Com uma identidade única, Azougue Nazaré é uma ode à liberdade e, para abordá-la, trabalha a partir de dualidades numa estrutura relativamente livre também: a religião evangélica que engessa as relações e inclusive se mostra hipócrita e oportunista é contrastada com o maracatu que propõe o encontro e uma leveza maiores, com seus membros tendo relações muito sinceras; os corpos rígidos dos evangélicos contrapostos à corporalidade vibrante do maracatu. Tudo isso é muito bem sintetizado na figura de Catita: na primeira cena em que chega em casa, fecha atrás de si um portão com grades, como se aquilo fosse uma prisão para ele, um lugar onde não pode ser quem é e tem de se trancafiar não só num espaço físico, mas também na maneira de se vestir. A partir disso, a câmera parece clamar por uma liberdade dos corpos, evocando uma urgência irreverente por ela em seus movimentos ágeis e no fato de não se estabilizar durante a maior parte do tempo, sempre com um leve tremor, num estilo de câmera na mão. É como se ela agitasse o grupo do maracatu e incitasse em seus membros a coragem para buscar aquilo com que se sentem bem.
É interessante também como, ao mesmo tempo, o filme se propõe a valorizar a irreverência como forma de resistência e a reverenciar e homenagear a cultura do maracatu: ao trazer o folclore e, principalmente, a figura protetora do caboclo de lança como uma entidade quase lendária, o filme engrandece essas tradições. Há um flerte muito marcante com o sobrenatural que, apoiado na trilha sonora e no figurino, faz a experiência carregar em si um efeito entorpecente eufórico, culminando numa disruptividade que termina por caracterizar a proposta narrativa do filme: o final, por exemplo, toma uma liberdade poética digna dos efeitos de uma bebida alucinógena… É com esses elementos sobrenaturais e com essa disruptividade que o filme é ao mesmo tempo homenageia a cultura do maracatu e mostra a sua potência irrefreável.
No entanto, a montagem fez com que o final não fosse tão forte para mim quanto poderia. A alternância entre os trechos mais fantásticos e os mais realistas não encontra muita fluidez e a sensação de progressão fica prejudicada. A estrutura segmentada vai gerando uma expectativa que nunca é tão satisfatoriamente cumprida quanto poderia: as aparições dos caboclos, por exemplo, têm uma atmosfera e uma força dramática inquietantes, mas suas não vemos muito do que suas ações causaram. Certos acontecimentos parecem vir repentinamente e não ter muitas consequências, chegando até a soar avulsos em alguns momentos,
como a queimada na mata pelo grupo cristão enfurecido e o apagão na cidade.
Isso fez com que a sensação libertadora que o final deseja passar não se firmasse efetivasse em mim.
Por outro lado, a percepção de que esses momentos drásticos não parecem ter impactos práticos tão evidentes faz sentido dentro da ideia de disruptividade onírica, ou seja, há um senso de rompimento em relação à causalidade de alguns eventos, em relação à noção sequencial deles, que gera e impulsiona um descolamento do real junto aos elementos sobrenaturais. Isso também reforça as dualidades que o filme trabalha, uma vez que tais momentos podem ser interpretados como a representação do imaginário e do estado de espírito daquela população e daqueles personagens. É um estado de conflito e de choque entre essas duas religiosidades que se reflete tanto em suas ações como em seus modos de vida, um choque que se dá até em situações banais do cotidiano, como a conversa entre o pastor e os mestres na praça.
Assim, Azougue Nazaré trabalha muito bem uma liberdade estética para abordar sua temática libertadora na narrativa. Nesse sentido, o filme encontra espaço para desenvolver seus personagens tanto através do drama como do humor, se valendo até de elementos de terror para construir sua mística. Essa mistura de tons que caracteriza dinâmicas de relações essencialmente pernambucanas (quem sabe até nordestinas, mas não me arrisco a falar pelo nordeste todo), com uma rudeza que, frequentemente, é carregada de muito afeto. No fim, a preocupação do filme é mais com uma experiência sensorial potente do que com um final completamente amarrado. Isso, na verdade, poderia amarrar seu espírito livre, que se manifesta através da dança e da cultura tão características. Porém, para alcançar um efeito sensorial poderoso, o filme poderia ter trabalhado melhor uma estrutura que puxasse o freio com menos frequência e, ao invés disso, pisasse no acelerador para se deixar fluir até culminar num fim ainda mais catártico. De qualquer forma, é uma proposta única que se concretiza de forma marcante. Fico curioso para ver os próximos filmes que Tiago Melo vier a dirigir.
Todo o "primeiro ato", no caso a parte que é um filme dentro filme, me causou muita aflição. O diretor consegue imprimir um senso de falta de sentido e despedida muito forte em todo o segmento que precede a tentativa de suicídio. Ele faz isso a partir de uma certa casualidade aparente que acaba por se tornar brutal quando percebemos o profundo e angustiante desamparo em que Sang-Won e Yeong-Sil encontram-se. Esse desamparo faz com que a morte, nos termos em que a planejam, não seja algo horrendo para eles a princípio. O pensamento de que ela pode finalmente trazer um sentido grandioso às suas vidas insignificantes é naturalizado por eles e a forma também natural como Hong Sang-soo filma isso torna todo o segmento ainda mais pesado de acompanhar: nós sabemos que aquilo é absurdo, mas os personagens já estão psicologicamente fragilizados a tal ponto que parecem anestesiados ao horror dos próprios planos. Depois de falharem na tentativa de transar, Songwan sonha com uma mulher que veste vermelho, aqui possivelmente entendido como a cor do amor. Ela lhe oferece uma maçã. Ela é a própria serpente oferecendo o fruto proibido, então ele recusa e, depois disso, quando acorda e machuca Yeong-Sil em outra tentativa de transar, propõe que devem morrer castos, sem fazer amor. É como se seu amor fosse impossível, fadado à ruína, como se desfrutar daquele prazer fosse de fato proibido e a única forma de vivenciar algo significativo seria através da morte, quase como uma redenção pelas vidas desprovidas de virtudes que levaram até ali, pelas tentações que sofreram. É nesse senso de perdição entorpecida que reside a potência dramática do primeiro segmento que me causou tanta aflição.
Além disso, a abordagem parcimoniosa na encenação traz um realismo que se encaixa muito bem à trama intimista do filme e à sua temática, conferindo à narrativa uma fluidez entre o real e o ficcional. Tal fluidez é traduzida visualmente pelo uso do zoom: ao aproximar ou afastar o zoom, Hong Sang-soo nos coloca dentro daquela realidade através da câmera, redirecionando nosso olhar para enfatizar o que as ações, por si sós, já transparecem. Quando ele faz isso, testemunhamos aquela situação diante de nós como se estivéssemos espiando-a, quase de maneira voyeurista. Por isso, quando acontece a virada da primeira para a segunda parte, ela não é anunciada, é extremamente discreta e o diretor continua usando a mesma linguagem na câmera: sem nem percebermos, o que era um filme dentro de um filme já passou a ser a realidade dos personagens, ou seja, o limiar entre a realidade e a ficção é impreciso e ambos se misturam. Esse vai ser o próprio mote da história, que é traduzido brilhantemente pelo visual do filme.
Assim, na segunda parte, o filme mantém seu pulso narrativo não mais através da iminência de um evento trágico, mas das readaptações que o público tem que fazer para entender o que era parte do filme e o que era próprio da realidade. Isso gera um senso de desorientação e instabilidade que deixa a trama ainda mais estimulante e nos coloca na pele do novo protagonista: Dong-su. É aí que o filme se torna o exemplo perfeito do ditado "a arte imita a vida que imita a arte", quando os personagens perguntam se certas ações são "como no filme": é como se as coisas fossem sacralizadas quando colocadas na tela grande. Elas são evidenciadas, tomadas como modelo e colocadas num patamar “digno de ser representado”, dada a magnitude da potência sensorial que uma sala de cinema possibilita transmitir. Elementos como o cigarro Marlboro vermelho, o modo como apertam as mãos, a própria trama do suicídio foram vividos e inventados por Dong-su ou foram imitados por ele? Não há uma definição para o público porque não há também para o personagem, esses limites se turvam, se misturam e se confundem para ele, que vai entrando cada vez mais na obsessão de emular os eventos do filme na tentativa de sentir que também pode ser importante. Isso até ouvir que talvez não tivesse entendido o filme de fato. Ele estava pensando em tudo a partir dos próprios egoísmos, de suas visões unilaterais e egocêntricas, algo que é comentado por Yeong-Sil quando ela diz que "quando você faz parte de um grupo de diretores, acaba pensando assim. Basta encontrar uma coincidência para pensar que é por sua causa". Essa também é uma questão do filme.
Esses artistas, esses cineastas anseiam por uma tragicidade quase teatral, fantasiam romanticamente com ela e vivem as próprias vidas nessa intensidade trágica ou buscando-a: uma tragicidade que os tire da banalidade do cotidiano e que traga mais importância pra própria existência, conferindo mais sentido a ela. Desse modo, perde-se a medida do que é concreto e próprio da realidade, havendo dificuldade em aceitar sua crueza, é como se Dong-su desejasse viver num filme, numa utopia fílmica onde não necessariamente tudo é bom, perfeito e os finais são felizes, mas sim onde tudo é significativo. Ele não pode ter a história, tal como viu no cinema, porque ela é fictícia e, portanto, inalcançável e intangível, porém, justamente por isso ele quer tê-la ainda mais, porque é "proibida", quase divina em sua elegância... É por isso que ele fica tão obcecado pela atriz, porque ela é um anjo e ele, ao próprio ver, um mortal, uma pessoa comum que almeja um lugar de prestígio que o tire dessa condição em que, por se sentir envolto em trivialidade, ele se enxerga como fracassado. Então, quando ele descobre que a atriz não tem cicatrizes, que ela não é uma figura misteriosa com segredos obscuros e que ela é uma mulher normal como qualquer outra, ele perde um pouco do encanto e passa a conseguir olhar de maneira mais empática para os outros, revisando a conduta que teve com Yeong-sil de buscá-la para que servisse às próprias necessidades. É por isso que o final é tão bom, porque ele percebe que precisa refletir para sair de tudo isso, para viver bastante. Para, quem sabe, finalmente entender o filme e a verdade humana que ele traz, num exercício de compaixão pelas vidas alheias e pelas histórias contadas no cinema.
Esse é um filme que, além de ter muito a dizer, tem uma forma intrigante e provocativa de dizer. Alcança muita profundidade a partir de uma linguagem simples e intimista, mostrando que o cinema é livre, menos calculado do que alguns tentam fazer parecer, e suas possibilidades, infinitas. Fiquei curioso para conferir outros filmes de Hong Sang-soo. Acho que comecei bem.
Primeiro filme do Ford que vi. Essa encenação bastante clássica e formal que o filme traz evoca uma solenidade que coloca as tradições e o modelo de vida brancos como inerentemente íntegros e virtuosos. Os personagens são sempre posicionados harmoniosamente no enquadramento, em poses que evidenciam a natureza orquestrada do plano cinematográfico e potencializam, dentro dessa encenação clássica, movimentos e gestos que parecem perfeitamente sincronizados com o movimento da câmera, que se ajustam e/ou influenciam a câmera a se ajustar para encontrar essa posição ideal, esse retrato do estadunidense exemplar do passado. Um modelo que possibilitará que, um dia, esse país seja um bom lugar para se viver, como é dito pela Sra. Jorgensen. Esses homens íntegros apenas cedem à truculência por necessidade, o amargurado Ethan é obstinado e se vale da brutalidade de maneira e com um propósito justos: impedir que a selvageria indígena se espalhe pelos Estados Unidos e permitir que sua nação se torne grande novamente. Tudo isso seria muito bonito, muito inspirador, se não fosse extremamente perigoso.
Fica nítido que o filme carrega uma moral colonialista e civilizatória problemática e, para sustentá-la, omite e abranda sistematicamente as atrocidades cometidas pelo homem branco, que se apropria de uma terra que não é sua através da invasão. Vai se firmando essa concepção ilusória e delirante de que há não apenas uma superioridade dos brancos em relação ao resto dos povos, mas também de que a própria noção de humanidade está contida neles. Essas ideias podem ser internalizadas pelo espectador se este se deixar levar pela emoção e pela sensação satisfatória do final.
Assim, Rastros de Ódio é um filme tecnicamente impecável e inventivo em sua condução pelo Ford e pode ser apreciado por isso, principalmente por ser o que o torna envolvente. Entretanto, ele deve ser questionado (como já é) em relação ao que sua mensagem comunica, para que possamos olhar para o futuro tendo o cuidado de não perpetuar os esteriótipos nem ser coniventes com pensamentos e atos discriminatórios e prejudiciais à humanidade como um todo. É uma boa síntese do que não fazer, um exemplo perfeito do processo de se olhar para o passado a fim de compreender o presente e estabelecer novos parâmetros para o futuro.
A abordagem mais direta do Spike Lee nesse filme teve uma eficiência irregular comigo. Na montagem, a inserção perspicaz das fotos e imagens de arquivo escancara a realidade tal como é, sem pudor ou eufemismos ao mostrar os efeitos do racismo, além de enaltecer figuras negras com o respeito que merecem. Por mais que eu goste do Spike Lee afrontoso, acho que essa abordagem direta não funciona tão bem assim nos diálogos e na encenação, pelo menos durante a primeira metade do filme. Ele traz algumas frases prontas que acabam ficando redundantes e banalizam o discurso do filme, além de outros elementos, como a música do apocalypse now na hora que eles estão no barco. Não é nenhum grande momento, o modo como a cena é filmada não comunica nada pro espectador e a música acaba não elevando nenhuma sensação, só tá ali meio ilustrativa e gratuita, chegando até a soar manipulativa. Esse é só um dos exemplos de como o filme tá sempre tentando evidenciar o que tá fazendo. O que não é necessariamente problemático, como por exemplo a mudança da razão de aspecto, que é declarada mas interessante. O problema é que, na maioria das vezes em que isso acontece, já tinha ficado claro qual era o papel daquele elemento que ele tava tentando evidenciar e ele insiste em sublinhar, o que me fez pensar "é mesmo? Não me diga?". Como por exemplo num momento em que a última coisa dita numa música é "right on" e aí literalmente na cena seguinte o personagem Paul fala isso também, o que, a princípio, fortalece o significado da canção pro filme. Mas aí ele fala isso uma segunda, uma terceira, uma quarta vez e banaliza a frase. Aliás, essa questão da dosagem exagerada de alguns elementos é recorrente e acontece também quando eles estendem os braços e juntam os punhos. É uma imagem poderosa que passa a sensação de união do grupo e nos faz torcer pelos personagens. Mas na cena seguinte, eles fazem isso de novo. Fica previsível e tira a força que o gesto tem, banaliza-o. É um gesto que inclusive vai ser repetido quando eles encontram o cadáver do Norman e teria muito mais força e significado se fosse guardado pra esse momento de maior emoção. E a mesma previsibilidade vale pras cenas de morte de Eddie e Paul. Elas se anunciam e a gradação delas é artificial, o que tira totalmente o fator surpresa quando elas se consumam. Somando a tudo isso o fato de que algumas cenas parecem filmadas de qualquer jeito, sem muito esmero e meio genéricas, a primeira metade do filme acaba ficando num lugar comum pouco instigante. Até os primeiros flashbacks de batalha acabam não sendo tão impactantes quanto poderiam: nesse ponto do filme, ainda não conseguimos distinguir tão bem os personagens, não estamos acostumados com suas feições, o que, junto ao uniforme camuflado e o fato deles serem constantemente filmados de costas, dificulta a percepção clara da sequência. Surpreendentemente, a coisa muda quando a tensão começa a aumentar, principalmente quando a primeira mina terrestre explode. As cenas com mais ação passam a funcionar melhor, parecem mais bem trabalhadas, a localização espacial dos personagens fica mais clara. O temor e o senso de urgência pela vida dos personagens é melhor conduzido pelo Spike Lee e as condições extremas nas quais os personagens se encurralam acabam por revelar mais camadas deles e aprofundar as discussões do filme. A quem verdadeiramente pertence aquele ouro tão cobiçado? Aos vietnamitas ou aos estadunidenses? Havia mesmo atrocidades dos dois lados? Em que ponto a perseverança vira uma ganância cega e destrutiva? Sem contar com toda a mítica do Stormin' Norman que pra mim é a melhor coisa do filme. Todo o ar lendário que é construído ao redor dele torna ainda mais satisfatório o final, quando os personagens concretizam o objetivo de resgatar o ouro. É como se ele, enterrado ali, fosse as raízes que impulsionaram bons frutos como o Black lives matter no final, que recebeu 2 milhões de dólares porque assim ele propôs, passando a ser uma figura inspiradora não só pros Bloods, mas também pro público. O filme começa a ganhar traços mais próprios e se distanciar da forma genérica que predominou na primeira metade. Assim, embora ele puxe um sentimentalismo nas atuações que não me pegou e que acabou soando um pouco artificial em alguns momentos, o final foi satisfatório e fez valer a pena a assistida. Ainda assim, de forma geral, sinto que ao invés de ter um impacto pungente e contundente no espectador, essa abordagem direta se torna anunciada e óbvia, acabando por se autossabotar na maior parte do tempo. O final compensa em certa medida, mas acho que, pelo início tão arrastado, não o veria de novo. Uma pena, a montagem inicial e a mudança estética e estilística dos anos 70 pros dias atuais pareciam mais promissoras.
O filme traz uma artificialidade em todos os seus aspectos que atinge seu objetivo no espectador: a ideia não é reproduzir a realidade, tanto que as ambientações são todas fictícias, mas sim representar e, para isso, os cenários passam a ser ilustrativos, ou seja, servem para nos dar a ideia do que aconteceu, mesmo que não tenha acontecido na realidade, evidenciando as relações entre os personagens sem questionarmos o compromisso do filme com o absurdo. Focamos no que aconteceu, sem nos importar com o entorno ser claramente falso. Pelo contrário, isso nos deixa ainda mais empolgados e imersos nessa jornada absurda e desajeitada dos protagonistas, em que, por vezes, as coisas fogem de seu controle. Aliás, toda essa dinâmica de encenação do filme remete à contação de histórias, como se os personagens fossem brinquedos numa casa de bonecas e fossem conduzidos pelo narrador, quase como se, no ato de relembrar uma época com nostalgia, nos tornássemos crianças de novo e esse tom lúdico e quase infantil é evidenciado no contraste com a melancolia solitária do presente, em que a imagem é fotografada de forma relativamente menos artificial, trazendo as consequências do peso daquelas memórias no estado presente do narrador. Com tudo isso, o filme proporciona uma experiência extremamente imaginativa, em que a extravagância e a excentricidade poderiam soar aleatórios, mas alcançam uma unidade estilística em sua diversidade, deixando os elementos novos que aparecem ao longo do tempo firmarem sua participação para aí sim partir para o próximo, sem que se tornem avulsos. Wes Anderson nos propicia, então, uma viagem inusitada e instigante que está sempre se renovando em todos os seus aspectos, da trilha sonora à direção de arte. O filme nos prende do início ao fim sem parecer desesperado em manter nossa atenção. Ele faz dessa agilidade da narrativa a sua própria linguagem, dando tempo suficiente pra desenvolver os principais personagens sem precisar desacelerar muito seu ritmo. Uma agilidade que, inclusive, também se mostra irreal em alguns momentos, em consonância com os outros meios que o filme usa para concretizar sua unidade estilística e sendo também um desses meios. Assim, a sensação que fica é de uma experiência viajante e agradável magistralmente conduzida, em que a artificialidade de sua caracterização causa um efeito lúdico fascinante no espectador. Eu amei.
ROMA é daqueles filmes que conseguem pegar um recorte íntimo e específico que, ao mesmo tempo, mostram como se dão as relações em nossa sociedade. Esse relato extremamente pessoal do diretor e roteirista Alfonso Cuarón ficou comigo desde que o assisti há um mês e, por isso, decidi reassisti-lo. Essa é uma viagem rica que vale a pena ser refeita. Alfonso Cuarón sabe o quão complexas são as relações aqui desenvolvidas e, para mostrá-las, toma decisões particulares que não agradarão a maior parte do público. O jogo de câmera suave e paciente é que deixa surgir a densidade temática e narrativa, fazendo a estória e os ambientes respirarem por conta própria. Seria muito fácil optar por planos mais curtos e colocar a câmera mais perto, mas isso a tornaria uma intrusa: as sutilezas que o filme evidencia se perderiam completamente. Cuarón imprime aqui essas dinâmicas, cabe a nós lê-las. É nessa leitura que reside o impacto do filme: a partir de corriqueiras e acertivas linhas de diálogo, a dinâmica das relações de classe vai se desenhando para o espectador. Apesar daquela família gostar de Cleo, ela ainda é só a empregada e está ali para trabalhar. Yalitza Aparicio transmite com perfeição a subjugação de sua personagem, em nenhum momento fica a impressão de que ela nunca havia atuado. Sua personagem está sempre à mercê do que a rodeia e nunca lhe é permitido tomar as rédeas da própria vida ou ter voz sobre ela. Cleo segura o peso do mundo e, mesmo calada com a fala suprimida, ela se firma e vai seguindo a vida. Ela nos traz o significado da resiliência feminina junto à Sra. Sofia (Marina de Tavira) - personagem que é muito bem interpretada e que poderia facilmente cair na vilanização usual, o que, felizmente, não acontece. Foram mais que merecidas as indicações de melhor atriz e atriz coadjuvante no Oscar. Há, ainda, um trabalho interessante à base de contrastes para delinear as mensagens do filme. A insensibilidade dos membros da família e seu tratamento agressivo uns com os outros, algo que é evidenciado pela forma como as crianças se comportam. Elas aprendem pelas referências que têm e aqueles adultos não são figuras exatamente exemplares. Enquanto isso, na maior parte do tempo, a afabilidade vem da parte de Cleo, que bota as crianças para dormir e trata-as carinhosamente. Temos a realidade de um bairro mais pobre e outro de classe média; em um mesmo plano um casamento acabado e outro que começa, etc. No meio de tudo isso ainda há pinceladas do conturbado momento pelo qual o México passava na década de 70, que nos contextualizam e se entrelaçam narrativa e tematicamente com a estória principal. Cleo começa o filme limpando o chão e termina lavando roupas. Apesar dos acontecimentos pesados pelos quais ela passa, nada muda e a ela continuará relegada a função de servir a família. Ela ascende escada a cima em direção ao céu mas a perpetuação das mulheres nesses papéis faz com que ela nunca possa alçar vôo da forma que gostaria. Assim passa a vida de Cleo. E os aviões passam. ROMA é o melhor filme de 2018. Há muito mais nele do que escrito aqui. Vejam-no.
Yorgos Lanthimos cada vez mais demonstra sua astúcia no estudo de personagens e das relações humanas a partir do estilo singular desenvolvido em cada narrativa. Aqui, a história na corte inglesa do século XVIII traz à tona temas como inveja, dor, elitismo, poder, serventia, manipulação, tudo envolto em um complexo jogo de xadrez entre personagens complexas e brilhantemente desenvolvidas. Os arcos de Abigail (Emma Stone) e Sarah (Rachel Weisz) são inversos mas mutuamente propulsores e precisaram do talento dessas atrizes para serem concretizados na tela: elas têm presença e entregam a complexidade que o roteiro pede. Emma Stone mostra sua versatilidade interpretando um papel diferente daquele pelo qual ganhou o Oscar em La La Land, livrando-a de um possível estigma que surgiria se suas atuações seguintes àquele trabalho fossem similares a ele. Ela dá vida a uma engenhosa e determinada mulher, que sabe aproveitar as brechas que lhe são dadas. Rachel Weisz é imponente e a representação máxima, nesse longa, de uma insensibilidade que permeia as estórias de Lanthimos: a personagem é o maior expoente do impiedoso tratamento dos mais poderosos para os súditos. Olivia Colman (a rainha) cumpre uma tarefa difícil: não deixar caricata uma personagem que está sempre gritando. Felizmente, ela encontra o tom perfeito para nos apresentar uma mulher escandalosa por perceber que não tem tanta influência em sua própria corte, sendo sua fragilidade psicológica um reflexo da física e vice-versa. Suas atuações são favorecidas, ainda, pela montagem e direção, que sabem a hora de cortar e aproximar a câmera para fazer surgir tons irônicos e cômicos. Se qualquer uma das três levar um Oscar, será merecidíssimo. A fotografia do filme também merece destaque, agregando à estranheza característica do diretor: muito uso do contra plongee (câmera baixa apontada para cima) e de planos muito abertos, com distorção das bordas em diferentes graus, chegando ao efeito da lente Olho de Peixe. Esses recursos não são usados gratuitamente: o primeiro é uma forma de nos colocar abaixo de pessoas da realeza, fazendo-nos sentir menores que aqueles personagens, que era como a população da época os enxegava; o segundo reflete o interior dos personagens e suas moralidades deturpadas e questionáveis. Além disso, realçam a grandeza das ambientações e o detalhado design de produção, deixando-nos apreciar a beleza das composições cênicas em contraste com as ações dos que ali transitam. Certos planos desse filme poderiam ser emoldurados. A montagem e a trilha sonora também são coerentemente usados para a imersão do espectador e o desenvolvimento de uma linguagem própria. Os cortes secos transitando entre diferentes ambientes no início do filme causam um pequeno estranhamento e dão, de cara, o tom que precisamos para poder nos adaptar a essa estória e conseguir acompanhà-la. Uso de cross fades para enfatizar a dor e o desalento da rainha Anne. Tudo acompanhado por uma trilha que se utiliza de repetições de notas que marcam o desenrolar de planos de várias pessoas, conferindo peso e um ar robusto às sequências do longa. Contudo, infelizmente, ele não é perfeito: há uma repetição na metade, principalmente de um desejo de Sarah com impostos e da estrutura de sua troca de farpas com Abigail. Por um curto período, o filme, que estava se mostrando ágil em sua progressão, estagna e esse momento fez pesar para mim a duração de 2 horas. "A Favorita" é uma obra riquíssima de um diretor notável com uma mente peculiar que nos proporciona filmes igualmente únicos. As sensações incômodas pelas quais ele nos faz passar serão motivo de desgosto de parte do público, mas, se você se permitir senti-las, verá que esse longa fica com você e cresce com o passar do tempo. Filme extremamente conciso que alinha sua parte técnica às temáticas que quer contar. Definitivamente deve ser visto no cinema.
"Nasce Uma Estrela" é a quarta versão da mesma história e a única que conferi. impressionantemente, esse é o primeiro trabalho de Bradley Cooper na direção e o primeiro de Lady Gaga no papel principal. O filme é uma montanha russa de emoções: é eletrizante, hipnotizante, apaixonante, chocante, revoltante, emocionante... Tudo isso a partir de uma direção afiadíssima que acerta com precisão os momentos de fazer a câmera passear e os momentos de segurá-la, permitindo que os atores façam o show. Em todas as sequências musicais, Cooper coloca o espectador dentro da cena, fazendo-o sentir a energia do palco. Esses passeios vão tecendo a atração do casal ao mesmo tempo que fazem vir à tona a intensidade artística desses personagens: ambos possuem fervor criativo e o filme tem consciência disso, mas não os glorifica em momento nenhum. Vai na direção contrária, humanizando-os e e mostrando as diversas facetas de suas personalidades - que são complexas e densas sem se tornar distoantes umas das outras. Este é um roteiro riquíssimo, com falas e diálogos poéticos que contribuem para que conheçamos as mentes artísticas, impactando-nos em cheio assim que são ditos. Para conferir verdade e timing a esses diálogos, tornando-os certeiros, foi necessário um talentoso elenco. Lady Gaga carrega o filme e mostra sua capacidade como atriz: sua presença, tanto em cena quanto no palco, e sua intensidade - da qual ela sabe a dosagem em cada cena - saem do fundo da alma dela e atingem o fundo da alma do espectador a cada canto entoado por sua potente voz. Bradley Cooper também dá um show, surpreendendo pela afinação e beleza vocal ao cantar. Seu personagem é introspectivo, cascudo, e ele o interpreta muito bem com a voz grave e os gestos de um corpo mais encurvado, mostrando que aquele homem carrega muita coisa dentro de si. Destaque também para Dave Chappelle e Sam Elliot, que são importantìssimos em pontos chave da história e para a construção da personalidade de Jack. Há falas memoráveis ditas por cada um desses atores. Tanto as melodias e harmonias das músicas quanto suas letras são muito boas e ficam com você por dias, mesmo após a sessão. As letras dizem muito sobre os personagens e sobre as mensagens que o filme passa. O amor de Ally e Jack é genuíno, a relação é singela e toma caminhos surpreendentes: há muitas brigas, mas o perdão também encontra seu espaço nessa narrativa. Mostrar isso no século XXI é importantíssimo pois esses são tempos em que essa prática é esquecida e, em seu lugar, são colocados a vingança ou o desprezo. Há também um forte comentário sobre a indústria musical e sua crueldade: ela quer excluir a individualidade do artista para enlatá-lo e deixá-lo palatável pra venda, o que faz com que as músicas passem a ter pouco ou nenhum conteúdo, nada a dizer. O filme tem muito a dizer, ainda, sobre egoísmo, o fazer artístico, vícios, fama, paternidade... Em suma, uma obra primorosa e extremamente envolvente. Contudo, não chega à perfeição: há um uso exagerado de planos e contra-planos, o que torna certos enquadramentos repetitivos e, consequentemente, atrapalha o andamento do longa. Fora isso, excepcional. "Nasce Uma Estrela" é um dos melhores filmes de 2018 e certamente receberá indicações no Oscar. Seu final revela um novo significado para o título e eterniza a história no coração de quem assistiu. Não percam!
O Grande Circo Místico é, na realidade, uma grande colcha de retalhos desritmada e desprovida de substância: as pretensões de grandiosidade do filme acabam tornando-o um fracasso em sua execução. O longa conta a história de um Circo e das gerações que estiveram à sua frente em 100 anos de existência, sendo dividido em 5 partes. O primeiro plano dá a impressão de que o filme será uma experiência viajante e mágica. Contudo, logo os problemas começam a aparecer: quando o circo aparece a cena é uma colagem de momentos do espetáculo ao invés de um convite à entrada do espectador no mundo dito místico. Se na entrada da história o público não foi convidado a entrar, seu envolvimento com ela foi impossibilitado, inviabilizado. A problemática vem da montagem e da direção que apresentam pouquíssimo desenvolvimento das relações de causa e consequência entre os planos, o que acaba se estendendo para os segmentos do filme. Consequentemente, surge um outro problema: em um filme com uma montagem deficiente, é impossível desenvolver um número tão grande de personagens. Eles aparecem e, quando começamos a conhecê-los, corta para o próximo segmento, onde aquelas pessoas não estão mais lá. Isso provoca um grave distanciamento emocional por parte do espectador, afetando sua experiência de forma comprometedora, uma vez que ele é forçado a estar sempre se adaptando às novas histórias que aparecem sem a menor fluidez, sem a devida costura. O maior exemplo de tudo isso é no ponto de virada da personagem Margarete, que toma uma decisão encarada pelo filme como grandiosa e impactante mas que não surte nenhum desses dois efeitos em quem assiste: não fomos apresentados e envolvidos nessa vida, como podemos, então, importar-nos com ela? O filme solta faíscas de diversos assuntos: paternidade e maternidade, herança, assédio, estupro, arte, religiosidade, uso de drogas, a perseguição dos sonhos e anseios pessoais. Entretanto, nenhuma temática recebe o tempo necessário para que o filme possa delinear suas mensagens: ao tentar falar sobre coisas demais ele acaba não falando nada. Em um dado momento, o filme solta um comentário sobre imperialismo e nunca mais volta a falar disso. O mesmo acontece quando uma personagem fala em aborto e, no minuto seguinte, isso já foi esquecido. Todas essas insinuações impedem que o filme avance e cresça, tornando-o raso e despropositado. Há, ainda, uma total falta de sensibilidade para com o feminino. As cenas de nudez - que permeiam todo o longa - têm pouca ou nenhuma serventia à trama e provam-se apenas um fetiche do diretor e roteirista Cacá Diegues. Isso fica ainda mais claro quando observamos a desproporcionalidade do nu feminino com o masculino: o último aparece numa quantidade ínfima de cenas e, quando chega, não é objetificado nem escancarado. Para piorar, as mulheres aparecem sempre por baixo nas cenas de sexo, subjugadas a todo tempo pelos homens. É impressionante acreditar que Cacá chamou seu filme de feminista em entrevista... O contra-senso é tamanho que percebemos de onde o filme herdou suas falhas. Apesar de tudo isso, alguns aspectos impedem que o filme torne-se abominável. A atuação de Jesuíta Barbosa e está no tom certo para o que seu personagem pede, sendo o único que conquista a atenção do público. Além dele, Juliano Cazarré e Bruna Linzmeyer esforçam-se para dar vida a seus personagens e conseguem um trabalho satisfatório, mas são ofuscados pelos exageros e artificialidades do resto do elenco. A fotografia é belíssima com suas cores, que sabem quando ficar fortes e fracas, e a trilha sonora é recheada de boas músicas mas que estão mal distribuídas e não têm fluidez em sua entrada e saída. É uma pena que esse seja o escolhido do Brasil para tentar uma indicação ao Oscar 2019, nossas chances beiram a inexistência. "O Grande Circo Místico" falha lamentavelmente na tentativa de construir uma viagem lúdica e poética, tornando-se extremamente estafante no processo. É preciso muita habilidade na condução de propostas ousadas e, infelizmente, isso não está presente aqui. Terrível.
Só para lançar a reflexão: não há um único ator negro no elenco.
Dizer que o auto da compadecida é um dos melhores filmes brasileiros já feitos é um pleonasmo. O longa é um retrato da cultura brasileira, tão particular e vívida no sertão. Guel Arraes dirige o filme com sagacidade e se alia à montagem para criar cenas extremamente engajantes:o filme não para, cada ação tem uma consequência que desenrola-se em uma nova ação, e assim por diante como num efeito dominó. O ritmo é fluído e o resultado é um nível de imersão tão grande que mexeu fisicamente comigo. Torci pelos personagens a tal ponto que levantei-me do sofá quando as coisas aparentavam ir mal numa organização de casamento. O diretor conseguiu esse efeito utilizando a movimentação dos personagens em cena: o filme não está interessado em deixar pequenos gestos para o espectador subentender, tudo é verbalizado e gesticulado com veemência, o que de forma alguma é um demérito. Muito pelo contrário, é na ironia e nas entrelinhas desse texto denso que a tensão é criada e, para alcançar o efeito cômico, desarmada. Os atores que dão vida a essas palavras também merecem destaque: Matheus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Mello (Chicó) interpretam uma dupla icônica e são o fio condutor da narrativa, de modo que, se as atuações dos dois falhassem, o filme quebraria. Mas é contracenando entre si e com os atores coadjuvantes que eles expoem o melhor de si: o timing dos diálogos é perfeito, certeiro; de modo que todos os personagens recebem a dose certa de desenvolvimento -de acordo com a importância que têm na trama- e arrancam risadas do público. Denise Fraga, Marco Nanini, Diogo Vilela, Fernanda Montenegro, todo o elenco tem carisma de sobra e se sai muito bem na execução da atuação mais teatral. Eles conferem ao filme o tom de poesia que o texto pede, quando os diálogos, por vezes rimados, evidenciam o nordestino sotaque cantado. Essa cantoria é característica de uma contação de histórias sertaneja (como fica claro na música dos créditos "meia quadra", que tem sua letra falada de forma ligeira e bastante poética, remetendo ao sertão). É nessas condições que os diversos temas do filme aparecem: avareza, cobiça, traição, perdão, fé, superstição, mentira e, sobretudo, brasilidade. "O Auto da Compadecida" é um grande filme por si só, mas entendendo a pessoa que Ariano Suassuna foi, você entende que muito dele está ali. Seu amor incondicional pelo país, seu bom e sarcástico humor, seu orgulho em afirmar que é sertanejo... É gratificante saber que sua essência foi eternizada no cinema com essa pérola do cinema nacional. Uma experiência que te deixará com um sorriso no rosto. Quem não viu, vá ver!
Vivemos uma época na qual a ficha começa a cair sobre as injustiças com diversos grupos sociais. E "Três Anúncios Para um Crime" é um retrato de seu tempo. Martin McDonagh deveria ter sido indicado a melhor direção no Oscar, pois o que ele faz aqui é impressionante. Ele conduz o filme com sagacidade em sua movimentação de câmera (lembrando a série "Breaking Bad" em alguns momentos), sabendo balancear muito bem a comédia e o drama: é um humor debochado e intrínseco a seus personagens. A montagem é perfeita, precisa e invisível, são quase 2 horas e você não vê o tempo passando, o que resulta numa experiência muito imersiva. Se "Em Ritmo de Fuga" não estivesse indicado a melhor montagem, certamente Três Anúncios levaria o prêmio. Igualmente boas são as atuações... Frances McDormand (Mildred) dá um show, interpretando uma mulher orgulhosa em sofrimento pela perda de sua filha, mas que nunca perde a oportunidade de cutucar diversas feridas da sociedade (racismo, machismo, homofobia), as melhores cenas cômicas são dela. Woody Harrelson (Bill) apresenta argumentos que te fazem entender o lado dele, seria muito mais fácil vilanizar o personagem, e ainda bem que isso não acontece. No início a interpretação de Sam Rockwell (Dixon) pareceu caricatural, mas depois entendi que esse tipo de pessoa existe e que o personagem é mais complexo do que aparenta, no final eu entendi o porquê da indicação dele. E os dois têm uma dinâmica muito boa, podendo ser entendida até como uma relação pai e filho, já que Dixon não teve um pai presente. Algo muito interessante aqui é o fato do filme não demonizar nem glorificar nenhum de seus personagens, mesmo que suas ações sejam deploráveis, eles têm motivos para realizá-las. Ele te convida a compreendê-las para que, aí sim, você possa julgá-las. É um roteiro inteligente, tem curvas inesperadas e tem muito a dizer, foi uma justa indicação na categoria e é o provável vencedor. É sempre bom quando um filme tem uma cena memorável, e esse tem várias. As que envolvem vidro e fogo, são as minhas favoritas, auxiliadas por uma belíssima fotografia, e uma trilha sonora muito bem selecionada (que vai de música clássica a trilha sonora de faroeste sem perder a coesão narrativa). Existe hoje uma atmosfera muito hostil, muito violência no mundo. Esse filme vem como uma resposta a isso, algo precisa ser feito, mas... "Still no arrests". É como se ele dissesse: "eu sei que vocês estão vendo o problema, então por quê continuam fingindo que ele não existe? Por quê não fazem nada?". E é por isso que eu gosto tanto de como os personagens entendem que não precisam dar continuidade ao ciclo vicioso do ódio. Esse filme me emocionou em diversos níveis, e, depois de "Corra!" é meu favorito do oscar 2018. Mateus Rameh - 21.02.18
"Me Chame Pelo Seu Nome" é um dos melhores filmes do oscar que eu vi até agora... É lindo. Vi algumas pessoas afirmando que esse é o "Moonlight" de 2017, o que me soa uma comparação superficial, pois classifica como iguais todos os filmes que abordam a homossexualidade, e basta assistir a ambos para ver o quão diferentes eles são. Luca Guadagnino dirige uma obra intensa e verdadeira, que trata com delicadeza a jornada de autodescoberta de Elio (Timothee Chalamet) e seu romance com Oliver (Armie Hammer). É interessante como a relação do protagonista com o lugar muda depois da chegada do estudante: o que antes era um lugar belo, mas tedioso, passa a ser um ambiente lúdico e romântico, características realçadas pela trilha sonora, fotografia e cenários. A beleza aqui está nas sutilezas... Muito não precisa ser verbalizado, pois o corpo dos personagens fala, seja pelos olhares, por seus comportamentos, suas falas (faz parte da dinâmica deles deixar suas verdadeiras intenções implícitas), ou até mesmo no figurino: os personagens estão sempre com poucas roupas no filme, e, quando Elio está escondendo quem realmente é, ele aparece de casaco! Timothee Chalamet dá um show! Perceba a mudança de postura e comportamento quando ele está com uma certa personagem e quando ele está com Oliver: com ela, Elio parece ter controle da situação, já com ele, Elio deixa transparecer o conceito "amar é estar vulnerável". Isso sem contar que ele toca violão e piano, fala inglês, francês e italiano... É, ainda vamos ouvir falar bastante sobre esse menino. Armie Hammer também está muito bem, inicialmente, ele parece decidido, charmoso, seguro, mas ao longo do filme vamos descobrindo que não é bem assim. Eu estava achando estranho o pouco desenvolvimento da relação de Elio com seu pai, até que chegou o emocionante monólogo de Michael Stuhlbarg, e calou a minha boca. Infelizmente, o filme não é perfeito: é longo demais, e a montagem, principalmente no 1° ato, atrapalha a fluidez da narrativa. "Me Chame Pelo Seu Nome" é lindo, e com certeza deve ser visto no cinema. Ah, e você vai querer ficar até o final dos créditos... Mateus Rameh - 11.02.18
"O Som ao Redor" é um retrato cru da hostilidade do cotidiano, vista no ambiente urbano. É um filmaço, tentarei falar sobre ele sem dar muitos spoilers. Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes do atual cinema brasileiro. Aqui ele fala sobre diversas questões: a verticalização da cidade e o consequente aprisionamento nos prédios; vício, educação, segurança, tensões raciais e entre classes; escravidão e como ela se transpõe para os dias de hoje; a vida em sociedade e como ela pode ser complicada, a fragilidade das relações humanas e as barreiras entre elas, etc. Não é uma narrativa simples, nem todos vão simpatizar com ela, mas, se você o fizer, entrará num filme extremamente reflexivo e crítico, que prefere te mostrar e não contar. O resultado é um trabalho que, a cada "reassistida", mostra que ainda tem algo a dizer, é um prato cheio para quem aprecia a linguagem cinematográfica. O trabalho de direção (que é muito estiloso, inclusive) e montagem andam juntos, mostrando um altíssimo controle de espaço e tempo: quando o filme sai dos "personagens principais", ele te mostra apenas o suficiente para apresentar uma mensagem e... Corta, deixando o espectador pensativo sobre o que foi apresentado. Outro ponto a ser elogiado são os personagens: todo mundo é interessante, e o diretor sabe exatamente o tempo necessário para cada um deles explicitar isso. São pessoas muito complexas e reais, algo decorrente da construção de personagens muito bem feita, tanto no roteiro quanto nas atuações. Vale destacar também a presença de algumas metáforas ao longo do filme, como o uso do padrão de grades nas janelas dos apartamentos e em outras partes dos cenários para evidenciar o quão enjaulados alguns personagens se sentem; a placa de "perigo, tubarão" para mostrar que, na verdade, um certo personagem é o animal; o banho de sangue na sequência do engenho, mostrando o sangue dos escravos que ali foi derramado, entre outras. Eis que chegamos ao aspecto mais fascinante do filme: o som, e, principalmente, o som ao redor. A todo momento alguma coisa faz barulho no fundo, alguma coisa que não vemos na tela, seja o barulho de uma obra ou de um pássaro, um carro dando ré. É quase como se o som fosse invasor, lembrando-nos que, na cidade, a privacidade é uma ilusão. E é também a partir dele que a cidade ganha vida, tornando-se uma personagem do filme. "O Som ao Redor" é uma grande crítica à nossa sociedade (principalmente à imensa quantidade de concreto presente nela). Esse filme deve ser visto, pois é muito provável que a interpretação de vocês seja divergente da minha, e isso é sempre enriquecedor para uma obra. Viva o cinema nacional, viva o cinema pernambucano! Mateus Rameh - 30.01.18
Jumanji é uma grata surpresa! Fui ao cinema achando que ia ver um filme genérico de ação e aventura que ia me dar sono e, na verdade, me diverti! Não assisti o filme de 1995, então não posso fazer comparações... Mas posso dizer que essa nova versão funciona independentemente da antiga, o que é positivo: quem não viu o original pode se divertir com a história e quem já viu pode, além disso, pegar as referências. Confesso que, nos primeiros dez minutos, eu achei que o filme ia ser tudo o que eu pensava, pois ele apresenta os personagens todos como estereótipos: a garota popular, o cara do esporte, o nerd e a nerd. Mas assim que eles entram no jogo, todos esses clichês são ridicularizados com piadas e situações inesperadas que me fizeram gargalhar no cinema. Todos os personagens têm mais de um momento que vai te fazer rir e isso acontece por causa do imenso carisma do elenco, as interações entre são muito boas de se ver! (Com destaque pro The Rock e suas frases de efeito). Piadas com características dos jogos, com internet, com clichês do gênero, metalinguísticas, quase todas as piadas funcionam com diferentes públicos (é um filme pra se divertir em família ou com os amigos); e, quando começa a ficar cansativo, o filme mostra que está acabando e você relaxa. Os personagens são um tanto superficiais mas não chega a incomodar já que nem o filme se leva a sério... Já os efeitos especiais não são muito bons, parece que faltou dinheiro e a direção é prejudicada por causa disso, o filme perde a chance de ser memorável por causa de um visual apenas funcional e não incrível. Eu não vi em 3d, mas tive a impressão de que não faria diferença e, se você estiver em dúvida se vale a pena ou não pagar mais por causa do 3d, economize seu dinheiro. Jumanji: Bem-vindo à selva não é marcante mas é perfeito pra quem procura diversão no cinema! 19.12.2017 - Mateus Rameh
Não se engane, o título "Extraordinário" não se resume apenas a Auggie (como sugerem os trailers e sinopse), é sobre como todo mundo é extraordinário, incrível! Podemos ver isso na própria estrutura de capítulos que o filme tem, cada um destinado a um personagem. Porém, essa estrutura não é muito consistente: parece que começa um capítulo apenas para o personagem poder se apresentar ao público e dizer o que se passa em sua vida e/ou sua mente. A história dos pais não é tão aprofundada, e nem precisa ser, sabemos deles o necessário para entendê-los e simpatizar com eles; o foco é nas crianças, nos adolescentes e nas relações nesses grupos. Bullying, auto-aceitação, coragem, amor (em diversos âmbitos), perdão. Tudo isso é retradado no filme, às vezes sutilmente, às vezes nem tanto, mas sempre com muita leveza nas interações, o que faz com que o público se afeiçoe aos personagens... O trabalho com todo o elenco infantil é incrível! (Não supera o de It, mas são propostas diferentes). Auggie (Jacob Tremblay) é um menino muito inteligente, mas que acha que o mundo gira ao redor dele, e que ator talentoso! Ele te faz rir, chorar, rir e chorar, principalmente com seus pensamentos e narrações, que nos mostram o tipo de humor dele e como ele tenta levar as situações na brincadeira. Depois de Auggie, Jack Will (Noah Jupe) tem o arco mais interessante entre as crianças. Julian (Bryce Gheisar) pratica o bullying de forma tão nojenta que é impossível gostar dele ao longo do filme... O drama da Via (Izabela Vidovic) é muito interessante de ser abordado mas a atriz não é tão boa quanto a personagem pede, e o romance dela é a parte menos boa do filme. Já a relação dela com Miranda (Danielle Rose) é linda de acompanhar. Só tem um ponto na trama que não faria falta se não existisse, 5 minutos depois parece que nem aconteceu... Envolve uma morte, quem viu o filme sabe. "Extraordinário" não tem a pretensão de ser o melhor filme de todos os tempos, mas é sim muito lindo e inspirador: me deixou com vontade de tentar ser mais compreensivo com as pessoas e tentar enxergar o melhor nelas (e em mim mesmo). Vale a pena demais! 04.12.2017. Mateus Rameh
As atuações não chamam atenção nem positiva, nem negativamente, dando espaço para a espetacular atuação de Gary Oldman, que é, ao mesmo tempo, imponente, inspirador e carismático... O roteiro alia com eficácia a vida pessoal de Churchill ao cenário vivenciado pela Inglaterra durante a 2° guerra, criando um personagem carrancudo e cheio de camadas, que mesmo já sabendo sua história, o espectador se afeiçoa e torce por ele. Não obstante, o filme sugere arcos que não são desenvolvidos, como por exemplo o de Layton (Lily James), a datilógrafa de Churchill: em sua primeira cena, a impressão que fica é que ela terá maior importância dramática, o que não ocorre. O mesmo acontece com Clemmentine (Kristin Scott Thomas), que serve como dispositivo narrativo para mostrar que Winston dá mais valor à sua vida política do que à pessoal.
A fotografia conta com tons mais escuros para que possamos imergir na tensão vivenciada naquele tempo e, em contraste, tons mais quentes são usados em momentos íntimos e esperançosos. Há também a contraposição entre o visual polido da ambientação política, e o sórdido aspecto da guerra e do cotidiano social.
Joe Wright não tenta falar mais alto que seu roteiro, mas o desenvolve magistralmente. São movimentos de câmera suaves, muitos planos e contra-planos, sem muito exibiconismo, deixando a história falar por si só. Vale destacar alguns enquadramentos que o diretor faz quando o protagonista se sente encurralado, deixando a maior parte do quadro totalmente escura, literalmente espremendo Churchill.
Uma das poucas coisas que nos incomodou foi a trilha sonora no 1° ato, que faz-se presente em momentos que teriam se beneficiado de silêncios... Ela chega a assumir um ar cômico que destoa do restante do filme, mas é eficaz ao nos aproximar rapidamente do protagonista. Conforme o tempo vai passando, a trilha sonora vai melhorando, até chegar num tom épico de dar arrepios na cena final.
"O Destino de uma Nação" não se preocupa em retratar fielmente a figura de Winston Churchill, chegando a suavizá-la e romantizá-la. Mas dentro do que se propõe é muito bem executado, contando uma história inspiradora que nos envolve emocionalmente com fatos ocorridos há mais de 70 anos.
Esperávamos que Roda Gigante seria um filme teatral demais (algo que é sugerido nos primeiros minutos), mas nos surpreendemos ao ver que ele acerta no tom, te fazendo rir em certos momentos, e ficar tenso em outros...
A principal personagem do filme é Ginny (Kate Winslet) que é uma mulher muito sonhadora presa a um casamento infeliz mas que finge estar bem pelo filho (o que é traduzido em seu sonho de carreira: ela quer ser atriz, viver outras vidas, e por isso a sua própria é feita de mentiras e fingimento). Ela está muito bem em seu papel, porém, se a personagem surtasse menos no início, o impacto do seu desfecho no 3° ato seria maior... Parece que o diretor não soube a hora de cortar nos monólogos. Outro que sofre com essa falha é o personagem Humpty (Jim Belushi) em sua primeira cena, na qual ele fica se repetindo, mas ele atua bem no resto do filme. Mickey (Justin Timberlake) foi uma surpresa, ele superou muito o que vimos em "O Preço do Amanhã" de 2011, representando um salva-vidas romântico que não é sonso. Carolina (Juno Temple) serve bem ao seu papel mas não se destaca do resto do elenco. O filho Richie (Jack Gore) é o personagem mais engraçado, nós rimos todas as vezes que o filme cortou para ele fazendo uma fogueira... Ele é o único personagem sem um arco narrativo, em um momento ele aparenta ter sido esquecido na trama, mas isso é proposital, mostrando que os pais estão se preocupando mais com seus próprios problemas do que com a vida de seu filho... O recurso da quebra da 4° parede é bastante utilizado no início, mas é progressivamente deixado de lado, e acaba dando a impressão de ter sido um facilitador narrativo para nos introduzir à trama. Parques de diversões estão muito associados a uma fuga da realidade, lugares perfeitos, e é justamente isso que os personagens Ginny e Mickey buscam, os dois estão sempre romantizando suas vidas, e isso é representado no lugar onde moram/ trabalham. Outra fuga relacionada a esse local é a fuga literal de Carolina, que está sendo perseguida pela Máfia. O nome Roda Gigante explicita perfeitamente a trama do filme: cheia de traições e mentiras, numa hora um personagem está por cima e, quando menos espera, é empurrado para a parte de baixo da Roda (o nome em inglês "Wonder Wheel" traz, ainda, uma ironia pelo fato de que esses acontecimentos que giram a vida das personagens não são tão maravilhosos assim). A fotografia é composta principalmente pelas cores azul e vermelho, a primeira representando a melancolia e a segunda raiva e paixão (também com um pouco de amarelo, usado na personagem Carolina, traduzindo suas expectativas e seu otimismo). As iluminação se assemelha à de uma peça de teatro, destacando as personagens principais do que está em cena. Os movimentos de câmera são suaves mas enchem os olhos, e alguns enquadramentos transmitem os sentimentos dos personagens sem a necessidade de verbaliza-los, mesmo sendo um filme repleto de diálogos (como por exemplo o enquadramento em que dois personagens estão separados por uma barreira que faz parte do cenário). A trilha sonora é maravilhosa, com canções românticas de Jazz que transmitem a atmosfera daquele tempo, você vai querer ouvir todas elas assim que a sessão acabar... O filme ainda conta com um final corajoso, que pega seu público de surpresa, não dá todas as respostas e nos agradou bastante! Recomendadíssimo e, se possível, assista no cinema! 07.01.18 - Gabriel e Mateus Rameh
Admito que esperava um pouco do filme, eu já tinha visto Fargo e gostei do trabalho dos irmãos Coen, e imaginei que fosse sair algo interessante de um filme escrito por eles, dirigido pelo George Clooney e com Matt Damon e Julianne Moore no elenco... Me enganei completamente. Suburbicon tem o maior acervo de personagens canastrões que eu já vi reunidos em um único filme, e todos eles mal interpretados (com exceção do personagem de Oscar Isaac, que é um dos que têm menos tempo em tela). Você não consegue ver um desenvolvimento claro dos personagens e de suas tramas, todos eles começam de um jeito e terminam do mesmo jeito. E aí chegamos à pior parte do filme: a questão do racismo. A família negra é apresentada no filme e logo vemos que a cidade toda é racista, menos a família branca que vamos acompanhar durante o longa. Deduzimos, então, que essas duas famílias, ou pelo menos seus filhos, terão laços estreitados (no mínimo). E não é o que acontece. Ao invés disso, a história envereda-se por um caminho desinteressante e extremamente mal conduzido por George Clooney, que só usa planos fechados, tornando o filme enfadonho. Se retirássemos toda a trama da família negra do roteiro, não faria diferença, pois não é mostrada qualquer relação entre esse arco e o arco principal. Outra coisa que não faz sentido é o subaproveitamento da cidade, que é apresentada no início como um lugar maravilhoso, mas vemos pouco dela, o que não faz sentido num filme chamado "suburbicon: bem vindos ao paraíso" Pra não dizer que o filme não tem nada bom, eu ri em algumas horas, a fotografia é boa e o personagem do Oscar Isaac rouba a cena, fora isso, terrível, filme totalmente desconjuntado.
Azougue Nazaré
3.9 34Com uma identidade única, Azougue Nazaré é uma ode à liberdade e, para abordá-la, trabalha a partir de dualidades numa estrutura relativamente livre também: a religião evangélica que engessa as relações e inclusive se mostra hipócrita e oportunista é contrastada com o maracatu que propõe o encontro e uma leveza maiores, com seus membros tendo relações muito sinceras; os corpos rígidos dos evangélicos contrapostos à corporalidade vibrante do maracatu. Tudo isso é muito bem sintetizado na figura de Catita: na primeira cena em que chega em casa, fecha atrás de si um portão com grades, como se aquilo fosse uma prisão para ele, um lugar onde não pode ser quem é e tem de se trancafiar não só num espaço físico, mas também na maneira de se vestir. A partir disso, a câmera parece clamar por uma liberdade dos corpos, evocando uma urgência irreverente por ela em seus movimentos ágeis e no fato de não se estabilizar durante a maior parte do tempo, sempre com um leve tremor, num estilo de câmera na mão. É como se ela agitasse o grupo do maracatu e incitasse em seus membros a coragem para buscar aquilo com que se sentem bem.
É interessante também como, ao mesmo tempo, o filme se propõe a valorizar a irreverência como forma de resistência e a reverenciar e homenagear a cultura do maracatu: ao trazer o folclore e, principalmente, a figura protetora do caboclo de lança como uma entidade quase lendária, o filme engrandece essas tradições. Há um flerte muito marcante com o sobrenatural que, apoiado na trilha sonora e no figurino, faz a experiência carregar em si um efeito entorpecente eufórico, culminando numa disruptividade que termina por caracterizar a proposta narrativa do filme: o final, por exemplo, toma uma liberdade poética digna dos efeitos de uma bebida alucinógena… É com esses elementos sobrenaturais e com essa disruptividade que o filme é ao mesmo tempo homenageia a cultura do maracatu e mostra a sua potência irrefreável.
No entanto, a montagem fez com que o final não fosse tão forte para mim quanto poderia. A alternância entre os trechos mais fantásticos e os mais realistas não encontra muita fluidez e a sensação de progressão fica prejudicada. A estrutura segmentada vai gerando uma expectativa que nunca é tão satisfatoriamente cumprida quanto poderia: as aparições dos caboclos, por exemplo, têm uma atmosfera e uma força dramática inquietantes, mas suas não vemos muito do que suas ações causaram. Certos acontecimentos parecem vir repentinamente e não ter muitas consequências, chegando até a soar avulsos em alguns momentos,
como a queimada na mata pelo grupo cristão enfurecido e o apagão na cidade.
Por outro lado, a percepção de que esses momentos drásticos não parecem ter impactos práticos tão evidentes faz sentido dentro da ideia de disruptividade onírica, ou seja, há um senso de rompimento em relação à causalidade de alguns eventos, em relação à noção sequencial deles, que gera e impulsiona um descolamento do real junto aos elementos sobrenaturais. Isso também reforça as dualidades que o filme trabalha, uma vez que tais momentos podem ser interpretados como a representação do imaginário e do estado de espírito daquela população e daqueles personagens. É um estado de conflito e de choque entre essas duas religiosidades que se reflete tanto em suas ações como em seus modos de vida, um choque que se dá até em situações banais do cotidiano, como a conversa entre o pastor e os mestres na praça.
Assim, Azougue Nazaré trabalha muito bem uma liberdade estética para abordar sua temática libertadora na narrativa. Nesse sentido, o filme encontra espaço para desenvolver seus personagens tanto através do drama como do humor, se valendo até de elementos de terror para construir sua mística. Essa mistura de tons que caracteriza dinâmicas de relações essencialmente pernambucanas (quem sabe até nordestinas, mas não me arrisco a falar pelo nordeste todo), com uma rudeza que, frequentemente, é carregada de muito afeto.
No fim, a preocupação do filme é mais com uma experiência sensorial potente do que com um final completamente amarrado. Isso, na verdade, poderia amarrar seu espírito livre, que se manifesta através da dança e da cultura tão características. Porém, para alcançar um efeito sensorial poderoso, o filme poderia ter trabalhado melhor uma estrutura que puxasse o freio com menos frequência e, ao invés disso, pisasse no acelerador para se deixar fluir até culminar num fim ainda mais catártico. De qualquer forma, é uma proposta única que se concretiza de forma marcante. Fico curioso para ver os próximos filmes que Tiago Melo vier a dirigir.
Conto de Cinema
3.5 18 Assista AgoraPrimeiro filme de Hong Sang-soo que vi e sinto que comecei muito bem.
Todo o "primeiro ato", no caso a parte que é um filme dentro filme, me causou muita aflição. O diretor consegue imprimir um senso de falta de sentido e despedida muito forte em todo o segmento que precede a tentativa de suicídio. Ele faz isso a partir de uma certa casualidade aparente que acaba por se tornar brutal quando percebemos o profundo e angustiante desamparo em que Sang-Won e Yeong-Sil encontram-se. Esse desamparo faz com que a morte, nos termos em que a planejam, não seja algo horrendo para eles a princípio. O pensamento de que ela pode finalmente trazer um sentido grandioso às suas vidas insignificantes é naturalizado por eles e a forma também natural como Hong Sang-soo filma isso torna todo o segmento ainda mais pesado de acompanhar: nós sabemos que aquilo é absurdo, mas os personagens já estão psicologicamente fragilizados a tal ponto que parecem anestesiados ao horror dos próprios planos.
Depois de falharem na tentativa de transar, Songwan sonha com uma mulher que veste vermelho, aqui possivelmente entendido como a cor do amor. Ela lhe oferece uma maçã. Ela é a própria serpente oferecendo o fruto proibido, então ele recusa e, depois disso, quando acorda e machuca Yeong-Sil em outra tentativa de transar, propõe que devem morrer castos, sem fazer amor. É como se seu amor fosse impossível, fadado à ruína, como se desfrutar daquele prazer fosse de fato proibido e a única forma de vivenciar algo significativo seria através da morte, quase como uma redenção pelas vidas desprovidas de virtudes que levaram até ali, pelas tentações que sofreram. É nesse senso de perdição entorpecida que reside a potência dramática do primeiro segmento que me causou tanta aflição.
Além disso, a abordagem parcimoniosa na encenação traz um realismo que se encaixa muito bem à trama intimista do filme e à sua temática, conferindo à narrativa uma fluidez entre o real e o ficcional. Tal fluidez é traduzida visualmente pelo uso do zoom: ao aproximar ou afastar o zoom, Hong Sang-soo nos coloca dentro daquela realidade através da câmera, redirecionando nosso olhar para enfatizar o que as ações, por si sós, já transparecem. Quando ele faz isso, testemunhamos aquela situação diante de nós como se estivéssemos espiando-a, quase de maneira voyeurista. Por isso, quando acontece a virada da primeira para a segunda parte, ela não é anunciada, é extremamente discreta e o diretor continua usando a mesma linguagem na câmera: sem nem percebermos, o que era um filme dentro de um filme já passou a ser a realidade dos personagens, ou seja, o limiar entre a realidade e a ficção é impreciso e ambos se misturam. Esse vai ser o próprio mote da história, que é traduzido brilhantemente pelo visual do filme.
Assim, na segunda parte, o filme mantém seu pulso narrativo não mais através da iminência de um evento trágico, mas das readaptações que o público tem que fazer para entender o que era parte do filme e o que era próprio da realidade. Isso gera um senso de desorientação e instabilidade que deixa a trama ainda mais estimulante e nos coloca na pele do novo protagonista: Dong-su. É aí que o filme se torna o exemplo perfeito do ditado "a arte imita a vida que imita a arte", quando os personagens perguntam se certas ações são "como no filme": é como se as coisas fossem sacralizadas quando colocadas na tela grande. Elas são evidenciadas, tomadas como modelo e colocadas num patamar “digno de ser representado”, dada a magnitude da potência sensorial que uma sala de cinema possibilita transmitir.
Elementos como o cigarro Marlboro vermelho, o modo como apertam as mãos, a própria trama do suicídio foram vividos e inventados por Dong-su ou foram imitados por ele? Não há uma definição para o público porque não há também para o personagem, esses limites se turvam, se misturam e se confundem para ele, que vai entrando cada vez mais na obsessão de emular os eventos do filme na tentativa de sentir que também pode ser importante. Isso até ouvir que talvez não tivesse entendido o filme de fato. Ele estava pensando em tudo a partir dos próprios egoísmos, de suas visões unilaterais e egocêntricas, algo que é comentado por Yeong-Sil quando ela diz que "quando você faz parte de um grupo de diretores, acaba pensando assim. Basta encontrar uma coincidência para pensar que é por sua causa". Essa também é uma questão do filme.
Esses artistas, esses cineastas anseiam por uma tragicidade quase teatral, fantasiam romanticamente com ela e vivem as próprias vidas nessa intensidade trágica ou buscando-a: uma tragicidade que os tire da banalidade do cotidiano e que traga mais importância pra própria existência, conferindo mais sentido a ela. Desse modo, perde-se a medida do que é concreto e próprio da realidade, havendo dificuldade em aceitar sua crueza, é como se Dong-su desejasse viver num filme, numa utopia fílmica onde não necessariamente tudo é bom, perfeito e os finais são felizes, mas sim onde tudo é significativo. Ele não pode ter a história, tal como viu no cinema, porque ela é fictícia e, portanto, inalcançável e intangível, porém, justamente por isso ele quer tê-la ainda mais, porque é "proibida", quase divina em sua elegância... É por isso que ele fica tão obcecado pela atriz, porque ela é um anjo e ele, ao próprio ver, um mortal, uma pessoa comum que almeja um lugar de prestígio que o tire dessa condição em que, por se sentir envolto em trivialidade, ele se enxerga como fracassado. Então, quando ele descobre que a atriz não tem cicatrizes, que ela não é uma figura misteriosa com segredos obscuros e que ela é uma mulher normal como qualquer outra, ele perde um pouco do encanto e passa a conseguir olhar de maneira mais empática para os outros, revisando a conduta que teve com Yeong-sil de buscá-la para que servisse às próprias necessidades. É por isso que o final é tão bom, porque ele percebe que precisa refletir para sair de tudo isso, para viver bastante. Para, quem sabe, finalmente entender o filme e a verdade humana que ele traz, num exercício de compaixão pelas vidas alheias e pelas histórias contadas no cinema.
Esse é um filme que, além de ter muito a dizer, tem uma forma intrigante e provocativa de dizer. Alcança muita profundidade a partir de uma linguagem simples e intimista, mostrando que o cinema é livre, menos calculado do que alguns tentam fazer parecer, e suas possibilidades, infinitas. Fiquei curioso para conferir outros filmes de Hong Sang-soo. Acho que comecei bem.
Rastros de Ódio
4.1 264 Assista AgoraPrimeiro filme do Ford que vi. Essa encenação bastante clássica e formal que o filme traz evoca uma solenidade que coloca as tradições e o modelo de vida brancos como inerentemente íntegros e virtuosos. Os personagens são sempre posicionados harmoniosamente no enquadramento, em poses que evidenciam a natureza orquestrada do plano cinematográfico e potencializam, dentro dessa encenação clássica, movimentos e gestos que parecem perfeitamente sincronizados com o movimento da câmera, que se ajustam e/ou influenciam a câmera a se ajustar para encontrar essa posição ideal, esse retrato do estadunidense exemplar do passado. Um modelo que possibilitará que, um dia, esse país seja um bom lugar para se viver, como é dito pela Sra. Jorgensen. Esses homens íntegros apenas cedem à truculência por necessidade, o amargurado Ethan é obstinado e se vale da brutalidade de maneira e com um propósito justos: impedir que a selvageria indígena se espalhe pelos Estados Unidos e permitir que sua nação se torne grande novamente. Tudo isso seria muito bonito, muito inspirador, se não fosse extremamente perigoso.
Fica nítido que o filme carrega uma moral colonialista e civilizatória problemática e, para sustentá-la, omite e abranda sistematicamente as atrocidades cometidas pelo homem branco, que se apropria de uma terra que não é sua através da invasão. Vai se firmando essa concepção ilusória e delirante de que há não apenas uma superioridade dos brancos em relação ao resto dos povos, mas também de que a própria noção de humanidade está contida neles. Essas ideias podem ser internalizadas pelo espectador se este se deixar levar pela emoção e pela sensação satisfatória do final.
Assim, Rastros de Ódio é um filme tecnicamente impecável e inventivo em sua condução pelo Ford e pode ser apreciado por isso, principalmente por ser o que o torna envolvente. Entretanto, ele deve ser questionado (como já é) em relação ao que sua mensagem comunica, para que possamos olhar para o futuro tendo o cuidado de não perpetuar os esteriótipos nem ser coniventes com pensamentos e atos discriminatórios e prejudiciais à humanidade como um todo. É uma boa síntese do que não fazer, um exemplo perfeito do processo de se olhar para o passado a fim de compreender o presente e estabelecer novos parâmetros para o futuro.
Destacamento Blood
3.8 448 Assista AgoraA abordagem mais direta do Spike Lee nesse filme teve uma eficiência irregular comigo. Na montagem, a inserção perspicaz das fotos e imagens de arquivo escancara a realidade tal como é, sem pudor ou eufemismos ao mostrar os efeitos do racismo, além de enaltecer figuras negras com o respeito que merecem. Por mais que eu goste do Spike Lee afrontoso, acho que essa abordagem direta não funciona tão bem assim nos diálogos e na encenação, pelo menos durante a primeira metade do filme. Ele traz algumas frases prontas que acabam ficando redundantes e banalizam o discurso do filme, além de outros elementos, como a música do apocalypse now na hora que eles estão no barco. Não é nenhum grande momento, o modo como a cena é filmada não comunica nada pro espectador e a música acaba não elevando nenhuma sensação, só tá ali meio ilustrativa e gratuita, chegando até a soar manipulativa. Esse é só um dos exemplos de como o filme tá sempre tentando evidenciar o que tá fazendo. O que não é necessariamente problemático, como por exemplo a mudança da razão de aspecto, que é declarada mas interessante. O problema é que, na maioria das vezes em que isso acontece, já tinha ficado claro qual era o papel daquele elemento que ele tava tentando evidenciar e ele insiste em sublinhar, o que me fez pensar "é mesmo? Não me diga?". Como por exemplo num momento em que a última coisa dita numa música é "right on" e aí literalmente na cena seguinte o personagem Paul fala isso também, o que, a princípio, fortalece o significado da canção pro filme. Mas aí ele fala isso uma segunda, uma terceira, uma quarta vez e banaliza a frase. Aliás, essa questão da dosagem exagerada de alguns elementos é recorrente e acontece também quando eles estendem os braços e juntam os punhos. É uma imagem poderosa que passa a sensação de união do grupo e nos faz torcer pelos personagens. Mas na cena seguinte, eles fazem isso de novo. Fica previsível e tira a força que o gesto tem, banaliza-o. É um gesto que inclusive vai ser repetido quando eles encontram o cadáver do Norman e teria muito mais força e significado se fosse guardado pra esse momento de maior emoção. E a mesma previsibilidade vale pras cenas de morte de Eddie e Paul. Elas se anunciam e a gradação delas é artificial, o que tira totalmente o fator surpresa quando elas se consumam. Somando a tudo isso o fato de que algumas cenas parecem filmadas de qualquer jeito, sem muito esmero e meio genéricas, a primeira metade do filme acaba ficando num lugar comum pouco instigante. Até os primeiros flashbacks de batalha acabam não sendo tão impactantes quanto poderiam: nesse ponto do filme, ainda não conseguimos distinguir tão bem os personagens, não estamos acostumados com suas feições, o que, junto ao uniforme camuflado e o fato deles serem constantemente filmados de costas, dificulta a percepção clara da sequência.
Surpreendentemente, a coisa muda quando a tensão começa a aumentar, principalmente quando a primeira mina terrestre explode. As cenas com mais ação passam a funcionar melhor, parecem mais bem trabalhadas, a localização espacial dos personagens fica mais clara. O temor e o senso de urgência pela vida dos personagens é melhor conduzido pelo Spike Lee e as condições extremas nas quais os personagens se encurralam acabam por revelar mais camadas deles e aprofundar as discussões do filme. A quem verdadeiramente pertence aquele ouro tão cobiçado? Aos vietnamitas ou aos estadunidenses? Havia mesmo atrocidades dos dois lados? Em que ponto a perseverança vira uma ganância cega e destrutiva? Sem contar com toda a mítica do Stormin' Norman que pra mim é a melhor coisa do filme. Todo o ar lendário que é construído ao redor dele torna ainda mais satisfatório o final, quando os personagens concretizam o objetivo de resgatar o ouro. É como se ele, enterrado ali, fosse as raízes que impulsionaram bons frutos como o Black lives matter no final, que recebeu 2 milhões de dólares porque assim ele propôs, passando a ser uma figura inspiradora não só pros Bloods, mas também pro público. O filme começa a ganhar traços mais próprios e se distanciar da forma genérica que predominou na primeira metade. Assim, embora ele puxe um sentimentalismo nas atuações que não me pegou e que acabou soando um pouco artificial em alguns momentos, o final foi satisfatório e fez valer a pena a assistida.
Ainda assim, de forma geral, sinto que ao invés de ter um impacto pungente e contundente no espectador, essa abordagem direta se torna anunciada e óbvia, acabando por se autossabotar na maior parte do tempo. O final compensa em certa medida, mas acho que, pelo início tão arrastado, não o veria de novo. Uma pena, a montagem inicial e a mudança estética e estilística dos anos 70 pros dias atuais pareciam mais promissoras.
O Grande Hotel Budapeste
4.2 3,0KO filme traz uma artificialidade em todos os seus aspectos que atinge seu objetivo no espectador: a ideia não é reproduzir a realidade, tanto que as ambientações são todas fictícias, mas sim representar e, para isso, os cenários passam a ser ilustrativos, ou seja, servem para nos dar a ideia do que aconteceu, mesmo que não tenha acontecido na realidade, evidenciando as relações entre os personagens sem questionarmos o compromisso do filme com o absurdo. Focamos no que aconteceu, sem nos importar com o entorno ser claramente falso. Pelo contrário, isso nos deixa ainda mais empolgados e imersos nessa jornada absurda e desajeitada dos protagonistas, em que, por vezes, as coisas fogem de seu controle. Aliás, toda essa dinâmica de encenação do filme remete à contação de histórias, como se os personagens fossem brinquedos numa casa de bonecas e fossem conduzidos pelo narrador, quase como se, no ato de relembrar uma época com nostalgia, nos tornássemos crianças de novo e esse tom lúdico e quase infantil é evidenciado no contraste com a melancolia solitária do presente, em que a imagem é fotografada de forma relativamente menos artificial, trazendo as consequências do peso daquelas memórias no estado presente do narrador. Com tudo isso, o filme proporciona uma experiência extremamente imaginativa, em que a extravagância e a excentricidade poderiam soar aleatórios, mas alcançam uma unidade estilística em sua diversidade, deixando os elementos novos que aparecem ao longo do tempo firmarem sua participação para aí sim partir para o próximo, sem que se tornem avulsos. Wes Anderson nos propicia, então, uma viagem inusitada e instigante que está sempre se renovando em todos os seus aspectos, da trilha sonora à direção de arte. O filme nos prende do início ao fim sem parecer desesperado em manter nossa atenção. Ele faz dessa agilidade da narrativa a sua própria linguagem, dando tempo suficiente pra desenvolver os principais personagens sem precisar desacelerar muito seu ritmo. Uma agilidade que, inclusive, também se mostra irreal em alguns momentos, em consonância com os outros meios que o filme usa para concretizar sua unidade estilística e sendo também um desses meios.
Assim, a sensação que fica é de uma experiência viajante e agradável magistralmente conduzida, em que a artificialidade de sua caracterização causa um efeito lúdico fascinante no espectador. Eu amei.
Roma
4.1 1,4K Assista AgoraROMA é daqueles filmes que conseguem pegar um recorte íntimo e específico que, ao mesmo tempo, mostram como se dão as relações em nossa sociedade. Esse relato extremamente pessoal do diretor e roteirista Alfonso Cuarón ficou comigo desde que o assisti há um mês e, por isso, decidi reassisti-lo. Essa é uma viagem rica que vale a pena ser refeita.
Alfonso Cuarón sabe o quão complexas são as relações aqui desenvolvidas e, para mostrá-las, toma decisões particulares que não agradarão a maior parte do público. O jogo de câmera suave e paciente é que deixa surgir a densidade temática e narrativa, fazendo a estória e os ambientes respirarem por conta própria. Seria muito fácil optar por planos mais curtos e colocar a câmera mais perto, mas isso a tornaria uma intrusa: as sutilezas que o filme evidencia se perderiam completamente. Cuarón imprime aqui essas dinâmicas, cabe a nós lê-las.
É nessa leitura que reside o impacto do filme: a partir de corriqueiras e acertivas linhas de diálogo, a dinâmica das relações de classe vai se desenhando para o espectador. Apesar daquela família gostar de Cleo, ela ainda é só a empregada e está ali para trabalhar. Yalitza Aparicio transmite com perfeição a subjugação de sua personagem, em nenhum momento fica a impressão de que ela nunca havia atuado. Sua personagem está sempre à mercê do que a rodeia e nunca lhe é permitido tomar as rédeas da própria vida ou ter voz sobre ela. Cleo segura o peso do mundo e, mesmo calada com a fala suprimida, ela se firma e vai seguindo a vida. Ela nos traz o significado da resiliência feminina junto à Sra. Sofia (Marina de Tavira) - personagem que é muito bem interpretada e que poderia facilmente cair na vilanização usual, o que, felizmente, não acontece. Foram mais que merecidas as indicações de melhor atriz e atriz coadjuvante no Oscar.
Há, ainda, um trabalho interessante à base de contrastes para delinear as mensagens do filme. A insensibilidade dos membros da família e seu tratamento agressivo uns com os outros, algo que é evidenciado pela forma como as crianças se comportam. Elas aprendem pelas referências que têm e aqueles adultos não são figuras exatamente exemplares. Enquanto isso, na maior parte do tempo, a afabilidade vem da parte de Cleo, que bota as crianças para dormir e trata-as carinhosamente. Temos a realidade de um bairro mais pobre e outro de classe média; em um mesmo plano um casamento acabado e outro que começa, etc. No meio de tudo isso ainda há pinceladas do conturbado momento pelo qual o México passava na década de 70, que nos contextualizam e se entrelaçam narrativa e tematicamente com a estória principal.
Cleo começa o filme limpando o chão e termina lavando roupas. Apesar dos acontecimentos pesados pelos quais ela passa, nada muda e a ela continuará relegada a função de servir a família. Ela ascende escada a cima em direção ao céu mas a perpetuação das mulheres nesses papéis faz com que ela nunca possa alçar vôo da forma que gostaria. Assim passa a vida de Cleo. E os aviões passam.
ROMA é o melhor filme de 2018. Há muito mais nele do que escrito aqui. Vejam-no.
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraYorgos Lanthimos cada vez mais demonstra sua astúcia no estudo de personagens e das relações humanas a partir do estilo singular desenvolvido em cada narrativa. Aqui, a história na corte inglesa do século XVIII traz à tona temas como inveja, dor, elitismo, poder, serventia, manipulação, tudo envolto em um complexo jogo de xadrez entre personagens complexas e brilhantemente desenvolvidas.
Os arcos de Abigail (Emma Stone) e Sarah (Rachel Weisz) são inversos mas mutuamente propulsores e precisaram do talento dessas atrizes para serem concretizados na tela: elas têm presença e entregam a complexidade que o roteiro pede. Emma Stone mostra sua versatilidade interpretando um papel diferente daquele pelo qual ganhou o Oscar em La La Land, livrando-a de um possível estigma que surgiria se suas atuações seguintes àquele trabalho fossem similares a ele. Ela dá vida a uma engenhosa e determinada mulher, que sabe aproveitar as brechas que lhe são dadas. Rachel Weisz é imponente e a representação máxima, nesse longa, de uma insensibilidade que permeia as estórias de Lanthimos: a personagem é o maior expoente do impiedoso tratamento dos mais poderosos para os súditos. Olivia Colman (a rainha) cumpre uma tarefa difícil: não deixar caricata uma personagem que está sempre gritando. Felizmente, ela encontra o tom perfeito para nos apresentar uma mulher escandalosa por perceber que não tem tanta influência em sua própria corte, sendo sua fragilidade psicológica um reflexo da física e vice-versa. Suas atuações são favorecidas, ainda, pela montagem e direção, que sabem a hora de cortar e aproximar a câmera para fazer surgir tons irônicos e cômicos. Se qualquer uma das três levar um Oscar, será merecidíssimo.
A fotografia do filme também merece destaque, agregando à estranheza característica do diretor: muito uso do contra plongee (câmera baixa apontada para cima) e de planos muito abertos, com distorção das bordas em diferentes graus, chegando ao efeito da lente Olho de Peixe. Esses recursos não são usados gratuitamente: o primeiro é uma forma de nos colocar abaixo de pessoas da realeza, fazendo-nos sentir menores que aqueles personagens, que era como a população da época os enxegava; o segundo reflete o interior dos personagens e suas moralidades deturpadas e questionáveis. Além disso, realçam a grandeza das ambientações e o detalhado design de produção, deixando-nos apreciar a beleza das composições cênicas em contraste com as ações dos que ali transitam. Certos planos desse filme poderiam ser emoldurados.
A montagem e a trilha sonora também são coerentemente usados para a imersão do espectador e o desenvolvimento de uma linguagem própria. Os cortes secos transitando entre diferentes ambientes no início do filme causam um pequeno estranhamento e dão, de cara, o tom que precisamos para poder nos adaptar a essa estória e conseguir acompanhà-la. Uso de cross fades para enfatizar a dor e o desalento da rainha Anne. Tudo acompanhado por uma trilha que se utiliza de repetições de notas que marcam o desenrolar de planos de várias pessoas, conferindo peso e um ar robusto às sequências do longa. Contudo, infelizmente, ele não é perfeito: há uma repetição na metade, principalmente de um desejo de Sarah com impostos e da estrutura de sua troca de farpas com Abigail. Por um curto período, o filme, que estava se mostrando ágil em sua progressão, estagna e esse momento fez pesar para mim a duração de 2 horas.
"A Favorita" é uma obra riquíssima de um diretor notável com uma mente peculiar que nos proporciona filmes igualmente únicos. As sensações incômodas pelas quais ele nos faz passar serão motivo de desgosto de parte do público, mas, se você se permitir senti-las, verá que esse longa fica com você e cresce com o passar do tempo. Filme extremamente conciso que alinha sua parte técnica às temáticas que quer contar. Definitivamente deve ser visto no cinema.
Nasce Uma Estrela
4.0 2,4K Assista Agora"Nasce Uma Estrela" é a quarta versão da mesma história e a única que conferi. impressionantemente, esse é o primeiro trabalho de Bradley Cooper na direção e o primeiro de Lady Gaga no papel principal.
O filme é uma montanha russa de emoções: é eletrizante, hipnotizante, apaixonante, chocante, revoltante, emocionante... Tudo isso a partir de uma direção afiadíssima que acerta com precisão os momentos de fazer a câmera passear e os momentos de segurá-la, permitindo que os atores façam o show. Em todas as sequências musicais, Cooper coloca o espectador dentro da cena, fazendo-o sentir a energia do palco. Esses passeios vão tecendo a atração do casal ao mesmo tempo que fazem vir à tona a intensidade artística desses personagens: ambos possuem fervor criativo e o filme tem consciência disso, mas não os glorifica em momento nenhum. Vai na direção contrária, humanizando-os e e mostrando as diversas facetas de suas personalidades - que são complexas e densas sem se tornar distoantes umas das outras. Este é um roteiro riquíssimo, com falas e diálogos poéticos que contribuem para que conheçamos as mentes artísticas, impactando-nos em cheio assim que são ditos.
Para conferir verdade e timing a esses diálogos, tornando-os certeiros, foi necessário um talentoso elenco. Lady Gaga carrega o filme e mostra sua capacidade como atriz: sua presença, tanto em cena quanto no palco, e sua intensidade - da qual ela sabe a dosagem em cada cena - saem do fundo da alma dela e atingem o fundo da alma do espectador a cada canto entoado por sua potente voz. Bradley Cooper também dá um show, surpreendendo pela afinação e beleza vocal ao cantar. Seu personagem é introspectivo, cascudo, e ele o interpreta muito bem com a voz grave e os gestos de um corpo mais encurvado, mostrando que aquele homem carrega muita coisa dentro de si. Destaque também para Dave Chappelle e Sam Elliot, que são importantìssimos em pontos chave da história e para a construção da personalidade de Jack. Há falas memoráveis ditas por cada um desses atores.
Tanto as melodias e harmonias das músicas quanto suas letras são muito boas e ficam com você por dias, mesmo após a sessão. As letras dizem muito sobre os personagens e sobre as mensagens que o filme passa. O amor de Ally e Jack é genuíno, a relação é singela e toma caminhos surpreendentes: há muitas brigas, mas o perdão também encontra seu espaço nessa narrativa. Mostrar isso no século XXI é importantíssimo pois esses são tempos em que essa prática é esquecida e, em seu lugar, são colocados a vingança ou o desprezo. Há também um forte comentário sobre a indústria musical e sua crueldade: ela quer excluir a individualidade do artista para enlatá-lo e deixá-lo palatável pra venda, o que faz com que as músicas passem a ter pouco ou nenhum conteúdo, nada a dizer.
O filme tem muito a dizer, ainda, sobre egoísmo, o fazer artístico, vícios, fama, paternidade... Em suma, uma obra primorosa e extremamente envolvente. Contudo, não chega à perfeição: há um uso exagerado de planos e contra-planos, o que torna certos enquadramentos repetitivos e, consequentemente, atrapalha o andamento do longa. Fora isso, excepcional.
"Nasce Uma Estrela" é um dos melhores filmes de 2018 e certamente receberá indicações no Oscar. Seu final revela um novo significado para o título e eterniza a história no coração de quem assistiu. Não percam!
O Grande Circo Místico
2.2 138O Grande Circo Místico é, na realidade, uma grande colcha de retalhos desritmada e desprovida de substância: as pretensões de grandiosidade do filme acabam tornando-o um fracasso em sua execução. O longa conta a história de um Circo e das gerações que estiveram à sua frente em 100 anos de existência, sendo dividido em 5 partes. O primeiro plano dá a impressão de que o filme será uma experiência viajante e mágica. Contudo, logo os problemas começam a aparecer: quando o circo aparece a cena é uma colagem de momentos do espetáculo ao invés de um convite à entrada do espectador no mundo dito místico. Se na entrada da história o público não foi convidado a entrar, seu envolvimento com ela foi impossibilitado, inviabilizado. A problemática vem da montagem e da direção que apresentam pouquíssimo desenvolvimento das relações de causa e consequência entre os planos, o que acaba se estendendo para os segmentos do filme. Consequentemente, surge um outro problema: em um filme com uma montagem deficiente, é impossível desenvolver um número tão grande de personagens. Eles aparecem e, quando começamos a conhecê-los, corta para o próximo segmento, onde aquelas pessoas não estão mais lá. Isso provoca um grave distanciamento emocional por parte do espectador, afetando sua experiência de forma comprometedora, uma vez que ele é forçado a estar sempre se adaptando às novas histórias que aparecem sem a menor fluidez, sem a devida costura. O maior exemplo de tudo isso é no ponto de virada da personagem Margarete, que toma uma decisão encarada pelo filme como grandiosa e impactante mas que não surte nenhum desses dois efeitos em quem assiste: não fomos apresentados e envolvidos nessa vida, como podemos, então, importar-nos com ela?
O filme solta faíscas de diversos assuntos: paternidade e maternidade, herança, assédio, estupro, arte, religiosidade, uso de drogas, a perseguição dos sonhos e anseios pessoais. Entretanto, nenhuma temática recebe o tempo necessário para que o filme possa delinear suas mensagens: ao tentar falar sobre coisas demais ele acaba não falando nada. Em um dado momento, o filme solta um comentário sobre imperialismo e nunca mais volta a falar disso. O mesmo acontece quando uma personagem fala em aborto e, no minuto seguinte, isso já foi esquecido. Todas essas insinuações impedem que o filme avance e cresça, tornando-o raso e despropositado.
Há, ainda, uma total falta de sensibilidade para com o feminino. As cenas de nudez - que permeiam todo o longa - têm pouca ou nenhuma serventia à trama e provam-se apenas um fetiche do diretor e roteirista Cacá Diegues. Isso fica ainda mais claro quando observamos a desproporcionalidade do nu feminino com o masculino: o último aparece numa quantidade ínfima de cenas e, quando chega, não é objetificado nem escancarado. Para piorar, as mulheres aparecem sempre por baixo nas cenas de sexo, subjugadas a todo tempo pelos homens. É impressionante acreditar que Cacá chamou seu filme de feminista em entrevista... O contra-senso é tamanho que percebemos de onde o filme herdou suas falhas.
Apesar de tudo isso, alguns aspectos impedem que o filme torne-se abominável. A atuação de Jesuíta Barbosa e está no tom certo para o que seu personagem pede, sendo o único que conquista a atenção do público. Além dele, Juliano Cazarré e Bruna Linzmeyer esforçam-se para dar vida a seus personagens e conseguem um trabalho satisfatório, mas são ofuscados pelos exageros e artificialidades do resto do elenco. A fotografia é belíssima com suas cores, que sabem quando ficar fortes e fracas, e a trilha sonora é recheada de boas músicas mas que estão mal distribuídas e não têm fluidez em sua entrada e saída. É uma pena que esse seja o escolhido do Brasil para tentar uma indicação ao Oscar 2019, nossas chances beiram a inexistência.
"O Grande Circo Místico" falha lamentavelmente na tentativa de construir uma viagem lúdica e poética, tornando-se extremamente estafante no processo. É preciso muita habilidade na condução de propostas ousadas e, infelizmente, isso não está presente aqui. Terrível.
Só para lançar a reflexão: não há um único ator negro no elenco.
O Auto da Compadecida
4.3 2,3K Assista AgoraDizer que o auto da compadecida é um dos melhores filmes brasileiros já feitos é um pleonasmo. O longa é um retrato da cultura brasileira, tão particular e vívida no sertão. Guel Arraes dirige o filme com sagacidade e se alia à montagem para criar cenas extremamente engajantes:o filme não para, cada ação tem uma consequência que desenrola-se em uma nova ação, e assim por diante como num efeito dominó. O ritmo é fluído e o resultado é um nível de imersão tão grande que mexeu fisicamente comigo. Torci pelos personagens a tal ponto que levantei-me do sofá quando as coisas aparentavam ir mal numa organização de casamento. O diretor conseguiu esse efeito utilizando a movimentação dos personagens em cena: o filme não está interessado em deixar pequenos gestos para o espectador subentender, tudo é verbalizado e gesticulado com veemência, o que de forma alguma é um demérito. Muito pelo contrário, é na ironia e nas entrelinhas desse texto denso que a tensão é criada e, para alcançar o efeito cômico, desarmada.
Os atores que dão vida a essas palavras também merecem destaque: Matheus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Mello (Chicó) interpretam uma dupla icônica e são o fio condutor da narrativa, de modo que, se as atuações dos dois falhassem, o filme quebraria. Mas é contracenando entre si e com os atores coadjuvantes que eles expoem o melhor de si: o timing dos diálogos é perfeito, certeiro; de modo que todos os personagens recebem a dose certa de desenvolvimento -de acordo com a importância que têm na trama- e arrancam risadas do público. Denise Fraga, Marco Nanini, Diogo Vilela, Fernanda Montenegro, todo o elenco tem carisma de sobra e se sai muito bem na execução da atuação mais teatral. Eles conferem ao filme o tom de poesia que o texto pede, quando os diálogos, por vezes rimados, evidenciam o nordestino sotaque cantado. Essa cantoria é característica de uma contação de histórias sertaneja (como fica claro na música dos créditos "meia quadra", que tem sua letra falada de forma ligeira e bastante poética, remetendo ao sertão). É nessas condições que os diversos temas do filme aparecem: avareza, cobiça, traição, perdão, fé, superstição, mentira e, sobretudo, brasilidade.
"O Auto da Compadecida" é um grande filme por si só, mas entendendo a pessoa que Ariano Suassuna foi, você entende que muito dele está ali. Seu amor incondicional pelo país, seu bom e sarcástico humor, seu orgulho em afirmar que é sertanejo... É gratificante saber que sua essência foi eternizada no cinema com essa pérola do cinema nacional. Uma experiência que te deixará com um sorriso no rosto. Quem não viu, vá ver!
Três Anúncios Para um Crime
4.2 2,0K Assista AgoraVivemos uma época na qual a ficha começa a cair sobre as injustiças com diversos grupos sociais. E "Três Anúncios Para um Crime" é um retrato de seu tempo.
Martin McDonagh deveria ter sido indicado a melhor direção no Oscar, pois o que ele faz aqui é impressionante. Ele conduz o filme com sagacidade em sua movimentação de câmera (lembrando a série "Breaking Bad" em alguns momentos), sabendo balancear muito bem a comédia e o drama: é um humor debochado e intrínseco a seus personagens. A montagem é perfeita, precisa e invisível, são quase 2 horas e você não vê o tempo passando, o que resulta numa experiência muito imersiva. Se "Em Ritmo de Fuga" não estivesse indicado a melhor montagem, certamente Três Anúncios levaria o prêmio.
Igualmente boas são as atuações... Frances McDormand (Mildred) dá um show, interpretando uma mulher orgulhosa em sofrimento pela perda de sua filha, mas que nunca perde a oportunidade de cutucar diversas feridas da sociedade (racismo, machismo, homofobia), as melhores cenas cômicas são dela. Woody Harrelson (Bill) apresenta argumentos que te fazem entender o lado dele, seria muito mais fácil vilanizar o personagem, e ainda bem que isso não acontece. No início a interpretação de Sam Rockwell (Dixon) pareceu caricatural, mas depois entendi que esse tipo de pessoa existe e que o personagem é mais complexo do que aparenta, no final eu entendi o porquê da indicação dele. E os dois têm uma dinâmica muito boa, podendo ser entendida até como uma relação pai e filho, já que Dixon não teve um pai presente.
Algo muito interessante aqui é o fato do filme não demonizar nem glorificar nenhum de seus personagens, mesmo que suas ações sejam deploráveis, eles têm motivos para realizá-las. Ele te convida a compreendê-las para que, aí sim, você possa julgá-las. É um roteiro inteligente, tem curvas inesperadas e tem muito a dizer, foi uma justa indicação na categoria e é o provável vencedor.
É sempre bom quando um filme tem uma cena memorável, e esse tem várias. As que envolvem vidro e fogo, são as minhas favoritas, auxiliadas por uma belíssima fotografia, e uma trilha sonora muito bem selecionada (que vai de música clássica a trilha sonora de faroeste sem perder a coesão narrativa).
Existe hoje uma atmosfera muito hostil, muito violência no mundo. Esse filme vem como uma resposta a isso, algo precisa ser feito, mas... "Still no arrests". É como se ele dissesse: "eu sei que vocês estão vendo o problema, então por quê continuam fingindo que ele não existe? Por quê não fazem nada?". E é por isso que eu gosto tanto de como os personagens entendem que não precisam dar continuidade ao ciclo vicioso do ódio.
Esse filme me emocionou em diversos níveis, e, depois de "Corra!" é meu favorito do oscar 2018.
Mateus Rameh - 21.02.18
Me Chame Pelo Seu Nome
4.1 2,6K Assista Agora"Me Chame Pelo Seu Nome" é um dos melhores filmes do oscar que eu vi até agora... É lindo. Vi algumas pessoas afirmando que esse é o "Moonlight" de 2017, o que me soa uma comparação superficial, pois classifica como iguais todos os filmes que abordam a homossexualidade, e basta assistir a ambos para ver o quão diferentes eles são.
Luca Guadagnino dirige uma obra intensa e verdadeira, que trata com delicadeza a jornada de autodescoberta de Elio (Timothee Chalamet) e seu romance com Oliver (Armie Hammer). É interessante como a relação do protagonista com o lugar muda depois da chegada do estudante: o que antes era um lugar belo, mas tedioso, passa a ser um ambiente lúdico e romântico, características realçadas pela trilha sonora, fotografia e cenários. A beleza aqui está nas sutilezas... Muito não precisa ser verbalizado, pois o corpo dos personagens fala, seja pelos olhares, por seus comportamentos, suas falas (faz parte da dinâmica deles deixar suas verdadeiras intenções implícitas), ou até mesmo no figurino: os personagens estão sempre com poucas roupas no filme, e, quando Elio está escondendo quem realmente é, ele aparece de casaco!
Timothee Chalamet dá um show! Perceba a mudança de postura e comportamento quando ele está com uma certa personagem e quando ele está com Oliver: com ela, Elio parece ter controle da situação, já com ele, Elio deixa transparecer o conceito "amar é estar vulnerável". Isso sem contar que ele toca violão e piano, fala inglês, francês e italiano... É, ainda vamos ouvir falar bastante sobre esse menino. Armie Hammer também está muito bem, inicialmente, ele parece decidido, charmoso, seguro, mas ao longo do filme vamos descobrindo que não é bem assim. Eu estava achando estranho o pouco desenvolvimento da relação de Elio com seu pai, até que chegou o emocionante monólogo de Michael Stuhlbarg, e calou a minha boca.
Infelizmente, o filme não é perfeito: é longo demais, e a montagem, principalmente no 1° ato, atrapalha a fluidez da narrativa.
"Me Chame Pelo Seu Nome" é lindo, e com certeza deve ser visto no cinema. Ah, e você vai querer ficar até o final dos créditos...
Mateus Rameh - 11.02.18
O Som ao Redor
3.8 1,1K Assista Agora"O Som ao Redor" é um retrato cru da hostilidade do cotidiano, vista no ambiente urbano. É um filmaço, tentarei falar sobre ele sem dar muitos spoilers.
Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes do atual cinema brasileiro. Aqui ele fala sobre diversas questões: a verticalização da cidade e o consequente aprisionamento nos prédios; vício, educação, segurança, tensões raciais e entre classes; escravidão e como ela se transpõe para os dias de hoje; a vida em sociedade e como ela pode ser complicada, a fragilidade das relações humanas e as barreiras entre elas, etc.
Não é uma narrativa simples, nem todos vão simpatizar com ela, mas, se você o fizer, entrará num filme extremamente reflexivo e crítico, que prefere te mostrar e não contar. O resultado é um trabalho que, a cada "reassistida", mostra que ainda tem algo a dizer, é um prato cheio para quem aprecia a linguagem cinematográfica.
O trabalho de direção (que é muito estiloso, inclusive) e montagem andam juntos, mostrando um altíssimo controle de espaço e tempo: quando o filme sai dos "personagens principais", ele te mostra apenas o suficiente para apresentar uma mensagem e... Corta, deixando o espectador pensativo sobre o que foi apresentado.
Outro ponto a ser elogiado são os personagens: todo mundo é interessante, e o diretor sabe exatamente o tempo necessário para cada um deles explicitar isso. São pessoas muito complexas e reais, algo decorrente da construção de personagens muito bem feita, tanto no roteiro quanto nas atuações.
Vale destacar também a presença de algumas metáforas ao longo do filme, como o uso do padrão de grades nas janelas dos apartamentos e em outras partes dos cenários para evidenciar o quão enjaulados alguns personagens se sentem; a placa de "perigo, tubarão" para mostrar que, na verdade, um certo personagem é o animal; o banho de sangue na sequência do engenho, mostrando o sangue dos escravos que ali foi derramado, entre outras.
Eis que chegamos ao aspecto mais fascinante do filme: o som, e, principalmente, o som ao redor. A todo momento alguma coisa faz barulho no fundo, alguma coisa que não vemos na tela, seja o barulho de uma obra ou de um pássaro, um carro dando ré. É quase como se o som fosse invasor, lembrando-nos que, na cidade, a privacidade é uma ilusão. E é também a partir dele que a cidade ganha vida, tornando-se uma personagem do filme.
"O Som ao Redor" é uma grande crítica à nossa sociedade (principalmente à imensa quantidade de concreto presente nela). Esse filme deve ser visto, pois é muito provável que a interpretação de vocês seja divergente da minha, e isso é sempre enriquecedor para uma obra. Viva o cinema nacional, viva o cinema pernambucano!
Mateus Rameh - 30.01.18
Jumanji: Bem-Vindo à Selva
3.4 1,2K Assista AgoraJumanji é uma grata surpresa! Fui ao cinema achando que ia ver um filme genérico de ação e aventura que ia me dar sono e, na verdade, me diverti!
Não assisti o filme de 1995, então não posso fazer comparações... Mas posso dizer que essa nova versão funciona independentemente da antiga, o que é positivo: quem não viu o original pode se divertir com a história e quem já viu pode, além disso, pegar as referências. Confesso que, nos primeiros dez minutos, eu achei que o filme ia ser tudo o que eu pensava, pois ele apresenta os personagens todos como estereótipos: a garota popular, o cara do esporte, o nerd e a nerd. Mas assim que eles entram no jogo, todos esses clichês são ridicularizados com piadas e situações inesperadas que me fizeram gargalhar no cinema. Todos os personagens têm mais de um momento que vai te fazer rir e isso acontece por causa do imenso carisma do elenco, as interações entre são muito boas de se ver! (Com destaque pro The Rock e suas frases de efeito). Piadas com características dos jogos, com internet, com clichês do gênero, metalinguísticas, quase todas as piadas funcionam com diferentes públicos (é um filme pra se divertir em família ou com os amigos); e, quando começa a ficar cansativo, o filme mostra que está acabando e você relaxa. Os personagens são um tanto superficiais mas não chega a incomodar já que nem o filme se leva a sério... Já os efeitos especiais não são muito bons, parece que faltou dinheiro e a direção é prejudicada por causa disso, o filme perde a chance de ser memorável por causa de um visual apenas funcional e não incrível. Eu não vi em 3d, mas tive a impressão de que não faria diferença e, se você estiver em dúvida se vale a pena ou não pagar mais por causa do 3d, economize seu dinheiro. Jumanji: Bem-vindo à selva não é marcante mas é perfeito pra quem procura diversão no cinema!
19.12.2017 - Mateus Rameh
Extraordinário
4.3 2,1K Assista AgoraNão se engane, o título "Extraordinário" não se resume apenas a Auggie (como sugerem os trailers e sinopse), é sobre como todo mundo é extraordinário, incrível! Podemos ver isso na própria estrutura de capítulos que o filme tem, cada um destinado a um personagem. Porém, essa estrutura não é muito consistente: parece que começa um capítulo apenas para o personagem poder se apresentar ao público e dizer o que se passa em sua vida e/ou sua mente.
A história dos pais não é tão aprofundada, e nem precisa ser, sabemos deles o necessário para entendê-los e simpatizar com eles; o foco é nas crianças, nos adolescentes e nas relações nesses grupos. Bullying, auto-aceitação, coragem, amor (em diversos âmbitos), perdão. Tudo isso é retradado no filme, às vezes sutilmente, às vezes nem tanto, mas sempre com muita leveza nas interações, o que faz com que o público se afeiçoe aos personagens... O trabalho com todo o elenco infantil é incrível! (Não supera o de It, mas são propostas diferentes). Auggie (Jacob Tremblay) é um menino muito inteligente, mas que acha que o mundo gira ao redor dele, e que ator talentoso! Ele te faz rir, chorar, rir e chorar, principalmente com seus pensamentos e narrações, que nos mostram o tipo de humor dele e como ele tenta levar as situações na brincadeira. Depois de Auggie, Jack Will (Noah Jupe) tem o arco mais interessante entre as crianças. Julian (Bryce Gheisar) pratica o bullying de forma tão nojenta que é impossível gostar dele ao longo do filme... O drama da Via (Izabela Vidovic) é muito interessante de ser abordado mas a atriz não é tão boa quanto a personagem pede, e o romance dela é a parte menos boa do filme. Já a relação dela com Miranda (Danielle Rose) é linda de acompanhar. Só tem um ponto na trama que não faria falta se não existisse, 5 minutos depois parece que nem aconteceu... Envolve uma morte, quem viu o filme sabe.
"Extraordinário" não tem a pretensão de ser o melhor filme de todos os tempos, mas é sim muito lindo e inspirador: me deixou com vontade de tentar ser mais compreensivo com as pessoas e tentar enxergar o melhor nelas (e em mim mesmo). Vale a pena demais!
04.12.2017. Mateus Rameh
O Destino de Uma Nação
3.7 723 Assista AgoraAs atuações não chamam atenção nem positiva, nem negativamente, dando espaço para a espetacular atuação de Gary Oldman, que é, ao mesmo tempo, imponente, inspirador e carismático... O roteiro alia com eficácia a vida pessoal de Churchill ao cenário vivenciado pela Inglaterra durante a 2° guerra, criando um personagem carrancudo e cheio de camadas, que mesmo já sabendo sua história, o espectador se afeiçoa e torce por ele. Não obstante, o filme sugere arcos que não são desenvolvidos, como por exemplo o de Layton (Lily James), a datilógrafa de Churchill: em sua primeira cena, a impressão que fica é que ela terá maior importância dramática, o que não ocorre. O mesmo acontece com Clemmentine (Kristin Scott Thomas), que serve como dispositivo narrativo para mostrar que Winston dá mais valor à sua vida política do que à pessoal.
A fotografia conta com tons mais escuros para que possamos imergir na tensão vivenciada naquele tempo e, em contraste, tons mais quentes são usados em momentos íntimos e esperançosos. Há também a contraposição entre o visual polido da ambientação política, e o sórdido aspecto da guerra e do cotidiano social.
Joe Wright não tenta falar mais alto que seu roteiro, mas o desenvolve magistralmente. São movimentos de câmera suaves, muitos planos e contra-planos, sem muito exibiconismo, deixando a história falar por si só. Vale destacar alguns enquadramentos que o diretor faz quando o protagonista se sente encurralado, deixando a maior parte do quadro totalmente escura, literalmente espremendo Churchill.
Uma das poucas coisas que nos incomodou foi a trilha sonora no 1° ato, que faz-se presente em momentos que teriam se beneficiado de silêncios... Ela chega a assumir um ar cômico que destoa do restante do filme, mas é eficaz ao nos aproximar rapidamente do protagonista. Conforme o tempo vai passando, a trilha sonora vai melhorando, até chegar num tom épico de dar arrepios na cena final.
"O Destino de uma Nação" não se preocupa em retratar fielmente a figura de Winston Churchill, chegando a suavizá-la e romantizá-la. Mas dentro do que se propõe é muito bem executado, contando uma história inspiradora que nos envolve emocionalmente com fatos ocorridos há mais de 70 anos.
16.01.18 - Danilo Rocha, Gabriel e Mateus Rameh.
Roda Gigante
3.3 309Esperávamos que Roda Gigante seria um filme teatral demais (algo que é sugerido nos primeiros minutos), mas nos surpreendemos ao ver que ele acerta no tom, te fazendo rir em certos momentos, e ficar tenso em outros...
A principal personagem do filme é Ginny (Kate Winslet) que é uma mulher muito sonhadora presa a um casamento infeliz mas que finge estar bem pelo filho (o que é traduzido em seu sonho de carreira: ela quer ser atriz, viver outras vidas, e por isso a sua própria é feita de mentiras e fingimento). Ela está muito bem em seu papel, porém, se a personagem surtasse menos no início, o impacto do seu desfecho no 3° ato seria maior... Parece que o diretor não soube a hora de cortar nos monólogos. Outro que sofre com essa falha é o personagem Humpty (Jim Belushi) em sua primeira cena, na qual ele fica se repetindo, mas ele atua bem no resto do filme. Mickey (Justin Timberlake) foi uma surpresa, ele superou muito o que vimos em "O Preço do Amanhã" de 2011, representando um salva-vidas romântico que não é sonso. Carolina (Juno Temple) serve bem ao seu papel mas não se destaca do resto do elenco. O filho Richie (Jack Gore) é o personagem mais engraçado, nós rimos todas as vezes que o filme cortou para ele fazendo uma fogueira... Ele é o único personagem sem um arco narrativo, em um momento ele aparenta ter sido esquecido na trama, mas isso é proposital, mostrando que os pais estão se preocupando mais com seus próprios problemas do que com a vida de seu filho...
O recurso da quebra da 4° parede é bastante utilizado no início, mas é progressivamente deixado de lado, e acaba dando a impressão de ter sido um facilitador narrativo para nos introduzir à trama.
Parques de diversões estão muito associados a uma fuga da realidade, lugares perfeitos, e é justamente isso que os personagens Ginny e Mickey buscam, os dois estão sempre romantizando suas vidas, e isso é representado no lugar onde moram/ trabalham. Outra fuga relacionada a esse local é a fuga literal de Carolina, que está sendo perseguida pela Máfia. O nome Roda Gigante explicita perfeitamente a trama do filme: cheia de traições e mentiras, numa hora um personagem está por cima e, quando menos espera, é empurrado para a parte de baixo da Roda (o nome em inglês "Wonder Wheel" traz, ainda, uma ironia pelo fato de que esses acontecimentos que giram a vida das personagens não são tão maravilhosos assim).
A fotografia é composta principalmente pelas cores azul e vermelho, a primeira representando a melancolia e a segunda raiva e paixão (também com um pouco de amarelo, usado na personagem Carolina, traduzindo suas expectativas e seu otimismo). As iluminação se assemelha à de uma peça de teatro, destacando as personagens principais do que está em cena. Os movimentos de câmera são suaves mas enchem os olhos, e alguns enquadramentos transmitem os sentimentos dos personagens sem a necessidade de verbaliza-los, mesmo sendo um filme repleto de diálogos (como por exemplo o enquadramento em que dois personagens estão separados por uma barreira que faz parte do cenário). A trilha sonora é maravilhosa, com canções românticas de Jazz que transmitem a atmosfera daquele tempo, você vai querer ouvir todas elas assim que a sessão acabar...
O filme ainda conta com um final corajoso, que pega seu público de surpresa, não dá todas as respostas e nos agradou bastante!
Recomendadíssimo e, se possível, assista no cinema!
07.01.18 - Gabriel e Mateus Rameh
Suburbicon: Bem-Vindos ao Paraíso
3.1 160 Assista AgoraAdmito que esperava um pouco do filme, eu já tinha visto Fargo e gostei do trabalho dos irmãos Coen, e imaginei que fosse sair algo interessante de um filme escrito por eles, dirigido pelo George Clooney e com Matt Damon e Julianne Moore no elenco... Me enganei completamente.
Suburbicon tem o maior acervo de personagens canastrões que eu já vi reunidos em um único filme, e todos eles mal interpretados (com exceção do personagem de Oscar Isaac, que é um dos que têm menos tempo em tela). Você não consegue ver um desenvolvimento claro dos personagens e de suas tramas, todos eles começam de um jeito e terminam do mesmo jeito. E aí chegamos à pior parte do filme: a questão do racismo. A família negra é apresentada no filme e logo vemos que a cidade toda é racista, menos a família branca que vamos acompanhar durante o longa. Deduzimos, então, que essas duas famílias, ou pelo menos seus filhos, terão laços estreitados (no mínimo). E não é o que acontece. Ao invés disso, a história envereda-se por um caminho desinteressante e extremamente mal conduzido por George Clooney, que só usa planos fechados, tornando o filme enfadonho. Se retirássemos toda a trama da família negra do roteiro, não faria diferença, pois não é mostrada qualquer relação entre esse arco e o arco principal. Outra coisa que não faz sentido é o subaproveitamento da cidade, que é apresentada no início como um lugar maravilhoso, mas vemos pouco dela, o que não faz sentido num filme chamado "suburbicon: bem vindos ao paraíso"
Pra não dizer que o filme não tem nada bom, eu ri em algumas horas, a fotografia é boa e o personagem do Oscar Isaac rouba a cena, fora isso, terrível, filme totalmente desconjuntado.