Certa vez perguntaram a Kar-Wai Wong qual conselho ele daria para quem ambiciona fazer filmes. “Peguem numa câmara”, ele disse. A simplicidade e a informação contida na sua resposta não me pareceram tão verdadeiras até ver “Chung Hing sam lam”. Nunca vi o cineasta tão desprendido da sua típica delicadeza formal. Abordando o amor (e a falta dele) como tema principal da obra, ele encontra-se aqui livre como um pássaro.
Este é um filme pouco pensado e que, nos seus melhores momentos, respira. É sobre He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) e uma mulher que usa uma peruca loira e uns óculos de sol vermelhos (Brigitte Lin). Ele é polícia e ela gere um negócio de narcotráfico. À primeira vista, esta parece-nos uma história sobre uma inesperada união, seguida de um intenso jogo de gato e rato, assim que os protagonistas descobrem o que um e outro fazem da vida. Mas o convencional e o esperável não moram na arte de Kar-Wai Wong. E, assim, na segunda metade da metragem, passamos a acompanhar um casal diferente – um outro polícia (Tony Leung) e Faye (Faye Wong), uma empregada de bar que gosta de ouvir música alta.
Os personagens são bastante abertos, expressivos, cómicos. Numa determinada cena, é-nos narrado que Zhiwu comeu 30 latas de ananás. Digo “é-nos narrado”, porque nós nunca vemos isto efetivamente a acontecer. E este é o maior problema de “Chung Hing sam lam”. O facto de que Wong não se contenta apenas com imagens, diálogos e comportamentos. Ele exige um relato que tudo o que faz, na verdade, é prejudicar a experiência, tornando-a mais cansativa e menos misteriosa ao explicar banalidades como o motivo pelo qual certo personagem decidiu correr de manhã.
Não me interpretem mal. Eu não sou contra a narração no cinema. O meu filme favorito, “A Clockwork Orange” (1971), tem um narrador constantemente presente. Mas funciona, porque o protagonista que vemos é relativamente diferente do protagonista que ouvimos. É o discurso de Alex que nos manipula e que o torna num anti-herói. É uma narração absolutamente essencial e que abre toda uma nova dimensão de ideias e sentimentos. O filme depende dela.
O Kar-Wai Wong partilha muitas semelhanças com outro mestre do uso da narração: Terrence Malick. Porém, Wong jamais consegue transcender o significado das suas belíssimas imagens ao usar o poder da palavra como o realizador norte-americano consegue. Porque tudo o que a câmara capta já devia falar por si. Por isso, quando testemunhamos o caos urbano de Hong Kong e nos deparamos em quartos desarrumados, sabemos que tudo isto serve como uma extensão do estado mental embriagado dos personagens. Este é um filme superpopulado, abarrotado, e que até faz bom uso disso.
Nos anos 60 e 70, o cinema de Hong Kong celebrou-se por produzir musicais coloridos de estúdio e filmes de ação meticulosamente coreografados. Mas com a vinda de cineastas como Kar-Wai Wong, as obras da região apresentaram-se mais pessoais, livres e mundanas. Em vez de guerreiros armados da cabeça aos pés, os heróis passaram a ser seres humanos comuns que andam de cuecas em casa.
A rodagem de “Chung Hing sam lam” durou 23 dias. Wong escrevia as cenas horas antes de as filmar. Esta sua espontaneidade por vezes consegue tornar o ordinário em algo extraordinário (“Faa yeung nin wa”, “Do lok tin si”). Porém, quando Wong pegou na câmara para fazer “Chung Hing sam lam”, o resultado não pediu por uma dose “extra”.
Quando vi "Hotaru no haka" (1988), senti-me miserável. Eu já havia chorado ao ver filmes, mas não estava a espera de soluçar e de acabar a sessão com um monte de lenços ao meu lado. Não estou a brincar. Passei 70% do filme a verter lágrimas e a ter dificuldades respiratórias! A minha mãe ficou seriamente preocupada ao ver a minha cara vermelha e inchada de tanto sofrer.
Na animação japonesa, um rapaz e a sua pequena irmã lutam para sobreviver durante a Segunda Guerra Mundial. Vê-los desamparados, esfomeados, esqueléticos, no meio daquele caos deixou-me emocionalmente abatido. Especialmente porque me vi a mim e a minha irmã na figura dos personagens principais. A dor deles tornou-se a minha dor. Por momentos, experienciei o que é viver (e tentar sobreviver) na miséria. E tal experiência mudou a minha vida.
Lançado três anos antes, "Idi i smotri" também é um convite indesejado, mas que nos transforma como humanos. Certa vez, na Bielorússia de 1943, Florya (Aleksey Kravchenko), um jovem rapaz, está a cavar, encontra uma espingarda e decide juntar-se à Guerra. O pai já lá está e a mãe fica desesperada ao saber que o filho quer seguir o mesmo caminho. Em princípio, Florya sente-se animado ao divertir-se com os outros soldados. Mas depois estes deixam-no para trás, juntamente com uma moça, Glasha (Olga Mironova). Ambos jovens, indefesos, passam a experienciar a Guerra em primeira pessoa.
Esperadamente, este é um filme difícil também para nós, espectadores. Uma das cenas mais angustiantes é desprovida de qualquer violência. Nela, Florya e Glasha têm que atravessar um pântano de lama. A banda sonora é desconcertante e anuncia o caos que está por vir. O plano é cruelmente longo. A fisicalidade do momento é impressionante. É a perfeita representação dos esforços e do declínio de uma geração marcada por um conflito terrível e infeliz.
Suportado pela cinematografia de cores mortas do Aleksei Rodionov, o realizador Elem Klimov opta por uma estética pessimista para nos apresentar um retrato cru sobre um dos momentos mais célebres da História da Desumanidade. Num certo momento, um soldado da SS pega Florya pelo colarinho e aproxima-o da câmara. Ele quase olha para nós. Observar o seu rosto é testemunhar o sofrimento de uma criança inocente. E não podíamos sentir mais miseráveis como humanos face a tanta falta de humanidade.
Aleksey Kravchenko vive Florya de uma forma dolorosamente verdadeira. Diz-se que o cabelo do ator foi ficando grisalho ao longo das filmagens. Mito ou realidade, o personagem, de facto, parece envelhecer perante os traumas de guerra que experiencia, o que só torna tudo ainda mais assustadoramente autêntico. E posso dizer convictamente que não me recordo de ver uma performance tão profunda e honesta por parte de um intérprete infantil.
"Ivanovo detstvo" (1962) é outra grande obra russa sobre uma criança que vive durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o filme de Andrei Tarkovsky assemelha-se mais a uma experiência esotérica e poética do que propriamente a uma representação legítima da crueldade humana, que até nos faz pensar no real significado do Terror como género cinematográfico. E ao passo que "Hotaru no haka" me deixou encharcado de lágrimas, "Idi i smotri" deixou-me simplesmente pálido, perturbado.
No entanto, obras de arte como estas são essenciais. Educam-nos. Fazem-nos odiar guerras. Tornam-nos pessoas melhores através do pior exemplo.
Sofremos para não querermos sofrer mais.
Crítica publicada no Cinema Pla'net ("Vem e Vê - O trauma de uma geração", Jan. 15, 2019).
Não consigo resistir a um “filme de estrada”. É-me impossível.
O duo principal traz o melhor de “Green Book”. O Viggo Mortensen vive um homem que come demasiado, e o Mahershala Ali um pianista sofisticado. Tony e o Dr. Shirley desenvolvem uma bonita amizade. As conversas que eles têm são imensamente envolventes. Adorei-as.
Claro que esta é uma bela surpresa vinda de um nome como o do Peter Farrelly. Eu gostei da experiência. Sem dúvida alguma. Mas acho que este não é um dos melhores filmes de 2018. A maneira como aborda as questões raciais é por vezes óbvia, por vezes repetitiva.
Há uma cena em que o Dr. Shirley vê um campo. Homens negros trabalham nele. Há contacto visual de um lado e de outro. É um momento de silêncio - e que não é novamente mencionado ao longo do filme.
Essa é uma excelente cena. Porque ela fala por si só. Infelizmente, é uma exceção também.
Mas eu percebo o “buzz” que “Green Book” está a receber. É um “filme Oscar”. É o “Hidden Figures” deste ano. Não é um “Moonlight”.
Mesmo assim, esta é certamente uma viagem a não perder.
ROMA é a culminação e a sucessiva extinção de toda uma História. É o Cinema a renascer e a regressar ao seu estado mais primitivo: o de observador da vida, do real, do quotidiano.
Um passado que nos transforma no presente.
Um pronunciamento fílmico sobre o que é ser mãe, pai, guardião, educador, cuidador... criador.
A anatomia de um corpo social.
Manifestações, festas, dramas domésticos, hospitais apinhados, treinos de artes marciais, ataques terroristas, incêndios, terramotos...
Um espelho que reflete e nos prende num determinado espaço e tempo.
Uma explosão de vermelho. Longe de ser uma premonição de violência, esta é uma explosão que abraça o significado da fraternidade, do contacto humano, da amizade, do amor. Fiquei igualmente intrigado pelo uso do verde aqui. Talvez seja só a natureza, a vida a falar.
A última obra de Kieslowski é pura, afável. Quando acabei o filme, senti-me seguro, a salvo, tal como os personagens. E, magicamente, a minha percepção mudou. Comecei a sentir-me diferente ao reparar nalgumas cores em específico.
Estou rodeado de vermelho. A minha máquina de escrever é vermelha. As minhas cortinas são vermelhas. O quadro que o meu irmão me ofereceu é vermelho.
A cor branca é graciosamente luminosa, agradavelmente suave e encantadoramente modesta. Mas também pode ser irritantemente chata e até mesmo vazia.
Pode-se dizer que Kieslowski explorou aqui com sucesso as várias facetas da cor branca. O problema é quando o tédio metafórico se torna tédio de verdade.
Nunca me senti tão sufocado (e ameaçado) por uma cor. Aqui, o azul clama a dor da protagonista. E, uma vez que o cinema é sempre uma experiência coletiva (até mesmo quando conta histórias sobre indivíduos solitários), a sua dor torna-se a nossa dor. A piscina é um oceano de amargura. E os recorrentes fade-outs são um infeliz convite para a desolação sentida por Julie.
Alguns filmes simplesmente são irretocáveis. “Blue” é, sem sombra de dúvida, um deles. A sua linguagem é tão rica e expressiva que um dia vou obrigar-me a dissecá-lo plano a plano.
Contra todas as possibilidades. TEMPESTADE numa noite de verão.
Nem consigo acreditar que o meu filme favorito de 2018 (até agora) é uma produção do MICHAEL BAY... Acreditem, se o desgraçado do homem tivesse realizado esta obra, todos os seus pecados artísticos seriam prontamente ABSOLVIDOS.
Mas quem a orquestrou brilhantemente foi, na verdade, o JOHN KRASINSKI... que, além de ser um actor impecável, ainda tem a lata de ser um autêntico FEITICEIRO capaz de manipular audiências de uma maneira perigosa...
Tensão alta, tremores, brados, dilatação das pupilas, 120 batimentos por minuto...
Não me recordo de ter reagido tão violentamente a um filme de terror...
Lembram-se aquando do lançamento do DON'T BREATHE... toda a gente estava a delirar por causa desse filme... Bom, quanto a mim o DON'T BREATHE é um adorável e inocente pónei comparado a este A QUIET PLACE, que é uma verdadeira BESTA MONSTRUOSA horrível e imperdoável.
E o guião desta obra é tão simples e eficaz que até IRRITA. Não é nenhum filme de terror "cerebral"... não é nenhum THE SHINING ou THE VVITCH... Tudo é feito em nome do entretenimento... e funciona impecavelmente.
Uma metragem deliciosamente aflitiva repleta de "worst case scenarios".
Engraçado que não é incomum o cinema apresentar estranhas coincidências relacionadas a produções (com temáticas) idênticas que são lançadas na mesma época. São diversos exemplos, como The Truman Show (1998, Weir) e Edtv (1999, Howard), Red Planet (2000, Hoffman) e Mission to Mars (2000, De Palma) ou até mesmo o caso mais atual de Olympus Has Fallen (2013, Fuqua) e de White House Down (2013, Emmerich), em que ambas longas contam uma invasão à força das armas à Casa Branca (!!). Ora bem, parece ter acontecido recentemente algo da mesma natureza no cinema brasileiro, já que, tanto Casa Grande (2014, Barbosa) como Que Horas Ela Volta? (2015, Muylaert) partilham imprevistas semelhanças, com um e outro tratando da hierarquização da sociedade, contendo ainda inserção de subtextos referentes à vida de empregados trabalhando nos domicílios de famílias de classe média-alta.
Mas, ao passo que o filme de Muylaert é mais cerebral, sobretudo na questão da realização e das técnicas recorridas para narrar a história (o que, diga-se de passagem, não deixa de ser um elogio), Casa Grande soa mais livre, espontâneo, "menos-pensado", o que não impede que tenha um espírito enorme e profundo. Aliás, a crítica que carrega é vastíssima, uma vez que, após refletirmos sobre as posições sociais de cada um dos personagens e percebermos que, afinal de contas, todos eles encaram problemas, independentemente das ideologias políticas que concordam ou da situação financeira que se encontram, a fita assinada com incrível competência por Fellipe Barbosa faz-nos refletir, ainda, sobre nós, humanos. No final de tudo, não vamos todos parar ao mesmo buraco? Não somos todos iguais? É certo que não vivemos todos na mesma situação, porém acredito que há algo que nos une a todos: as circunstâncias diárias que todos passamos. Não é isso, aliás, que o último plano da obra mostra? Todos nós temos uma história para contar e, no entanto, o verdadeiro final é sempre o mesmo. Estamos todos juntos, apesar de tudo.
A propósito, Casa Grande é recheado destes pequenos momentos brilhantes que, mesmo sem palavras, nos fazem refletir sobre determinados personagens. A título de exemplo, a cena (sem diálogos) em que o jovem protagonista Jean (Thales Cavalcanti) olha com uma leve insegurança para o homem que se senta ao seu lado no primeiro dia em que anda de autocarro sozinho, demonstra a incerteza que certos membros de classes altas sentem por outros que pertencentem a um grau considerado mais baixo. Não consigo deixar de mencionar, também, o instante em que o pai de Jean (Marcello Novaes), após terminar uma videochamada formal no seu escritório de casa, levanta-se da sua cadeira e revela apenas estar vestido da cintura para cima, expondo uma certa desconsideração e arrogância que o personagem sente perante a situação que enfrenta.
Estas cenas funcionam, ademais, devido ao talento dos atores. Não é exagero dizer que Casa Grande é um autêntico espetáculo de interpretações. Revelações ficam evidenciadas, com ótimos destaques como Thales Cavalcanti, Clarissa Pinheiro e Bruna Amaya (esta última com uma filmografia ainda limitada com apenas este filme). Todavia, e mesmo que ainda apresente uma formidável performance por parte de Suzana Pires, aquele que merece todos os aplausos do Mundo pelo seu desempenho assombroso é o Marcello Novaes, que simplesmente rouba o espetáculo em todos os momentos em que entra. A minha admiração é tamanha que estou em dúvida se é hiperbólico considerar esta atuação como uma das melhores que 2014 ofereceu. E este é um ator que, infelizmente, não passa muito pelo "território" do cinema, porque é realmente de louvar aquilo que ele mostrou aqui. Rigidez, seriedade, orgulho e negativismo são algumas características que Novaes atribui à personalidade complexa que interpreta perfeitamente.
Mesmo não sendo uma película perfeita (faltou algum aprofundamento nalgumas subtramas, mas nada de mais), Casa Grande tem um espírito impressionante e carrega consigo uma grande crítica. Excelente.
Este filme tem uma das melhores performances da História do Cinema.
A frase pode parecer naturalmente hiperbólica para quem está de fora, mas, para mim, ela representa uma verdade tão evidente como o azul do céu que espero ver todos os dias. Até agora, poucas foram as performances que me fizeram chorar. No entanto, o que o Tom Cruise fez aqui marcou o meu ser desde a primeira vez que experienciei Magnolia. Inspiração absoluta. Porém, não me interpretem erradamente: não sou nenhum aspirante a actor; sou um jovem que ama a arte, perdidamente apaixonado pelo seu poder colossal. Logo, a "inspiração" pode vir de qualquer parte: as páginas de um livro, uma determinada melodia, uma pintura, etc. O certo é que quando contemplo grandeza sinto-me imediatamente inspirado. E é através do acto de criar que podemos ser deuses, fazer algo extraordinário, mudar vidas.
O desempenho do Tom Cruise como Frank T.J. Mackey tem esse poder sobre mim. Analisar o seu trabalho nesta obra é testemunhar esplendor artístico. No palco, Mackey é um símbolo de macheza; para ele, a "manipulação feminina" é um perigo real. Fora das luzes, é um homem frágil que já passou por muitas experiências dolorosas; quando ainda era novo, o pai desandou e teve de cuidar da mãe até esta morrer de cancro. Todavia, agora é o pai quem se encontra no leito da morte, arrependido dos erros do passado, reclamando que a vida é longa e dura. Mackey verbaliza ódio, raiva, mas chora.
E toda esta situação só representa uma pequena parte do épico dramático que Magnolia é, contudo expõe, inegavelmente, alguns dos seus temas centrais: a complexidade humana, o sentimento de culpa, a difícil tarefa de perdoar, etc. Aliás, é incrível como o Paul Thomas Anderson consegue abordar tantas questões de uma maneira tão orgânica e humana - a sensibilidade que ele tem face a tantos assuntos é imensa; eis a fragilidade de uma flor (como a magnólia) tratada pelas mãos de um mestre.
As três horas, por isso, não são em vão. Envolventes e jamais aborrecidas, reflectem, antes, o fantástico realizador que o PTA é, ao orquestrar, com o suporte da sua incrível equipa, um drama brilhante e profundamente complexo. Os personagens estão cobertos de sombras quando se encontram num estado de introspecção, e quando expostos são invadidos por uma luz intensa e um close das suas faces torna-se necessário. Os plano-sequências são apelativos e aceleram os nossos corações. A música, da autoria do excelente Jon Brion, intensifica o decorrer dos segundos, atribuindo maior "peso" ao tempo, esse relógio impiedoso e inevitável - falo disto -, ao passo que a montagem do Dylan Tichenor certifica-se de manter tudo dinâmico, desviando-se genialmente de quebras de ritmo.
Há muito mais a dizer sobre Magnolia, uma vez que cada personagem (todos extremamente fascinantes) têm uma história para nos contar. Mas vou deixar isso para futuros visionamentos. Talvez para a próxima me comova mais com a paixão reprimida de Donnie Smith (William H. Macy) ou com toda a situação do pequeno Stanley (Jeremy Blackman) ou ainda com Phil Parma (Philip Seymour Hoffman), aquele que luta pelos outros, o responsável por um certo reencontro, o braço direito essencial - afinal de contas, ele é um enfermeiro. Seja como for, todos eles são pessoas complexas, humanos distintos. Magnolia, aliás, é um filme sobre as duas vidas que temos - aquela que aparentamos no palco da vida e aquela que realmente somos, nos bastidores.
Estamos todos unidos, já que nenhum de nós pode escapar aos problemas que enfrentamos ao longo da nossa jornada. Passamos tudo pelo mesmo, porém sob maneiras diferentes. A fragilidade humana é algo universal. E ela sempre será posta à prova - sob que circunstância for, seja esta extraordinária ou não.
O JAMES CAMERON pré-Titanic é um osso de roer. Não me importo de partir os meus dentes. Vale a pena.
Mas esta não é uma experiência agradável.
ALIENS é um banho de sangue que me matou brutalmente. No entanto, resucitei. Por uma única razão: CALOR MATERNAL. Este é um filme frio e azul. E, ainda assim, a ternura do COR DE LARANJA invade o ecrã cada vez que a Ripley abraça a pureza de uma criança.
Eu adoro o Charlie Kaufman. O Charlie Kaufman é um tipo extraordinário e único. Ninguém é como o Charlie Kaufman. Ninguém escreve como o Charlie Kaufman escreve, ninguém faz cinema como o Charlie Kaufman faz, ninguém é como o Charlie Kaufman, porque o Charlie Kaufman é o Charlie Kaufman. O pessoal adora dizer que o Charlie Kaufman é um dos melhores argumentistas trabalhando atualmente. Isso é pouco para descrever o talento do Charlie Kaufman. Querem a minha opinião honesta? Eu acho que o Charlie Kaufman é um dos melhores argumentistas de sempre.
Quer dizer, já viram o Adaptation.? O Adaptation., apesar de não ser realizado pelo Charlie Kaufman, deve ser o filme mais Charlie Kaufman da História do Charlie Kaufman. A ideia do filme não só é genial como também é genialmente genial. Permitem-me contar-vos o conceito, mas antes de mais, tenho de referir necessariamente a história antes da produção do Adaptation.. Pelo que se sabe, o Charlie Kaufma nos anos 1990 foi abordado pelo Jonathan Demme (o sujeito que realizou The Silence of the Lambs, OK?) que o convidou para adaptar ao cinema um tal livro chamado The Orchid Thief. O Charlie Kaufman aceitou, mas o Charlie Kaufman no processo sofreu um bloqueio criativo. Então, o nosso amigo Charlie Kaufman teve uma ideia ainda melhor: porque não escrever um argumento sobre a sua dificuldade em escrever uma adaptação sobre o The Orchid Thief? (O Charlie Kaufman só finalizou o guião no ano 2000.) Então, podemos chegar à brilhante conclusão de que Adaptation. é um filme sobre a dificuldade que foi escrever Adaptation., e, além do mais, o protagonista do filme é o próprio Charlie Kaufman, interpretado, devo dizer, soberbamente pelo maluco do Nicolas Cage. (Um "detalhezito": o filme acabou nas mãos do realizador Spike Jonze, um gajo que também acho o seu trabalho bastante porreiro.)
Tudo isto para dizer que o Charlie Kaufman quando é apresentado, merece ser apresentado como: "The one and only Charlie Kaufman!".
E o Charlie Kaufman está de volta, porque o Charlie Kaufman andava aí um tanto desaparecido após ter realizado e escrito o Synecdoche, New York em 2008, uma obra cinematográfica que, claro, também gosto imenso. Passou uns anitos, e cá está o nosso amigo Charlie Kaufman de novo a trazer ao público bom cinema (como sempre) com este Anomalisa. Esta sua nova longa possui algumas diferenças tendo em conta a sua filmografia, a começar pelo facto de que é um filme feito em stop motion; é a primeira vez que o nosso camarada Charlie Kaufman utiliza a técnica, recorrendo, assim, à ajuda dalguém que percebe do assunto, o amigo Duke Johnson. Depois, acrescenta-se também não só o facto de que esta é uma fita com uma duração de uma hora e meia, e, de modo geral, os filmes do nosso amigo Charlie Kaufman costuma quase atingir as duas horas, como também é um filme inesperadamente simples, já que o Charlie Kaufman adora usualmente fazer experiências complexas (quase surrealistas), escrevendo argumentos com uma estrutura narrativa singular. Claro que este Anomalisa ainda tem muito da marca do Charlie Kaufman (há uma sequência, aliás, bastante "Charlie Kaufman"), além do mais porque traz um tema que sempre interessou o Charlie Kaufman - o ser humano -, contudo é uma película que não deixa de ter uma base encantadoramente "singela".
O enredo centra-se em Michael Stone (Thewlis, excelente performance), um escritor especializado na "arte" de atendimento ao cliente, que viaja para Ohio para fazer uma palestra sobre o seu mais recente best-seller, hospedando-se no Hotel Fregoli. Fregoli. Este nome na verdade é um relativamente importante (o Charlie Kaufman parece gostar bastante de fazer este tipo de coisas; parece que nada é por acaso), uma vez que ele também é o nome de uma síndrome. Agora, eu não sou nenhum entendedor de medicina (não me perguntem o que são coisas como bursite olecraniana ou protozoário flagelado piriforme que não vou saber responder), mas segundo umas humildes pesquisas que fiz no Google, alguém que possua a Síndrome de Fregoli acredita que as pessoas com quem convive diariamente conseguem modificar-se desde a roupa até a própria aparência ou sexo. É curioso notar isto, porque segundo a visão do protagonista de Anomalisa, toda a gente é igual. Todos têm o mesmo aspeto e voz (grande atuação vocal de Tom Noonan, a propósito), independentemente se são homens ou mulheres. Esta é uma mensagem clara por parte do Charlie Kaufman: Michael é um homem (rabugento) que não vê nada de interessante nas pessoas; para ele, tudo é aborrecido, todos são aborrecidos. Então, podemos considerar que o Hotel Fregoli é como uma representação da mente de Michael, lugar onde ele vai provavelmente perceber a sua condição e/ou o que se está a passar na sua vida.
A grande viragem da trama acontece quando o nosso personagem conhece, nesse mesmo estabelecimento, a jovem Lisa (interpretação "doce" de Leigh), pessoa que surge como uma "nova luz" na vida de Stone; uma voz, uma face diferente. Curioso reparar que Lisa está longe de ser a rapariga mais bonita do Mundo, mas Michael vê algo de especial nela. Para ele, ela foge daquilo que é ordinário; ela é uma anomalia, uma maçã vermelha num cesto de maçãs verdes; ela é... "anomalisa".
E que personagem fascinante que ela é! Na cena mais íntima do filme (toda a sequência no quarto, ou seja), Charlie Kaufman comove-nos e impressiona-nos profundamente ao exibir a total humanidade dos seus complexos personagens - ambos evidenciam as suas imperfeições e proferem os seus pensamentos. Toda a cena em si não só é simplesmente perfeita, desde a realização aos diálogos, como é uma das melhores que o cinema ofereceu em 2015.
Ou melhor, Anomalisa é uma das melhores obras que o cinema ofereceu em 2015. É uma daquelas longas inesquecíveis que pode tornar-se a preferida de alguém; um futuro clássico dos filmes de culto. É uma película humana, delicada e emocionalmente rica. Faz rir e chorar, comédia e drama.
Rogue One foi a maior desilusão de 2016. Povoaram tantas esperanças de que mais um clássico da ficção científica nasceria diante de mim, porém tudo foi em vão. Perdão o trocadilho, mas a "Força" que abençoou J.J. Abrams no The Force Awakens parece que não habitou na alma de Gareth Edwards, que foi incapaz de fascinar a "criança" dentro de mim - alguém que, a propósito, fica profundamente deslumbrado sempre que embarca numa "revisita" a um filme da épica saga espacial. São experiências poderosas, maiores que a vida. No entanto, é com pesada tristeza que afirmo duas causas: este spin off não possui esse "poder" e até Suicide Squad conseguiu ser mais divertido do que isto.
Estou desolado. São tantos factores que consigo apontar negativamente. Compreende-se a escolha de Edwards em criar uma nova atmosfera para o universo. Está mais que visto que o espírito old fashion não está aqui presente. Ao mesmo tempo, onde está o fascínio? Primeiro, os personagens, aquilo que mais priorizo nestas longas, carecem de carisma e complexidade. Não são memoráveis - são aborrecidos. Entende-se, por exemplo, que Jyn Erso (Jones) é uma figura amargurada pelo passado. Isso significa que ela tenha de ser uma protagonista pouco cativante? Percebe-se, também, o desejo do realizador em fazer uma obra mais séria. Então, para quê as tentativas de humor fracassadas? A maior reação da audiência (um, dois sorrisos) pode ocorrer às custas do K-2SO (Tudyk), espécie de substituto muito menos encantador e original do C-3PO. Já os outros persoangens são meras personalidades esquecíveis, com Donnie Yen limitado a dizer constantemente coisas como "a Força é poder" e a "Força está em mim" e Ben Mendelsohn a interpretar um vilão que, enfim, diz coisas que qualquer vilão genérico diria.
Contudo, sim, Rogue One sabe contar a sua história. O problema é o seguinte: o enredo traz pouca novidade, não surpreende e não é dos mais empolgantes. Os personagens não ajudam, não há nada a destacar quanto às cenas de ação e, sinceramente, antes dos cincos minutos finais do filme, não há nada assim que se sobressaia e me faça proferir: "Uau! Nunca mais vou esquecer-me este momento!"
Sim, os cinco minutos finais. Estão carregados de um espírito fortíssimo, uma vivacidade, uma incrível intimidade à boa moda da franquia - puro Star Wars. Uma "energia" que, aliás, fez falta durante o resto de toda a projeção deste objeto cinematográfico enfadonho, agora pertencente a uma das menos enfadonhas franchises alguma vez postas no grande ecrã.
Já não era sem tempo! Eia, é que, parecendo que não, "esperar" é um desporto duro que exige muita dedicação e paciência. Se uma pessoa não se esforça, o hype acaba por assaltar violentamente as nossas almas. E depois? Ataques de ansiedade, ora pois! Mas querem motivação? Um grupo que vos inspire? Então, contemplai o mérito dos veteranos do século passado que tinham de esperar três anos para ver uma nova Guerra das Estrelas - essa, sim, era gente brava e resistente!
O importante agora é que o oitavo episódio já está entre nós, disponível para ver nos cineminhas, para encantar os nossos espíritos com uma experiência bigger than life. Pipoquinha, refrigerante (com muito gelo, preferência), senta, relaxa, fica, limpa a vista, olha para o ecrã. Qual é o resultado? Valeu a pena? Meus caros amigos da espécie humana, eu não posso falar em nome de todos vós, mas, quanto a mim, valeu a pena, sim senhores; o filme é lindo, épico, divertido, emocionante, de pedir por mais - enfim, uma boa "baforada" de Star Wars.
Não se preocupem, não "vomitarei" spoilers nenhuns neste escrito, vou só referir ao de leve alguns aspetos que me deixaram doidinho da carola. Para começar: o Luke Skywalker. Minha gente, o tipo está com o cérebro frito; está amargurado, destruído; e o nível de badass dele atinge graus astronómicos, excessivos; adorei vê-lo a regressar e todos os créditos para o Mark Hamill, porque, chiça, não é hipérbole dizer que este é o melhor desempenho da carreira dele. Depois, a Rey (a Daisy Ridley continua adorável e brutalmente carismática) vive aqui um conflito imensamente curioso que dá espaço a cenas únicas tendo em conta a globalidade da saga, e esta sequela explora ainda mais a personalidade extremamente complexa do Kylo Ren (o Adam Driver nunca falha como ator; deve ser doença). Pessoalmente, estes foram os três personagens que me deixaram verdadeiramente intrigado.
Fora desse triângulo, The Last Jedi funciona muito bem como um filme de guerra, na medida que consegue desenvolver a consciência de como os dois lados encaram o conflito, sem que se torne algo estafante ou palavroso. Por isso, há muita ação para desfrutar aqui; a quantidade de explosões atinge um nível quase Bayhem, mas tudo com uma qualidade cinematográfica excelsa - e, neste sentido, o Rian Johnson tem aquela feliz virtude que tanto abençoa o J.J. Abrams: ele deixa a câmera rodar. O resultado são algumas das sequências mais belas e vistosas da franchise - e é incrível como aquele deserto de sal torna tudo mais violento, mesmo que não exista violência nenhuma (a sugestão é algo mágico e o vermelho é uma cor manhosa).
E o humor! Eu comecei a ficar seriamente preocupado na primeira metade da metragem. Não estou a brincar. Pensei: "Ok, o Rian Johnson não vai levar nada disto a sério. Isto vai virar uma autoparódia estilo Guardians of the Galaxy. Meu Deus, alguém vai olhar para a câmera e isto vai virar Deadpool!" Não estou a dizer que não há momentos engraçados - por exemplo, a quebra de expectativa no primeiro encontro entre a Rey e o Skywalker é fenomenal assim como quando ele a ensina o poder da Força (e a pequena gague visual do ferro de engomar é excelente) - só que há alturas que as situações cómicas ficam demasiado óbvias; algumas one-liners são meh e acho infeliz o facto do Finn (John Boyega), que, como ficou evidenciado no The Force Awakens, é um grande personagem, estar condenado a todo esse exagero na maior parte da projeção (em compensação, o Poe Dameron [Oscar Isaac] tem a sua presença mais favorecida). Felizmente, à medida que a história prossegue, isso é algo que vai ficando menos excessivo - e, quando pretende ser dramático, o filme consegue lindamente.
(Para que conste, não sou contra o humor na saga Star Wars. Ele é sempre bem-vindo, especialmente agora depois do "rezingão" Rogue One. Porém, não há necessidade de Batman à la Joel Schumacher, certo?)
Além do mais, o Johnson teve a ousadia de propor, como é que eu direi isto de um modo formal... umas cenas maradas. Houve momentos que eu fiquei: "Uá mãe, não acredito que isto vai acontecer! Esta é uma daquelas reviravoltas que até faz pirueta!" Todavia, no final, o cineasta não teve a coragem de levar nada disso para a frente, o que é decepcionante - provoca, só que depois não há um grande efeito.
Ao contrário de The Force Awakens, The Last Jedi é uma obra mais precipitada, que quer muita coisa e que, à vista disso, não sabe organizar-se muito bem - é sensato dizer que a montagem merecia uns "retoques". Por outro lado, a banda sonora do John Williams, sempre a serviço da trama, continua perfeita.
Mesmo assim, The Last Jedi é uma continuação apaixonante repleta de cenas clássicas. Esta nova trilogia tem tudo para ter uma conclusão grandiosa. Este "aguardar" religioso vale a pena. O sofrimento acabou de recomeçar.
Ninguém pediu uma sequela após tantos anos, porém ela já está entre nós. O mundo estava bem e mais que satisfeito com a obra-prima dos anos 1980 realizada por Ridley Scott; é verdade que é uma fita que deixa muitas questões a pairar no ar e muitos fãs provavelmente gostariam de um pequeno esclarecimento. Mas, uma continuação? Um brand new movie? Numa Hollywood fascinada com refilmagens (muitas vezes, não apreciadas pelo público) e com a arte de industrializar clássicos, mexer com uma preciosidade cinematográfica como o Blade Runner foi, com certeza, uma jogada perigosa. Quando se toma conhecimento de tal ideia, uma pessoa até fica de pé atrás.
No entanto, meus caros, este filme foi abençoado pelos deuses do cinema desde o primeira dia. Os créditos deram imensas esperanças e o hype não podia ser maior - e, por felicidade, a desilusão não bateu à porta. Como assim? Vamos por partes:
Realização: Denis Villeneuve, o cineasta ideal para se encarregar deste projeto. O homem tem Kubrick nas veias; por outras palavras menos formais, ele é um realizador do caraças com um potencial extraordinário para transportar o universo Blade Runner para a tela. E não se deixem iludir por certos trailers que dão a ideia de que 2049 é mais ação (no sentido de género) do que qualquer outra coisa. A natureza poética e a experiência atmosférica e contemplativa que tornou o original no filme de culto que é hoje está aqui presente - e, neste ponto, é completamente necessário referir a montagem de Joe Walker, que jamais sente a necessidade de "apressar" as quase 3 horas de fita; ele compreende perfeitamente que, quanto mais longo o plano, mais significativo ele é. Sim, existem sequências de ação, contudo em nenhum momento elas são genéricas; antes, elas são importantes, incrivelmente criativas e, por isso mesmo, inesquecíveis (só tenho a dizer isto: Elvis Presley e muita água). Portanto, aplausos para Villeneuve e a sua grandiosa coragem.
Argumento: Hampton Fancher e Michael Green. Excelente parelha, já que o primeiro foi um dos guionistas do original e o segundo coescreveu este ano Logan. O resultado é um belíssimo script, que abrange o valor filosófico que é Blade Runner ao propor novos questionamentos sobre o poder da tecnologia e a habilidade de um replicante amar (e a forma como a metragem lida com esses dois temas, remete-nos diretamente a Her de Spike Jonze). Desta maneira, 2049 é um mar de perguntas que incentiva a criação de novas teorias tendo em conta tudo o que integra este fascinante universo.
Elenco: Neste ponto, menciono dois destaques e duas decepções (não, o filme não é perfeito); temos aqui um Ryan Gosling introspectivo, que mal sorri, que diz muito com os olhos (Lembra-vos algo? Exato, o ator interpreta um replicante à boa moda do Refn. O Gosling de Drive e Only God Forgives vem-nos logo à memória) e um Harrison Ford da velha escola, nostálgico, que ainda não se esqueceu de como ser Deckard; em contrapartida, esperava mais dos personagens do Jared Leto e da Sylvia Hoeks - a meu ver, falta-lhes algo que os torne únicos.
Outros aspetos técnicos: A música, infelizmente, também desaponta. A composição de Vangelis deu uma alma singular ao filme original. Já Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer (este último que, este ano, fez um trabalho de mestre em Dunkirk), parecem não fazer jus ao seus próprios nomes nesta película ao apresentarem uma banda sonora pouco memorável. Por outro lado, a fotografia de Roger Deakins é sublime. Que a Academia quebre de uma vez por todas o injusto azar deste verdadeiro mestre do seu ofício, porque Blade Runner 2049 é pura e simplesmente uma magnífica obra-prima visual - e o nível de detalhe da cenografia de Dennis Gassner e da decoração de Alessandra Querzola é de deixar qualquer um apaixonado.
É com este tipo de mérito que nascem clássicos. Esta é, sem dúvida, uma das melhores prendas cinematográficas que o mundo recebeu nos últimos anos: um segundo Blade Runner ao nível do primeiro.
Com Dunkirk, Christopher Nolan distancia-se um bocado do seu registo habitual como realizador de épicos complexos e cerebrais de ficção-científica e apresenta-nos um filme de guerra vigoroso, direto, rápido, ágil. Em última instância, um trabalho absolutamente apaixonante, um verdadeiro e violento proclamar, uma bela homenagem aos veteranos, um explosivo retrato emocionante sobre um dos episódios mais marcantes da Segunda Guerra Mundial - a Batalha de Dunquerque. E embora ainda não esteja preparado para considerá-lo a obra-prima do seu autor, este é certamente um grande filme que ficará no nosso espírito durante muito tempo e um dos pontos altos no panorama cinematográfico de 2017.
Filmada a película, esta é uma longa-metragem visualmente arrebatadora e que jamais arrefece, colocando o espectador no plano do conflito logo nos primeiros instantes; hora e meia de filme, hora e meia de ação numa experiência completamente imersiva. Nolan, que também assinou o guião, não quer perder tempo a explorar personagens nem sequer a definir protagonismos. Acompanhamos um punhado deles a enfrentar aquela agoniante luta pela sobrevivência, mas não conhecemos as suas backstory. Só sabemos como eles são no campo de batalha. Esta é uma decisão a aplaudir, porque combina perfeitamente com as pretensões da fita - ainda mais a admirar por trazer um elenco de ouro que conta com nomes como Tom Hardy, Mark Rylance, Cillian Murphy e Kenneth Branagh.
No entanto, há um elemento que deve ser salientado. Elemento esse essencial e capaz de conferir o verdadeiro sucesso da metragem. Há certas obras que não teriam funcionado plenamente sem essa particularidade. Podemos falar, por exemplo, de Birdman e o seus planos-sequência ou de Whiplash e a sua montagem frenética. É o aspeto chave. E Dunkirk tem um: a banda sonora de Hans Zimmer. Porque este é um filme extremamente intenso, de cortar a respiração, de ficar inquieto na cadeira, de deixar o coração acelerado, de deixar qualquer um perturbado, e a música, num constante e obsessivo tique-taque-tique-taque-tique-taque-tique-taque, reforça isso brutalmente e dá pulso e personalidade ao momento. Zimmer, mais do que nunca, merece ser premiado pelo seu trabalho.
Christopher Nolan orquestra com brilhantismo um autêntico caos. Assim sendo, Dunkirk automaticamente faz par com Hacksaw Ridge como um dos melhores filmes de guerra dos últimos tempos. É um feito extraordinário executado fabulosamente. Um espetáculo impressionante de arregalar os olhos e de deixar qualquer um de queixo caído. Grande cinema.
Okja é um filme para o coração e para a mente. Verdade que há incontáveis documentários e produções cinematográficas sobre a ganância, a violência e a falta de ética da indústria alimentícia - o nomeado para o Óscar Food, Inc. e Fast Food Nation de Richard Linklater são exemplos que me vem à memória. No entanto, a mais recente obra de Joon-ho Bong destaca-se nesse panorama por ser uma fábula carregada de imaginação e emoção, habitada por seres que parecem ter saído diretamente de um cartoon. É uma aventura de heróis e vilões extremamente atual, decorrida, portanto, nesta nossa era globalizada e capitalista.
A longa-metragem da Netflix, que esteve na competição oficial do Festival de Cannes, conta a história da jovem Mija (An Seo Hyun) que, desde os seus 4 anos e com a ajuda do seu avô, toma conta de Okja - uma adorável super-porca - no seu lar situado nas montanhas sul-coreanas. Tudo muda quando o animal é fortemente desejado por uma multinacional poderosa, a Mirando Corporation, encabeçada por Lucy Mirando (Tilda Swinton), que pretende levar o bicho para Nova Iorque. Mija tem que lutar ao máximo para resgatar a sua melhor amiga antes que esta se torne uma figura propagandística de uma nova linha de consumo alimentar doméstico.
Está mais que evidente que Okja é suportado por um pano de fundo óbvio e sustentado por uma mensagem clara como a água. Mas parece-me que muito dificilmente esta falta subtileza impedirá que a audiência se deixe conquistar pela parelha central: Okja é encantadora e Mija é forte e determinada. Vivemos cada perigo que atravessam e queremos que aquela incrível amizade se mantenha a todo o custo.
Assim sendo, Okja é muitas coisas. É comédia: basta notarmos na performance excêntrica e inusual do Jake Gyllenhaal. É drama: preparem os lenços para o ato final. É ação: a realização vai além de quaisquer expetativas que tinha; um feito absolutamente apaixonante de um criador enérgico; o trabalho de câmera é deslumbrante, vigoroso, de cortar a respiração.
É cinema. É crítica. É especial. É, também, um filme que não é nenhuma obra-prima, mas é marcante o suficiente para que nos recordemos dele de tempos em tempos. Sobretudo naqueles momentos em que decidimos "meditar" um bocado sobre o nosso planeta.
Xavier Dolan é uma espécie de Tarantino da violência verbal. Essa é a sua ferramenta, o seu meio de comunicação, o seu excesso, o seu balde de sangue. A sua filmografia é marcada por personagens histéricos, fortes de espírito, adeptos de gritaria e que parecem estar prestes a explodir por se encontrarem frustrados com o ambiente que os rodeiam ou com os seus próprios egos e erros. São eles que carregam a trama às costas e que conferem toda a intensidade do filme. Com Juste la fin du monde o "cenário" não muda.
Vivido por Gaspard Ulliel, Louis é um dramaturgo que regressa à sua cidade natal após 12 anos de ausência. Lá estão à espera a sua mãe (Nathalie Baye), a sua irmã Suzanne (Léa Seydoux), o seu irmão Antoine (Vincent Cassel) e a sua cunhada Catherine (Marion Cotillard). Louis traz consigo uma notícia: vai morrer.
Portanto, esta é uma obra que se passa maioritariamente num só espaço, não obstante, por exemplo, as analepses referentes à vida do protagonista. Não é à toa, já que, baseada num texto de Jean-Luc Lagarce, esta é a segunda adaptação do teatro para o cinema realizada por Dolan (antecedida por Tom à la ferme). Então, é curioso notar como o cineasta canadiano recorre à câmera. Ao invés de posicioná-la longe da ação, criando a ideia de um palco, Dolan aproxima-a da face dos intérpretes, isolando-os no quadro, captando cada 'microexpressão' e criando a ilusão de que cada um está no seu próprio mundo (ou "vivendo" o seu fim do mundo). Esta é a força do cinema.
E o espetáculo de atuações é garantido. Aqui não há destaques. Há brilho de todas as partes. São performances que ficarão na minha memória durante muito tempo. O furor enérgico de Antoine (numa manifestação que parece que o espírito sai do corpo) contrasta com a confusa gaguez de Catherine. Louis sente o passado, mantém-se em silêncio e só observa a atmosfera sufocante a que fugiu. Suzanne admira-o. A mãe preocupa-se com as unhas.
Eis uma retrato sobre o pesar do tempo e a instabilidade familiar. Sobre origens.
Dolan disse que Juste la fin du monde é o seu melhor trabalho até à data. Não concordo. Mas posso dizer que é mais um bom título da sua filmografia.
O que é isto que sinto quando vejo um filme de Terrence Malick? Que sensação única é esta que só o seu cinema me provoca? Oiço. Vejo. Sinto. Vivo. Que terá para me contar desta vez? Embarco na viagem pela primeira vez. Fala-me do amor, da música. Segunda vez. Fala-me da tristeza, do vazio, da busca por algo, talvez fé. Terceira vez. Fala-me da felicidade, da eternidade. Quarta vez. Fala-me sobre a arte e o ser humano. Quinta vez. Fala-me da possibilidade de haver um Deus. Sexta vez. Fala-me do passado. Sétima vez. Fala-me do "Eu" à procura do "Eu" através do "Tu". A experiência é sempre nova e jamais indiferente. A ligação especial entre mim e o filme fica cada vez mais forte.
Terrence Malick tem uma nova edificação cinematográfica, um novo pronunciamento artístico e criativo, uma nova fonte de pensamento e inspiração: Song to Song. Que nos diz? Depende de quem o vê. No seu cinema, nunca há consensos nem explicações totalmente definidas. Nunca haverá. Há fragmentos ambíguos e almas à procura de um ambiente em que se sintam equilibrados e finalmente satisfeitos.
Play on. De música a música, acompanhamos os devaneios de quatro personagens envolvidos numa teia amorosa: Michael Fassbender é Cook, Ryan Gosling é BV, Rooney Mara é Faye e Natalie Portman é Rhonda. Todos estão numa jornada pessoal e de relações. A câmera baila pelos diferentes cenários. A música vai oscilando entre o rock, o techno e a ópera. E o que é que acontece dentro das mentes das figuras centrais? Um constante conflito.
Esta é a singular personalidade do cinema de Malick a manifestar-se mais uma vez. Este foi o meu primeiro visionamento. O que me disse? Disse-me sobre a nossa busca pela estabilidade, pela tranquilidade, pela paz de espírito. E, por agora, suscitou-me a seguinte questão: onde estamos?
Há certos realizadores que parecem gostar de exibir as suas habilidades criativas não ao contarem uma história original/diferente, mas sim ao recontarem uma narrativa vulgar através de uma abordagem imaginativa. É o que aparenta acontecer com João Nicolau em John From, dado que ele tem como base uma trama sobre uma rapariga de 15 anos chamada Rita (Júlia Palha) que, sentindo-se um tanto aborrecida durante as férias de verão, vê algo especial no seu novo vizinho, Filipe (Filipe Vargas), pai e fotógrafo, acabando por apaixonar-se por ele.
De facto, é um enredo mais que visto e que, assim, podia coincidir numa experiência fastidiosa, ainda mais porque é um contexto que não é dos mais interessantes, porém Nicolau lá sabe virar o jogo, apresentado-nos, antes, um pequeno grande filme encantador que mostra a sua magia justamente na sua simplicidade inventiva. Desta forma, há um "ser visual" fortemente presente que abre portas para um universo diegético onírico que, marcado por algumas metáforas engraçadas, leva a crer representar a mente da adolescente.
Aliás, Júlia Palha, no seu primeiro papel na área do cinema, ostenta claramente um inegável talento, personificando de forma carismática uma típica jovem simpática da sua idade passando por uma situação de aparente "amor impossível". Interpretando a sua melhor amiga, a estreante Clara Riedenstein também é outra verdadeira surpresa que tem de aparecer em mais projetos, ao passo que, e ironicamente contrariando o destaque dado às jovens, Adriano Luz e Leonor Silveira, atores veteranos, são aqui encarados como meras figuras secundárias e que pouco acrescentam à real moral do filme.
Para dar lugar a estes personagens, João Nicolau selecionou o bairro de Telheiras, em Lisboa, onde o próprio cresceu juntamente com a sua irmã Mariana Ricardo, que também assinou o argumento (de diálogos minimalistas) de John From. Assim sendo, filmado a 16 mm, a fotografia do mestre Mário Castanheira confere ao sítio um visual vibrante, vivo, colorido e, em última análise, absolutamente memorável. Há, também, alguns efeitos visuais que empregam à obra, entre outros princípios, um senso mais agradável/bem-disposto (fazem até lembrar um bocado os filmes do Wes Anderson). Ademais, há uma coletânea de músicas bastante diversificada e rica, que vai desde Lily Allen até à famosa Lambada.
Tudo isto forma uma longa-metragem leve, despretensiosa e fora de complexidades vazias, e que, por isso, esquece os problemas nacionais atuais para apresentar um tema mais humano e absoluto: o coração apaixonado de uma teenager. Assim é John From - e espírito não lhe falta.
Ao tratar o seu género com dignidade, The Witch é um autêntico destaque no atual quadro dos filmes de Terror. Isto porque Robert Eggers não se deixa seduzir pela mediocridade que tanto define esta imensa escola de cinema barato e criativo, mas exaustivamente preguiçoso e banal quando pretende verdadeiramente assustar o seu público - o potencial desperdiçado de Unfriended vem-me à memória. Não. Eggers é um realizador dedicado e isso é praticamente inquestionável, demonstrando até capacidade de pegar numa premissa simples que não é das mais novas - uma família (neste caso, do século XVII, Nova Inglaterra) é confrangida por forças malignas - e torná-la, no entanto, assustadoramente complexa na sua essência.
Portanto, é de notar que esta é uma obra belissimamente elaborada e a sua atmosfera é algo certamente a salientar. Nesse aspecto, há um senso profundamente opressivo, misterioso, sufocante e deprimente, que é arquitetado com o suporte da perturbadora banda sonora do Mark Korven (que remete a Kubrick) e da cinematografia de cores mortas do Jarin Blaschke.
E se The Witch já é uma grande revelação para o seu realizador/argumentista, pois o mesmo acontece com o seu elenco: Ralph Ineson e Kate Dickie estão assombrosos, o Harvey Scrimshaw apresenta-nos uma das melhores performances infantis dos últimos tempos e a Anya Taylor-Joy veio para ficar.
Aliás, retomo a dizer que esta longa é, por si só, uma revelação. Nada de falsas reações provocadas por efeitos sonoros da pós-produção. Nem pensar! The Witch é genuinamente assustador.
Não cumpre mais do que a sua obrigação. De qualquer forma, neste contexto, a esse feito eu digo: Bravo!
Good Time começa no escritório de um psiquiatra (Peter Verby). O paciente é um jovem deficiente mental, Nick Nikas (Benny Safdie). Submetido a um conjunto de perguntas, o rapaz cedo mostra indícios de nervosismo e angústia. Porém, o doutor, claramente bem-intencionado, jamais o pressiona. Furioso e desrespeitoso, Connie Nikas (Robert Pattinson) irrompe e tira rapidamente o seu irmão mais novo da sala.
Momentos depois, já na rua, ambos estão mascarados; entram num banco e realizam um assalto discreto. Mas, de regresso ao exterior, as coisas não correm como planeado, tanto que Nick, fortemente desesperado, é apanhado pela polícia e é preso. Perdeu-se o dinheiro do roubo e agora Connie precisa de 10,000 dólares para ver o irmão perturbado livre das grades. Inicia-se, então, uma jornada obscura e perigosa pelo submundo do crime.
Enquanto visualizava a obra, não conseguia parar de me questionar se Connie estaria a fazer tudo aquilo por amor ao irmão - e eu estou a falar de verdadeiro amor. Será ele incapaz de compreender que só está a prejudicar a vida do seu semelhante ao envolvê-lo nesses negócios sujos e arriscados? Por que motivo não o deixa seguir o caminho correto? Qual é a necessidade dele desaprovar um ambiente de paz e aprovar um cenário que pode ser mortal para o irmão? Que amor cego vem a ser esse?
Infelizmente, Good Time apela muito pouco para esse lado humano da questão para ocupar o seu tempo com a adrenalina da "viagem" desenfreada do personagem principal, recorrendo a uma singular cinematografia de cores intensas, que tudo o que parece efetivamente fazer é disfarçar a real banalidade de todos aqueles obstáculos que, na maioria das vezes, não enriquecem a natureza do enredo; ao contrário disso, tudo parece traçado com a simples finalidade de entreter o público. Contudo, isso jamais deixa enfraquecer o brilho da fantástica performance do Robert Pattinson.
Good Time tem pulso e estilo à brava, mas falta-lhe mais emoção, profundidade e originalidade narrativa. Menos mal que aquela última cena existe. Cena essa que, por si só, já entrega mais pontos à metragem.
Amores Expressos
4.2 355 Assista AgoraCerta vez perguntaram a Kar-Wai Wong qual conselho ele daria para quem ambiciona fazer filmes. “Peguem numa câmara”, ele disse. A simplicidade e a informação contida na sua resposta não me pareceram tão verdadeiras até ver “Chung Hing sam lam”. Nunca vi o cineasta tão desprendido da sua típica delicadeza formal. Abordando o amor (e a falta dele) como tema principal da obra, ele encontra-se aqui livre como um pássaro.
Este é um filme pouco pensado e que, nos seus melhores momentos, respira. É sobre He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) e uma mulher que usa uma peruca loira e uns óculos de sol vermelhos (Brigitte Lin). Ele é polícia e ela gere um negócio de narcotráfico. À primeira vista, esta parece-nos uma história sobre uma inesperada união, seguida de um intenso jogo de gato e rato, assim que os protagonistas descobrem o que um e outro fazem da vida. Mas o convencional e o esperável não moram na arte de Kar-Wai Wong. E, assim, na segunda metade da metragem, passamos a acompanhar um casal diferente – um outro polícia (Tony Leung) e Faye (Faye Wong), uma empregada de bar que gosta de ouvir música alta.
Os personagens são bastante abertos, expressivos, cómicos. Numa determinada cena, é-nos narrado que Zhiwu comeu 30 latas de ananás. Digo “é-nos narrado”, porque nós nunca vemos isto efetivamente a acontecer. E este é o maior problema de “Chung Hing sam lam”. O facto de que Wong não se contenta apenas com imagens, diálogos e comportamentos. Ele exige um relato que tudo o que faz, na verdade, é prejudicar a experiência, tornando-a mais cansativa e menos misteriosa ao explicar banalidades como o motivo pelo qual certo personagem decidiu correr de manhã.
Não me interpretem mal. Eu não sou contra a narração no cinema. O meu filme favorito, “A Clockwork Orange” (1971), tem um narrador constantemente presente. Mas funciona, porque o protagonista que vemos é relativamente diferente do protagonista que ouvimos. É o discurso de Alex que nos manipula e que o torna num anti-herói. É uma narração absolutamente essencial e que abre toda uma nova dimensão de ideias e sentimentos. O filme depende dela.
O Kar-Wai Wong partilha muitas semelhanças com outro mestre do uso da narração: Terrence Malick. Porém, Wong jamais consegue transcender o significado das suas belíssimas imagens ao usar o poder da palavra como o realizador norte-americano consegue. Porque tudo o que a câmara capta já devia falar por si. Por isso, quando testemunhamos o caos urbano de Hong Kong e nos deparamos em quartos desarrumados, sabemos que tudo isto serve como uma extensão do estado mental embriagado dos personagens. Este é um filme superpopulado, abarrotado, e que até faz bom uso disso.
Nos anos 60 e 70, o cinema de Hong Kong celebrou-se por produzir musicais coloridos de estúdio e filmes de ação meticulosamente coreografados. Mas com a vinda de cineastas como Kar-Wai Wong, as obras da região apresentaram-se mais pessoais, livres e mundanas. Em vez de guerreiros armados da cabeça aos pés, os heróis passaram a ser seres humanos comuns que andam de cuecas em casa.
A rodagem de “Chung Hing sam lam” durou 23 dias. Wong escrevia as cenas horas antes de as filmar. Esta sua espontaneidade por vezes consegue tornar o ordinário em algo extraordinário (“Faa yeung nin wa”, “Do lok tin si”). Porém, quando Wong pegou na câmara para fazer “Chung Hing sam lam”, o resultado não pediu por uma dose “extra”.
Crítica publicada no Cinema Pla'net ("Chungking Express – Cinema espontâneo", Jan. 27, 2019).
Vá e Veja
4.5 754 Assista AgoraQuando vi "Hotaru no haka" (1988), senti-me miserável. Eu já havia chorado ao ver filmes, mas não estava a espera de soluçar e de acabar a sessão com um monte de lenços ao meu lado. Não estou a brincar. Passei 70% do filme a verter lágrimas e a ter dificuldades respiratórias! A minha mãe ficou seriamente preocupada ao ver a minha cara vermelha e inchada de tanto sofrer.
Na animação japonesa, um rapaz e a sua pequena irmã lutam para sobreviver durante a Segunda Guerra Mundial. Vê-los desamparados, esfomeados, esqueléticos, no meio daquele caos deixou-me emocionalmente abatido. Especialmente porque me vi a mim e a minha irmã na figura dos personagens principais. A dor deles tornou-se a minha dor. Por momentos, experienciei o que é viver (e tentar sobreviver) na miséria. E tal experiência mudou a minha vida.
Lançado três anos antes, "Idi i smotri" também é um convite indesejado, mas que nos transforma como humanos. Certa vez, na Bielorússia de 1943, Florya (Aleksey Kravchenko), um jovem rapaz, está a cavar, encontra uma espingarda e decide juntar-se à Guerra. O pai já lá está e a mãe fica desesperada ao saber que o filho quer seguir o mesmo caminho. Em princípio, Florya sente-se animado ao divertir-se com os outros soldados. Mas depois estes deixam-no para trás, juntamente com uma moça, Glasha (Olga Mironova). Ambos jovens, indefesos, passam a experienciar a Guerra em primeira pessoa.
Esperadamente, este é um filme difícil também para nós, espectadores. Uma das cenas mais angustiantes é desprovida de qualquer violência. Nela, Florya e Glasha têm que atravessar um pântano de lama. A banda sonora é desconcertante e anuncia o caos que está por vir. O plano é cruelmente longo. A fisicalidade do momento é impressionante. É a perfeita representação dos esforços e do declínio de uma geração marcada por um conflito terrível e infeliz.
Suportado pela cinematografia de cores mortas do Aleksei Rodionov, o realizador Elem Klimov opta por uma estética pessimista para nos apresentar um retrato cru sobre um dos momentos mais célebres da História da Desumanidade. Num certo momento, um soldado da SS pega Florya pelo colarinho e aproxima-o da câmara. Ele quase olha para nós. Observar o seu rosto é testemunhar o sofrimento de uma criança inocente. E não podíamos sentir mais miseráveis como humanos face a tanta falta de humanidade.
Aleksey Kravchenko vive Florya de uma forma dolorosamente verdadeira. Diz-se que o cabelo do ator foi ficando grisalho ao longo das filmagens. Mito ou realidade, o personagem, de facto, parece envelhecer perante os traumas de guerra que experiencia, o que só torna tudo ainda mais assustadoramente autêntico. E posso dizer convictamente que não me recordo de ver uma performance tão profunda e honesta por parte de um intérprete infantil.
"Ivanovo detstvo" (1962) é outra grande obra russa sobre uma criança que vive durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o filme de Andrei Tarkovsky assemelha-se mais a uma experiência esotérica e poética do que propriamente a uma representação legítima da crueldade humana, que até nos faz pensar no real significado do Terror como género cinematográfico. E ao passo que "Hotaru no haka" me deixou encharcado de lágrimas, "Idi i smotri" deixou-me simplesmente pálido, perturbado.
No entanto, obras de arte como estas são essenciais. Educam-nos. Fazem-nos odiar guerras. Tornam-nos pessoas melhores através do pior exemplo.
Sofremos para não querermos sofrer mais.
Crítica publicada no Cinema Pla'net ("Vem e Vê - O trauma de uma geração", Jan. 15, 2019).
Green Book: O Guia
4.1 1,5K Assista AgoraNão consigo resistir a um “filme de estrada”. É-me impossível.
O duo principal traz o melhor de “Green Book”. O Viggo Mortensen vive um homem que come demasiado, e o Mahershala Ali um pianista sofisticado. Tony e o Dr. Shirley desenvolvem uma bonita amizade. As conversas que eles têm são imensamente envolventes. Adorei-as.
Claro que esta é uma bela surpresa vinda de um nome como o do Peter Farrelly. Eu gostei da experiência. Sem dúvida alguma. Mas acho que este não é um dos melhores filmes de 2018. A maneira como aborda as questões raciais é por vezes óbvia, por vezes repetitiva.
Há uma cena em que o Dr. Shirley vê um campo. Homens negros trabalham nele. Há contacto visual de um lado e de outro. É um momento de silêncio - e que não é novamente mencionado ao longo do filme.
Essa é uma excelente cena. Porque ela fala por si só. Infelizmente, é uma exceção também.
Mas eu percebo o “buzz” que “Green Book” está a receber. É um “filme Oscar”. É o “Hidden Figures” deste ano. Não é um “Moonlight”.
Mesmo assim, esta é certamente uma viagem a não perder.
Roma
4.1 1,4K Assista AgoraUM POEMA EM MOVIMENTO.
ROMA é a culminação e a sucessiva extinção de toda uma História. É o Cinema a renascer e a regressar ao seu estado mais primitivo: o de observador da vida, do real, do quotidiano.
Um passado que nos transforma no presente.
Um pronunciamento fílmico sobre o que é ser mãe, pai, guardião, educador, cuidador... criador.
A anatomia de um corpo social.
Manifestações, festas, dramas domésticos, hospitais apinhados, treinos de artes marciais, ataques terroristas, incêndios, terramotos...
Um espelho que reflete e nos prende num determinado espaço e tempo.
Em suma...
Uma EXPERIÊNCIA TRANSFORMATIVA.
A Balada de Buster Scruggs
3.7 531 Assista AgoraVisualmente? Melhor filme dos Coen.
Eis os irmãos a explorar todas as facetas do Western, ao mesmo tempo que reafirmam as suas marcas autorais.
Da mitologia ao vazio existencial do Oeste.
Do épico ao íntimo.
Do romantismo à dureza da realidade.
Da comédia satírica à tragédia violenta.
Só mais quatro palavras: "Zoe Kazan merece Óscar."
A Fraternidade é Vermelha
4.2 439 Assista Agora“Did you stop breathing?”
Uma explosão de vermelho. Longe de ser uma premonição de violência, esta é uma explosão que abraça o significado da fraternidade, do contacto humano, da amizade, do amor. Fiquei igualmente intrigado pelo uso do verde aqui. Talvez seja só a natureza, a vida a falar.
A última obra de Kieslowski é pura, afável. Quando acabei o filme, senti-me seguro, a salvo, tal como os personagens. E, magicamente, a minha percepção mudou. Comecei a sentir-me diferente ao reparar nalgumas cores em específico.
Estou rodeado de vermelho. A minha máquina de escrever é vermelha. As minhas cortinas são vermelhas. O quadro que o meu irmão me ofereceu é vermelho.
O meu sangue é vermelho.
Sinto-me vivo.
A Igualdade é Branca
4.0 365 Assista Agora"You cried at my funeral."
A cor branca é graciosamente luminosa, agradavelmente suave e encantadoramente modesta. Mas também pode ser irritantemente chata e até mesmo vazia.
Pode-se dizer que Kieslowski explorou aqui com sucesso as várias facetas da cor branca. O problema é quando o tédio metafórico se torna tédio de verdade.
A Liberdade é Azul
4.1 649 Assista Agora“They told me you died.”
Nunca me senti tão sufocado (e ameaçado) por uma cor. Aqui, o azul clama a dor da protagonista. E, uma vez que o cinema é sempre uma experiência coletiva (até mesmo quando conta histórias sobre indivíduos solitários), a sua dor torna-se a nossa dor. A piscina é um oceano de amargura. E os recorrentes fade-outs são um infeliz convite para a desolação sentida por Julie.
Alguns filmes simplesmente são irretocáveis. “Blue” é, sem sombra de dúvida, um deles. A sua linguagem é tão rica e expressiva que um dia vou obrigar-me a dissecá-lo plano a plano.
O Primeiro Homem
3.6 646 Assista AgoraEsta é a razão pela qual amo cinema.
Posso viver as maiores jornadas do Homem.
Ontem fui à Lua com o Neil Armstrong.
Foi lindo.
Um Lugar Silencioso
4.0 3,0K Assista AgoraNem consigo acreditar...
Contra todas as possibilidades. TEMPESTADE numa noite de verão.
Nem consigo acreditar que o meu filme favorito de 2018 (até agora) é uma produção do MICHAEL BAY... Acreditem, se o desgraçado do homem tivesse realizado esta obra, todos os seus pecados artísticos seriam prontamente ABSOLVIDOS.
Mas quem a orquestrou brilhantemente foi, na verdade, o JOHN KRASINSKI... que, além de ser um actor impecável, ainda tem a lata de ser um autêntico FEITICEIRO capaz de manipular audiências de uma maneira perigosa...
Tensão alta, tremores, brados, dilatação das pupilas, 120 batimentos por minuto...
Não me recordo de ter reagido tão violentamente a um filme de terror...
Lembram-se aquando do lançamento do DON'T BREATHE... toda a gente estava a delirar por causa desse filme... Bom, quanto a mim o DON'T BREATHE é um adorável e inocente pónei comparado a este A QUIET PLACE, que é uma verdadeira BESTA MONSTRUOSA horrível e imperdoável.
E o guião desta obra é tão simples e eficaz que até IRRITA. Não é nenhum filme de terror "cerebral"... não é nenhum THE SHINING ou THE VVITCH... Tudo é feito em nome do entretenimento... e funciona impecavelmente.
Uma metragem deliciosamente aflitiva repleta de "worst case scenarios".
Casa Grande
3.5 576 Assista AgoraEngraçado que não é incomum o cinema apresentar estranhas coincidências relacionadas a produções (com temáticas) idênticas que são lançadas na mesma época. São diversos exemplos, como The Truman Show (1998, Weir) e Edtv (1999, Howard), Red Planet (2000, Hoffman) e Mission to Mars (2000, De Palma) ou até mesmo o caso mais atual de Olympus Has Fallen (2013, Fuqua) e de White House Down (2013, Emmerich), em que ambas longas contam uma invasão à força das armas à Casa Branca (!!). Ora bem, parece ter acontecido recentemente algo da mesma natureza no cinema brasileiro, já que, tanto Casa Grande (2014, Barbosa) como Que Horas Ela Volta? (2015, Muylaert) partilham imprevistas semelhanças, com um e outro tratando da hierarquização da sociedade, contendo ainda inserção de subtextos referentes à vida de empregados trabalhando nos domicílios de famílias de classe média-alta.
Mas, ao passo que o filme de Muylaert é mais cerebral, sobretudo na questão da realização e das técnicas recorridas para narrar a história (o que, diga-se de passagem, não deixa de ser um elogio), Casa Grande soa mais livre, espontâneo, "menos-pensado", o que não impede que tenha um espírito enorme e profundo. Aliás, a crítica que carrega é vastíssima, uma vez que, após refletirmos sobre as posições sociais de cada um dos personagens e percebermos que, afinal de contas, todos eles encaram problemas, independentemente das ideologias políticas que concordam ou da situação financeira que se encontram, a fita assinada com incrível competência por Fellipe Barbosa faz-nos refletir, ainda, sobre nós, humanos. No final de tudo, não vamos todos parar ao mesmo buraco? Não somos todos iguais? É certo que não vivemos todos na mesma situação, porém acredito que há algo que nos une a todos: as circunstâncias diárias que todos passamos. Não é isso, aliás, que o último plano da obra mostra? Todos nós temos uma história para contar e, no entanto, o verdadeiro final é sempre o mesmo. Estamos todos juntos, apesar de tudo.
A propósito, Casa Grande é recheado destes pequenos momentos brilhantes que, mesmo sem palavras, nos fazem refletir sobre determinados personagens. A título de exemplo, a cena (sem diálogos) em que o jovem protagonista Jean (Thales Cavalcanti) olha com uma leve insegurança para o homem que se senta ao seu lado no primeiro dia em que anda de autocarro sozinho, demonstra a incerteza que certos membros de classes altas sentem por outros que pertencentem a um grau considerado mais baixo. Não consigo deixar de mencionar, também, o instante em que o pai de Jean (Marcello Novaes), após terminar uma videochamada formal no seu escritório de casa, levanta-se da sua cadeira e revela apenas estar vestido da cintura para cima, expondo uma certa desconsideração e arrogância que o personagem sente perante a situação que enfrenta.
Estas cenas funcionam, ademais, devido ao talento dos atores. Não é exagero dizer que Casa Grande é um autêntico espetáculo de interpretações. Revelações ficam evidenciadas, com ótimos destaques como Thales Cavalcanti, Clarissa Pinheiro e Bruna Amaya (esta última com uma filmografia ainda limitada com apenas este filme). Todavia, e mesmo que ainda apresente uma formidável performance por parte de Suzana Pires, aquele que merece todos os aplausos do Mundo pelo seu desempenho assombroso é o Marcello Novaes, que simplesmente rouba o espetáculo em todos os momentos em que entra. A minha admiração é tamanha que estou em dúvida se é hiperbólico considerar esta atuação como uma das melhores que 2014 ofereceu. E este é um ator que, infelizmente, não passa muito pelo "território" do cinema, porque é realmente de louvar aquilo que ele mostrou aqui. Rigidez, seriedade, orgulho e negativismo são algumas características que Novaes atribui à personalidade complexa que interpreta perfeitamente.
Mesmo não sendo uma película perfeita (faltou algum aprofundamento nalgumas subtramas, mas nada de mais), Casa Grande tem um espírito impressionante e carrega consigo uma grande crítica. Excelente.
(Crítica - 23/10/2016)
Magnólia
4.1 1,3K Assista AgoraEste filme tem uma das melhores performances da História do Cinema.
A frase pode parecer naturalmente hiperbólica para quem está de fora, mas, para mim, ela representa uma verdade tão evidente como o azul do céu que espero ver todos os dias. Até agora, poucas foram as performances que me fizeram chorar. No entanto, o que o Tom Cruise fez aqui marcou o meu ser desde a primeira vez que experienciei Magnolia. Inspiração absoluta. Porém, não me interpretem erradamente: não sou nenhum aspirante a actor; sou um jovem que ama a arte, perdidamente apaixonado pelo seu poder colossal. Logo, a "inspiração" pode vir de qualquer parte: as páginas de um livro, uma determinada melodia, uma pintura, etc. O certo é que quando contemplo grandeza sinto-me imediatamente inspirado. E é através do acto de criar que podemos ser deuses, fazer algo extraordinário, mudar vidas.
O desempenho do Tom Cruise como Frank T.J. Mackey tem esse poder sobre mim. Analisar o seu trabalho nesta obra é testemunhar esplendor artístico. No palco, Mackey é um símbolo de macheza; para ele, a "manipulação feminina" é um perigo real. Fora das luzes, é um homem frágil que já passou por muitas experiências dolorosas; quando ainda era novo, o pai desandou e teve de cuidar da mãe até esta morrer de cancro. Todavia, agora é o pai quem se encontra no leito da morte, arrependido dos erros do passado, reclamando que a vida é longa e dura. Mackey verbaliza ódio, raiva, mas chora.
E toda esta situação só representa uma pequena parte do épico dramático que Magnolia é, contudo expõe, inegavelmente, alguns dos seus temas centrais: a complexidade humana, o sentimento de culpa, a difícil tarefa de perdoar, etc. Aliás, é incrível como o Paul Thomas Anderson consegue abordar tantas questões de uma maneira tão orgânica e humana - a sensibilidade que ele tem face a tantos assuntos é imensa; eis a fragilidade de uma flor (como a magnólia) tratada pelas mãos de um mestre.
As três horas, por isso, não são em vão. Envolventes e jamais aborrecidas, reflectem, antes, o fantástico realizador que o PTA é, ao orquestrar, com o suporte da sua incrível equipa, um drama brilhante e profundamente complexo. Os personagens estão cobertos de sombras quando se encontram num estado de introspecção, e quando expostos são invadidos por uma luz intensa e um close das suas faces torna-se necessário. Os plano-sequências são apelativos e aceleram os nossos corações. A música, da autoria do excelente Jon Brion, intensifica o decorrer dos segundos, atribuindo maior "peso" ao tempo, esse relógio impiedoso e inevitável - falo disto -, ao passo que a montagem do Dylan Tichenor certifica-se de manter tudo dinâmico, desviando-se genialmente de quebras de ritmo.
Há muito mais a dizer sobre Magnolia, uma vez que cada personagem (todos extremamente fascinantes) têm uma história para nos contar. Mas vou deixar isso para futuros visionamentos. Talvez para a próxima me comova mais com a paixão reprimida de Donnie Smith (William H. Macy) ou com toda a situação do pequeno Stanley (Jeremy Blackman) ou ainda com Phil Parma (Philip Seymour Hoffman), aquele que luta pelos outros, o responsável por um certo reencontro, o braço direito essencial - afinal de contas, ele é um enfermeiro. Seja como for, todos eles são pessoas complexas, humanos distintos. Magnolia, aliás, é um filme sobre as duas vidas que temos - aquela que aparentamos no palco da vida e aquela que realmente somos, nos bastidores.
Estamos todos unidos, já que nenhum de nós pode escapar aos problemas que enfrentamos ao longo da nossa jornada. Passamos tudo pelo mesmo, porém sob maneiras diferentes. A fragilidade humana é algo universal. E ela sempre será posta à prova - sob que circunstância for, seja esta extraordinária ou não.
Aliens: O Resgate
4.0 809 Assista Agora"All the way home."
"Can I dream?"
O JAMES CAMERON pré-Titanic é um osso de roer. Não me importo de partir os meus dentes. Vale a pena.
Mas esta não é uma experiência agradável.
ALIENS é um banho de sangue que me matou brutalmente. No entanto, resucitei. Por uma única razão: CALOR MATERNAL. Este é um filme frio e azul. E, ainda assim, a ternura do COR DE LARANJA invade o ecrã cada vez que a Ripley abraça a pureza de uma criança.
Nenhum Xenomorph pode superar esse PODER.
Anomalisa
3.8 497 Assista AgoraAh, Charlie Kaufman.
Eu adoro o Charlie Kaufman. O Charlie Kaufman é um tipo extraordinário e único. Ninguém é como o Charlie Kaufman. Ninguém escreve como o Charlie Kaufman escreve, ninguém faz cinema como o Charlie Kaufman faz, ninguém é como o Charlie Kaufman, porque o Charlie Kaufman é o Charlie Kaufman. O pessoal adora dizer que o Charlie Kaufman é um dos melhores argumentistas trabalhando atualmente. Isso é pouco para descrever o talento do Charlie Kaufman. Querem a minha opinião honesta? Eu acho que o Charlie Kaufman é um dos melhores argumentistas de sempre.
Quer dizer, já viram o Adaptation.? O Adaptation., apesar de não ser realizado pelo Charlie Kaufman, deve ser o filme mais Charlie Kaufman da História do Charlie Kaufman. A ideia do filme não só é genial como também é genialmente genial. Permitem-me contar-vos o conceito, mas antes de mais, tenho de referir necessariamente a história antes da produção do Adaptation.. Pelo que se sabe, o Charlie Kaufma nos anos 1990 foi abordado pelo Jonathan Demme (o sujeito que realizou The Silence of the Lambs, OK?) que o convidou para adaptar ao cinema um tal livro chamado The Orchid Thief. O Charlie Kaufman aceitou, mas o Charlie Kaufman no processo sofreu um bloqueio criativo. Então, o nosso amigo Charlie Kaufman teve uma ideia ainda melhor: porque não escrever um argumento sobre a sua dificuldade em escrever uma adaptação sobre o The Orchid Thief? (O Charlie Kaufman só finalizou o guião no ano 2000.) Então, podemos chegar à brilhante conclusão de que Adaptation. é um filme sobre a dificuldade que foi escrever Adaptation., e, além do mais, o protagonista do filme é o próprio Charlie Kaufman, interpretado, devo dizer, soberbamente pelo maluco do Nicolas Cage. (Um "detalhezito": o filme acabou nas mãos do realizador Spike Jonze, um gajo que também acho o seu trabalho bastante porreiro.)
Tudo isto para dizer que o Charlie Kaufman quando é apresentado, merece ser apresentado como: "The one and only Charlie Kaufman!".
E o Charlie Kaufman está de volta, porque o Charlie Kaufman andava aí um tanto desaparecido após ter realizado e escrito o Synecdoche, New York em 2008, uma obra cinematográfica que, claro, também gosto imenso. Passou uns anitos, e cá está o nosso amigo Charlie Kaufman de novo a trazer ao público bom cinema (como sempre) com este Anomalisa. Esta sua nova longa possui algumas diferenças tendo em conta a sua filmografia, a começar pelo facto de que é um filme feito em stop motion; é a primeira vez que o nosso camarada Charlie Kaufman utiliza a técnica, recorrendo, assim, à ajuda dalguém que percebe do assunto, o amigo Duke Johnson. Depois, acrescenta-se também não só o facto de que esta é uma fita com uma duração de uma hora e meia, e, de modo geral, os filmes do nosso amigo Charlie Kaufman costuma quase atingir as duas horas, como também é um filme inesperadamente simples, já que o Charlie Kaufman adora usualmente fazer experiências complexas (quase surrealistas), escrevendo argumentos com uma estrutura narrativa singular. Claro que este Anomalisa ainda tem muito da marca do Charlie Kaufman (há uma sequência, aliás, bastante "Charlie Kaufman"), além do mais porque traz um tema que sempre interessou o Charlie Kaufman - o ser humano -, contudo é uma película que não deixa de ter uma base encantadoramente "singela".
O enredo centra-se em Michael Stone (Thewlis, excelente performance), um escritor especializado na "arte" de atendimento ao cliente, que viaja para Ohio para fazer uma palestra sobre o seu mais recente best-seller, hospedando-se no Hotel Fregoli. Fregoli. Este nome na verdade é um relativamente importante (o Charlie Kaufman parece gostar bastante de fazer este tipo de coisas; parece que nada é por acaso), uma vez que ele também é o nome de uma síndrome. Agora, eu não sou nenhum entendedor de medicina (não me perguntem o que são coisas como bursite olecraniana ou protozoário flagelado piriforme que não vou saber responder), mas segundo umas humildes pesquisas que fiz no Google, alguém que possua a Síndrome de Fregoli acredita que as pessoas com quem convive diariamente conseguem modificar-se desde a roupa até a própria aparência ou sexo. É curioso notar isto, porque segundo a visão do protagonista de Anomalisa, toda a gente é igual. Todos têm o mesmo aspeto e voz (grande atuação vocal de Tom Noonan, a propósito), independentemente se são homens ou mulheres. Esta é uma mensagem clara por parte do Charlie Kaufman: Michael é um homem (rabugento) que não vê nada de interessante nas pessoas; para ele, tudo é aborrecido, todos são aborrecidos. Então, podemos considerar que o Hotel Fregoli é como uma representação da mente de Michael, lugar onde ele vai provavelmente perceber a sua condição e/ou o que se está a passar na sua vida.
A grande viragem da trama acontece quando o nosso personagem conhece, nesse mesmo estabelecimento, a jovem Lisa (interpretação "doce" de Leigh), pessoa que surge como uma "nova luz" na vida de Stone; uma voz, uma face diferente. Curioso reparar que Lisa está longe de ser a rapariga mais bonita do Mundo, mas Michael vê algo de especial nela. Para ele, ela foge daquilo que é ordinário; ela é uma anomalia, uma maçã vermelha num cesto de maçãs verdes; ela é... "anomalisa".
E que personagem fascinante que ela é! Na cena mais íntima do filme (toda a sequência no quarto, ou seja), Charlie Kaufman comove-nos e impressiona-nos profundamente ao exibir a total humanidade dos seus complexos personagens - ambos evidenciam as suas imperfeições e proferem os seus pensamentos. Toda a cena em si não só é simplesmente perfeita, desde a realização aos diálogos, como é uma das melhores que o cinema ofereceu em 2015.
Ou melhor, Anomalisa é uma das melhores obras que o cinema ofereceu em 2015. É uma daquelas longas inesquecíveis que pode tornar-se a preferida de alguém; um futuro clássico dos filmes de culto. É uma película humana, delicada e emocionalmente rica. Faz rir e chorar, comédia e drama.
Enfim, é Charlie Kaufman.
(Crítica - 07/11/2016)
Rogue One: Uma História Star Wars
4.2 1,7K Assista AgoraRogue One foi a maior desilusão de 2016. Povoaram tantas esperanças de que mais um clássico da ficção científica nasceria diante de mim, porém tudo foi em vão. Perdão o trocadilho, mas a "Força" que abençoou J.J. Abrams no The Force Awakens parece que não habitou na alma de Gareth Edwards, que foi incapaz de fascinar a "criança" dentro de mim - alguém que, a propósito, fica profundamente deslumbrado sempre que embarca numa "revisita" a um filme da épica saga espacial. São experiências poderosas, maiores que a vida. No entanto, é com pesada tristeza que afirmo duas causas: este spin off não possui esse "poder" e até Suicide Squad conseguiu ser mais divertido do que isto.
Estou desolado. São tantos factores que consigo apontar negativamente. Compreende-se a escolha de Edwards em criar uma nova atmosfera para o universo. Está mais que visto que o espírito old fashion não está aqui presente. Ao mesmo tempo, onde está o fascínio? Primeiro, os personagens, aquilo que mais priorizo nestas longas, carecem de carisma e complexidade. Não são memoráveis - são aborrecidos. Entende-se, por exemplo, que Jyn Erso (Jones) é uma figura amargurada pelo passado. Isso significa que ela tenha de ser uma protagonista pouco cativante? Percebe-se, também, o desejo do realizador em fazer uma obra mais séria. Então, para quê as tentativas de humor fracassadas? A maior reação da audiência (um, dois sorrisos) pode ocorrer às custas do K-2SO (Tudyk), espécie de substituto muito menos encantador e original do C-3PO. Já os outros persoangens são meras personalidades esquecíveis, com Donnie Yen limitado a dizer constantemente coisas como "a Força é poder" e a "Força está em mim" e Ben Mendelsohn a interpretar um vilão que, enfim, diz coisas que qualquer vilão genérico diria.
Contudo, sim, Rogue One sabe contar a sua história. O problema é o seguinte: o enredo traz pouca novidade, não surpreende e não é dos mais empolgantes. Os personagens não ajudam, não há nada a destacar quanto às cenas de ação e, sinceramente, antes dos cincos minutos finais do filme, não há nada assim que se sobressaia e me faça proferir: "Uau! Nunca mais vou esquecer-me este momento!"
Sim, os cinco minutos finais. Estão carregados de um espírito fortíssimo, uma vivacidade, uma incrível intimidade à boa moda da franquia - puro Star Wars. Uma "energia" que, aliás, fez falta durante o resto de toda a projeção deste objeto cinematográfico enfadonho, agora pertencente a uma das menos enfadonhas franchises alguma vez postas no grande ecrã.
Star Wars, Episódio VIII: Os Últimos Jedi
4.1 1,6K Assista Agora(Crítica - 17/12/2017)
Já não era sem tempo! Eia, é que, parecendo que não, "esperar" é um desporto duro que exige muita dedicação e paciência. Se uma pessoa não se esforça, o hype acaba por assaltar violentamente as nossas almas. E depois? Ataques de ansiedade, ora pois! Mas querem motivação? Um grupo que vos inspire? Então, contemplai o mérito dos veteranos do século passado que tinham de esperar três anos para ver uma nova Guerra das Estrelas - essa, sim, era gente brava e resistente!
O importante agora é que o oitavo episódio já está entre nós, disponível para ver nos cineminhas, para encantar os nossos espíritos com uma experiência bigger than life. Pipoquinha, refrigerante (com muito gelo, preferência), senta, relaxa, fica, limpa a vista, olha para o ecrã. Qual é o resultado? Valeu a pena? Meus caros amigos da espécie humana, eu não posso falar em nome de todos vós, mas, quanto a mim, valeu a pena, sim senhores; o filme é lindo, épico, divertido, emocionante, de pedir por mais - enfim, uma boa "baforada" de Star Wars.
Não se preocupem, não "vomitarei" spoilers nenhuns neste escrito, vou só referir ao de leve alguns aspetos que me deixaram doidinho da carola. Para começar: o Luke Skywalker. Minha gente, o tipo está com o cérebro frito; está amargurado, destruído; e o nível de badass dele atinge graus astronómicos, excessivos; adorei vê-lo a regressar e todos os créditos para o Mark Hamill, porque, chiça, não é hipérbole dizer que este é o melhor desempenho da carreira dele. Depois, a Rey (a Daisy Ridley continua adorável e brutalmente carismática) vive aqui um conflito imensamente curioso que dá espaço a cenas únicas tendo em conta a globalidade da saga, e esta sequela explora ainda mais a personalidade extremamente complexa do Kylo Ren (o Adam Driver nunca falha como ator; deve ser doença). Pessoalmente, estes foram os três personagens que me deixaram verdadeiramente intrigado.
Fora desse triângulo, The Last Jedi funciona muito bem como um filme de guerra, na medida que consegue desenvolver a consciência de como os dois lados encaram o conflito, sem que se torne algo estafante ou palavroso. Por isso, há muita ação para desfrutar aqui; a quantidade de explosões atinge um nível quase Bayhem, mas tudo com uma qualidade cinematográfica excelsa - e, neste sentido, o Rian Johnson tem aquela feliz virtude que tanto abençoa o J.J. Abrams: ele deixa a câmera rodar. O resultado são algumas das sequências mais belas e vistosas da franchise - e é incrível como aquele deserto de sal torna tudo mais violento, mesmo que não exista violência nenhuma (a sugestão é algo mágico e o vermelho é uma cor manhosa).
E o humor! Eu comecei a ficar seriamente preocupado na primeira metade da metragem. Não estou a brincar. Pensei: "Ok, o Rian Johnson não vai levar nada disto a sério. Isto vai virar uma autoparódia estilo Guardians of the Galaxy. Meu Deus, alguém vai olhar para a câmera e isto vai virar Deadpool!" Não estou a dizer que não há momentos engraçados - por exemplo, a quebra de expectativa no primeiro encontro entre a Rey e o Skywalker é fenomenal assim como quando ele a ensina o poder da Força (e a pequena gague visual do ferro de engomar é excelente) - só que há alturas que as situações cómicas ficam demasiado óbvias; algumas one-liners são meh e acho infeliz o facto do Finn (John Boyega), que, como ficou evidenciado no The Force Awakens, é um grande personagem, estar condenado a todo esse exagero na maior parte da projeção (em compensação, o Poe Dameron [Oscar Isaac] tem a sua presença mais favorecida). Felizmente, à medida que a história prossegue, isso é algo que vai ficando menos excessivo - e, quando pretende ser dramático, o filme consegue lindamente.
(Para que conste, não sou contra o humor na saga Star Wars. Ele é sempre bem-vindo, especialmente agora depois do "rezingão" Rogue One. Porém, não há necessidade de Batman à la Joel Schumacher, certo?)
Além do mais, o Johnson teve a ousadia de propor, como é que eu direi isto de um modo formal... umas cenas maradas. Houve momentos que eu fiquei: "Uá mãe, não acredito que isto vai acontecer! Esta é uma daquelas reviravoltas que até faz pirueta!" Todavia, no final, o cineasta não teve a coragem de levar nada disso para a frente, o que é decepcionante - provoca, só que depois não há um grande efeito.
Ao contrário de The Force Awakens, The Last Jedi é uma obra mais precipitada, que quer muita coisa e que, à vista disso, não sabe organizar-se muito bem - é sensato dizer que a montagem merecia uns "retoques". Por outro lado, a banda sonora do John Williams, sempre a serviço da trama, continua perfeita.
Mesmo assim, The Last Jedi é uma continuação apaixonante repleta de cenas clássicas. Esta nova trilogia tem tudo para ter uma conclusão grandiosa. Este "aguardar" religioso vale a pena. O sofrimento acabou de recomeçar.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista AgoraNinguém pediu uma sequela após tantos anos, porém ela já está entre nós. O mundo estava bem e mais que satisfeito com a obra-prima dos anos 1980 realizada por Ridley Scott; é verdade que é uma fita que deixa muitas questões a pairar no ar e muitos fãs provavelmente gostariam de um pequeno esclarecimento. Mas, uma continuação? Um brand new movie? Numa Hollywood fascinada com refilmagens (muitas vezes, não apreciadas pelo público) e com a arte de industrializar clássicos, mexer com uma preciosidade cinematográfica como o Blade Runner foi, com certeza, uma jogada perigosa. Quando se toma conhecimento de tal ideia, uma pessoa até fica de pé atrás.
No entanto, meus caros, este filme foi abençoado pelos deuses do cinema desde o primeira dia. Os créditos deram imensas esperanças e o hype não podia ser maior - e, por felicidade, a desilusão não bateu à porta. Como assim? Vamos por partes:
Realização: Denis Villeneuve, o cineasta ideal para se encarregar deste projeto. O homem tem Kubrick nas veias; por outras palavras menos formais, ele é um realizador do caraças com um potencial extraordinário para transportar o universo Blade Runner para a tela. E não se deixem iludir por certos trailers que dão a ideia de que 2049 é mais ação (no sentido de género) do que qualquer outra coisa. A natureza poética e a experiência atmosférica e contemplativa que tornou o original no filme de culto que é hoje está aqui presente - e, neste ponto, é completamente necessário referir a montagem de Joe Walker, que jamais sente a necessidade de "apressar" as quase 3 horas de fita; ele compreende perfeitamente que, quanto mais longo o plano, mais significativo ele é. Sim, existem sequências de ação, contudo em nenhum momento elas são genéricas; antes, elas são importantes, incrivelmente criativas e, por isso mesmo, inesquecíveis (só tenho a dizer isto: Elvis Presley e muita água). Portanto, aplausos para Villeneuve e a sua grandiosa coragem.
Argumento: Hampton Fancher e Michael Green. Excelente parelha, já que o primeiro foi um dos guionistas do original e o segundo coescreveu este ano Logan. O resultado é um belíssimo script, que abrange o valor filosófico que é Blade Runner ao propor novos questionamentos sobre o poder da tecnologia e a habilidade de um replicante amar (e a forma como a metragem lida com esses dois temas, remete-nos diretamente a Her de Spike Jonze). Desta maneira, 2049 é um mar de perguntas que incentiva a criação de novas teorias tendo em conta tudo o que integra este fascinante universo.
Elenco: Neste ponto, menciono dois destaques e duas decepções (não, o filme não é perfeito); temos aqui um Ryan Gosling introspectivo, que mal sorri, que diz muito com os olhos (Lembra-vos algo? Exato, o ator interpreta um replicante à boa moda do Refn. O Gosling de Drive e Only God Forgives vem-nos logo à memória) e um Harrison Ford da velha escola, nostálgico, que ainda não se esqueceu de como ser Deckard; em contrapartida, esperava mais dos personagens do Jared Leto e da Sylvia Hoeks - a meu ver, falta-lhes algo que os torne únicos.
Outros aspetos técnicos: A música, infelizmente, também desaponta. A composição de Vangelis deu uma alma singular ao filme original. Já Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer (este último que, este ano, fez um trabalho de mestre em Dunkirk), parecem não fazer jus ao seus próprios nomes nesta película ao apresentarem uma banda sonora pouco memorável. Por outro lado, a fotografia de Roger Deakins é sublime. Que a Academia quebre de uma vez por todas o injusto azar deste verdadeiro mestre do seu ofício, porque Blade Runner 2049 é pura e simplesmente uma magnífica obra-prima visual - e o nível de detalhe da cenografia de Dennis Gassner e da decoração de Alessandra Querzola é de deixar qualquer um apaixonado.
É com este tipo de mérito que nascem clássicos. Esta é, sem dúvida, uma das melhores prendas cinematográficas que o mundo recebeu nos últimos anos: um segundo Blade Runner ao nível do primeiro.
Dunkirk
3.8 2,0K Assista AgoraCom Dunkirk, Christopher Nolan distancia-se um bocado do seu registo habitual como realizador de épicos complexos e cerebrais de ficção-científica e apresenta-nos um filme de guerra vigoroso, direto, rápido, ágil. Em última instância, um trabalho absolutamente apaixonante, um verdadeiro e violento proclamar, uma bela homenagem aos veteranos, um explosivo retrato emocionante sobre um dos episódios mais marcantes da Segunda Guerra Mundial - a Batalha de Dunquerque. E embora ainda não esteja preparado para considerá-lo a obra-prima do seu autor, este é certamente um grande filme que ficará no nosso espírito durante muito tempo e um dos pontos altos no panorama cinematográfico de 2017.
Filmada a película, esta é uma longa-metragem visualmente arrebatadora e que jamais arrefece, colocando o espectador no plano do conflito logo nos primeiros instantes; hora e meia de filme, hora e meia de ação numa experiência completamente imersiva. Nolan, que também assinou o guião, não quer perder tempo a explorar personagens nem sequer a definir protagonismos. Acompanhamos um punhado deles a enfrentar aquela agoniante luta pela sobrevivência, mas não conhecemos as suas backstory. Só sabemos como eles são no campo de batalha. Esta é uma decisão a aplaudir, porque combina perfeitamente com as pretensões da fita - ainda mais a admirar por trazer um elenco de ouro que conta com nomes como Tom Hardy, Mark Rylance, Cillian Murphy e Kenneth Branagh.
No entanto, há um elemento que deve ser salientado. Elemento esse essencial e capaz de conferir o verdadeiro sucesso da metragem. Há certas obras que não teriam funcionado plenamente sem essa particularidade. Podemos falar, por exemplo, de Birdman e o seus planos-sequência ou de Whiplash e a sua montagem frenética. É o aspeto chave. E Dunkirk tem um: a banda sonora de Hans Zimmer. Porque este é um filme extremamente intenso, de cortar a respiração, de ficar inquieto na cadeira, de deixar o coração acelerado, de deixar qualquer um perturbado, e a música, num constante e obsessivo tique-taque-tique-taque-tique-taque-tique-taque, reforça isso brutalmente e dá pulso e personalidade ao momento. Zimmer, mais do que nunca, merece ser premiado pelo seu trabalho.
Christopher Nolan orquestra com brilhantismo um autêntico caos. Assim sendo, Dunkirk automaticamente faz par com Hacksaw Ridge como um dos melhores filmes de guerra dos últimos tempos. É um feito extraordinário executado fabulosamente. Um espetáculo impressionante de arregalar os olhos e de deixar qualquer um de queixo caído. Grande cinema.
Okja
4.0 1,3K Assista AgoraOkja é um filme para o coração e para a mente. Verdade que há incontáveis documentários e produções cinematográficas sobre a ganância, a violência e a falta de ética da indústria alimentícia - o nomeado para o Óscar Food, Inc. e Fast Food Nation de Richard Linklater são exemplos que me vem à memória. No entanto, a mais recente obra de Joon-ho Bong destaca-se nesse panorama por ser uma fábula carregada de imaginação e emoção, habitada por seres que parecem ter saído diretamente de um cartoon. É uma aventura de heróis e vilões extremamente atual, decorrida, portanto, nesta nossa era globalizada e capitalista.
A longa-metragem da Netflix, que esteve na competição oficial do Festival de Cannes, conta a história da jovem Mija (An Seo Hyun) que, desde os seus 4 anos e com a ajuda do seu avô, toma conta de Okja - uma adorável super-porca - no seu lar situado nas montanhas sul-coreanas. Tudo muda quando o animal é fortemente desejado por uma multinacional poderosa, a Mirando Corporation, encabeçada por Lucy Mirando (Tilda Swinton), que pretende levar o bicho para Nova Iorque. Mija tem que lutar ao máximo para resgatar a sua melhor amiga antes que esta se torne uma figura propagandística de uma nova linha de consumo alimentar doméstico.
Está mais que evidente que Okja é suportado por um pano de fundo óbvio e sustentado por uma mensagem clara como a água. Mas parece-me que muito dificilmente esta falta subtileza impedirá que a audiência se deixe conquistar pela parelha central: Okja é encantadora e Mija é forte e determinada. Vivemos cada perigo que atravessam e queremos que aquela incrível amizade se mantenha a todo o custo.
Assim sendo, Okja é muitas coisas. É comédia: basta notarmos na performance excêntrica e inusual do Jake Gyllenhaal. É drama: preparem os lenços para o ato final. É ação: a realização vai além de quaisquer expetativas que tinha; um feito absolutamente apaixonante de um criador enérgico; o trabalho de câmera é deslumbrante, vigoroso, de cortar a respiração.
É cinema. É crítica. É especial. É, também, um filme que não é nenhuma obra-prima, mas é marcante o suficiente para que nos recordemos dele de tempos em tempos. Sobretudo naqueles momentos em que decidimos "meditar" um bocado sobre o nosso planeta.
É Apenas o Fim do Mundo
3.5 302 Assista AgoraXavier Dolan é uma espécie de Tarantino da violência verbal. Essa é a sua ferramenta, o seu meio de comunicação, o seu excesso, o seu balde de sangue. A sua filmografia é marcada por personagens histéricos, fortes de espírito, adeptos de gritaria e que parecem estar prestes a explodir por se encontrarem frustrados com o ambiente que os rodeiam ou com os seus próprios egos e erros. São eles que carregam a trama às costas e que conferem toda a intensidade do filme. Com Juste la fin du monde o "cenário" não muda.
Vivido por Gaspard Ulliel, Louis é um dramaturgo que regressa à sua cidade natal após 12 anos de ausência. Lá estão à espera a sua mãe (Nathalie Baye), a sua irmã Suzanne (Léa Seydoux), o seu irmão Antoine (Vincent Cassel) e a sua cunhada Catherine (Marion Cotillard). Louis traz consigo uma notícia: vai morrer.
Portanto, esta é uma obra que se passa maioritariamente num só espaço, não obstante, por exemplo, as analepses referentes à vida do protagonista. Não é à toa, já que, baseada num texto de Jean-Luc Lagarce, esta é a segunda adaptação do teatro para o cinema realizada por Dolan (antecedida por Tom à la ferme). Então, é curioso notar como o cineasta canadiano recorre à câmera. Ao invés de posicioná-la longe da ação, criando a ideia de um palco, Dolan aproxima-a da face dos intérpretes, isolando-os no quadro, captando cada 'microexpressão' e criando a ilusão de que cada um está no seu próprio mundo (ou "vivendo" o seu fim do mundo). Esta é a força do cinema.
E o espetáculo de atuações é garantido. Aqui não há destaques. Há brilho de todas as partes. São performances que ficarão na minha memória durante muito tempo. O furor enérgico de Antoine (numa manifestação que parece que o espírito sai do corpo) contrasta com a confusa gaguez de Catherine. Louis sente o passado, mantém-se em silêncio e só observa a atmosfera sufocante a que fugiu. Suzanne admira-o. A mãe preocupa-se com as unhas.
Eis uma retrato sobre o pesar do tempo e a instabilidade familiar. Sobre origens.
Dolan disse que Juste la fin du monde é o seu melhor trabalho até à data. Não concordo. Mas posso dizer que é mais um bom título da sua filmografia.
De Canção Em Canção
2.9 373 Assista AgoraO que é isto que sinto quando vejo um filme de Terrence Malick? Que sensação única é esta que só o seu cinema me provoca? Oiço. Vejo. Sinto. Vivo. Que terá para me contar desta vez? Embarco na viagem pela primeira vez. Fala-me do amor, da música. Segunda vez. Fala-me da tristeza, do vazio, da busca por algo, talvez fé. Terceira vez. Fala-me da felicidade, da eternidade. Quarta vez. Fala-me sobre a arte e o ser humano. Quinta vez. Fala-me da possibilidade de haver um Deus. Sexta vez. Fala-me do passado. Sétima vez. Fala-me do "Eu" à procura do "Eu" através do "Tu". A experiência é sempre nova e jamais indiferente. A ligação especial entre mim e o filme fica cada vez mais forte.
Terrence Malick tem uma nova edificação cinematográfica, um novo pronunciamento artístico e criativo, uma nova fonte de pensamento e inspiração: Song to Song. Que nos diz? Depende de quem o vê. No seu cinema, nunca há consensos nem explicações totalmente definidas. Nunca haverá. Há fragmentos ambíguos e almas à procura de um ambiente em que se sintam equilibrados e finalmente satisfeitos.
Play on. De música a música, acompanhamos os devaneios de quatro personagens envolvidos numa teia amorosa: Michael Fassbender é Cook, Ryan Gosling é BV, Rooney Mara é Faye e Natalie Portman é Rhonda. Todos estão numa jornada pessoal e de relações. A câmera baila pelos diferentes cenários. A música vai oscilando entre o rock, o techno e a ópera. E o que é que acontece dentro das mentes das figuras centrais? Um constante conflito.
Esta é a singular personalidade do cinema de Malick a manifestar-se mais uma vez. Este foi o meu primeiro visionamento. O que me disse? Disse-me sobre a nossa busca pela estabilidade, pela tranquilidade, pela paz de espírito. E, por agora, suscitou-me a seguinte questão: onde estamos?
John From
3.3 5 Assista AgoraHá certos realizadores que parecem gostar de exibir as suas habilidades criativas não ao contarem uma história original/diferente, mas sim ao recontarem uma narrativa vulgar através de uma abordagem imaginativa. É o que aparenta acontecer com João Nicolau em John From, dado que ele tem como base uma trama sobre uma rapariga de 15 anos chamada Rita (Júlia Palha) que, sentindo-se um tanto aborrecida durante as férias de verão, vê algo especial no seu novo vizinho, Filipe (Filipe Vargas), pai e fotógrafo, acabando por apaixonar-se por ele.
De facto, é um enredo mais que visto e que, assim, podia coincidir numa experiência fastidiosa, ainda mais porque é um contexto que não é dos mais interessantes, porém Nicolau lá sabe virar o jogo, apresentado-nos, antes, um pequeno grande filme encantador que mostra a sua magia justamente na sua simplicidade inventiva. Desta forma, há um "ser visual" fortemente presente que abre portas para um universo diegético onírico que, marcado por algumas metáforas engraçadas, leva a crer representar a mente da adolescente.
Aliás, Júlia Palha, no seu primeiro papel na área do cinema, ostenta claramente um inegável talento, personificando de forma carismática uma típica jovem simpática da sua idade passando por uma situação de aparente "amor impossível". Interpretando a sua melhor amiga, a estreante Clara Riedenstein também é outra verdadeira surpresa que tem de aparecer em mais projetos, ao passo que, e ironicamente contrariando o destaque dado às jovens, Adriano Luz e Leonor Silveira, atores veteranos, são aqui encarados como meras figuras secundárias e que pouco acrescentam à real moral do filme.
Para dar lugar a estes personagens, João Nicolau selecionou o bairro de Telheiras, em Lisboa, onde o próprio cresceu juntamente com a sua irmã Mariana Ricardo, que também assinou o argumento (de diálogos minimalistas) de John From. Assim sendo, filmado a 16 mm, a fotografia do mestre Mário Castanheira confere ao sítio um visual vibrante, vivo, colorido e, em última análise, absolutamente memorável. Há, também, alguns efeitos visuais que empregam à obra, entre outros princípios, um senso mais agradável/bem-disposto (fazem até lembrar um bocado os filmes do Wes Anderson). Ademais, há uma coletânea de músicas bastante diversificada e rica, que vai desde Lily Allen até à famosa Lambada.
Tudo isto forma uma longa-metragem leve, despretensiosa e fora de complexidades vazias, e que, por isso, esquece os problemas nacionais atuais para apresentar um tema mais humano e absoluto: o coração apaixonado de uma teenager. Assim é John From - e espírito não lhe falta.
A Bruxa
3.6 3,4K Assista AgoraAo tratar o seu género com dignidade, The Witch é um autêntico destaque no atual quadro dos filmes de Terror. Isto porque Robert Eggers não se deixa seduzir pela mediocridade que tanto define esta imensa escola de cinema barato e criativo, mas exaustivamente preguiçoso e banal quando pretende verdadeiramente assustar o seu público - o potencial desperdiçado de Unfriended vem-me à memória. Não. Eggers é um realizador dedicado e isso é praticamente inquestionável, demonstrando até capacidade de pegar numa premissa simples que não é das mais novas - uma família (neste caso, do século XVII, Nova Inglaterra) é confrangida por forças malignas - e torná-la, no entanto, assustadoramente complexa na sua essência.
Portanto, é de notar que esta é uma obra belissimamente elaborada e a sua atmosfera é algo certamente a salientar. Nesse aspecto, há um senso profundamente opressivo, misterioso, sufocante e deprimente, que é arquitetado com o suporte da perturbadora banda sonora do Mark Korven (que remete a Kubrick) e da cinematografia de cores mortas do Jarin Blaschke.
E se The Witch já é uma grande revelação para o seu realizador/argumentista, pois o mesmo acontece com o seu elenco: Ralph Ineson e Kate Dickie estão assombrosos, o Harvey Scrimshaw apresenta-nos uma das melhores performances infantis dos últimos tempos e a Anya Taylor-Joy veio para ficar.
Aliás, retomo a dizer que esta longa é, por si só, uma revelação. Nada de falsas reações provocadas por efeitos sonoros da pós-produção. Nem pensar! The Witch é genuinamente assustador.
Não cumpre mais do que a sua obrigação. De qualquer forma, neste contexto, a esse feito eu digo: Bravo!
Bom Comportamento
3.8 392Good Time começa no escritório de um psiquiatra (Peter Verby). O paciente é um jovem deficiente mental, Nick Nikas (Benny Safdie). Submetido a um conjunto de perguntas, o rapaz cedo mostra indícios de nervosismo e angústia. Porém, o doutor, claramente bem-intencionado, jamais o pressiona. Furioso e desrespeitoso, Connie Nikas (Robert Pattinson) irrompe e tira rapidamente o seu irmão mais novo da sala.
Momentos depois, já na rua, ambos estão mascarados; entram num banco e realizam um assalto discreto. Mas, de regresso ao exterior, as coisas não correm como planeado, tanto que Nick, fortemente desesperado, é apanhado pela polícia e é preso. Perdeu-se o dinheiro do roubo e agora Connie precisa de 10,000 dólares para ver o irmão perturbado livre das grades. Inicia-se, então, uma jornada obscura e perigosa pelo submundo do crime.
Enquanto visualizava a obra, não conseguia parar de me questionar se Connie estaria a fazer tudo aquilo por amor ao irmão - e eu estou a falar de verdadeiro amor. Será ele incapaz de compreender que só está a prejudicar a vida do seu semelhante ao envolvê-lo nesses negócios sujos e arriscados? Por que motivo não o deixa seguir o caminho correto? Qual é a necessidade dele desaprovar um ambiente de paz e aprovar um cenário que pode ser mortal para o irmão? Que amor cego vem a ser esse?
Infelizmente, Good Time apela muito pouco para esse lado humano da questão para ocupar o seu tempo com a adrenalina da "viagem" desenfreada do personagem principal, recorrendo a uma singular cinematografia de cores intensas, que tudo o que parece efetivamente fazer é disfarçar a real banalidade de todos aqueles obstáculos que, na maioria das vezes, não enriquecem a natureza do enredo; ao contrário disso, tudo parece traçado com a simples finalidade de entreter o público. Contudo, isso jamais deixa enfraquecer o brilho da fantástica performance do Robert Pattinson.
Good Time tem pulso e estilo à brava, mas falta-lhe mais emoção, profundidade e originalidade narrativa. Menos mal que aquela última cena existe. Cena essa que, por si só, já entrega mais pontos à metragem.