Conheço pouco sobre as culturas onde terminar com a própria vida é algo aceitável, mesmo assim, quando isso ocorre, a ação precisa de um contexto. Nos filmes medievais japoneses, conhecemos o ritual do Seppuku ou Haraquiri, quando os samurais, diante de uma desonra, encontravam na morte uma forma de perdão ou provação do seu valor. É a lembrança mais clara que tenho sobre uma cultura aceitar esse ato, mas mesmo assim, como observamos, a permissão está restrita a uma categoria de guerreiros.
Na civilização ocidental a prática é condenada, mal vista, muito pela influência religiosa cristã em nossa cultura. O ato pode ser visto de inúmeras maneiras, mas majoritariamente de forma negativa e cheios de tabus. O filme do cineasta Paolo Genovese trata sobre isso, entre todas as formas nas quais poderíamos pensar no destino de quem põe fim à própria vida, a proposta de Genovese é, talvez, a mais otimista. Sem vínculo a um deus ou a uma religião, sem relação alguma com pecado, com a única preocupação em entender quem decide deixar o palco mais cedo. O cineasta nos fala da dor, da vontade e da necessidade de empatia com quem sofre dessa vontade.
O roteiro assinado por Genovese, Isabella Aguilar, Paolo Costella e Rolando Ravello é baseado no livro de autoria do próprio diretor. A trama se passa em Roma e tem um personagem misterioso, interpretado por Toni Servillo. Ele reúne quatro pessoas que não se conhecem. Inicialmente, nas primeiras cenas e com a chuva, pensei ser um filme sobre máfia, algo assim, mas tudo vai ficando estranho e demoramos um pouco para perceber onde os personagens realmente estão e qual a temática do filme.
Apesar de estarem mortos, não existe nenhuma referência explícita de imediato. Os espaços são todos de uma cidade: ruas, o hotel, auditório, bares e o cinema abandonado são parte de um cenário urbano. Caberia aqui uma ironia? Não sei, acredito que o sentido esteja melhor interligado com o destino dos personagens, quem fica entre os vivos? Aqueles que não morreram naturalmente. Essa escolha dos ambientes aparenta uma certa frieza, mas é uma forma não religiosa de construir o pós-vida. Apesar de em uma cena vemos uma igreja, a religião aqui é inexistente.
Os cenários preenchem o filme de realismo. A parte da conciliação do grupo, ao se prepararem para o desfecho, ocorre em um almoço, em uma casa próxima à praia. Um ambiente diferente para não vivos decidirem sobre continuar ou não a viver. O único momento, “mágico” é com Daniele (Gabriele Cristini, de 12 anos), o restante das cenas, apesar da estranheza da situação e do fato deles serem invisíveis, não possuem nenhuma ação “sobrenatural”.
O personagem misterioso de Sevillo é um terapeuta do “além”, não um barqueiro da morte. Ele tenta ajudar Arianna (Margherita Buy) a viver o luto e a ver a filha, nos momentos e nos lugares quais ela viveu. Para Emília (Sara Serraiocco) ele pede uma segunda chance, tenta ajudá-la a recuperar a sua autoconfiança e parar de se esconder. Napoleone (Valerio Mastandrea) um coach motivador que não consegue mais se motivar, ele tenta mostrar um sentido.
Eles precisam estar entre os vivos, pois assim podem refletir sobre o quanto o ato, mesmo compreensível, representa uma perda enorme para muitas pessoas e para eles mesmos. Logo, cada personagem carrega uma dor ou angústia de nossa atual sociedade. É um filme bonito, sensível, sofre com alguns diálogos longos, mas tem Toni Sevillo, quem segura o leme e sempre nos mostra uma atuação excelente. Diferente de muitos atores, ele possui várias faces, encarna diferente corpos e gostamos de todos.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Fei (Ko Chen-Tung) quer proteger o primo, por isso o afasta, não o quer envolvido em suas atividades. Difícil convencê-lo, pois as opções não são nada atraentes, além de muito mais restritas e penosas. Não importa o quanto criminosa e ilegal seja o estilo de vida de Fei, entre trabalhar 12 horas por dia em uma fábrica e ser um garoto de programa, não existem dúvidas sobre qual é a melhor opção. Diante da vista da cidade, no jardim da varanda de Fei, Long (Yufan Bai), observa como tudo é limpo e bonito e toma a decisão definitiva. Os dois trabalhos exploram seu corpo, a diferença é que se prostituindo ele não dorme em um colchão duro, nem trabalha em um lugar sujo. O menino pobre da na zona rural da Taiwan, elege a opção que privilegia a vista diante de seus olhos.
Me incomodou um pouco, esse aparente encanto da prostituição, mas conforme acompanhamos Fei, em sua jornada pela sobrevivência, o encanto parece perder cada vez mais o brilho. Pouco a pouco conhecemos a realidade dos “moneyboys”, homens jovens que se prostituem para outros homens. Fiquei pensando enquanto lugares do mundo, a homossexualidade ainda é crime. Na situação apresentada no filme, a prostituição parece como um meio de fugir da vida miserável do interior, mas também permite aos personagens viverem suas sexualidades. A cena no bar, quando conversam sobre os motivos de não voltarem para casa ou como, ao voltar, mentem sobre sua vida na cidade, demonstra a angústia sofrida pelos personagens.
Existe também uma oposição entre os espaços, enquanto todo o apartamento e lugares frequentados por Fei e Long são limpos e bem iluminados, a vila e os lugares fora do ambiente da prostituição é suja. Não me parece existir um julgamento moral por parte do cineasta, em colocar a prostituição como limpo, mas condenável, pois lhe deixa sujo internamente. A proposta dessa oposição entre ambientes está mais conectada à necessidade de fuga, encontrar esses lugares pobres e sujos, reforça os sentimentos dos personagens pela necessidade de fugir.
Gosto de como a fotografia coloca nossos olhos em posição de esperar a saída ou entrada no quadro, de como a câmera parada, em ângulos normais ou na altura da cintura, nos provoca uma expectativa. De como o personagem principal, com poucas falas, em alguns momentos não está centralizado e de como nossa atenção é desviada à medida que os personagens se movimentam no quadro. As cenas com os personagens de costas são muito interessantes para observar como nossa atenção percebe o personagem, mas acompanha a ação ao redor.
O filme, dirigido e roteirizado por C.B. Yi, ao fim, trata sobre a jornada de Fei, entre duas paixões, entre a aceitação da família, que vive de seu dinheiro, mas não apoia seu modo de vida. O grande ponto da obra está na montagem, que desde início faz recortes e deixa situações subentendidas. Não responde todas as perguntas, mas estimula nossa curiosidade. Os primeiros momentos unem as sequências, como a nossa memória, espaçadamente, o vínculo entre elas é o personagem, não temos nada esclarecido, quando anos se passam. Isso nos deixa um pouco confusos, pois tudo parece estar acelerado na vida de Fei. No segundo ato, tudo se torna mais tranquilo, o tempo não tem saltos e ele é confrontado com seu passado e presente. Tudo, em uma história cheia de corações partidos de jovens sem perspectivas de uma mudança em suas vidas.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
O grande motivador dos personagens, no filme, são seus interesses econômicos. Não importa como eles o apresentam, pode ser um projeto cheio de sonhos e sentimentos ou apenas uma fuga de uma vida miserável. O motivador do conflito é o desejo de uma vida melhor. Sem consciência disso, eles encarnam os interesses estrangeiros e representam a transformação capitalista da vila. Os noruegueses, ao construir turbinas eólicas para gerar energia limpa para o desenvolvimento sustentável e econômico, expulsam os moradores por uns trocados e os forçam ao êxodo rural. Os franceses enxergam o lugar como um paraíso a ser preservado, criam uma horta agroecológica e compram casas, as reformam e pretendem atrair novos moradores. Um projeto de gentrificação. As duas propostas invisibilizam o modo de vida dos moradores originais.
Nosso olhar tende a ser mais simpático ao casal francês Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs), os personagens escolhidos pelo cineasta Rodrigo Sorogoyen para contar a história. Isso torna os irmãos Anta (Luis Zahera e Diego Anido) vilões? Talvez, tudo depende da nossa perspectiva ao observar. Todas as ações cometidas por eles não são fruto de uma personalidade perversa, mas da corrupção econômica e a cobiça por uma vida melhor. Esse pensamento é expresso pelo irmão mais velho a Antoine, no bar, “não sabíamos que eramos miseráveis, até nos mostrarem o quanto somos”. Todo o sentimento de xenofobia, todo o ódio, toda a sabotagem feita contra o casal estrangeiro é motivada por eles impedirem a vila de ser transformada em um campo de energia eólica. Enquanto os dois fedem a merda de vaca, o casal, vizinho de porta, exibe sua prosperidade.
Isso torna a convivência mais insuportável, não há como eles se esconderem ou se ignorarem. A vila é pequena, todos se conhecem, vão nos mesmos lugares. Querendo ou não, acabam se esbarrando, apenas o caminhar na rua pode ser tomado por um dos lados, como uma provocação. O Bar é o espaço onde as tensões são elevadas, onde os personagens anunciam os próximos conflitos. O irmão mais velho está sempre sentado na mesa de dominó, no centro do nosso olhar e com todos os personagens voltados para ele, com exceção de Antoine, sempre no balcão de costas para nós e para os personagens. Temos uma mudança, quando senta na mesa do jogo e quando confronta os irmãos. O vemos de frente então, do lado direito do balcão, enquanto os irmãos do lado esquerdo. O convite para beber os retira do seu lugar habitual, muda nosso ponto de vista, os coloca no lugar escolhido por Antoine, que tem uma postura amigável e complacente. Diferente do irmão mais velho, quando em um momento vira de costas, demonstrando a recusa em entender e aceitar as motivações do vizinho.
Além do espaço, observamos como os elementos de cena são importantes para marcar determinadas ações, atitudes ou traços de personalidade. Quando o vizinho, que é amigo, chega para fazer uma entrega, os dois estão trabalhando, Olga o convida para tomar um café e oferece ao marido, que nega. Aqui ele não aceita por querer terminar o trabalho, por estar absorvido pelo cuidado da horta. Em outro momento, quando o sobrinho do vizinho vem os convencer a aceitar a proposta de venda, a mulher lhe entrega um café, enquanto Antoine novamente o nega. Dessa vez por não querer perder tempo com uma discussão resolvida para ele. O único momento em que vemos tomando café é quando acorda pela manhã. Uma característica curiosa é Olga sempre estar lendo, apesar de Antoine se arrogar ser mais inteligente e superior, ela é quem parece ser dedicada ao estudo. Em compensação, quando ela assume o lugar do marido, não a vemos mais com livros.
Além do livro e do café, podemos destacar o papel de dois objetos, a arma e câmera. Os dois não cumprem o papel para qual deveriam ser utilizados, mas reforçam os sentimentos e sensações de cada ação. A câmera, durante todo o tempo, age como um escudo para Antoine, enquanto a arma ostenta o perigo dos irmãos Anta. O fato de não terem servido aos fins originais, não invalida os dois objetos na progressão da narrativa. Eles adquirem importância no roteiro, escrito por Sorogoyen em conjunto com Isabel Peña, justamente por não servirem de maneira óbvia a resolução dos problemas.
Por fugir das soluções simples e óbvias, o filme consegue nos despertar o interessante. Nunca vemos indícios de culpa dos vizinhos pelas sabotagens, vemos as provocações, os enfrentamentos, mas não os vemos escondidos planejando envenenar a água ou mijar na cadeira. Tudo indica a culpa dos dois, mas não se tem provas. Essa forma de contar a história nos coloca em uma posição de ver apenas aquilo que Olga e Antoine veem, apenas aquilo que os personagens principais enxergam. Isso explica vermos os irmãos distantes do ponto de vista do casal.
Essa forma de filmar não muda quando Olga assume o papel do marido. Durante toda a primeira parte do filme é uma mulher calada, lê e o ajuda nos afazeres do sítio, faz comentários, mas não tem protagonismo algum nas disputas. Ao assumir as rédeas do local é absorvida pelo trabalho e pelo desejo de justiça, passa os dias atrás de pistas para incriminar os vizinhos e de dos cuidados com os animais, plantas e a feira. O olhar agora é dividido com a filha. Essa parte, torna os irmãos ainda mais ameaçadores, ainda mais bestas, pois a figura masculina parecia fazer frente a ameaça, agora duas mulheres parecem presas nas garras de predadores. Um sentimento que acaba sendo frustrado, pois Olga não só se mostra forte, como se mostra mais inteligente.
Ao fim, temos uma obra construída de uma forma a nos despertar vários questionamentos, a nos suscitar vários sentimentos, mas não se preocupar em nos dar certeza de nada, a não ser da força e da coragem das mulheres.
Filme visto na Cabine de Imprensa, estreia dia 25 de janeiro nos cinemas. Vencedor do prêmio Cesar e selecionado para Cannes, em 2023.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Enxergar a poesia nos números não é um absurdo ou uma novidade. A proporção áurea, está aí há “bastante tempo”. A matemática exerce seu papel na arte e está presente na pintura, na fotografia, na música e no cinema. Existe uma beleza nas fórmulas escritas com giz no quadro, como uma poética na explicação das equações. O Desafio de Marguerite, dirigido por Anna Novion, nos apresenta essa perspectiva, do ponto de vista de uma mulher, uma pesquisadora com uma proposta revolucionária, em um ambiente masculino e hostil.
Apesar do roteiro perseguir as descobertas de Marguerite Hoffmann (Ella Rumpf), o filme não depende de nenhuma resolução matemática para ser fruído. Seria interessante ler uma crítica envolvendo o cinema e as discussões matemáticas, não tenho essa propriedade, então me concentro nas discussões sobre a arte, mas fica aqui a sugestão.
O longa-metragem de Novion conta a história de Margarite Hoffmann, uma brilhante pesquisadora da École Normale Supérieure (ENS). A única mulher da turma, talvez do curso, enfrenta dificuldades com o orientador. Apesar de confiar nela, não lhe concede a devida atenção, nem a trata com respeito. Isso fica claro, quando, ao cometer um erro na apresentação da tese, o professor a culpa.
A primeira percepção ao iniciar o filme é o figurino, usar chinelos, calças largas, cores frias em tons pastéis, reforça a imagem introspectiva da personagem. A roupa de Marguerite transmite sua personalidade, como a forma de seu penteado. Ela parece estar escondida da vida, atrás dos livros e da forma como se veste. O figurino também combina com o ambiente cinza feito de concreto, madeira e vidro da universidade.
Quando ela resolve romper com esse lugar, as mudanças são sutis, mas as percebemos. A personagem não põe um vestido, por exemplo, nem batom, mas constatamos em suas atitudes, como seu figurino e penteado introspectivo concedem lugar a uma nova mulher. Gosto de como a cineasta não impõe um padrão de vestimenta e atitude a personagem. Estar aberta para novas possibilidades, não significar mudar sua essência por completo, mas apenas experimentar coisas novas.
Essa abertura para experimentação está conectada na transição da personagem pelos novos ambientes. Ao tomar a decisão de sair da universidade, a primeira imagem é um plano aberto da cidade. Depois temos o apartamento dividido com uma colega, o shopping, as ruas do bairro, o restaurante chinês. A fotográfica registra sujeira, a multidão, o movimento, algo que não havia nas imagens do seu antigo lugar.
A trilha sonora, composta por Pascal Bideau, marca as mudanças da personagem, em cada momento de superação, desafio, escolha ou passagem, temos a iluminação azul e uma trilha eletrônica com um coro. Parece algo religioso. O sentimento transmitido é de libertação, como se distante da universidade e do controle da mãe, Marguerite finalmente estivesse vivendo por suas próprias escolhas.
Tratando especificamente dessas escolhas, acredito na importância do filme para suscitar discussões importantes sobre o ambiente acadêmico. Em como em determinados momentos a burocracia e o estrelismo, como as vaidades de determinados acadêmicos, desmotivam pesquisadores iniciantes. Também existe o problema do machismo, das discussões sobre o lugar da mulher no ambiente acadêmico e como é difícil sobreviver em profissões e cursos dominados por homens.
Fico em dúvida sobre o final, pois me parece apontar para uma conciliação. Agora, mesmo conciliando com o professor e com o ambiente acadêmico, Marguerite não é mais a mesma, nem estará disposta a aceitar tudo, sem questionar. Ao sair da universidade, a jovem pesquisadora conseguiu encontrar uma solução para sua tese, mas também crescer e encontrar um lugar no mundo real.
Vencedor do prêmio de melhor Direção de Arte em Cannes, em 2023.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
NOSTALGIA (2023) – CRÍTICA Nas primeiras cenas do filme não sabemos ao certo quem é Felice, interpretado por Pierfrancesco Favino. No avião ele fala árabe, no restaurante, enrola no italiano. Parece um estrangeiro, um turista. Quando caminha pela cidade, possui um olhar de melancolia, mas também de deslumbramento. Olhar transmitido pela fotografia da obra, ao registrar todos os cenários e espaços onde o filme acontece. Ao visitar a casa da mãe, caminhar pela cidade ou ir à igreja, tudo parece novo, mas, ao mesmo tempo, familiar.
É um sentimento despertado pelo encontro do personagem com a cidade, um misto de surpresa e reconhecimento. Notamos essa sensação, quando observamos o caminhar de Felice, um passo tranquilo, de quem observa tudo ao redor e parece contemplar a paisagem e as pessoas. Como ele transita pelas ruas, destaca sempre a arquitetura do lugar, as ruas estreitas e os vizinhos nas janelas, parece mostrar o bairro como um labirinto. A fotografia, em algumas cenas, o encaixa no centro da imagem, destacando a relação dele com o ambiente. Ao mesmo tempo, busca registrar o ponto de vista do personagem sobre cada região.
Eu gosto do tratamento dado à memória, de como as cenas antigas aparecem em um quadro reduzido na tela, em uma imagem semelhante a Super 8. Esse tem sido um procedimento muito utilizado pelas produções audiovisuais, em registrar as lembranças ou o passado com outro tipo de formato, como as produções da HBO usam imagem em VHS, com granulações. Um recurso que antes era muito utilizado com a imagem preto e branco.
Não sei se todos sentem isso, mas para mim, durante todo o filme, Felice pareceu buscar um lugar na comunidade, tentar novamente se colocar ao lado das pessoas e do lugar que ele abandonou. O problema é o conflito gerado por esse desejo, como disse antes, apesar de ter nascido em Nápoles, a cidade não é mais a mesma e ele está mais próximo a um estrangeiro, que um morador local.
É bonito notar, como a casa alugada por ele possui uma iluminação muito diferente do restante da cidade, onde os dias parecem sempre nublados e cinzas. O ambiente é mais claro em algumas ligações da esposa também. Apesar de várias cenas serem de dia ou pela manhã, a cidade passa uma impressão de estar suja e escura, um tom de tristeza, como na casa onde a mãe morava e bem diferente dos dois ambientes citados.
É curioso, como todos tentam convencê-lo a ir embora, como ninguém parece ver motivo para ele ficar na cidade. Quando Rafaelle, Aniello Mascia, o aconselha a retornar ao Cairo e desistir de procurar o amigo, ele contesta em árabe. Novamente, não sei se todos notaram isso, mas gosto de como ele, nos 40 anos que ficou fora, parece ter adotado uma nova identidade. Não só fala árabe, mas também é muçulmano. Tem uma esposa e uma empresa em outro país, qual motivo para ficar em uma cidade, sem nenhum parente ou amigo? Apenas o sentimento de nostalgia…
Esse sentimento me parece extremamente conservador, mas, ao mesmo tempo, ilusório. Retornar às suas raízes tem um preço. Olhamos para o passado como se algum dia houvesse uma época ideal, como se tudo fosse melhor antigamente. Quando ele fala para a esposa que tudo está igual, tenho a impressão de falar mais sobre seu desejo, sobre a projeção de seus sentimentos em relação à cidade, do que do próprio lugar.
Filme dirigido por Mário Martone, ovacionado em Cannes.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
GOLDA – A MULHER DE UMA NAÇÃO (2023) – CRÍTICA A busca pelo sublime, talvez seja a melhor definição para a forma estética do filme . Toda a fotografia, atuação, trilha vão na direção de elevar a personagem para uma posição grandiosa. Mesmo quando colocada em situação de fragilidade, quando enfrenta o julgamento ou quando passa pelo tratamento de saúde, Golda, interpretada por Helen Mirren, ainda é fotografada em uma posição eminente. Sua humildade, o ambiente austero e como a tratam os ministros e generais, serve justamente para colocá-la na posição de messias, ao ser rebaixada é elevada a uma posição mais alta.
A primeira cena transmite a sensação de isolamento. Não vemos ela por completo, mas apenas seus gestos, o olhar melancólico, o cinzeiro cheio, o cigarro aceso, gesto de quem se prepara sozinha. Essa sequência em vários planos decompostos é complementada pelo desfoque das pessoas ao seu redor. A vemos caminhar entre diversos manifestantes, mas não vemos os rostos de ninguém, pois os olhos estão todos nela, a atenção do mundo, os problemas do país, caem sobre os ombros da Primeira Ministra. É a penitência de uma “grande” líder, carregar os problemas da nação e sofrer com isso.
Ela surge sempre caminhando ao centro, as cenas normalmente começam com o andar em frente. Em seguida, temos um plano aberto, no qual vemos todo o espaço ou conjunto, onde os atores entram em cena. Os planos detalhes da personagem acendendo o cigarro ou anotando no caderninho, servem como “pontos finais” das sequências. Temos uma crescente, Golda entra no escritório, senta à mesa e depois acende o cigarro ou anota no caderno. O ritmo do filme é então marcado pelo caminhar apressado de uma líder idosa, pelos gestos meticulosos e por longas reuniões cheias de tensão.
Se os planos detalhes marcam o ponto, a virada das sequências e como as cenas mudam o ritmo, os closes marcam a tensão. O close afirma o desespero, o medo, a perda, e a falta de fôlego. Quando ouvimos os soldados sendo massacrados na batalha, vemos os olhos tesos de Golda. Ou quando todos a pressionam por uma decisão, os olhos demonstram o sentimento de estar encurralada.
O sentido dessa fotografia é mostrar uma mente lúcida, em um corpo cansado, em meio a pessoas desorientadas ou abatidas. A visão sublime de Golda está em, mesmo com um linfoma, ela não perde a agilidade, em meio a tantas dificuldades, não descansa, pois sabe a necessidade de lutar. Quando ela recorda de sua infância, ela justifica o esforço feito para liderar o povo judeu, como as ações de guerra.
Reparem, em como ela parece onipotente, mesmo com os conselhos, mesmo com as dúvidas e erros, ela é a única que defende isoladamente a resistência. Golda é mostrada, entre seu colegiado, como Israel é mostrado. Verdade ou não, o filme parece em todo momento afirmar que o povo judeu não pode contar com ninguém, a não ser consigo mesmo. Apenas com ameaças e pressão, os EUA enviou aviões e apoio ao país, mesmo assim, o filme mostra essa ação, como algo tímido.
Esse não é o único paralelo da personagem, com a situação do país. A fumaça do cigarro, em mais de um momento, é referenciada como a fumaça da guerra. Quando uma batalha termina, ela expira a fumaça, como se o fogo das armas tivesse cessado. Toda a luta por se manter firme, lúcida e à frente de seus conselheiros é um paralelo com Israel. Ela e seu país são um corpo estranho, no continente.
As cenas de guerras são mostradas do alto ou relatadas, não temos grandes sequências de ação, o interessante aqui é como o roteiro constrói a moral da guerra. Durante todo o filme, Golda afirma ter errado em não ter começado ou se preparado para a guerra. Yom Kippur era um feriado no país, havia problemas para se preparar, mesmo sabendo da possibilidade do ataque, mas ela não o fez. Ao mesmo tempo, com exceção de uma cena jornalística, inserida no filme, os árabes não existem. O inimigo não tem rosto, nem corpo. Isso simplifica muita coisa, como em justificar o ponto de vista sionista da situação.
É um tanto confuso sobre como a Síria e o Egito, apoiados pelos russos, perdem para Israel sozinha, com apoio tímido dos EUA. O ponto de vista do filme é de erros dos inimigos e uma estratégia certeira de Golda e seus generais. A versão ajuda a construir o argumento de que o caminho para o povo judeu se defender é se preparar sozinho, apesar de existirem aliados, eles devem contar apenas com as próprias forças. Não importa quais guerras devam provocar para firmar suas posições.
Esse discurso delirante não está nas entrelinhas, mas em cada palavra de Golda ao secretário americano ou aos seus generais. Ela afirma mais de uma vez que a força é a única forma de afirmar a existência do Estado de Israel. O filme não toca em como os judeus foram colocados lá, em como Israel se tornou um muro para o ocidente, nem como expulsou os árabes e expande seu território aos custos de vidas palestinas. O filme cita o holocausto, apenas para justificar todas as ações de guerra, crimes e perseguições de Israel.
Ao fim, podemos observar como o longa-metragem dirigido pelo cineasta Guy Nattiv, acontece em grande medida dentro do apartamento, em lugares fechados, salas de reuniões. Não sei ao certo onde ela está, mas parece um abrigo subterrâneo. Os cenários confinam nosso olhar em um ambiente escuro e de cores frias. A única cena iluminada, com o sol entrando pela janela, é quando ela morre e essa cena parece mostrar como a vida da personagem foi construída em cima da morte da paz, ao vermos as dezenas de pássaros mortos. Mesmo aqui, tudo parece justificar as “ações sublimes” da líder sionista.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS (2023) - Dir.: André Bushatsky
Uma obra pessoal e descontraída, sobre as vítimas do nazismo, refugiados e a extrema direita no mundo
Gosto de como o cineasta André Bushatsky caminha por Berlim visitando os monumentos e lugares históricos dedicados às vítimas do nazismo. A visitação a esses espaços no presente, em um dia totalmente diferente daqueles do passado, nos obriga a imaginar, por meio dos relatos da guia e das perguntas do cineasta, como tudo aconteceu, como foi o sofrimento daquelas pessoas, quando a barbárie se tornou uma ação política.
O filme pode assim ser resumido em um resgate da memória, mas de uma forma diferente. A preocupação da obra não é apenas manter viva as lembranças das vítimas, mas nos alertar sobre como as ideias que conduziram o nazi-fascismo ainda existem e nos atingem em uma ou outra crise política.
Durante as entrevistas, os idosos, todos com idade muito avançada, mas com uma memória extremamente afiada, mostram relatos de diferentes formas de violência e perseguição. A menina impedida de tocar piano é um exemplo. Todos partem de um lugar diferente para contar suas lembranças, mas em alguns momentos cruzam pelas mesmas palavras, como esconder, fuga, morte e floresta. Achei aterrador o fato de muitos falarem da floresta, como um refúgio, ass pessoas perseguidas pareciam estar condenadas a viver como animais…
A obra, como muitos documentários, tem sua matéria-prima baseada em entrevistas e imagens narradas. Existem cenas de arquivos, mas o grande diferencial está no trabalho com as cenas externas, as imagens dos monumentos de Berlim. Distraí nosso olhar das longas conversas. Infelizmente, não em todo momento, algumas entrevistas são extremamente longas, sem um movimento de câmera, nem plano externo que nos ajude a absorver a informação.
O filme segue um formato de reportagem, como Bushatsky nos guiando entre as entrevistas e as caminhadas por Berlim, nos apresentando as pessoas e os lugares. O jeito espontâneo do cineasta, em tratar os entrevistados, lembra muito as matérias do Fantástico. Ele toma café, come na rua e fala de forma descontraída. Quem gosta desse perfil de matéria, talvez goste do filme.
Quem não gosta, precisa entender a proposta do autor, isso pode não mudar a opinião, mas explica as motivações. Um Pouco de Mim, um Pouco de Nós, trata de um tema relacionado ao cineasta, seus avós fugiram da Áustria e foram refugiados. Apesar de dedicar um longo espaço às lembranças das perseguições nazistas, o filme busca amarrar essa discussão com o tema da extrema-direita, xenofobia e dos refugiados atualmente. Os entrevistados, como Pedro Bial e Mário Sérgio Cortella, o ajudam a costurar os assuntos.
Nesse momento, o filme nos provoca a pensar como, todos nós, fomos ou estamos ligados aos refugiados. Também nos provoca a refletir sobre as ideias da extrema-direita que se alimentam da xenofobia, preconceito e da recusa em aceitar o estrangeiro, da mesma forma como o nazismo fez.
Ao fim temos um filme com um tema bastante sério, mas com um tom descontraído e pessoal. Caso houvesse espaço, a obra caberia muito bem na TV aberta, em um horário livre. O cineasta não tem grandes preocupações estilísticas, mas uma grande preocupação em ouvir histórias, conhecer pessoas, em ser íntimo delas e assim mostrar um pouco de si e pouco de nós.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Mulheres Armadas, Homens na Lata (2023) – Crítica A frase: a ocasião faz o ladrão, talvez se encaixe bem no roteiro de Mulheres Armadas, Homens na Lata, filme dirigido pelo cineasta francês, Allan Mauduit. Após assassinar acidentalmente o patrão abusivo, as funcionárias encontram uma mala cheia de dinheiro. Com problemas financeiros e precisando desesperadamente pagar as contas, elas decidem ficar com tudo. O problema é quando os mafiosos, donos de toda a grana, resolvem ir atrás delas.
Com personalidades fortes e características marcantes, as três personagens convencem o público pelas atitudes. Sandra (Cécile de France) é extremamente arrogante, cheia de orgulho e com ar superior. Os planos contra-plongée, frisam a intenção de mostrá-la de forma diferente das amigas. Nadine (Yolande Moreau) é uma mãe de família, sustenta a casa, cuida do marido e dos filhos e é quem parece mais comedida na hora de agir. Marilyn (Audrey Lamy) é mãe solteira, impulsiva e violenta, a mais impaciente das três.
As características vão além da personalidade, existe uma forma de agir e de se comportar durante o filme. Nadine anda meio desengonçada, Sandra com ar superior, enquanto Marilyn está sempre acelerada. A combinação das três personagens acaba por desenvolver uma relação extremamente cômica. Lembra muitos os filmes de comédia, com grupos de amigos, onde cada um carrega uma característica pela qual os identificamos.
Apesar de Sandra morar com a mãe, Nadine com a família e Marilyn com o filho. Elas não devem satisfação para ninguém. Todas trabalham na fábrica e isso lhe concede certa autonomia. Mesmo assim, em certos momentos Nadine e Marilyn mostram um certo recorte de classe. Elas parecem mais calejadas pelo tempo como operárias, enquanto Sandra cai de paraquedas nessa vida.
As três destoam muito de todos os homens do filme. Enquanto elas demonstram coragem e ousadia, mesmo com certo improviso. Os homens tropeçam em suas próprias pernas. Apesar da arrogância e força física, os personagens um a um são ludibriados pelas três amigas. É interessante observar esse ponto, os homens durante toda a obra exercem um papel normalmente dados para as mulheres, o de coadjuvante. Quando o marido de Nadine desconfia de seu envolvimento com crime, ele sai de casa com os filhos. Aqui, talvez haja um toque de subversão no roteiro, a inversão de papéis.
Uma pena ficar só aí, existe uma discussão sobre a violência de gênero, Sandra volta a morar com a mãe por ser espancada pelo companheiro. Há também o assédio na fábrica, mães solteiras e todos os problemas sofridos pelas mulheres por serem mulheres. A grande questão é o espectador ser entorpecido pela ação e pela violência e não enxergar esse debate… mas aí, talvez o problema seja eu esperar algo do espectador…
As cenas de violência incomodam pela crueza. Quem é homem vai sentir uma certa agonia na morte do patrão, mesmo ele merecendo o destino. Por outro lado, as cenas contra as mulheres chocam pela covardia, mas isso proporciona uma certa satisfação quando elas se vingam.
Ao fim é um filme que diverte, entretém, mas também propõe algumas discussões em segundo plano. Tudo regado com muito sangue e boas risadas. Uma pena o título não ser Rebeldes, como em francês.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Aftersun (2023) – Crítica Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
O Caso dos Irmãos Naves (1967) – Crítica Mesmo se passando no período da ditadura Vargas é difícil assistir ao filme e não relacioná-lo com a ditadura militar. A obra evoca referências em nossa memória. Ao falar de uma injustiça, comenta outras situações e nos provoca a refletir sobre nossa história. É um filme de denúncia, crítica e, talvez, de reparação. Mostra como uma obra de arte e o cinema produzem metáforas e mitos, que nos ajudam a entender e a explicar nossa história.
A trama se passa em Araguari, uma cidade do interior de Minas Gerais, em 1937. Os Irmãos Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira), denunciam na polícia o desaparecimento de Benedito com o dinheiro de uma colheita de arroz. O Tenente (Anselmo Duarte), empossado pelo governo recente, duvida da narrativa dos irmãos e passa a acusá-los. Eles e seus familiares são presos, torturados e obrigados a confessar um crime a qual não cometeram.
O desenvolvimento do roteiro ocorre sempre com comentários do narrador, que situa o olhar do espectador diante das imagens. A narração adquire uma estética radiofônica, narrando os fatos, alertando sobre o tempo que passou, como revelando os desfechos. A voz em um tom imparcial, sem manifestar emoções, lembram um relato jurídico, como se o filme fosse narrado a partir das atas dos tribunais.
Assim, quando vemos o trem partir, a voz over fala sobre Benedito ter viajado sem rumo. O cineasta Luís Sérgio Person, nos apresenta primeiro a conjuntura dos fatos, depois a voz dos personagens-títulos. Também acrescenta um tom de “realismo” à imagem, na forma distante como observamos cada morador na rua comentando as últimas notícias, o crime e a posse do novo governo. Essa forma ajuda a entender a virada da história, em como os Naves passam de acusadores para acusados. Mostra como a história ganha uma nova versão e como as mudanças políticas influenciam na vida cotidiana.
O depoimento com delegado civil não consegue concluir nada, então o Tenente nomeado resolve agir. Sua atitude desde o início é de desconfiança e violência, tratando os depoentes favoráveis aos Naves sempre como culpados. Não existe entrevista com o militar, mas um inquérito acusatório e tortura. Não existe presunção de inocência, apenas culpados.
A atitude do tenente durante os depoimentos se traduz em seu figurino e gestos durante todo o filme. Sempre de farda e com um sorriso cínico, ele encerra qualquer assunto por onde passa. Não tem nome, mas uma patente, não permite ninguém questioná-lo e tenta sempre se impor diante de qualquer resistência ou divergência. Quando o Coronel assume, é esperado uma atitude diferente, mas o que vemos é apenas uma intesificação da tortura, o alto posto de comando dos militares, não tinha divergências sobre os métodos, apenas sobre o tempo em resolver o caso.
A forma de pensar do Tentente lembrou muito as posturas dos inquisidores no filme Goya de Miloš Forman, no qual em uma cena eles afirmam que toda confisão sobre tortura é verdadeira e não pode ser anulada. Assim parecem pensar os militares em geral, depois de arrancar uma confissão, não importam mais os fatos. Uma ideia fixa os move, a população é sua inimiga e é tratada como tal.
Impossível descolar a condução do crime da política nacional. Com um novo governo, as pessoas esperam um tratamento diferente para problemas corriqueiros. Em momentos de crise, como um dos moradores fala, todos esperam um pulso firme. As atitudes do Tenente podem não estar amparadas na Lei, mas estão amparadas nas forças políticas que apoiaram o golpe de Vargas.
Ontem e hoje, podemos refletir sobre como as posturas de governantes influenciam pessoas que estão em posições de liderança e tratam diretamente com a base da população. Como essas posturas legitimam ou apoiam determinadas formas de conduta. O Tenente, quando chega não decide torturar por ser a última alternativa, mas por ser uma conduta militar.
As cenas de tortura pertubam e não são fáceis de assistir. O que mais impressiona são os olhares e a violência, em como os atores traduzem os momentos de agonia dos personagens. Não me parecem exageradas ou sádicas toda a violência mostrada, como alguns acusaram na época. Os socos, pauladas e as ameaças servem para mostrar como a tortura, como política de Estado, transforma os governos nos maiores terroristas da nossa sociedade.
O cineasta coloca o caso dos irmãos Naves no centro de dois processos históricos. Ao criticar o caso de injustiça, a tortura e os demandos do tenente, empossado pelo governo Vargas, fala da ditadura militar. Uma história específica de uma cidade do interior do Brasil se transforma em universal. Faz dos irmão Naves exemplos de vítimas do autoritarismo e de uma parte obscura de nossa história.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
A DÍVIDA DAS LOJAS AMERICANAS E O FILME EN GUERRE Lembrei do filme do En Guerre (2018), quando ouvi hoje pela manhã a notícia do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, estar reunido com sindicalistas e trabalhadores das lojas Americanas. A situação do filme é diferente da empresa brasileira, mas é semelhante em dois pontos: as ameaças aos empregos e a impunidade dos patrões. No filme, o cineasta Stéphane Brizé, retrata a luta de um sindicalista para impedir a demissão dos funcionários e o fechamento da fábrica Perrin. Interpretado por Vincent Lindon, o sindicalista Laurent Amedeo, não aceita a ruptura dos acordos e das promessas feitas pelos acionistas da empresa. Para ele, não está em jogo apenas a quebra de contrato, mas o fim da vida de muitas pessoas…
Brrizé vai narrar o filme do ponto de vista dos trabalhadores, mas principalmente do sindicalista, Laurent. Ele, diferente dos demais, entendeu o significado das demissões e do fechamento da fábrica. Ao narrar o filme desta perspectiva, toda a forma narrativa coloca o olhar dos espectadores junto aos operários da fábrica. Enxergamos o filme em meio a multidão da assembleia, entre os grevistas no piquete e os trabalhadores na reunião sindical. Em alguns momentos, se utiliza a imagem semelhante às de jornal ou como documentário para acrescentar realismo à cena. Tudo ajuda a elevar a tensão.
O fato de adotar uma posição ao lado dos trabalhadores não significa mostrar o caminho a seguir, mesmo assim, o filme aponta contradições importantes. Brizé, nos faz questionar o significado de justiça e da legalidade ao mostrar as justificativas dos empresários.
Para eles, não importa o definhamento econômico da cidade, após a empresa fechar, nem o fato de muitos trabalhadores não conseguirem mais empregos por estarem velhos. A lei permite, a justiça também, ou seja, em uma democracia capitalista, eles podem fechar a empresa e irem para o leste o europeu. Pode ser cruel, mas não é um crime. Eles podem diminuir a produção para elevar o preço dos produtos, dos quais detém o monopólio. Tudo isso é legal e justo dentro do sistema.
O esforço do sindicalista, que diga-se de passagem, não é nem comunista, nem marxista é exigir o cumprimento do acordo. É garantir os direitos ou achar uma nova saída, qual nenhum acionista deseja. Aqui, cabe mais uma semelhança, Marinho disse hoje pela manhã estar disposto a ouvir. É a única coisa que o governo pode fazer se atua dentro do sistema capitalista. Por mais injusta a situação, ele não vai intervir, pois a propriedade privada é sempre sagrada para o capitalismo e seus defensores, os empregos e as vidas não.
Eles não se importam, como nas Americanas.
Hoje a dívida está em 43 bilhões. Tinha lido 20, agora são 40, daqui uns dias o número aumenta. Esse débito foi adquirido de uma forma legal, por meio de uma operação chamada “risco sacado”. De acordo com o portal de Notícias DW, a operação é simples, você utiliza empréstimos bancários para o pagamento de fornecedores. De acordo com as instituições financeiras, esse serviço é vendido justamente por não ser identificado como dívida. Ou seja, na contabilidade está tudo bem.
Os acionistas perderam bilhões, mas isso não os impedirá de seguir com suas vidas. Lehman vai continuar defendendo a privatização da educação pública com seu instituto. Não sei se as universidades estrangeiras vão solicitar, mas provavelmente ele seguirá com as palestras. Julgo isso, pensando em como a hipocrisia não é um sentimento apenas nacional.
Agora, difícil vai ficar a situação dos empregados das 3.600 lojas físicas e os cerca de 40 mil funcionários, além dos 16 mil credores.
A julgar por aquilo que o cinema nos ensina, não espero compaixão, nem empatia, apenas capitalistas sendo capitalistas. Como no Filme En Guerre, não parece que a situação das Americanas vai terminar bem…
Podem como no filme, parcelar e pagar as indenizações ao demitir os trabalhadores, mas e os empregos?
É interessante sobre como isso é visto, na imprensa, não parece alarmista, nem radical, milhares perderem seus empregos e terem suas vidas imersas em dificuldades ou destruídas, mas é radical propor a expropriação da empresa e manutenção dos empregos. Qual a prioridade dos governos, garantir o direito de alguns empresários ou garantir o emprego de milhares…
A situação pode mudar, o mercado pode arrumar uma maneira de salvar a empresa, mas ainda assim, milhares de pessoas já sofreram pelo caminho, sem que nenhuma nota no jornal, nem ninguém se preocupasse com elas.
Aftersun (2023) – Crítica Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Faz alguns dias assisti o filme dinamarquês A Rainha de Copas, dirigido pela cineasta May el-Toukhy, gostei da obra, mas me incomodou muito a exposição da vítima. Eu entendo quando colocamos uma mulher em uma situação cotidiana, qual ela passa por assédio ou violência para chocar, para mostrar a realidade, fazer uma denúncia. Ou seja, mostrar que, por mais avanços e progressos, algumas situações ainda precisam mudar. Entendo, mesmo isso, mas ainda assim, precisamos refletir sobre a forma, não basta apenas expor o conteúdo. No filme, a personagem está insatisfeita, infeliz, toma algumas escolhas erradas, ela tem um serviço importante na comunidade, mas no geral toda violência sofrida por ela e por outros parece naturalizada. Não é papel do artista explicar tudo, mas alguns filmes na tentativa de instigar uma trama, de fornecer plots parecem acabar trabalhando contra a proposta inicial. Mostrar o quanto uma vítima está sozinha, o quanto não pode contar com ninguém e por isso tomou um caminho "legalmente" e "moralmente" errado é interessante, mas a conclusão disso tudo pode, em alguns casos, apenas justificar as opressões sofridas, como se ela procurasse passar por tudo que passou. Ao fim, o filme deixa um gosto estranho é bom, mas algo não parece estar certo...
O Predador: A Caçada – Crítica É um lugar comum ao cinema americano a defesa da família, a provação para ser líder e toda a violência para realizar essas tarefas. O Predador: A Caçada, dirigido por Dan Trachtenberg, é uma velha trama com inclusão, sem abdicar de toda a violência e patriotismo. As críticas mais reacionárias demonstram, não só o quanto são ignorantes em matéria cinematográfica, como tem uma masculinidade frágil e insegura, podendo se sentir ameaçados por uma personagem de ficção. As críticas mais progressistas demonstram como as pautas inclusivas e de representatividade são facilmente cooptadas pelo sistema, podendo muitas vezes servir a propósitos conservadores.
Como todo filme da saga, o monstro alienígena chega à terra buscando caçadores, ele quer animais ou homens do topo da cadeia alimentar. Não quer coelhos, mas lobos, ursos, guerreiros e soldados. Em sua sede por enfrentar o inimigo mais forte, ele acaba se descuidando, expondo suas fraquezas e superestimando seus adversários. A cultura do streaming pode deixar-nos desatentos, mas é preciso lembrar, não éramos os mesmo há 300 anos, nem os aliens. Predador de Amber Midthunder (Naru) tem um atraso tecnológico de 300 anos do alien de Arnold Schwarzenegger e Andreu Brody, talvez seja apenas a primeira incursão em nosso planeta.
Esse atraso na tecnologia é uma desvantagem muito maior para os humanos. Os aliens têm radar, visão de calor e podem ficar invisíveis, enquanto a única arma de fogo da humanidade demora tanto para ser engatilhada, que é preferível utilizar um arco e flecha. Essa desvantagem aparente, essa desigualdade frustrada em cada plano de luta entre o predador e os comanches e franceses é a vantagem de Naru.
Ela não era mais forte, nem a melhor, mas a mais inteligente. Não tinha músculos, nem era uma boina verde, mas como Schwarzenegger foi a inteligência que derrotou o monstro. É muito interessante como, cada detalhe do filme é somado para a conclusão final. Como todas as quedas, erros e fracassos são superados e tomados como lição da personagem.
O roteiro valoriza a tecnologia primitiva, aqui não me compreendam mal, por primitivo entendo aquilo mais próximo a natureza, livre da artificialidade da fabricação industrial. Ou seja, as armas não produzem o melhor soldado, mas sim seu conhecimento sobre o inimigo e sua capacidade de improvisar. É a inteligência de Naru, junto com a sua coragem e persistência os grandes motivadores da personagem e do roteiro. A cena em que seu irmão acerta uma águia com a flecha, ilustra isso, assim como quando eles enfrentam o puma, nos dois casos ela não é a melhor, mas aos poucos se prova.
Li um texto na Cahiers Du Cinéma (Chute Libre n:388, 1986), acusando os diretores americanos de utilizar a inclusão apenas como uma forma de vender a mesma história. Mudavam as cores dos personagens, mas mantinham o tom belicista, os valores americanos e o tom patriótico. Aqui, alguns detalhes ficam evidentes, primeiro, eles estão nos Estados Unidos. Os invasores não são ingleses, mas franceses. Os americanos, excluídos por uma comanche encarnar a personagem principal, estão autorizados a se identificar com a nativa americana quando o inimigo é um estrangeiro não fala inglês. Segundo, a luta poderia ser sobre muita coisa, mas a provação de Naru, seja o inimigo um Alien ou um Francês, é para defender seu território, sua família e sua nacionalidade. Apesar de inclusivo, o filme mantém a narrativa americanizada de sempre.
É como um agente 007 negro, não muda a origem imperialista do personagem. Um agente negro continuaria sendo um soldado da monarquia inglesa, um agente do capitalismo, inimigo da libertação dos povos. Para ele representar algo revolucionário, não apenas inclusivo, talvez fosse necessário romper com a agência e tomar parte de algum país ou povo oprimido. Ao invés de Naru lutar contra os aliens, ela não poderia se unir a eles e expulsar os colonizadores? Quem sabe, as narrativas poderiam ser diferentes, mas enquanto nos ativermos muito as aparências e pouco a forma, nada vai mudar.
This Much I Know to Be True – Crítica O sentimento religioso sempre me pareceu algo melancólico, um misto de tristeza pela finitude da vida e uma busca por amparo pelos acasos inexplicáveis. Queremos ser aliviados da dor, da morte, mas principalmente, queremos acreditar. É o conflito dos nossos desejos e de nossa esperança com a realidade, a razão da melancolia. É entender a necessidade de mudar, mas não se sentir feliz. This Much I Know to Be True, novo documentário sobre Nick Cave, trata sobre isso com belas músicas, muitas reflexões e um espetáculo de filmagem.
Os primeiros minutos do filme são Cave mostrando seu trabalho como ceramista. Ele apresenta uma série de estatuetas sobre a vida e a morte do diabo. Essa parte do filme parece grotesca, destoante de toda a mensagem do personagem principal. Entendemos o ponto de vista, quando refletimos sobre como ele apresentou o diabo. Cave deu uma versão humana a um personagem bíblico, tornou-o homem, ao nascer, combater, amar e morrer. Na história da cerâmica, Lúcifer sente dor, sofre e se apaixona. O diabo está vulnerável, como eu e você, vulnerável à vida e ao sofrimento.
É difícil assistir ao filme e não pensar nas tragédias pelo qual o músico passou. A cada cena e conversa ficamos pensando em como a vida de Cave parece ter sido trágica. Podemos ser diferentes nas forma como compreendemos o mundo e como vivemos, mas somos iguais em nosso sofrimento. A dor pode não ser igual, mas todos a sentimos. O sofrimento nos conecta. Todos estamos em busca de um sentido, em busca de algo para nos confortar. Essa me parece a mensagem central para a arte de Nick Cave, o amor pela vida. Não o amor em um sentido de êxtase, mas a forma contemplativa.
O documentário não é um show, está mais próximo a um clipe, em sua estrutura. Local fechado, sem público e com total liberdade das câmeras. Algo essencialmente simples. Poderia ser só mais um vídeo de uma banda, mas não é. O diretor australiano Andrew Dominik, torna o filme uma obra sublime. Cave e os músicos no centro do palco, as câmeras ao seu redor, nunca acima ou abaixo, parecem deslizar em travelling, nos aproximando e afastando. É um movimento bonito, como quando ele começa cantando sozinho e o giro da câmera vai mostrando o restante da banda. As luzes vêm sempre do alto. A iluminação isola os músicos, os torna parte do grupo e junto com as câmeras consegue acentuar ainda mais a atmosfera religiosa.
A melodia de todo o documentário embala essa atmosfera. São músicas com coral, instrumentos clássicos, em um ritmo geralmente lento. É sempre algo para ouvir e meditar. A voz de Cave e a forma como canta parece um sussurro. Ele não grita, sussurra, reflete um tom tranquilo, mas cheio de pesar. Ainda mais melancólico é a aparência do personagem, as sombracelhas e cabelos negros, a voz um pouco rouca. Além disso, a forma como ele conversa, sempre parece estar pensando em cada palavra, quase soletrando, nenhuma resposta é solta. O único momento de descontração em todo o filme é quando Warren Ellis é entrevistado. O único músico a falar, além de Cave. Eles riem, falam dos conflitos dos processos criativos, mas de como gostam de fazer música juntos.
Apesar da melancolia e da tristeza, ninguém parece infeliz no filme. O clima em geral é alegre, mesmo tratando de temas sensíveis. Vemos o semblante triste de Nick Cave, mas ele não parece estar perdido. Contempla a vida, suas incertezas e acasos. Não tem o controle de tudo, mas busca um sentido. Ele ainda é aquela figura gótica, com olhos e cabelos negros e um rosto pontiagudo. Alguém triste, mas com fé no futuro.
O filme de terror Islandês Lamb (Cordeiro, no Brasil), pode suscitar muitos debates relacionados aos humanos ou animais. Mesmo assim, o instinto materno parece ser o tema central. A obra trata da irracionalidade desse sentimento. Amar uma criança é um tipo de amor incondicional, algo imensurável. Perder esse amor, perder um filho é abrir um buraco sem fundo. Isso explica a frieza do casal no início. Quase não há falas, apenas gestos e trabalho. Absorvidos por uma paisagem bucólica, sem contato com ninguém, os dois parecem apenas existir. Tudo muda com a chegada de Ada. O casal parece respirar um pouco. Apesar da metáfora servir, a esposa não pode ser comparada a uma mulher que adota um bichinho. Sem dar spoiler, não houve adoção. A forma como ela adquire a “filha” adotiva é a mais cruel possível. É movida pelo desejo, mas conquistada pelo sangue. O instinto foi mais forte e nada a impediu de ter novamente uma criança. Como disse antes, o filme pode suscitar muitos debates, mas para mim pareceu um horror sobre a maternidade. Não quero dizer que exista algo de horrendo em ser mãe, mas em como esse sentimento, como qualquer outro, pode nos levar a agir como animais. O amor irracional também pode provocar uma vingança ou atitude irracional. Ao fim, Lamb é um terror dedicado ao estranhamento, não levará susto, nem ficará sem dormir, mas possivelmente irá pensar muito sobre toda a trama.
Ridley Scott culpou a geração millennial pelo fracasso de seu último filme, Último Duelo (2021). A obra conta uma história sobre três pontos de vista, apesar de convergirem em alguns pontos, elas divergem no essencial, o motivo do duelo. O longa-metragem com cerca de 2h30min exige do espectador. Não é um filme para ser visto, enquanto mexe no celular, almoça ou conversa com os amigos. O olhar precisa de um pouco de atenção. Lembrou muito Rashomon (1950) de Akira Kurosawa. Como no filme do mestre japonês, o importante aqui não é a verdade, mas como os personagens descrevem a história, como eles parecem diferentes aos olhos dos outros e aos seus próprios olhos. Como creem ser vistos como heróis, teimosos ou tolos. Os três personagens principais, interpretados por Matt Damon, Adam Driver e Jodie Comer são obrigados a mostrar três faces. Três atuações diferentes em um mesmo personagem. Enfim, o filme não é ruim, mas foi um fracasso de bilheteria. Lembro da revolta dos fãs com a forma que a primeira temporada de The Witcher (Netflix) foi gravada. Ela não era linear, isso não atrapalhou a história, nem confundiu, mas novamente, não era um olhar preguiçoso. Em uma obra voltada para o entretenimento, ousadias de linguagem podem não ser compreendidas. Triste, pois esse comportamento deixa as produtoras receosas de financiar experimentos e aumenta o controle para tudo ser uma novela mastigada, igual os filmes da Marvel. Scott não tem razão em culpar uma geração, mas tem razão em notar como o cinema, audiovisual e o mundo estão mudando.
Titane não é um filme para estômagos fracos. Quem não aguenta violência explícita, nem cenas de dor e agonia, deve passar longe. Agora, caso você goste de cinema, não apenas de um gênero ou filme, mas da arte cinematográfica em todas suas expressões, recomendo assistir. O filme conta a história de Alexia, uma dançarina de eventos automotivos. A personagem vive em constante asfixia social, tudo ao seu redor parece empurrá-la para respostas violentas. Em um primeiro momento tememos pelos outros, mas após o roteiro respirar as mortes, sentimos pena. É interessante como a diretora Julia Docurnau, nos conduz de várias cenas com mortes violentas, até um momento de aparente tranquilidade. A virada, ou plot, como preferirem, ocorre quando Alexia resolve fingir ser o filho desaparecido do capitao dos bombeiros.No começo, tememos pela vida do militar, mas após alguns minutos vemos, como duas almas desesperadas, agoniadas, parecem encontrar um momento de apoio. De como o impulso destrutivo de Alexia encontra um escape mais “sadio”. Essa mudança de ritmo muda totalmente nosso olhar. No corpo de bombeiros, temos um ambiente masculino, machista, com uma certa homoafetividade velada. Homens se adoram e disputam a atenção do capitão. Alexia, agora Adrien, destoa desse ambiente, seu corpo andrógino, causa repulsa. Um ser afeminado, no meio de toda a força masculina. Essa “fraqueza” a liga ao chefe dos bombeiros, pois ele, no auge da idade, não tem mais a força da juventude. Os dois se agarram e, numa relação extremamente doentia, encontram algum conforto, mesmo sendo mínimo. É um filme para ver e rever. Lembrei de Cronenberg, Lynch e outros cineastas ao assistir. Uma obra estranha de uma diretora com grande potencial.
Finalmente vi Matrix 4. Gostei muito do filme e acho que me reconciliei com as Wachowski. Apesar da arte ser polissêmica, o leque do que podemos entender e interpretar é limitado. O filme pode ser utilizado para instigar inúmeros debates, mas uma análise mais cirúrgica revela essas limitações. É importante entender que, diferente da literatura onde somos instigados a imaginar, no cinema somos mais passivos, tudo está pronto diante de nossos olhos, apenas absorvemos. Matrix é um filme da minha adolescência, algo que vi e revi várias vezes. Assisti o 2 e 3, no cinema. Achava engraçado o quanto as interpretações dos meus amigos se contradiziam. Há um tempo li um texto da BBC Brasil (link aqui), o autor, Nicholas Barber, acusava o filme de ter envelhecido mal, talvez a melhor crítica que li. O texto fala sobre como os efeitos revolucionários, não eram condizentes com o herói antiquado. O quanto Neo está agoniado com a vida no escritório e toda a falta de perspectiva. Aqui onde discordo do autor. É algo que demoramos para entender e só faz sentido, após décadas. Há alguns anos, toda a ideologia do filme tem sido utilizada de forma equivocada pela direita norte-americana. Matrix ajuda a fomentar teorias da conspiração que cabem muito bem no discurso da direita mais tresloucada, do tipo Trump e Bolsonaro. Foi então que as irmãs Wachowski disseram que a obra trata sobre transição de gênero. Pensando sobre o primeiro filme, a discussão parece extremamente lógica. É onde a agonia, insatisfação, insônia de Neo faz todo o sentido e a crítica de Barber desanda. A frustração ainda tem classe e não é a proletária, não tem viés político, mas existencial. Para delírio dos conservadores, as irmãs Wachowski utilizaram a mitologia cristã em um subtexto trans. Isso está claro quando observamos o crescimento dos poderes de Neo. Isso ocorre quando ele passa a ter fé, mas também a se adaptar ao novo corpo. Conforme sua mente e corpo estão harmonizados mais perto ele está do seu potencial máximo, como escolhido. Chegamos assim, em Matrix 4. Toda a fala autorreferencial no filme, pode ser encarada como ironia, mas também pode ser levada a sério. As pessoas sempre se esforçaram para ver em Matrix uma revolução dos oprimidos, quando na verdade temos algo mais espiritual. Ninguém destruiu o mundo das máquinas, nem fugiu da realidade virtual, alguns preferiram coexistir. Existe alienação total do mundo, mas também existe quem mantém vínculos com os dois lados. Nenhuma ideia está solta ao vento. Tudo está muito bem conectado. A mudança de alguns personagens, como Morpheus, faz todo o sentido quando pensamos nos filmes anteriores não como a realidade, mas como a história contada. Logo, com exceção de Neo e Trinity, ninguém era como realmente dizem ser. Apesar das críticas, o roteiro está bem explicado e novamente Neo parece perdido, todas pílulas, toda a terapia e o trabalho são formas de o manterem alienado. Querem domesticá-lo, utilizar sua energia. Faz sentido, mesmo recobrando a consciência, ele não ter o domínio total dos poderes, pois bagunçaram sua mente e corpo por décadas. Trinity é quem parece mexer com ele, quem o parece deixar deslocado. Afinal, todos lhe dizem que não há nada de errado, apenas a imagem da mulher que amou e seus sentimentos dizem o contrário. É aqui, que Matrix mantém uma narrativa conservadora. Não é a opressão das máquinas, nem o grau de alienação o motivo do despertar, mas o amor e a fé de Trinity. Neo nunca acreditou ser ele o escolhido, mas ela sim, ela tinha fé. Diferente do primeiro filme, aqui não existe uma promessa de revolução, nem uma mudança radical, mas uma coexistência, uma crença na conversão do outro, mesmo que esse convencimento seja a base da porrada. Apesar das lutas não serem tão boas quanto as antigas, a obra tem força, não como original, mas como o capítulo final de uma história. O filme é um conto, sobre como tudo terminou. Matrix 3 deixa pontas soltas, o 4 encerrou a história.
Maligno é raso, extremamente conservador e superficial. Não entendo toda a animação com James Wan. O terror em Wan, adota a trilha e o susto como motor principal para criar um clima "terror". São os famosos filmes montanha russa, levam você ao alto clímax para te assustar com a descida abrupta. Os personagens são simplificados, bem e mal são suas principais motivações. O motivo da personagem principal passar por todos os perrengues é por ela ter sido fruto de um pecado, produto de uma violência familiar. É quase bíblico, quem não segue meus ensinamentos será alvo do mal. Não há problema em adotar uma perspectiva conservadora em uma obra de arte, mas é um problema em afirmar essa perspectiva, pois cai em uma propaganda. A arte deve revelar as contradições do ser. Em maligno não existe contradições, tudo é moralmente encaixado dentro da moral cristã. Os filmes de Wan poderiam fazer parte de um cineclube evangélico, tranquilo.
Invocação do Mal é terrivelmente cristão. Não tem nada errado com isso, Hitchcock também era. O problema é o maniqueísmo, o quanto às explicações do roteiro são rasas, sem muitas contradições. Toda a mitologia católica é correta, assim como a inquisição. As bruxas eram malvadas servas de satã e a igreja católica é o maior front contra lucifer e seus servos. O novo filme, trata sobre a força do amor e da fé em vencer o mal. Apesar disso, o filme trata mais em provocar o terror, ao invés de assustar. A obra coloca os personagens em perigo, cria as ameaças, questiona a força dos personagens, ao invés de ficar assustando a cada cena. Não é um filme montanha russa, onde uma subida cria um alívio para em seguida assustar o espectador. Isso explica o motivo de fãs do original não estarem satisfeitos. No mais, acredito ser o único filme realmente bom de toda a saga do casal Warren.
Se pudesse resumir Marighela em uma palavra, após assistir o filme de Wagner Moura, eu diria coragem. O militante comunista, deputado, poeta e revolucionário não tinha medo. Mesmo ameaçado de tortura e da morte, privado do convívio com o filho, ele não desistiu. O filme recorta um período, do golpe ao assassinato. Vemos ele roubando trem, banco, ocupando as rádios. É uma obra para iniciados, um filme para quem deseja conhecer sobre os crimes da ditadura e luta armada, mas não sei se convence o público. A cena inicial, como a final, mostram as armas, mas nenhuma cena no filme é digna de uma ação de tiros, como tropa de elite. Uma pena, pois o filme quer construir a memória de um herói. Algo estranho é a roda de conversa, o filme se passa em grupos conversando, discutindo em planos próximos. Não existe o partido, nem um coletivo. As decisões são tomadas pelo carisma de Branco e Preto. As locações são em apartamentos, estacionamento, sempre em lugares fechados, como os planos nas conversas com os personagens. Essa ponto de vista é semelhante a estética da novela, um lugar comum ao cineasta. A obra mistura o que é isso companheiro com batismo de sangue. Ao fim, a obra satisfaz os iniciados, mas não e sei se satisfaz o público em geral.
Ninguém nunca saberá com exatidão o teor da conversa de Muhammad Ali, Malcolm X, Jim Brown e Sam Cooke, em uma Noite em Miami, após a vitória de Ali pelo campeonato mundial de Boxe. Podemos imaginar, mas nunca teremos certeza. Isso torna o filme tão importante, tão bonito em tentar imaginar, em ver esses grandes homens como humanos. Como Ali, ainda Cassius poderia ser inseguro, escondido atrás da arrogância e de um ego enorme. Como Malcolm tinha medo de morrer sem conseguir completar sua missão. Como Jim se sentia mal em ser apenas um gladiador, em não ser reconhecido como uma pessoa. Ou Cooke ter raiva por não ter composto a música de Bob Dylan. É uma noite cheia de brigas, conciliações e risadas. É um encontro daqueles qual imaginamos a vida toda, de como seria juntar várias personalidades históricas para conversar. A Diretora Regina King e o roterista Kemp Powers nos mostram e nos fazem sentir como parte da conversa.
Um grande filme, uma obra com um valor histórico e artístico imenso. Para contar a história da ditadura o autor utiliza o mito da Maldição da Mulher que Chora. Fala sobre o genocídio, hipocrisia religiosa, crítica a família burguesa. Mas não vá com sede ao pote se você gosta de filmes de susto, não espere embarcar em um trem fantasma como nos filmes de James Wan. Aqui é a realidade é mais cruel das fantasias. O terror é provocado pelo suspense, pela crueldade, pela fragilidade e por um sensação eterna de impunidade diante das justiças. Jayro Bustamante é um grande diretor, espero ainda ver muito de seus filmes.
O Primeiro Dia da Minha Vida
3.3 8O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA — 2024 — CRÍTICA
Conheço pouco sobre as culturas onde terminar com a própria vida é algo aceitável, mesmo assim, quando isso ocorre, a ação precisa de um contexto. Nos filmes medievais japoneses, conhecemos o ritual do Seppuku ou Haraquiri, quando os samurais, diante de uma desonra, encontravam na morte uma forma de perdão ou provação do seu valor. É a lembrança mais clara que tenho sobre uma cultura aceitar esse ato, mas mesmo assim, como observamos, a permissão está restrita a uma categoria de guerreiros.
Na civilização ocidental a prática é condenada, mal vista, muito pela influência religiosa cristã em nossa cultura. O ato pode ser visto de inúmeras maneiras, mas majoritariamente de forma negativa e cheios de tabus. O filme do cineasta Paolo Genovese trata sobre isso, entre todas as formas nas quais poderíamos pensar no destino de quem põe fim à própria vida, a proposta de Genovese é, talvez, a mais otimista. Sem vínculo a um deus ou a uma religião, sem relação alguma com pecado, com a única preocupação em entender quem decide deixar o palco mais cedo. O cineasta nos fala da dor, da vontade e da necessidade de empatia com quem sofre dessa vontade.
O roteiro assinado por Genovese, Isabella Aguilar, Paolo Costella e Rolando Ravello é baseado no livro de autoria do próprio diretor. A trama se passa em Roma e tem um personagem misterioso, interpretado por Toni Servillo. Ele reúne quatro pessoas que não se conhecem. Inicialmente, nas primeiras cenas e com a chuva, pensei ser um filme sobre máfia, algo assim, mas tudo vai ficando estranho e demoramos um pouco para perceber onde os personagens realmente estão e qual a temática do filme.
Apesar de estarem mortos, não existe nenhuma referência explícita de imediato. Os espaços são todos de uma cidade: ruas, o hotel, auditório, bares e o cinema abandonado são parte de um cenário urbano. Caberia aqui uma ironia? Não sei, acredito que o sentido esteja melhor interligado com o destino dos personagens, quem fica entre os vivos? Aqueles que não morreram naturalmente. Essa escolha dos ambientes aparenta uma certa frieza, mas é uma forma não religiosa de construir o pós-vida. Apesar de em uma cena vemos uma igreja, a religião aqui é inexistente.
Os cenários preenchem o filme de realismo. A parte da conciliação do grupo, ao se prepararem para o desfecho, ocorre em um almoço, em uma casa próxima à praia. Um ambiente diferente para não vivos decidirem sobre continuar ou não a viver. O único momento, “mágico” é com Daniele (Gabriele Cristini, de 12 anos), o restante das cenas, apesar da estranheza da situação e do fato deles serem invisíveis, não possuem nenhuma ação “sobrenatural”.
O personagem misterioso de Sevillo é um terapeuta do “além”, não um barqueiro da morte. Ele tenta ajudar Arianna (Margherita Buy) a viver o luto e a ver a filha, nos momentos e nos lugares quais ela viveu. Para Emília (Sara Serraiocco) ele pede uma segunda chance, tenta ajudá-la a recuperar a sua autoconfiança e parar de se esconder. Napoleone (Valerio Mastandrea) um coach motivador que não consegue mais se motivar, ele tenta mostrar um sentido.
Eles precisam estar entre os vivos, pois assim podem refletir sobre o quanto o ato, mesmo compreensível, representa uma perda enorme para muitas pessoas e para eles mesmos. Logo, cada personagem carrega uma dor ou angústia de nossa atual sociedade. É um filme bonito, sensível, sofre com alguns diálogos longos, mas tem Toni Sevillo, quem segura o leme e sempre nos mostra uma atuação excelente. Diferente de muitos atores, ele possui várias faces, encarna diferente corpos e gostamos de todos.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Moneyboys
3.4 11MONEYBOYS— 2023 — CRÍTICA
Fei (Ko Chen-Tung) quer proteger o primo, por isso o afasta, não o quer envolvido em suas atividades. Difícil convencê-lo, pois as opções não são nada atraentes, além de muito mais restritas e penosas. Não importa o quanto criminosa e ilegal seja o estilo de vida de Fei, entre trabalhar 12 horas por dia em uma fábrica e ser um garoto de programa, não existem dúvidas sobre qual é a melhor opção. Diante da vista da cidade, no jardim da varanda de Fei, Long (Yufan Bai), observa como tudo é limpo e bonito e toma a decisão definitiva. Os dois trabalhos exploram seu corpo, a diferença é que se prostituindo ele não dorme em um colchão duro, nem trabalha em um lugar sujo. O menino pobre da na zona rural da Taiwan, elege a opção que privilegia a vista diante de seus olhos.
Me incomodou um pouco, esse aparente encanto da prostituição, mas conforme acompanhamos Fei, em sua jornada pela sobrevivência, o encanto parece perder cada vez mais o brilho. Pouco a pouco conhecemos a realidade dos “moneyboys”, homens jovens que se prostituem para outros homens. Fiquei pensando enquanto lugares do mundo, a homossexualidade ainda é crime. Na situação apresentada no filme, a prostituição parece como um meio de fugir da vida miserável do interior, mas também permite aos personagens viverem suas sexualidades. A cena no bar, quando conversam sobre os motivos de não voltarem para casa ou como, ao voltar, mentem sobre sua vida na cidade, demonstra a angústia sofrida pelos personagens.
Existe também uma oposição entre os espaços, enquanto todo o apartamento e lugares frequentados por Fei e Long são limpos e bem iluminados, a vila e os lugares fora do ambiente da prostituição é suja. Não me parece existir um julgamento moral por parte do cineasta, em colocar a prostituição como limpo, mas condenável, pois lhe deixa sujo internamente. A proposta dessa oposição entre ambientes está mais conectada à necessidade de fuga, encontrar esses lugares pobres e sujos, reforça os sentimentos dos personagens pela necessidade de fugir.
Gosto de como a fotografia coloca nossos olhos em posição de esperar a saída ou entrada no quadro, de como a câmera parada, em ângulos normais ou na altura da cintura, nos provoca uma expectativa. De como o personagem principal, com poucas falas, em alguns momentos não está centralizado e de como nossa atenção é desviada à medida que os personagens se movimentam no quadro. As cenas com os personagens de costas são muito interessantes para observar como nossa atenção percebe o personagem, mas acompanha a ação ao redor.
O filme, dirigido e roteirizado por C.B. Yi, ao fim, trata sobre a jornada de Fei, entre duas paixões, entre a aceitação da família, que vive de seu dinheiro, mas não apoia seu modo de vida. O grande ponto da obra está na montagem, que desde início faz recortes e deixa situações subentendidas. Não responde todas as perguntas, mas estimula nossa curiosidade. Os primeiros momentos unem as sequências, como a nossa memória, espaçadamente, o vínculo entre elas é o personagem, não temos nada esclarecido, quando anos se passam. Isso nos deixa um pouco confusos, pois tudo parece estar acelerado na vida de Fei. No segundo ato, tudo se torna mais tranquilo, o tempo não tem saltos e ele é confrontado com seu passado e presente. Tudo, em uma história cheia de corações partidos de jovens sem perspectivas de uma mudança em suas vidas.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
As Bestas
3.9 50 Assista AgoraAS BESTAS — 2024 — CRÍTICA
O grande motivador dos personagens, no filme, são seus interesses econômicos. Não importa como eles o apresentam, pode ser um projeto cheio de sonhos e sentimentos ou apenas uma fuga de uma vida miserável. O motivador do conflito é o desejo de uma vida melhor. Sem consciência disso, eles encarnam os interesses estrangeiros e representam a transformação capitalista da vila. Os noruegueses, ao construir turbinas eólicas para gerar energia limpa para o desenvolvimento sustentável e econômico, expulsam os moradores por uns trocados e os forçam ao êxodo rural. Os franceses enxergam o lugar como um paraíso a ser preservado, criam uma horta agroecológica e compram casas, as reformam e pretendem atrair novos moradores. Um projeto de gentrificação. As duas propostas invisibilizam o modo de vida dos moradores originais.
Nosso olhar tende a ser mais simpático ao casal francês Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs), os personagens escolhidos pelo cineasta Rodrigo Sorogoyen para contar a história. Isso torna os irmãos Anta (Luis Zahera e Diego Anido) vilões? Talvez, tudo depende da nossa perspectiva ao observar. Todas as ações cometidas por eles não são fruto de uma personalidade perversa, mas da corrupção econômica e a cobiça por uma vida melhor. Esse pensamento é expresso pelo irmão mais velho a Antoine, no bar, “não sabíamos que eramos miseráveis, até nos mostrarem o quanto somos”. Todo o sentimento de xenofobia, todo o ódio, toda a sabotagem feita contra o casal estrangeiro é motivada por eles impedirem a vila de ser transformada em um campo de energia eólica. Enquanto os dois fedem a merda de vaca, o casal, vizinho de porta, exibe sua prosperidade.
Isso torna a convivência mais insuportável, não há como eles se esconderem ou se ignorarem. A vila é pequena, todos se conhecem, vão nos mesmos lugares. Querendo ou não, acabam se esbarrando, apenas o caminhar na rua pode ser tomado por um dos lados, como uma provocação. O Bar é o espaço onde as tensões são elevadas, onde os personagens anunciam os próximos conflitos. O irmão mais velho está sempre sentado na mesa de dominó, no centro do nosso olhar e com todos os personagens voltados para ele, com exceção de Antoine, sempre no balcão de costas para nós e para os personagens. Temos uma mudança, quando senta na mesa do jogo e quando confronta os irmãos. O vemos de frente então, do lado direito do balcão, enquanto os irmãos do lado esquerdo. O convite para beber os retira do seu lugar habitual, muda nosso ponto de vista, os coloca no lugar escolhido por Antoine, que tem uma postura amigável e complacente. Diferente do irmão mais velho, quando em um momento vira de costas, demonstrando a recusa em entender e aceitar as motivações do vizinho.
Além do espaço, observamos como os elementos de cena são importantes para marcar determinadas ações, atitudes ou traços de personalidade. Quando o vizinho, que é amigo, chega para fazer uma entrega, os dois estão trabalhando, Olga o convida para tomar um café e oferece ao marido, que nega. Aqui ele não aceita por querer terminar o trabalho, por estar absorvido pelo cuidado da horta. Em outro momento, quando o sobrinho do vizinho vem os convencer a aceitar a proposta de venda, a mulher lhe entrega um café, enquanto Antoine novamente o nega. Dessa vez por não querer perder tempo com uma discussão resolvida para ele. O único momento em que vemos tomando café é quando acorda pela manhã. Uma característica curiosa é Olga sempre estar lendo, apesar de Antoine se arrogar ser mais inteligente e superior, ela é quem parece ser dedicada ao estudo. Em compensação, quando ela assume o lugar do marido, não a vemos mais com livros.
Além do livro e do café, podemos destacar o papel de dois objetos, a arma e câmera. Os dois não cumprem o papel para qual deveriam ser utilizados, mas reforçam os sentimentos e sensações de cada ação. A câmera, durante todo o tempo, age como um escudo para Antoine, enquanto a arma ostenta o perigo dos irmãos Anta. O fato de não terem servido aos fins originais, não invalida os dois objetos na progressão da narrativa. Eles adquirem importância no roteiro, escrito por Sorogoyen em conjunto com Isabel Peña, justamente por não servirem de maneira óbvia a resolução dos problemas.
Por fugir das soluções simples e óbvias, o filme consegue nos despertar o interessante. Nunca vemos indícios de culpa dos vizinhos pelas sabotagens, vemos as provocações, os enfrentamentos, mas não os vemos escondidos planejando envenenar a água ou mijar na cadeira. Tudo indica a culpa dos dois, mas não se tem provas. Essa forma de contar a história nos coloca em uma posição de ver apenas aquilo que Olga e Antoine veem, apenas aquilo que os personagens principais enxergam. Isso explica vermos os irmãos distantes do ponto de vista do casal.
Essa forma de filmar não muda quando Olga assume o papel do marido. Durante toda a primeira parte do filme é uma mulher calada, lê e o ajuda nos afazeres do sítio, faz comentários, mas não tem protagonismo algum nas disputas. Ao assumir as rédeas do local é absorvida pelo trabalho e pelo desejo de justiça, passa os dias atrás de pistas para incriminar os vizinhos e de dos cuidados com os animais, plantas e a feira. O olhar agora é dividido com a filha. Essa parte, torna os irmãos ainda mais ameaçadores, ainda mais bestas, pois a figura masculina parecia fazer frente a ameaça, agora duas mulheres parecem presas nas garras de predadores. Um sentimento que acaba sendo frustrado, pois Olga não só se mostra forte, como se mostra mais inteligente.
Ao fim, temos uma obra construída de uma forma a nos despertar vários questionamentos, a nos suscitar vários sentimentos, mas não se preocupar em nos dar certeza de nada, a não ser da força e da coragem das mulheres.
Filme visto na Cabine de Imprensa, estreia dia 25 de janeiro nos cinemas. Vencedor do prêmio Cesar e selecionado para Cannes, em 2023.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
O Desafio de Marguerite
3.4 7 Assista AgoraEnxergar a poesia nos números não é um absurdo ou uma novidade. A proporção áurea, está aí há “bastante tempo”. A matemática exerce seu papel na arte e está presente na pintura, na fotografia, na música e no cinema. Existe uma beleza nas fórmulas escritas com giz no quadro, como uma poética na explicação das equações. O Desafio de Marguerite, dirigido por Anna Novion, nos apresenta essa perspectiva, do ponto de vista de uma mulher, uma pesquisadora com uma proposta revolucionária, em um ambiente masculino e hostil.
Apesar do roteiro perseguir as descobertas de Marguerite Hoffmann (Ella Rumpf), o filme não depende de nenhuma resolução matemática para ser fruído. Seria interessante ler uma crítica envolvendo o cinema e as discussões matemáticas, não tenho essa propriedade, então me concentro nas discussões sobre a arte, mas fica aqui a sugestão.
O longa-metragem de Novion conta a história de Margarite Hoffmann, uma brilhante pesquisadora da École Normale Supérieure (ENS). A única mulher da turma, talvez do curso, enfrenta dificuldades com o orientador. Apesar de confiar nela, não lhe concede a devida atenção, nem a trata com respeito. Isso fica claro, quando, ao cometer um erro na apresentação da tese, o professor a culpa.
A primeira percepção ao iniciar o filme é o figurino, usar chinelos, calças largas, cores frias em tons pastéis, reforça a imagem introspectiva da personagem. A roupa de Marguerite transmite sua personalidade, como a forma de seu penteado. Ela parece estar escondida da vida, atrás dos livros e da forma como se veste. O figurino também combina com o ambiente cinza feito de concreto, madeira e vidro da universidade.
Quando ela resolve romper com esse lugar, as mudanças são sutis, mas as percebemos. A personagem não põe um vestido, por exemplo, nem batom, mas constatamos em suas atitudes, como seu figurino e penteado introspectivo concedem lugar a uma nova mulher. Gosto de como a cineasta não impõe um padrão de vestimenta e atitude a personagem. Estar aberta para novas possibilidades, não significar mudar sua essência por completo, mas apenas experimentar coisas novas.
Essa abertura para experimentação está conectada na transição da personagem pelos novos ambientes. Ao tomar a decisão de sair da universidade, a primeira imagem é um plano aberto da cidade. Depois temos o apartamento dividido com uma colega, o shopping, as ruas do bairro, o restaurante chinês. A fotográfica registra sujeira, a multidão, o movimento, algo que não havia nas imagens do seu antigo lugar.
A trilha sonora, composta por Pascal Bideau, marca as mudanças da personagem, em cada momento de superação, desafio, escolha ou passagem, temos a iluminação azul e uma trilha eletrônica com um coro. Parece algo religioso. O sentimento transmitido é de libertação, como se distante da universidade e do controle da mãe, Marguerite finalmente estivesse vivendo por suas próprias escolhas.
Tratando especificamente dessas escolhas, acredito na importância do filme para suscitar discussões importantes sobre o ambiente acadêmico. Em como em determinados momentos a burocracia e o estrelismo, como as vaidades de determinados acadêmicos, desmotivam pesquisadores iniciantes. Também existe o problema do machismo, das discussões sobre o lugar da mulher no ambiente acadêmico e como é difícil sobreviver em profissões e cursos dominados por homens.
Fico em dúvida sobre o final, pois me parece apontar para uma conciliação. Agora, mesmo conciliando com o professor e com o ambiente acadêmico, Marguerite não é mais a mesma, nem estará disposta a aceitar tudo, sem questionar. Ao sair da universidade, a jovem pesquisadora conseguiu encontrar uma solução para sua tese, mas também crescer e encontrar um lugar no mundo real.
Vencedor do prêmio de melhor Direção de Arte em Cannes, em 2023.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite ou “Juan Diego” é crítico de cinema e trotskysta
Nostalgia
3.3 12 Assista AgoraNOSTALGIA (2023) – CRÍTICA
Nas primeiras cenas do filme não sabemos ao certo quem é Felice, interpretado por Pierfrancesco Favino. No avião ele fala árabe, no restaurante, enrola no italiano. Parece um estrangeiro, um turista. Quando caminha pela cidade, possui um olhar de melancolia, mas também de deslumbramento. Olhar transmitido pela fotografia da obra, ao registrar todos os cenários e espaços onde o filme acontece. Ao visitar a casa da mãe, caminhar pela cidade ou ir à igreja, tudo parece novo, mas, ao mesmo tempo, familiar.
É um sentimento despertado pelo encontro do personagem com a cidade, um misto de surpresa e reconhecimento. Notamos essa sensação, quando observamos o caminhar de Felice, um passo tranquilo, de quem observa tudo ao redor e parece contemplar a paisagem e as pessoas. Como ele transita pelas ruas, destaca sempre a arquitetura do lugar, as ruas estreitas e os vizinhos nas janelas, parece mostrar o bairro como um labirinto. A fotografia, em algumas cenas, o encaixa no centro da imagem, destacando a relação dele com o ambiente. Ao mesmo tempo, busca registrar o ponto de vista do personagem sobre cada região.
Eu gosto do tratamento dado à memória, de como as cenas antigas aparecem em um quadro reduzido na tela, em uma imagem semelhante a Super 8. Esse tem sido um procedimento muito utilizado pelas produções audiovisuais, em registrar as lembranças ou o passado com outro tipo de formato, como as produções da HBO usam imagem em VHS, com granulações. Um recurso que antes era muito utilizado com a imagem preto e branco.
Não sei se todos sentem isso, mas para mim, durante todo o filme, Felice pareceu buscar um lugar na comunidade, tentar novamente se colocar ao lado das pessoas e do lugar que ele abandonou. O problema é o conflito gerado por esse desejo, como disse antes, apesar de ter nascido em Nápoles, a cidade não é mais a mesma e ele está mais próximo a um estrangeiro, que um morador local.
É bonito notar, como a casa alugada por ele possui uma iluminação muito diferente do restante da cidade, onde os dias parecem sempre nublados e cinzas. O ambiente é mais claro em algumas ligações da esposa também. Apesar de várias cenas serem de dia ou pela manhã, a cidade passa uma impressão de estar suja e escura, um tom de tristeza, como na casa onde a mãe morava e bem diferente dos dois ambientes citados.
É curioso, como todos tentam convencê-lo a ir embora, como ninguém parece ver motivo para ele ficar na cidade. Quando Rafaelle, Aniello Mascia, o aconselha a retornar ao Cairo e desistir de procurar o amigo, ele contesta em árabe. Novamente, não sei se todos notaram isso, mas gosto de como ele, nos 40 anos que ficou fora, parece ter adotado uma nova identidade. Não só fala árabe, mas também é muçulmano. Tem uma esposa e uma empresa em outro país, qual motivo para ficar em uma cidade, sem nenhum parente ou amigo? Apenas o sentimento de nostalgia…
Esse sentimento me parece extremamente conservador, mas, ao mesmo tempo, ilusório. Retornar às suas raízes tem um preço. Olhamos para o passado como se algum dia houvesse uma época ideal, como se tudo fosse melhor antigamente. Quando ele fala para a esposa que tudo está igual, tenho a impressão de falar mais sobre seu desejo, sobre a projeção de seus sentimentos em relação à cidade, do que do próprio lugar.
Filme dirigido por Mário Martone, ovacionado em Cannes.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Filmes visto na Cabine de Imprensa.
Golda: A Mulher De Uma Nação
3.0 60GOLDA – A MULHER DE UMA NAÇÃO (2023) – CRÍTICA
A busca pelo sublime, talvez seja a melhor definição para a forma estética do filme . Toda a fotografia, atuação, trilha vão na direção de elevar a personagem para uma posição grandiosa. Mesmo quando colocada em situação de fragilidade, quando enfrenta o julgamento ou quando passa pelo tratamento de saúde, Golda, interpretada por Helen Mirren, ainda é fotografada em uma posição eminente. Sua humildade, o ambiente austero e como a tratam os ministros e generais, serve justamente para colocá-la na posição de messias, ao ser rebaixada é elevada a uma posição mais alta.
A primeira cena transmite a sensação de isolamento. Não vemos ela por completo, mas apenas seus gestos, o olhar melancólico, o cinzeiro cheio, o cigarro aceso, gesto de quem se prepara sozinha. Essa sequência em vários planos decompostos é complementada pelo desfoque das pessoas ao seu redor. A vemos caminhar entre diversos manifestantes, mas não vemos os rostos de ninguém, pois os olhos estão todos nela, a atenção do mundo, os problemas do país, caem sobre os ombros da Primeira Ministra. É a penitência de uma “grande” líder, carregar os problemas da nação e sofrer com isso.
Ela surge sempre caminhando ao centro, as cenas normalmente começam com o andar em frente. Em seguida, temos um plano aberto, no qual vemos todo o espaço ou conjunto, onde os atores entram em cena. Os planos detalhes da personagem acendendo o cigarro ou anotando no caderninho, servem como “pontos finais” das sequências. Temos uma crescente, Golda entra no escritório, senta à mesa e depois acende o cigarro ou anota no caderno. O ritmo do filme é então marcado pelo caminhar apressado de uma líder idosa, pelos gestos meticulosos e por longas reuniões cheias de tensão.
Se os planos detalhes marcam o ponto, a virada das sequências e como as cenas mudam o ritmo, os closes marcam a tensão. O close afirma o desespero, o medo, a perda, e a falta de fôlego. Quando ouvimos os soldados sendo massacrados na batalha, vemos os olhos tesos de Golda. Ou quando todos a pressionam por uma decisão, os olhos demonstram o sentimento de estar encurralada.
O sentido dessa fotografia é mostrar uma mente lúcida, em um corpo cansado, em meio a pessoas desorientadas ou abatidas. A visão sublime de Golda está em, mesmo com um linfoma, ela não perde a agilidade, em meio a tantas dificuldades, não descansa, pois sabe a necessidade de lutar. Quando ela recorda de sua infância, ela justifica o esforço feito para liderar o povo judeu, como as ações de guerra.
Reparem, em como ela parece onipotente, mesmo com os conselhos, mesmo com as dúvidas e erros, ela é a única que defende isoladamente a resistência. Golda é mostrada, entre seu colegiado, como Israel é mostrado. Verdade ou não, o filme parece em todo momento afirmar que o povo judeu não pode contar com ninguém, a não ser consigo mesmo. Apenas com ameaças e pressão, os EUA enviou aviões e apoio ao país, mesmo assim, o filme mostra essa ação, como algo tímido.
Esse não é o único paralelo da personagem, com a situação do país. A fumaça do cigarro, em mais de um momento, é referenciada como a fumaça da guerra. Quando uma batalha termina, ela expira a fumaça, como se o fogo das armas tivesse cessado. Toda a luta por se manter firme, lúcida e à frente de seus conselheiros é um paralelo com Israel. Ela e seu país são um corpo estranho, no continente.
As cenas de guerras são mostradas do alto ou relatadas, não temos grandes sequências de ação, o interessante aqui é como o roteiro constrói a moral da guerra. Durante todo o filme, Golda afirma ter errado em não ter começado ou se preparado para a guerra. Yom Kippur era um feriado no país, havia problemas para se preparar, mesmo sabendo da possibilidade do ataque, mas ela não o fez. Ao mesmo tempo, com exceção de uma cena jornalística, inserida no filme, os árabes não existem. O inimigo não tem rosto, nem corpo. Isso simplifica muita coisa, como em justificar o ponto de vista sionista da situação.
É um tanto confuso sobre como a Síria e o Egito, apoiados pelos russos, perdem para Israel sozinha, com apoio tímido dos EUA. O ponto de vista do filme é de erros dos inimigos e uma estratégia certeira de Golda e seus generais. A versão ajuda a construir o argumento de que o caminho para o povo judeu se defender é se preparar sozinho, apesar de existirem aliados, eles devem contar apenas com as próprias forças. Não importa quais guerras devam provocar para firmar suas posições.
Esse discurso delirante não está nas entrelinhas, mas em cada palavra de Golda ao secretário americano ou aos seus generais. Ela afirma mais de uma vez que a força é a única forma de afirmar a existência do Estado de Israel. O filme não toca em como os judeus foram colocados lá, em como Israel se tornou um muro para o ocidente, nem como expulsou os árabes e expande seu território aos custos de vidas palestinas. O filme cita o holocausto, apenas para justificar todas as ações de guerra, crimes e perseguições de Israel.
Ao fim, podemos observar como o longa-metragem dirigido pelo cineasta Guy Nattiv, acontece em grande medida dentro do apartamento, em lugares fechados, salas de reuniões. Não sei ao certo onde ela está, mas parece um abrigo subterrâneo. Os cenários confinam nosso olhar em um ambiente escuro e de cores frias. A única cena iluminada, com o sol entrando pela janela, é quando ela morre e essa cena parece mostrar como a vida da personagem foi construída em cima da morte da paz, ao vermos as dezenas de pássaros mortos. Mesmo aqui, tudo parece justificar as “ações sublimes” da líder sionista.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Um Pouco de Mim, Um Pouco de Nós
3.4 1UM POUCO DE MIM, UM POUCO DE NÓS (2023) - Dir.: André Bushatsky
Uma obra pessoal e descontraída, sobre as vítimas do nazismo, refugiados e a extrema direita no mundo
Gosto de como o cineasta André Bushatsky caminha por Berlim visitando os monumentos e lugares históricos dedicados às vítimas do nazismo. A visitação a esses espaços no presente, em um dia totalmente diferente daqueles do passado, nos obriga a imaginar, por meio dos relatos da guia e das perguntas do cineasta, como tudo aconteceu, como foi o sofrimento daquelas pessoas, quando a barbárie se tornou uma ação política.
O filme pode assim ser resumido em um resgate da memória, mas de uma forma diferente. A preocupação da obra não é apenas manter viva as lembranças das vítimas, mas nos alertar sobre como as ideias que conduziram o nazi-fascismo ainda existem e nos atingem em uma ou outra crise política.
Durante as entrevistas, os idosos, todos com idade muito avançada, mas com uma memória extremamente afiada, mostram relatos de diferentes formas de violência e perseguição. A menina impedida de tocar piano é um exemplo. Todos partem de um lugar diferente para contar suas lembranças, mas em alguns momentos cruzam pelas mesmas palavras, como esconder, fuga, morte e floresta. Achei aterrador o fato de muitos falarem da floresta, como um refúgio, ass pessoas perseguidas pareciam estar condenadas a viver como animais…
A obra, como muitos documentários, tem sua matéria-prima baseada em entrevistas e imagens narradas. Existem cenas de arquivos, mas o grande diferencial está no trabalho com as cenas externas, as imagens dos monumentos de Berlim. Distraí nosso olhar das longas conversas. Infelizmente, não em todo momento, algumas entrevistas são extremamente longas, sem um movimento de câmera, nem plano externo que nos ajude a absorver a informação.
O filme segue um formato de reportagem, como Bushatsky nos guiando entre as entrevistas e as caminhadas por Berlim, nos apresentando as pessoas e os lugares. O jeito espontâneo do cineasta, em tratar os entrevistados, lembra muito as matérias do Fantástico. Ele toma café, come na rua e fala de forma descontraída. Quem gosta desse perfil de matéria, talvez goste do filme.
Quem não gosta, precisa entender a proposta do autor, isso pode não mudar a opinião, mas explica as motivações. Um Pouco de Mim, um Pouco de Nós, trata de um tema relacionado ao cineasta, seus avós fugiram da Áustria e foram refugiados. Apesar de dedicar um longo espaço às lembranças das perseguições nazistas, o filme busca amarrar essa discussão com o tema da extrema-direita, xenofobia e dos refugiados atualmente. Os entrevistados, como Pedro Bial e Mário Sérgio Cortella, o ajudam a costurar os assuntos.
Nesse momento, o filme nos provoca a pensar como, todos nós, fomos ou estamos ligados aos refugiados. Também nos provoca a refletir sobre as ideias da extrema-direita que se alimentam da xenofobia, preconceito e da recusa em aceitar o estrangeiro, da mesma forma como o nazismo fez.
Ao fim temos um filme com um tema bastante sério, mas com um tom descontraído e pessoal. Caso houvesse espaço, a obra caberia muito bem na TV aberta, em um horário livre. O cineasta não tem grandes preocupações estilísticas, mas uma grande preocupação em ouvir histórias, conhecer pessoas, em ser íntimo delas e assim mostrar um pouco de si e pouco de nós.
Filme assistido na cabine de imprensa.
João Diego Leite é Jornalista, Crítico de Cinema e Produtor de Áudio e Vídeo
Mulheres Armadas, Homens na Lata
3.3 9 Assista AgoraMulheres Armadas, Homens na Lata (2023) – Crítica
A frase: a ocasião faz o ladrão, talvez se encaixe bem no roteiro de Mulheres Armadas, Homens na Lata, filme dirigido pelo cineasta francês, Allan Mauduit. Após assassinar acidentalmente o patrão abusivo, as funcionárias encontram uma mala cheia de dinheiro. Com problemas financeiros e precisando desesperadamente pagar as contas, elas decidem ficar com tudo. O problema é quando os mafiosos, donos de toda a grana, resolvem ir atrás delas.
Com personalidades fortes e características marcantes, as três personagens convencem o público pelas atitudes. Sandra (Cécile de France) é extremamente arrogante, cheia de orgulho e com ar superior. Os planos contra-plongée, frisam a intenção de mostrá-la de forma diferente das amigas. Nadine (Yolande Moreau) é uma mãe de família, sustenta a casa, cuida do marido e dos filhos e é quem parece mais comedida na hora de agir. Marilyn (Audrey Lamy) é mãe solteira, impulsiva e violenta, a mais impaciente das três.
As características vão além da personalidade, existe uma forma de agir e de se comportar durante o filme. Nadine anda meio desengonçada, Sandra com ar superior, enquanto Marilyn está sempre acelerada. A combinação das três personagens acaba por desenvolver uma relação extremamente cômica. Lembra muitos os filmes de comédia, com grupos de amigos, onde cada um carrega uma característica pela qual os identificamos.
Apesar de Sandra morar com a mãe, Nadine com a família e Marilyn com o filho. Elas não devem satisfação para ninguém. Todas trabalham na fábrica e isso lhe concede certa autonomia. Mesmo assim, em certos momentos Nadine e Marilyn mostram um certo recorte de classe. Elas parecem mais calejadas pelo tempo como operárias, enquanto Sandra cai de paraquedas nessa vida.
As três destoam muito de todos os homens do filme. Enquanto elas demonstram coragem e ousadia, mesmo com certo improviso. Os homens tropeçam em suas próprias pernas. Apesar da arrogância e força física, os personagens um a um são ludibriados pelas três amigas. É interessante observar esse ponto, os homens durante toda a obra exercem um papel normalmente dados para as mulheres, o de coadjuvante. Quando o marido de Nadine desconfia de seu envolvimento com crime, ele sai de casa com os filhos. Aqui, talvez haja um toque de subversão no roteiro, a inversão de papéis.
Uma pena ficar só aí, existe uma discussão sobre a violência de gênero, Sandra volta a morar com a mãe por ser espancada pelo companheiro. Há também o assédio na fábrica, mães solteiras e todos os problemas sofridos pelas mulheres por serem mulheres. A grande questão é o espectador ser entorpecido pela ação e pela violência e não enxergar esse debate… mas aí, talvez o problema seja eu esperar algo do espectador…
As cenas de violência incomodam pela crueza. Quem é homem vai sentir uma certa agonia na morte do patrão, mesmo ele merecendo o destino. Por outro lado, as cenas contra as mulheres chocam pela covardia, mas isso proporciona uma certa satisfação quando elas se vingam.
Ao fim é um filme que diverte, entretém, mas também propõe algumas discussões em segundo plano. Tudo regado com muito sangue e boas risadas. Uma pena o título não ser Rebeldes, como em francês.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Aftersun
4.1 694Aftersun (2023) – Crítica
Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
O Caso dos Irmãos Naves
4.2 87 Assista AgoraO Caso dos Irmãos Naves (1967) – Crítica
Mesmo se passando no período da ditadura Vargas é difícil assistir ao filme e não relacioná-lo com a ditadura militar. A obra evoca referências em nossa memória. Ao falar de uma injustiça, comenta outras situações e nos provoca a refletir sobre nossa história. É um filme de denúncia, crítica e, talvez, de reparação. Mostra como uma obra de arte e o cinema produzem metáforas e mitos, que nos ajudam a entender e a explicar nossa história.
A trama se passa em Araguari, uma cidade do interior de Minas Gerais, em 1937. Os Irmãos Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira), denunciam na polícia o desaparecimento de Benedito com o dinheiro de uma colheita de arroz. O Tenente (Anselmo Duarte), empossado pelo governo recente, duvida da narrativa dos irmãos e passa a acusá-los. Eles e seus familiares são presos, torturados e obrigados a confessar um crime a qual não cometeram.
O desenvolvimento do roteiro ocorre sempre com comentários do narrador, que situa o olhar do espectador diante das imagens. A narração adquire uma estética radiofônica, narrando os fatos, alertando sobre o tempo que passou, como revelando os desfechos. A voz em um tom imparcial, sem manifestar emoções, lembram um relato jurídico, como se o filme fosse narrado a partir das atas dos tribunais.
Assim, quando vemos o trem partir, a voz over fala sobre Benedito ter viajado sem rumo. O cineasta Luís Sérgio Person, nos apresenta primeiro a conjuntura dos fatos, depois a voz dos personagens-títulos. Também acrescenta um tom de “realismo” à imagem, na forma distante como observamos cada morador na rua comentando as últimas notícias, o crime e a posse do novo governo. Essa forma ajuda a entender a virada da história, em como os Naves passam de acusadores para acusados. Mostra como a história ganha uma nova versão e como as mudanças políticas influenciam na vida cotidiana.
O depoimento com delegado civil não consegue concluir nada, então o Tenente nomeado resolve agir. Sua atitude desde o início é de desconfiança e violência, tratando os depoentes favoráveis aos Naves sempre como culpados. Não existe entrevista com o militar, mas um inquérito acusatório e tortura. Não existe presunção de inocência, apenas culpados.
A atitude do tenente durante os depoimentos se traduz em seu figurino e gestos durante todo o filme. Sempre de farda e com um sorriso cínico, ele encerra qualquer assunto por onde passa. Não tem nome, mas uma patente, não permite ninguém questioná-lo e tenta sempre se impor diante de qualquer resistência ou divergência. Quando o Coronel assume, é esperado uma atitude diferente, mas o que vemos é apenas uma intesificação da tortura, o alto posto de comando dos militares, não tinha divergências sobre os métodos, apenas sobre o tempo em resolver o caso.
A forma de pensar do Tentente lembrou muito as posturas dos inquisidores no filme Goya de Miloš Forman, no qual em uma cena eles afirmam que toda confisão sobre tortura é verdadeira e não pode ser anulada. Assim parecem pensar os militares em geral, depois de arrancar uma confissão, não importam mais os fatos. Uma ideia fixa os move, a população é sua inimiga e é tratada como tal.
Impossível descolar a condução do crime da política nacional. Com um novo governo, as pessoas esperam um tratamento diferente para problemas corriqueiros. Em momentos de crise, como um dos moradores fala, todos esperam um pulso firme. As atitudes do Tenente podem não estar amparadas na Lei, mas estão amparadas nas forças políticas que apoiaram o golpe de Vargas.
Ontem e hoje, podemos refletir sobre como as posturas de governantes influenciam pessoas que estão em posições de liderança e tratam diretamente com a base da população. Como essas posturas legitimam ou apoiam determinadas formas de conduta. O Tenente, quando chega não decide torturar por ser a última alternativa, mas por ser uma conduta militar.
As cenas de tortura pertubam e não são fáceis de assistir. O que mais impressiona são os olhares e a violência, em como os atores traduzem os momentos de agonia dos personagens. Não me parecem exageradas ou sádicas toda a violência mostrada, como alguns acusaram na época. Os socos, pauladas e as ameaças servem para mostrar como a tortura, como política de Estado, transforma os governos nos maiores terroristas da nossa sociedade.
O cineasta coloca o caso dos irmãos Naves no centro de dois processos históricos. Ao criticar o caso de injustiça, a tortura e os demandos do tenente, empossado pelo governo Vargas, fala da ditadura militar. Uma história específica de uma cidade do interior do Brasil se transforma em universal. Faz dos irmão Naves exemplos de vítimas do autoritarismo e de uma parte obscura de nossa história.
João Diego Leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de áudio e vídeo
Em Guerra
3.7 14 Assista AgoraA DÍVIDA DAS LOJAS AMERICANAS E O FILME EN GUERRE
Lembrei do filme do En Guerre (2018), quando ouvi hoje pela manhã a notícia do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, estar reunido com sindicalistas e trabalhadores das lojas Americanas. A situação do filme é diferente da empresa brasileira, mas é semelhante em dois pontos: as ameaças aos empregos e a impunidade dos patrões. No filme, o cineasta Stéphane Brizé, retrata a luta de um sindicalista para impedir a demissão dos funcionários e o fechamento da fábrica Perrin. Interpretado por Vincent Lindon, o sindicalista Laurent Amedeo, não aceita a ruptura dos acordos e das promessas feitas pelos acionistas da empresa. Para ele, não está em jogo apenas a quebra de contrato, mas o fim da vida de muitas pessoas…
Brrizé vai narrar o filme do ponto de vista dos trabalhadores, mas principalmente do sindicalista, Laurent. Ele, diferente dos demais, entendeu o significado das demissões e do fechamento da fábrica. Ao narrar o filme desta perspectiva, toda a forma narrativa coloca o olhar dos espectadores junto aos operários da fábrica. Enxergamos o filme em meio a multidão da assembleia, entre os grevistas no piquete e os trabalhadores na reunião sindical. Em alguns momentos, se utiliza a imagem semelhante às de jornal ou como documentário para acrescentar realismo à cena. Tudo ajuda a elevar a tensão.
O fato de adotar uma posição ao lado dos trabalhadores não significa mostrar o caminho a seguir, mesmo assim, o filme aponta contradições importantes. Brizé, nos faz questionar o significado de justiça e da legalidade ao mostrar as justificativas dos empresários.
Para eles, não importa o definhamento econômico da cidade, após a empresa fechar, nem o fato de muitos trabalhadores não conseguirem mais empregos por estarem velhos. A lei permite, a justiça também, ou seja, em uma democracia capitalista, eles podem fechar a empresa e irem para o leste o europeu. Pode ser cruel, mas não é um crime. Eles podem diminuir a produção para elevar o preço dos produtos, dos quais detém o monopólio. Tudo isso é legal e justo dentro do sistema.
O esforço do sindicalista, que diga-se de passagem, não é nem comunista, nem marxista é exigir o cumprimento do acordo. É garantir os direitos ou achar uma nova saída, qual nenhum acionista deseja. Aqui, cabe mais uma semelhança, Marinho disse hoje pela manhã estar disposto a ouvir. É a única coisa que o governo pode fazer se atua dentro do sistema capitalista. Por mais injusta a situação, ele não vai intervir, pois a propriedade privada é sempre sagrada para o capitalismo e seus defensores, os empregos e as vidas não.
Eles não se importam, como nas Americanas.
Hoje a dívida está em 43 bilhões. Tinha lido 20, agora são 40, daqui uns dias o número aumenta. Esse débito foi adquirido de uma forma legal, por meio de uma operação chamada “risco sacado”. De acordo com o portal de Notícias DW, a operação é simples, você utiliza empréstimos bancários para o pagamento de fornecedores. De acordo com as instituições financeiras, esse serviço é vendido justamente por não ser identificado como dívida. Ou seja, na contabilidade está tudo bem.
Os acionistas perderam bilhões, mas isso não os impedirá de seguir com suas vidas. Lehman vai continuar defendendo a privatização da educação pública com seu instituto. Não sei se as universidades estrangeiras vão solicitar, mas provavelmente ele seguirá com as palestras. Julgo isso, pensando em como a hipocrisia não é um sentimento apenas nacional.
Agora, difícil vai ficar a situação dos empregados das 3.600 lojas físicas e os cerca de 40 mil funcionários, além dos 16 mil credores.
A julgar por aquilo que o cinema nos ensina, não espero compaixão, nem empatia, apenas capitalistas sendo capitalistas. Como no Filme En Guerre, não parece que a situação das Americanas vai terminar bem…
Podem como no filme, parcelar e pagar as indenizações ao demitir os trabalhadores, mas e os empregos?
É interessante sobre como isso é visto, na imprensa, não parece alarmista, nem radical, milhares perderem seus empregos e terem suas vidas imersas em dificuldades ou destruídas, mas é radical propor a expropriação da empresa e manutenção dos empregos. Qual a prioridade dos governos, garantir o direito de alguns empresários ou garantir o emprego de milhares…
A situação pode mudar, o mercado pode arrumar uma maneira de salvar a empresa, mas ainda assim, milhares de pessoas já sofreram pelo caminho, sem que nenhuma nota no jornal, nem ninguém se preocupasse com elas.
Aftersun
4.1 694Aftersun (2023) – Crítica
Ao contar nossas lembranças não relatamos os acontecimentos em ordem cronológica. Não dizemos tudo exatamente como aconteceu, aumentamos, omitimos e às vezes esquecemos de coisas importantes. Alguém vai lembrar de algo sem importância nenhuma, mas nós não. O processo de construção de nossas memórias é assim, como no cinema, uma operação de montagem, juntando e colando todo o recorte das cenas interessantes e importantes, tornando as lembranças afetivamente significativas para nós, mas também para quem nos ouve ou vê.
Aftersun tem seu processo de reconstituição das memórias guiado pelos registros da personagem principal, Sophie (Frankie Corio). Ela está passando as férias de verão com o pai (Paul Mescal) na Turquia e registra tudo com a câmera de vídeo. Ao assistir o filme presenciamos duas imagens: as cenas registradas com a câmera amadora, imagem granulada, sem o enquadramento e os planos de filmes “profissionais”; e a imagem de um “filme profissional” de Hollywood, com a maior qualidade, sem tremer e com os enquadramentos em “ordem”.
A diferença dessas imagens não é só a forma amadora da menina manusear a câmera, mas como enxergamos as lembranças. Aquela imagem mal enquadrada pode mostrar como a menina era, como o pai era, como eles estavam felizes ou tristes, mas o fluxo da imagem gravada não consegue traduzir o sentimento das lembranças. Não há direção, nem a necessidade de pose em nossa memória, tudo flui naturalmente; Ao assistir as filmagens temos nosso olhar confrontado com a capacidade da câmera em conseguir captar o momento. Ver o olhar de Sophie interno e o olhar externo da diretora é como montar um quebra-cabeça com peças diferentes, elas se encaixam, mas não formam uma imagem homogênea.
Isso pode parecer um demérito, mas não é. A diretora Charlotte Wells, nos ensina a olhar o filme para além do quadro, em observar os detalhes, em ver no silêncio, o não dito. Sophie atua como diretora, ao manusear a câmera, ela é voz do narrador, mas também se posiciona como espectadora. O pai possui suas memórias, seus momentos, mas são sempre em função da filha, ela o provoca sobre seu aniversário, o coloca em uma situação ruim quando os inscreve no evento no qual ele não queria participar. O dirige em cena quando o instiga a agir, ou o força a responder para a câmera
A cena a qual ela pergunta onde ele pensou estar quando tinha 11 anos, o deixa extremamente chateado, mas esse desconforto do pai/ator não impede a diretora/Sophie de continuar filmando, mesmo com o equipamento desligado. Como ela diz, é uma câmera mental, as recordações são registradas, as filmagens continuam, o filme não para. A TV desliga, mas reflete a imagem dos dois, um sinal do registro para além do filmado, mas também de como o registrado não mostra tudo, algumas coisas ficam apenas subentendidas. Precisam ser percebidas.
Não devemos olhar para imagem, como quem vê na fotografia um registro factual, mas tentar enxergar as nuances entre a memória registrada e as lembranças dos personagens. O verão foi divertido, teve descobrimento, teve conversa, estranhamentos. Não foi preciso um longo discurso para descobrir a situação financeira ruim do pai, os problemas com o fim do casamento e a busca pelo equilíbrio nos Tai Chi, que Sophie chama de golpes de ninja. Assim como não é preciso dizer eu te amo para saber os sentimentos de alguém, às vezes, basta um olhar.
João Diego leite é jornalista, crítico de cinema e produtor de Áudio e Vídeo
Rainha de Copas
3.8 101 Assista AgoraFaz alguns dias assisti o filme dinamarquês A Rainha de Copas, dirigido pela cineasta May el-Toukhy, gostei da obra, mas me incomodou muito a exposição da vítima. Eu entendo quando colocamos uma mulher em uma situação cotidiana, qual ela passa por assédio ou violência para chocar, para mostrar a realidade, fazer uma denúncia. Ou seja, mostrar que, por mais avanços e progressos, algumas situações ainda precisam mudar. Entendo, mesmo isso, mas ainda assim, precisamos refletir sobre a forma, não basta apenas expor o conteúdo. No filme, a personagem está insatisfeita, infeliz, toma algumas escolhas erradas, ela tem um serviço importante na comunidade, mas no geral toda violência sofrida por ela e por outros parece naturalizada. Não é papel do artista explicar tudo, mas alguns filmes na tentativa de instigar uma trama, de fornecer plots parecem acabar trabalhando contra a proposta inicial. Mostrar o quanto uma vítima está sozinha, o quanto não pode contar com ninguém e por isso tomou um caminho "legalmente" e "moralmente" errado é interessante, mas a conclusão disso tudo pode, em alguns casos, apenas justificar as opressões sofridas, como se ela procurasse passar por tudo que passou. Ao fim, o filme deixa um gosto estranho é bom, mas algo não parece estar certo...
O Predador: A Caçada
3.6 663O Predador: A Caçada – Crítica
É um lugar comum ao cinema americano a defesa da família, a provação para ser líder e toda a violência para realizar essas tarefas. O Predador: A Caçada, dirigido por Dan Trachtenberg, é uma velha trama com inclusão, sem abdicar de toda a violência e patriotismo. As críticas mais reacionárias demonstram, não só o quanto são ignorantes em matéria cinematográfica, como tem uma masculinidade frágil e insegura, podendo se sentir ameaçados por uma personagem de ficção. As críticas mais progressistas demonstram como as pautas inclusivas e de representatividade são facilmente cooptadas pelo sistema, podendo muitas vezes servir a propósitos conservadores.
Como todo filme da saga, o monstro alienígena chega à terra buscando caçadores, ele quer animais ou homens do topo da cadeia alimentar. Não quer coelhos, mas lobos, ursos, guerreiros e soldados. Em sua sede por enfrentar o inimigo mais forte, ele acaba se descuidando, expondo suas fraquezas e superestimando seus adversários. A cultura do streaming pode deixar-nos desatentos, mas é preciso lembrar, não éramos os mesmo há 300 anos, nem os aliens. Predador de Amber Midthunder (Naru) tem um atraso tecnológico de 300 anos do alien de Arnold Schwarzenegger e Andreu Brody, talvez seja apenas a primeira incursão em nosso planeta.
Esse atraso na tecnologia é uma desvantagem muito maior para os humanos. Os aliens têm radar, visão de calor e podem ficar invisíveis, enquanto a única arma de fogo da humanidade demora tanto para ser engatilhada, que é preferível utilizar um arco e flecha. Essa desvantagem aparente, essa desigualdade frustrada em cada plano de luta entre o predador e os comanches e franceses é a vantagem de Naru.
Ela não era mais forte, nem a melhor, mas a mais inteligente. Não tinha músculos, nem era uma boina verde, mas como Schwarzenegger foi a inteligência que derrotou o monstro. É muito interessante como, cada detalhe do filme é somado para a conclusão final. Como todas as quedas, erros e fracassos são superados e tomados como lição da personagem.
O roteiro valoriza a tecnologia primitiva, aqui não me compreendam mal, por primitivo entendo aquilo mais próximo a natureza, livre da artificialidade da fabricação industrial. Ou seja, as armas não produzem o melhor soldado, mas sim seu conhecimento sobre o inimigo e sua capacidade de improvisar. É a inteligência de Naru, junto com a sua coragem e persistência os grandes motivadores da personagem e do roteiro. A cena em que seu irmão acerta uma águia com a flecha, ilustra isso, assim como quando eles enfrentam o puma, nos dois casos ela não é a melhor, mas aos poucos se prova.
Li um texto na Cahiers Du Cinéma (Chute Libre n:388, 1986), acusando os diretores americanos de utilizar a inclusão apenas como uma forma de vender a mesma história. Mudavam as cores dos personagens, mas mantinham o tom belicista, os valores americanos e o tom patriótico. Aqui, alguns detalhes ficam evidentes, primeiro, eles estão nos Estados Unidos. Os invasores não são ingleses, mas franceses. Os americanos, excluídos por uma comanche encarnar a personagem principal, estão autorizados a se identificar com a nativa americana quando o inimigo é um estrangeiro não fala inglês. Segundo, a luta poderia ser sobre muita coisa, mas a provação de Naru, seja o inimigo um Alien ou um Francês, é para defender seu território, sua família e sua nacionalidade. Apesar de inclusivo, o filme mantém a narrativa americanizada de sempre.
É como um agente 007 negro, não muda a origem imperialista do personagem. Um agente negro continuaria sendo um soldado da monarquia inglesa, um agente do capitalismo, inimigo da libertação dos povos. Para ele representar algo revolucionário, não apenas inclusivo, talvez fosse necessário romper com a agência e tomar parte de algum país ou povo oprimido. Ao invés de Naru lutar contra os aliens, ela não poderia se unir a eles e expulsar os colonizadores? Quem sabe, as narrativas poderiam ser diferentes, mas enquanto nos ativermos muito as aparências e pouco a forma, nada vai mudar.
This Much I Know to Be True
4.2 6 Assista AgoraThis Much I Know to Be True – Crítica
O sentimento religioso sempre me pareceu algo melancólico, um misto de tristeza pela finitude da vida e uma busca por amparo pelos acasos inexplicáveis. Queremos ser aliviados da dor, da morte, mas principalmente, queremos acreditar. É o conflito dos nossos desejos e de nossa esperança com a realidade, a razão da melancolia. É entender a necessidade de mudar, mas não se sentir feliz. This Much I Know to Be True, novo documentário sobre Nick Cave, trata sobre isso com belas músicas, muitas reflexões e um espetáculo de filmagem.
Os primeiros minutos do filme são Cave mostrando seu trabalho como ceramista. Ele apresenta uma série de estatuetas sobre a vida e a morte do diabo. Essa parte do filme parece grotesca, destoante de toda a mensagem do personagem principal. Entendemos o ponto de vista, quando refletimos sobre como ele apresentou o diabo. Cave deu uma versão humana a um personagem bíblico, tornou-o homem, ao nascer, combater, amar e morrer. Na história da cerâmica, Lúcifer sente dor, sofre e se apaixona. O diabo está vulnerável, como eu e você, vulnerável à vida e ao sofrimento.
É difícil assistir ao filme e não pensar nas tragédias pelo qual o músico passou. A cada cena e conversa ficamos pensando em como a vida de Cave parece ter sido trágica. Podemos ser diferentes nas forma como compreendemos o mundo e como vivemos, mas somos iguais em nosso sofrimento. A dor pode não ser igual, mas todos a sentimos. O sofrimento nos conecta. Todos estamos em busca de um sentido, em busca de algo para nos confortar. Essa me parece a mensagem central para a arte de Nick Cave, o amor pela vida. Não o amor em um sentido de êxtase, mas a forma contemplativa.
O documentário não é um show, está mais próximo a um clipe, em sua estrutura. Local fechado, sem público e com total liberdade das câmeras. Algo essencialmente simples. Poderia ser só mais um vídeo de uma banda, mas não é. O diretor australiano Andrew Dominik, torna o filme uma obra sublime. Cave e os músicos no centro do palco, as câmeras ao seu redor, nunca acima ou abaixo, parecem deslizar em travelling, nos aproximando e afastando. É um movimento bonito, como quando ele começa cantando sozinho e o giro da câmera vai mostrando o restante da banda. As luzes vêm sempre do alto. A iluminação isola os músicos, os torna parte do grupo e junto com as câmeras consegue acentuar ainda mais a atmosfera religiosa.
A melodia de todo o documentário embala essa atmosfera. São músicas com coral, instrumentos clássicos, em um ritmo geralmente lento. É sempre algo para ouvir e meditar. A voz de Cave e a forma como canta parece um sussurro. Ele não grita, sussurra, reflete um tom tranquilo, mas cheio de pesar. Ainda mais melancólico é a aparência do personagem, as sombracelhas e cabelos negros, a voz um pouco rouca. Além disso, a forma como ele conversa, sempre parece estar pensando em cada palavra, quase soletrando, nenhuma resposta é solta. O único momento de descontração em todo o filme é quando Warren Ellis é entrevistado. O único músico a falar, além de Cave. Eles riem, falam dos conflitos dos processos criativos, mas de como gostam de fazer música juntos.
Apesar da melancolia e da tristeza, ninguém parece infeliz no filme. O clima em geral é alegre, mesmo tratando de temas sensíveis. Vemos o semblante triste de Nick Cave, mas ele não parece estar perdido. Contempla a vida, suas incertezas e acasos. Não tem o controle de tudo, mas busca um sentido. Ele ainda é aquela figura gótica, com olhos e cabelos negros e um rosto pontiagudo. Alguém triste, mas com fé no futuro.
Cordeiro
3.3 553 Assista AgoraO filme de terror Islandês Lamb (Cordeiro, no Brasil), pode suscitar muitos debates relacionados aos humanos ou animais. Mesmo assim, o instinto materno parece ser o tema central. A obra trata da irracionalidade desse sentimento. Amar uma criança é um tipo de amor incondicional, algo imensurável. Perder esse amor, perder um filho é abrir um buraco sem fundo. Isso explica a frieza do casal no início. Quase não há falas, apenas gestos e trabalho. Absorvidos por uma paisagem bucólica, sem contato com ninguém, os dois parecem apenas existir. Tudo muda com a chegada de Ada. O casal parece respirar um pouco. Apesar da metáfora servir, a esposa não pode ser comparada a uma mulher que adota um bichinho. Sem dar spoiler, não houve adoção. A forma como ela adquire a “filha” adotiva é a mais cruel possível. É movida pelo desejo, mas conquistada pelo sangue. O instinto foi mais forte e nada a impediu de ter novamente uma criança. Como disse antes, o filme pode suscitar muitos debates, mas para mim pareceu um horror sobre a maternidade. Não quero dizer que exista algo de horrendo em ser mãe, mas em como esse sentimento, como qualquer outro, pode nos levar a agir como animais. O amor irracional também pode provocar uma vingança ou atitude irracional. Ao fim, Lamb é um terror dedicado ao estranhamento, não levará susto, nem ficará sem dormir, mas possivelmente irá pensar muito sobre toda a trama.
O Último Duelo
3.9 324Ridley Scott culpou a geração millennial pelo fracasso de seu último filme, Último Duelo (2021). A obra conta uma história sobre três pontos de vista, apesar de convergirem em alguns pontos, elas divergem no essencial, o motivo do duelo. O longa-metragem com cerca de 2h30min exige do espectador. Não é um filme para ser visto, enquanto mexe no celular, almoça ou conversa com os amigos. O olhar precisa de um pouco de atenção. Lembrou muito Rashomon (1950) de Akira Kurosawa. Como no filme do mestre japonês, o importante aqui não é a verdade, mas como os personagens descrevem a história, como eles parecem diferentes aos olhos dos outros e aos seus próprios olhos. Como creem ser vistos como heróis, teimosos ou tolos. Os três personagens principais, interpretados por Matt Damon, Adam Driver e Jodie Comer são obrigados a mostrar três faces. Três atuações diferentes em um mesmo personagem. Enfim, o filme não é ruim, mas foi um fracasso de bilheteria. Lembro da revolta dos fãs com a forma que a primeira temporada de The Witcher (Netflix) foi gravada. Ela não era linear, isso não atrapalhou a história, nem confundiu, mas novamente, não era um olhar preguiçoso. Em uma obra voltada para o entretenimento, ousadias de linguagem podem não ser compreendidas. Triste, pois esse comportamento deixa as produtoras receosas de financiar experimentos e aumenta o controle para tudo ser uma novela mastigada, igual os filmes da Marvel. Scott não tem razão em culpar uma geração, mas tem razão em notar como o cinema, audiovisual e o mundo estão mudando.
Titane
3.5 391 Assista AgoraTitane não é um filme para estômagos fracos. Quem não aguenta violência explícita, nem cenas de dor e agonia, deve passar longe. Agora, caso você goste de cinema, não apenas de um gênero ou filme, mas da arte cinematográfica em todas suas expressões, recomendo assistir. O filme conta a história de Alexia, uma dançarina de eventos automotivos. A personagem vive em constante asfixia social, tudo ao seu redor parece empurrá-la para respostas violentas. Em um primeiro momento tememos pelos outros, mas após o roteiro respirar as mortes, sentimos pena. É interessante como a diretora Julia Docurnau, nos conduz de várias cenas com mortes violentas, até um momento de aparente tranquilidade. A virada, ou plot, como preferirem, ocorre quando Alexia resolve fingir ser o filho desaparecido do capitao dos bombeiros.No começo, tememos pela vida do militar, mas após alguns minutos vemos, como duas almas desesperadas, agoniadas, parecem encontrar um momento de apoio. De como o impulso destrutivo de Alexia encontra um escape mais “sadio”. Essa mudança de ritmo muda totalmente nosso olhar. No corpo de bombeiros, temos um ambiente masculino, machista, com uma certa homoafetividade velada. Homens se adoram e disputam a atenção do capitão. Alexia, agora Adrien, destoa desse ambiente, seu corpo andrógino, causa repulsa. Um ser afeminado, no meio de toda a força masculina. Essa “fraqueza” a liga ao chefe dos bombeiros, pois ele, no auge da idade, não tem mais a força da juventude. Os dois se agarram e, numa relação extremamente doentia, encontram algum conforto, mesmo sendo mínimo. É um filme para ver e rever. Lembrei de Cronenberg, Lynch e outros cineastas ao assistir. Uma obra estranha de uma diretora com grande potencial.
Matrix Resurrections
2.8 1,3K Assista AgoraFinalmente vi Matrix 4. Gostei muito do filme e acho que me reconciliei com as Wachowski. Apesar da arte ser polissêmica, o leque do que podemos entender e interpretar é limitado. O filme pode ser utilizado para instigar inúmeros debates, mas uma análise mais cirúrgica revela essas limitações. É importante entender que, diferente da literatura onde somos instigados a imaginar, no cinema somos mais passivos, tudo está pronto diante de nossos olhos, apenas absorvemos. Matrix é um filme da minha adolescência, algo que vi e revi várias vezes. Assisti o 2 e 3, no cinema. Achava engraçado o quanto as interpretações dos meus amigos se contradiziam. Há um tempo li um texto da BBC Brasil (link aqui), o autor, Nicholas Barber, acusava o filme de ter envelhecido mal, talvez a melhor crítica que li.
O texto fala sobre como os efeitos revolucionários, não eram condizentes com o herói antiquado. O quanto Neo está agoniado com a vida no escritório e toda a falta de perspectiva. Aqui onde discordo do autor. É algo que demoramos para entender e só faz sentido, após décadas. Há alguns anos, toda a ideologia do filme tem sido utilizada de forma equivocada pela direita norte-americana. Matrix ajuda a fomentar teorias da conspiração que cabem muito bem no discurso da direita mais tresloucada, do tipo Trump e Bolsonaro.
Foi então que as irmãs Wachowski disseram que a obra trata sobre transição de gênero.
Pensando sobre o primeiro filme, a discussão parece extremamente lógica. É onde a agonia, insatisfação, insônia de Neo faz todo o sentido e a crítica de Barber desanda. A frustração ainda tem classe e não é a proletária, não tem viés político, mas existencial. Para delírio dos conservadores, as irmãs Wachowski utilizaram a mitologia cristã em um subtexto trans. Isso está claro quando observamos o crescimento dos poderes de Neo. Isso ocorre quando ele passa a ter fé, mas também a se adaptar ao novo corpo. Conforme sua mente e corpo estão harmonizados mais perto ele está do seu potencial máximo, como escolhido.
Chegamos assim, em Matrix 4. Toda a fala autorreferencial no filme, pode ser encarada como ironia, mas também pode ser levada a sério. As pessoas sempre se esforçaram para ver em Matrix uma revolução dos oprimidos, quando na verdade temos algo mais espiritual. Ninguém destruiu o mundo das máquinas, nem fugiu da realidade virtual, alguns preferiram coexistir. Existe alienação total do mundo, mas também existe quem mantém vínculos com os dois lados.
Nenhuma ideia está solta ao vento. Tudo está muito bem conectado. A mudança de alguns personagens, como Morpheus, faz todo o sentido quando pensamos nos filmes anteriores não como a realidade, mas como a história contada. Logo, com exceção de Neo e Trinity, ninguém era como realmente dizem ser.
Apesar das críticas, o roteiro está bem explicado e novamente Neo parece perdido, todas pílulas, toda a terapia e o trabalho são formas de o manterem alienado. Querem domesticá-lo, utilizar sua energia. Faz sentido, mesmo recobrando a consciência, ele não ter o domínio total dos poderes, pois bagunçaram sua mente e corpo por décadas. Trinity é quem parece mexer com ele, quem o parece deixar deslocado. Afinal, todos lhe dizem que não há nada de errado, apenas a imagem da mulher que amou e seus sentimentos dizem o contrário.
É aqui, que Matrix mantém uma narrativa conservadora. Não é a opressão das máquinas, nem o grau de alienação o motivo do despertar, mas o amor e a fé de Trinity. Neo nunca acreditou ser ele o escolhido, mas ela sim, ela tinha fé. Diferente do primeiro filme, aqui não existe uma promessa de revolução, nem uma mudança radical, mas uma coexistência, uma crença na conversão do outro, mesmo que esse convencimento seja a base da porrada.
Apesar das lutas não serem tão boas quanto as antigas, a obra tem força, não como original, mas como o capítulo final de uma história. O filme é um conto, sobre como tudo terminou. Matrix 3 deixa pontas soltas, o 4 encerrou a história.
Maligno
3.3 1,2KMaligno é raso, extremamente conservador e superficial. Não entendo toda a animação com James Wan. O terror em Wan, adota a trilha e o susto como motor principal para criar um clima "terror". São os famosos filmes montanha russa, levam você ao alto clímax para te assustar com a descida abrupta. Os personagens são simplificados, bem e mal são suas principais motivações. O motivo da personagem principal passar por todos os perrengues é por ela ter sido fruto de um pecado, produto de uma violência familiar. É quase bíblico, quem não segue meus ensinamentos será alvo do mal. Não há problema em adotar uma perspectiva conservadora em uma obra de arte, mas é um problema em afirmar essa perspectiva, pois cai em uma propaganda. A arte deve revelar as contradições do ser. Em maligno não existe contradições, tudo é moralmente encaixado dentro da moral cristã. Os filmes de Wan poderiam fazer parte de um cineclube evangélico, tranquilo.
Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio
3.2 960 Assista AgoraInvocação do Mal é terrivelmente cristão. Não tem nada errado com isso, Hitchcock também era. O problema é o maniqueísmo, o quanto às explicações do roteiro são rasas, sem muitas contradições. Toda a mitologia católica é correta, assim como a inquisição. As bruxas eram malvadas servas de satã e a igreja católica é o maior front contra lucifer e seus servos. O novo filme, trata sobre a força do amor e da fé em vencer o mal. Apesar disso, o filme trata mais em provocar o terror, ao invés de assustar. A obra coloca os personagens em perigo, cria as ameaças, questiona a força dos personagens, ao invés de ficar assustando a cada cena. Não é um filme montanha russa, onde uma subida cria um alívio para em seguida assustar o espectador. Isso explica o motivo de fãs do original não estarem satisfeitos. No mais, acredito ser o único filme realmente bom de toda a saga do casal Warren.
Marighella
3.9 1,1K Assista AgoraSe pudesse resumir Marighela em uma palavra, após assistir o filme de Wagner Moura, eu diria coragem. O militante comunista, deputado, poeta e revolucionário não tinha medo. Mesmo ameaçado de tortura e da morte, privado do convívio com o filho, ele não desistiu. O filme recorta um período, do golpe ao assassinato. Vemos ele roubando trem, banco, ocupando as rádios. É uma obra para iniciados, um filme para quem deseja conhecer sobre os crimes da ditadura e luta armada, mas não sei se convence o público. A cena inicial, como a final, mostram as armas, mas nenhuma cena no filme é digna de uma ação de tiros, como tropa de elite. Uma pena, pois o filme quer construir a memória de um herói. Algo estranho é a roda de conversa, o filme se passa em grupos conversando, discutindo em planos próximos. Não existe o partido, nem um coletivo. As decisões são tomadas pelo carisma de Branco e Preto. As locações são em apartamentos, estacionamento, sempre em lugares fechados, como os planos nas conversas com os personagens. Essa ponto de vista é semelhante a estética da novela, um lugar comum ao cineasta. A obra mistura o que é isso companheiro com batismo de sangue. Ao fim, a obra satisfaz os iniciados, mas não e sei se satisfaz o público em geral.
Uma Noite em Miami...
3.7 189 Assista AgoraNinguém nunca saberá com exatidão o teor da conversa de Muhammad Ali, Malcolm X, Jim Brown e Sam Cooke, em uma Noite em Miami, após a vitória de Ali pelo campeonato mundial de Boxe. Podemos imaginar, mas nunca teremos certeza. Isso torna o filme tão importante, tão bonito em tentar imaginar, em ver esses grandes homens como humanos. Como Ali, ainda Cassius poderia ser inseguro, escondido atrás da arrogância e de um ego enorme. Como Malcolm tinha medo de morrer sem conseguir completar sua missão. Como Jim se sentia mal em ser apenas um gladiador, em não ser reconhecido como uma pessoa. Ou Cooke ter raiva por não ter composto a música de Bob Dylan. É uma noite cheia de brigas, conciliações e risadas. É um encontro daqueles qual imaginamos a vida toda, de como seria juntar várias personalidades históricas para conversar. A Diretora Regina King e o roterista Kemp Powers nos mostram e nos fazem sentir como parte da conversa.
A Chorona
3.4 90 Assista AgoraUm grande filme, uma obra com um valor histórico e artístico imenso. Para contar a história da ditadura o autor utiliza o mito da Maldição da Mulher que Chora. Fala sobre o genocídio, hipocrisia religiosa, crítica a família burguesa. Mas não vá com sede ao pote se você gosta de filmes de susto, não espere embarcar em um trem fantasma como nos filmes de James Wan. Aqui é a realidade é mais cruel das fantasias. O terror é provocado pelo suspense, pela crueldade, pela fragilidade e por um sensação eterna de impunidade diante das justiças. Jayro Bustamante é um grande diretor, espero ainda ver muito de seus filmes.