também investigar como se manifestam as condições de trabalho a que se sujeitam os moradores e de que maneira todo este sistema afeta suas vidas e suas percepções de mundo.


Para isso, as escolhas formais que constroem o filme se aliam de maneira eficiente para elaborar a unidade dramática. A opção pelas câmeras estáticas que retratam o repetitivo movimento de produção e a força de trabalho sendo gasta é produto direto do papel que assume as lembranças de Gomes: ao passo que guiam a narrativa, de certa maneira como pano de fundo, cedem lugar às imagens e entrevistas falarem por si só sobre a situação. Durante todo o longa, a figura autoral é confrontada com seu próprio papel e culmina, ao fim, em uma recusa consciente, que cede lugar ao cinema feito pelo próprio objeto do documentário.

O que há, então, não é um documentário tradicional, onde se fala sobre o Outro. Aqui se estabelece o questionamento, a percepção de si e de como o Eu se atrela de maneira diferente do que os outros enxergam pela narrativa. Aqui, o Outro fala por si, filma por si, assim como os trabalhadores autônomos, que falam por si mesmos.


Ao passo que este movimento cria uma dinâmica interessante entre a problemática capitalista e o retrato do trabalhador, também contribui para algumas escolhas formais que não condizem com a proposta e soam deslocadas do conjunto como um todo. O andamento da narrativa é prejudicado, ainda que resgatado no final, e a substância quase se perde em meio a uma busca por uma visão máxima que, em oposição, denota um vazio justamente por sua escolha estilística. Dessa maneira, o clímax é quase prejudicado, porém se restabelece com a força da alteridade.


Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar é um documentário inquisitivo e questionar acerca da situação dos trabalhadores de uma cidade que se sujeitam à produção de um material único. Ao passo que se trata de uma análise objetiva dos efeitos do Capital na ótica contemporânea das pequenas cidades interioranas, emerge de maneira muito forte como exercício de alteridade e questionamento sobre o próprio Eu, permitindo o cinema extravasar suas barreiras comuns. Trata-se de um importante olhar sobre um recorte pequeno e, ao mesmo tempo, gigantesco. Para estas pessoas, toda sua força de trabalho vendida e explorada é em detrimento de apenas uma coisa, aquilo que constitui seus próprios “vir-a-ser” e legitima aquela existência massacrada de um ano: o Carnaval. E é justamente quando ele chega que eles devem contar a sua história.

Título original: Estou Me Aguardando Para Quando o Carnaval Chegar


Direção: Marcelo Gomes

Duração: 85 minutos

Sinopse: Na cidade de Toritama, considerada um centro ativo do capitalismo local, mais de 20 milhões de jeans são produzidas anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas.

Trailer:

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