LES INVISIBLES é um documentário com homens e mulheres que amaram, lutaram, desejaram. Numa época onde a sociedade lhes rejeitava, mas eles não tiveram medo. Depois de ter visto, meu peito disparava pelo prazer de sentir as esperanças que o filme é capaz de transmitir. Entre os espectadores que podem ter os mesmos sofrimentos e prazeres, esta obra tem ainda um significado simbólico.
Dentro deste filme que poderia também se intitular «Os Intercambistas Apaixonados de Salzburgo», encontramos o que Fassbinder chama de chave para compreender o universo do Melodrama. A mais sirkiana dos personagens e a que menos aparece, aquela que enlouquece e cuja causa, o excesso de amor, é a sutil sugestão que nos provoca a querer desvendar os enquadramentos misteriosos do diretor imigrante alemão.
Douglas Sirk traz um universo de espontaneidade improvavel que se torna perverso e irônico quando menos esperamos, nele somos levados a debochar de uma protagonista ingênua, viajante americana que descobre a europa a sua maneira, sonhando com romances idilicos e a sofisticação do velho mundo. No seu precurso pela experiência internacional, ela encontra um médico conterrâneo que finaliza suas experiências e vivências internacionais, que gostaria agora de poder retornar ao doce lar para poder levar uma vida a qual ele se mostra completamente formatado. A maneira como o filme constroi a sua narrativa deixa evidente um demérito por tras de todo aquele sucesso de um self-made man, a abordagem se mostra bem sucedida inclusive ao trabalhar o grande clichê: para todo homem mediocre havera sempre um homem irresistivelmente perfeito. Até que se olhe de perto, alerta o imaginario sirkiano.
É evidente que a garota iria se apaixonar pelo homem perfeito, mesmo sabendo que poderia conseguir casa, comida e roupa lavada com o outro. No momento em que a camera retoma o significado de um plano que não parecia dotar de muito significado à principio, (flashback) em que as simbolicas notas do piano «Consolation» de Frank Liszt rememoram o espectador de «Tudo que o céu permite» e revelam nele o reflexo da face oculta de uma mulher desconhecida, sabemos agora finalmente a sua importância por tras da ironia de ser um falso personagem secundario, costumamos guardar bem aquilo que nos é mais valioso. A mulher insana de amor promove climax, subversão e é por fim a justificativa do sacrificio de uma nova heroina sirkiana que escolhe o matrimônio classico americano por não poder de fato viver exasperadamente as aventuras de seus livros.
NOTAS DOS SEGREDOS DE UMA VIDA SEM MISTÉRIOS No cinema, encontramos o minimalismo em diversos patamares, mas em especial no cinema bressoniano. O trabalho de construção iconoclasta que o diretor oferta a um padre que redige notas sobre o seu fardo, em papel não advindo de um moleskine, confere à história da voz em off e da incursão pelas pessoalidades do personagem uma experiência única. Um padre no dilema de viver uma vida perfeita, entre as reflexões por uma vida celestial católica e as dores de um sofrimento ao estar face à realidade, percorre as ruelas de uma cidade qualquer e trilha uma vida de insatisfações, acompanhado de pessoas que lhe confrontam com enormes pontos de interrogação. A maneira como o diretor francês constrói esta atmosfera faz o espectador se sentir quase como parte de um orgão vital do padre, assistimos à trama dentro de sua cabeça. Tudo é muito sutil, dentro de um tempo que discorre como um verdadeiro calvário. Conseguir nos apresentar este calvário de maneira verossímil sem cair nos excessos do cinema hollywoodiano nos dá uma razão a mais para correr e conferir esta leitura tão prolífica de G. Bernanos.
A ser revisto e revisto, com urgências. Um filme pulsante de claustrofobia simbólica que vai discutir a desconstrução de um sonho americano. O filme nos aponta uma quebra incrível do cinema dos anos 40, o cinema do edificante e da construção de uma sociedade de ideias, princípios sociais e humanitários. E a partir dos anos 50, depois de um olhar voltado para insatisfação e para a grande UTOPIA envolta nestes mesmos princípios, o cinema enquanto maneira de desvelar as lacunas da infelicidade e da solidão em meio a isso tudo nos evoca a "sociedade das aparências", as gramas mais verdes do vizinho das quais se sonha em poder desfrutar.
DiCaprio e Winslet retomam de alguma maneira o calor de seu casal idílico e romanesco de Titanic, porém desda vez o amor se mostra perecível, conveniente às circunstâncias e não mais esplêndido, eterno e absoluto. Desta vez, o tempo se torna um desgaste e assim como, especialmente, as diferenças entre os seres humanos se tornam abaláveis e questionam a durabilidade do tal sentimento que cultivamos. Contrato social, matrimonial e espiritual entram em total transe na mise-en-scène clássica de Sam Mendes, evocando os filmes dos anos 50 com uma pitada de sobriedade e um trabalho de luz levemente expressionista, para nos mostrar da forma mais discreta do mundo a narração de uma história que se pauta numa espécie de cinema "nu".
Não se pauta nos efeitos, na montagem rocambolesca, mas na veracidade da sua mensagem, transmitida naquilo que está entre os atores, parecendo em muitos momentos uma espécie de jogo teatral. Quando a personagem de Kathy Bates propõe ao filho que venha ver a janela, uma janela tida dentro da narrativa como algo que toda casa ali deveria ter. Como a janela de vista para o lago em "Tudo que o céu permite" (1955). Nesta metáfora, está a ironia do sonho americano, se todos observam através do mesmo enquadramento de uma mesma janela, observam necessariamente de uma mesma perspectiva de mundo. Vemos no filme a construção de uma época de total desconstrução de identidade e de conformação às normas, o casal protagonista gostaria de fugir disso, mas quão capáveis somos de renegar estas convenções?
Entre o sofrimento existencial e o perfume das flores, um dilema tennessiano.
Nos mostra a experiência de um autor que aceita a sua obra cruzada no reconhecimento daqueles que vieram antes, como Tennessee Williams. Pautando seu filme na construção sulista de um dos principais contribuintes do texto teatral americano, Woody Allen consegue brincar com duas questões de seu afã, o cruzamento entre a tragédia e a comédia, lembre-se de “Mighty Aphrodite” (1995), concebendo um trabalho fundamental para a atriz Cate Blanchett que vem de realizar no teatro uma leitura da construção do principal personagem tennessiano, Blanche DuBois. [...]
LEIA MAIS, deste texto & homenagem a um grande expoente do cinema autoral.
Pelo enquadramento do fotógrafo que busca as notícias quentes do mundo dos famosos, assistimos a uma narrativa que se trata de espremer o celebritismo para extrair comicidade até a última gota. A incansável perseguição de seus personagens por completude é um tema muito explorado na filmografia de Allen, dá para observar como seus personagens nunca estão satisfeitos, essa é a principal gag do diretor desde "Annie Hall", mas aqui em "Celebridades" o tema, então, um pouco desgastado fica muito atrás do desempenho delicioso de Judy Davis. É um filme que se completa a partir da discussão dos outros, mas que não faz tanto sentido sozinho. Vale a pena rir dos deboches clássicos metalinguísticos, por exemplo: quando algum personagem reclama de diretores que fazem filmes pretensiosos em P&B, isso sai pela culatra e é fantástico.
Como vários deboches curiosos que já li enquanto comparações das versões de Stahl e de Sirk, as inflamadas cores e os rocambolescos diálogos de Sirk fazem a narrativa de Stahl parecer minimal com seus vestidos de seda e suas festas de gala. O que mais impressiona nesta versão é a atuação de Delilah, que possui a doçura que Hollywood construiu ao longo de décadas em torno da figura do bom-negro, ainda que esta revele um subtexto separatista quanto à polêmica questão da racialidade. O filme possui enquadramentos completamente "sirkianos" com significações simbólicas que mostram, por exemplo, o enaltecimento da mãe branca que mora no pisos mais altos e a miséria existencial da mãe negra potencializada pela impressão de morar nos fundos. É um filme de discussões fortes, tomadas pelo molde do clássico melodrama teatral e popular.
Acaba de sair do forno no circuito do cinema francês, a produção franco-belga do realizador François-Xavier Vives (que não parece ter outros filmes no currículo ou não consegui encontrá-los) sobre a vida em LANDES do início do séc.XX, entre suas belíssimas florestas de pinheiros, com uma fotografia valorosa e ainda que com furos quaisquer na montagem, o jump-cut que o diretor utiliza de vez em quando diz pouco sobre o filme, a obra vista de longe é um ponta-pé inicial fantástico. As imagens da praia ao final podem remeter à tantas outras narrativas, ao desfecho de "Humoresque", estrelando Joan Crawford ou à epifania brilhante de Woody Allen em "Interiores". Um filme com delicadezas aqui e ali.
JEUNE & JOLIE, nouveau film de François Ozon "Le Monde" de 21 de agosto, a capa revela atenção ao novo filme de François Ozon, Jeune & Jolie/Jovem & Bela que esteve na seleção de Cannes 2013. Desde o primeiro momento em que os olhos da jovem prostituta no cartaz cruzaram com os meus senti a necessidade de vê-lo, melhor ainda num cinema cheio de francesas de mesma idade que a protagonista, suspeitando. O filme mostra quatro estações da vida de uma garota que secretamente se prostitui e gosta. A estética flamboyant típica do diretor me atraiu a uma armadilha e fui sair do cinema com as impressões da frieza ali trabalhada. A crítica do jornal Isabelle Regnier pontua valiosas informações sobre o filme, a primeira questão é de que Ozon pretende este filme ser uma representação do "fantasme de prostitution" vivido por muitas garotas de 17 anos. Leia o dicionário sexual da língua francesa (http://www.dictionnaire-sexuel.com/) e verá que "fantasme" aqui tem um significado mais psicológico do que pensamos, diz sobre algo que desejamos mas que pode não acontecer. Fazer atenção a esta informação que não está disponível nas telas entrega a chave da nova "caixa de pandora" de Ozon, um francês com menos surtos de extravagância fílmica que atinge a uma provocação deliciosa, ainda que com poucas reflexões sólidas. Vale a pena assistir, especialmente, pela experiência estética e a protagonista, soberba em suas emoções plácidas e em seu erotismo entediado.
Dá para fazer um "double feature" bem interessante assistindo a este seguido de "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filmes que possuem algo interessante a dizer sobre a vida em convento. O olhar bressoniano captura um pouco da dificuldade nesta escolha de vida, há por ali um bem construído subtexto de obsessão entre as mulheres, algo que beira o fetiche lesbiano.
A forma como a religião se encontra atrelada à culpa e às humilhações das personagens dá envolvência à trama, a hipocrisia no ato da penitência ou como descreve soeur Anne-Marie, "a poeira das almas", desvelando-se aqui astutamente como um dos emblemas católicos.
Experiência de estética sublime que nos mostra como o cinema tem o poder de nos fazer enxergar um mundo completo a sua maneira, durante toda a sensação uma coisa me incomodou e foi esta mesma coisa que me deixou atordoado de prazer, a maneira como Peter Weir mistifica a feminilidade nesta desventura de garotas que nos parecem travadas em suas vestes e costumes aristocráticos, encontrando escape de fantasias numa montanha encantada. É um longo sonho com doçuras femininas e frutas do bosque.
Se tornou meu Godard favorito em instantes depois que a sessão começou. O uso simbólico das cores, a forma como Godard apresenta a versatilidade de sua feitura cinematográfica, a capacidade de PIERROT LE FOU em ser muito além do que Bonnie & Clyde à francesa me deixa ainda estarrecido. Pode ser um road-movie com pitadas de noir ou um filme político com o disfarce da fotografia hollywoodiana perfeita. Godard nunca escondeu sua admiração pela cinema americano, provocá-lo era o seu grande deleite. Esta obra seminal do cinema possui um dos diálogos e uma das composições visuais mais emblemáticas da história do cinema.
Absolutamente fantástico e trágico documentário dos anos 80 sobre uma das figuras mais emblemáticas, senão o maior ativista homossexual que já tivemos. Definitivamente, é muito mais recomendável enquanto registro histórico do que a versão dirigida por Gus Van Sant em 2008. Sua forma incisiva de montar as passagens da vida de Milk, os depoimentos dos amigos, seguem num ritmo que desenvolve a sensibilidade e o significado da história sem demais idealismos, chega a ser cru e nos atinge diretamente no peito ao exibir a cena da passeata em homenagem a sua morte, a importância da vida de Milk e a influência que poderia ter ainda na vida de tantas pessoas, uma tragédia que nos estimulará a carregar a sua herança, sua ideologia e as suas ações conosco. Sessão obrigatória.
Cá entre nós, muito mais do que um filme qualquer do circuitão, né? VIDEODROME é uma produção de metalinguagem, enrustida em suas críticas sociais e disfarçada de uma alucinação ambulante, além de contar com as duas faces da moeda: o transe de estar grudado na cadeira com a pipoca e a sensação pós-fílmica de que aquilo ainda faz todo sentido. Naquela época, era o vídeo, hoje pode ser a rede social. A questão é que estamos totalmente perdendo a corporeidade para ficar que nem Brian O'Blivion, figuras capazes de aparecer apenas enquanto prótese da tela de um computador. E as alucinações são fantásticas como mais tarde ele iria prolongar a piração em filmes como eXistenZ, o impacto criativo do diretor em conceber coisas como uma entrada para videocassete na barriga é no mínimo estarrecedor, mas nada disso parece mais uma ficção científica idiota, pois a verve psicológica torna imagético justamente tudo aquele que a nossa produção onírica encara como inverossímil, valendo-se de associações ao psicológico, de crítica social. Em vão, nem a pipoca e o refrigerante.
Nos momentos de introdução do filme de Mike Leigh, entrando em contato com a sublime composição do diretor britânico, o espectador sente com certeza de que está prestes a embarcar numa aventura humana. É sensacional cada minúcia proposta pelo filme, os olhares dos personagens comunicam desde o começo a última impressão que irá peregrinar pelas nossas reflexões, a veracidade e as identificações da narrativa pedem uma eternidade para serem digeridas.
Outro exemplo de filme que podemos citar como inspirado pela obra do príncipe dos melodramas Douglas Sirk, mais especificamente "Imitação da Vida" 1959, Mike Leigh bebe nesta fonte para poder revigorar a sua estética com a construção de personagens extremamente arraigados de temáticas folhetinescas e melodramáticas, apresentando assim a importância de representá-las e, mais do que isso, reafirmação a ideia de que é possível dar vida a elas a partir de outras linguagens.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme triunfa em sua proposta de subnúcleos de enredo a partir de uma família, discutindo a noção de que tudo parece estar interligado de alguma forma, como a banda R.E.M. mais tarde iria satirizar em seu vídeo que não foi nomeado em vão IMITAÇÃO DA VIDA.
A estética de Mike Leigh propõe enquadramentos fantásticos e reproduz com cores das casas de boneca a família protagonista pequeno-burguesa, inspirada nas pessoas do technicolor de filmes sirkianos. As quebras da narrativa que acumulam intervalos entre um subnúcleo e outro se fazem em moldes extremamente folhetinescos, herança direta da noção de história seriada. Rica em diálogos e acompanhada por violinos nos momentos certos, a narrativa possui momentos de genialidade e grande perspicácia ao moldar a humanidade de seus personagens.
Não deixem a cena em que o fotógrafo registra todos aquelas tentativas de fazer sorrir escapar-lhes a memória, pela beleza do mundo contida nesse diálogo, o contraponto o seu trabalho e a necessidade de si próprio. O existencialismo que envolve os personagens mostra-se palpável e incrivelmente real.
Exibido ontem numa sublime película 35 mm, na Cinemaison de France, cinemateca do Consulado francês no Rio de Janeiro, L'AMOUR PAR TERRE é um filme com discussões teatrais impressionantes e atuações excepcionais das protagonistas Jane Birkin e Geraldine Chaplin. O problema é que as legendas em português não estavam bem sincronizadas como poderiam, aí tinha também a possibilidade de que a película estava com legendas em inglês embutidas, o que pode ter ajudado quem esteve presente na sessão, acontecida simultaneamente com a passagem do Papa no centro carioca. "O amor por terra" tem uma fotografia bela, recheado de iluminações teatralizadas para expor um pouco das relações entre os personagens e brincar também com a discussão entre o espectador e o ator.
Será possível que a hipnótica e sombria narrativa de Cronenberg tinha ciência da existência do filme "Dead Ringer" de 1964, estrelando Bette Davis em interpretação de irmãs gêmeas, o clássico troca-troca?
A inspiradora coincidência impele a revisão do clássico de Davis, especialmente agora depois da experiência intensa de GÊMEOS na linguagem cronenberguiana. Roger Ebert aponta o seu desgosto pela emoção trabalhada no filme e levanta em sua análise uma discussão interessante acerca da estética do diretor.
Sabemos que mesmo se seu filme possui uma história de profundidade questionável, o resultado será interessante pela questão da abordagem. Há muitas sombras entre as palavras dos diálogos de personagens e as palavras sugeridas na mente do espectador em decorrência das imagens que chegam a sua mente, codificadas em seguida pelas ferramentas do imaginário.
Descrevo a experiência cronenberguiana da seguinte forma onde caiu por terra a noção de uma narrativa com eventos bem delimitados, a ação de seus personagens perdura no espectador com a sua própria capacidade de atmosfera e dos primorosos efeitos especiais que contam uma nova história por trás do que o filme formalmente oferece.
Os gêmeos de DEAD RINGERS estão unidos pelo imaginário que perpetuamos e mistificamos da relação entre pessoas idênticas, além disso há a impressão do uso abusivo de drogas. É possível que num momento ou noutro o espectador não saiba mais qual gêmeo está assistindo, especialmente pelo split screen impecável do mestre do SIMULACRO.
Há por trás do título MISTÉRIOS E PAIXÕES, na melhor das hipóteses, o desejo da indústria de simplificar o Almoço Nu cronenberguiano num saco de pipocas. Pondo, então, o título e as consequências da tradução de lado para ponderar a experiência estética do filme, cada momento em que o espectador se toma pela trilha de Howard Shore, colaborador há longa data do diretor, vale a sessão. Para além do cinematógrafo, assistir à imagetização do texto de Burroughs pela perspectiva cronenberguiana favorece notavelmente a IMPRESSÃO dos obscuros objetos formulados pela mente humana, dentro de temáticas recorrentes do diretor, o simulacro e a virtualidade, qual é o momento em que o protagonista está drogado e em quais não? O vício aos poucos torna algo intrínseco à experiência do próprio espectador pela identificação SURREAL proposta *através* do protagonista.
Discutindo questões emblemáticas acerca da virtualidade, o filme de Cronenberg com sua pompa de manifesto causa na cabeça do espectador a sensação dos protagonistas, um embate desconcertante e fluido entre realidade e simulacro. As questões são por natureza complexas, antevisões de hoje e destas necessidades que nos faz estar aqui, por exemplo. O espaço virtual enquanto momento de experimentação para o espectador atingir alguma transcendência e obter algo melhor, as máquinas tornam-se extensões do indivíduo. Estas válvulas de escape no simulacro que outrora foram criadas com a proposta de nos ajudar, porém nos escravizaram. Isto está no filme de Cronenberg, seus personagens aparecem dispostos a jogar, mas nunca estão seguros do significado intrínseco à conexão da bioporta. Estar num meio de animais mutantes e controladores simulados biologicamente é apenas uma desculpa para abrir o olhar a si próprio e poder perceber as mudanças de caráter que estão aliadas por meio da narrativa fílmica ao passar de fases e que funcionam muito bem como uma metáfora da comunicação contemporânea.
A leitura de Kurosawa da estética Noir mostra intimidade do diretor com o cinema americano e aponta para esta transculturalidade adotada por ele até mesmo em fim de carreira. CÃO DANADO/Nora inu é sofisticado, um filme com uma trama de altos momentos de ação e intervenções cômicas deliciosas. Por trás de uma narrativa passional e elétrica, o panorama social do diretor se retrata de maneira fluida com movimentos de sua câmera gentil. A edição de fades, em muitos momentos, vai expressar uma temporalidade arrastada para a vida do protagonista à procura do que lhe foi roubado e à flor da pele, numa experiência ocidental do Japão pós-guerra, imagens iniciais do cão já haviam nos avisado as maravilhas.
A experiência não-convencional do diretor, como pode ser vista em galeria montada na OI FUTURO de Belo Horizonte-MG até 1º de Setembro, torna a experiência fragmentada de Apichatpong algo daquelas listas de coisas que precisamos fazer pelo menos uma vez na vida: http://www.fluxusonline.com/aw/. Sua linguagem é ponte para imaginação e muitos sonhos, MEKONG HOTEL é a obra-chave da exposição, à sua presença o espectador ouve os infinitos acordes de violão por onde andar, envolto por cortinas verde-musgo, símbolo textil para as florestas do diretor. Quando senta numa das cadeiras perto de fone de ouvido, deixa tudo para trás. Tanto o violão quanto o próprio diretor, deixa-os para assistir aos seus vários curtas, um ao lado do outro, numa experiência visual única e cultural das impressões deste inspirado tailandês.
Ainda que com um trabalho afetivo mais racional, pouco envolvente e com uma experiência estética diluída, DESERT HEARTS precisa ser conhecido como um start, à forma que Making Love-1982 influenciou o retrato homossexual masculino pelo cinema, de um fazer mais humano e honesto do cinema lésbico, ponto de origem referencial aos filmes que viriam depois. Vale a pena tê-lo em repertório, acho esta capa um deleite!
Olhares reinounidenses de Neil Jordan fazem THE CRYING GAME um filme que brilha em sensibilidade, seus personagens possuem feições tão humanas que a narrativa aparece desde o início, das nuanças de seriedade ao olhar lúdico dos cantores de bar, como um tratado acerca de relacionamentos. Boy George cantando "The Crying Game" é uma das coisas mais virtuosas que já tive o prazer de acompanhar!
Um filme que poderia ser encarado como o oposto do exaltado "A Lista de Schindler" (1993) de Spielberg. Monsieur Batignole traz mais sensibilidade e menos pretensão ao tratar de um assunto tão delicado quanto o nazismo. O altruísmo do protagonista em sua luta por ajudar crianças judias não aparece condecorado com medalhas e traz muito de uma discussão em que gestos singelos de companheirismo não costumam ser notados. Noção que vai me fazer relembrar do mote em SUBLIME OBSESSÃO do diretor alemão Douglas Sirk, que cozinha dentro dos valores da estética melodramática hollywoodiana, quase que uma religião em que a prática se dá a partir do guardar segredos, atos de boa-fé. Além de tudo, o ator/diretor que ficou famoso por sua trupe de teatro nos anos 70, Gérard Jugnot, está mais do que carismático.
Os Invísiveis
4.1 6LES INVISIBLES é um documentário com homens e mulheres que amaram, lutaram, desejaram. Numa época onde a sociedade lhes rejeitava, mas eles não tiveram medo. Depois de ter visto, meu peito disparava pelo prazer de sentir as esperanças que o filme é capaz de transmitir. Entre os espectadores que podem ter os mesmos sofrimentos e prazeres, esta obra tem ainda um significado simbólico.
Sinfonia Interrompida
3.8 7Dentro deste filme que poderia também se intitular «Os Intercambistas Apaixonados de Salzburgo», encontramos o que Fassbinder chama de chave para compreender o universo do Melodrama. A mais sirkiana dos personagens e a que menos aparece, aquela que enlouquece e cuja causa, o excesso de amor, é a sutil sugestão que nos provoca a querer desvendar os enquadramentos misteriosos do diretor imigrante alemão.
Douglas Sirk traz um universo de espontaneidade improvavel que se torna perverso e irônico quando menos esperamos, nele somos levados a debochar de uma protagonista ingênua, viajante americana que descobre a europa a sua maneira, sonhando com romances idilicos e a sofisticação do velho mundo. No seu precurso pela experiência internacional, ela encontra um médico conterrâneo que finaliza suas experiências e vivências internacionais, que gostaria agora de poder retornar ao doce lar para poder levar uma vida a qual ele se mostra completamente formatado. A maneira como o filme constroi a sua narrativa deixa evidente um demérito por tras de todo aquele sucesso de um self-made man, a abordagem se mostra bem sucedida inclusive ao trabalhar o grande clichê: para todo homem mediocre havera sempre um homem irresistivelmente perfeito. Até que se olhe de perto, alerta o imaginario sirkiano.
É evidente que a garota iria se apaixonar pelo homem perfeito, mesmo sabendo que poderia conseguir casa, comida e roupa lavada com o outro. No momento em que a camera retoma o significado de um plano que não parecia dotar de muito significado à principio, (flashback) em que as simbolicas notas do piano «Consolation» de Frank Liszt rememoram o espectador de «Tudo que o céu permite» e revelam nele o reflexo da face oculta de uma mulher desconhecida, sabemos agora finalmente a sua importância por tras da ironia de ser um falso personagem secundario, costumamos guardar bem aquilo que nos é mais valioso. A mulher insana de amor promove climax, subversão e é por fim a justificativa do sacrificio de uma nova heroina sirkiana que escolhe o matrimônio classico americano por não poder de fato viver exasperadamente as aventuras de seus livros.
Diário de um Pároco de Aldeia
4.1 48NOTAS DOS SEGREDOS DE UMA VIDA SEM MISTÉRIOS
No cinema, encontramos o minimalismo em diversos patamares, mas em especial no cinema bressoniano. O trabalho de construção iconoclasta que o diretor oferta a um padre que redige notas sobre o seu fardo, em papel não advindo de um moleskine, confere à história da voz em off e da incursão pelas pessoalidades do personagem uma experiência única. Um padre no dilema de viver uma vida perfeita, entre as reflexões por uma vida celestial católica e as dores de um sofrimento ao estar face à realidade, percorre as ruelas de uma cidade qualquer e trilha uma vida de insatisfações, acompanhado de pessoas que lhe confrontam com enormes pontos de interrogação. A maneira como o diretor francês constrói esta atmosfera faz o espectador se sentir quase como parte de um orgão vital do padre, assistimos à trama dentro de sua cabeça. Tudo é muito sutil, dentro de um tempo que discorre como um verdadeiro calvário. Conseguir nos apresentar este calvário de maneira verossímil sem cair nos excessos do cinema hollywoodiano nos dá uma razão a mais para correr e conferir esta leitura tão prolífica de G. Bernanos.
Foi Apenas um Sonho
3.6 1,3K Assista AgoraATRAVÉS DE JANELAS IGUAIS
A ser revisto e revisto, com urgências. Um filme pulsante de claustrofobia simbólica que vai discutir a desconstrução de um sonho americano. O filme nos aponta uma quebra incrível do cinema dos anos 40, o cinema do edificante e da construção de uma sociedade de ideias, princípios sociais e humanitários. E a partir dos anos 50, depois de um olhar voltado para insatisfação e para a grande UTOPIA envolta nestes mesmos princípios, o cinema enquanto maneira de desvelar as lacunas da infelicidade e da solidão em meio a isso tudo nos evoca a "sociedade das aparências", as gramas mais verdes do vizinho das quais se sonha em poder desfrutar.
DiCaprio e Winslet retomam de alguma maneira o calor de seu casal idílico e romanesco de Titanic, porém desda vez o amor se mostra perecível, conveniente às circunstâncias e não mais esplêndido, eterno e absoluto. Desta vez, o tempo se torna um desgaste e assim como, especialmente, as diferenças entre os seres humanos se tornam abaláveis e questionam a durabilidade do tal sentimento que cultivamos. Contrato social, matrimonial e espiritual entram em total transe na mise-en-scène clássica de Sam Mendes, evocando os filmes dos anos 50 com uma pitada de sobriedade e um trabalho de luz levemente expressionista, para nos mostrar da forma mais discreta do mundo a narração de uma história que se pauta numa espécie de cinema "nu".
Não se pauta nos efeitos, na montagem rocambolesca, mas na veracidade da sua mensagem, transmitida naquilo que está entre os atores, parecendo em muitos momentos uma espécie de jogo teatral. Quando a personagem de Kathy Bates propõe ao filho que venha ver a janela, uma janela tida dentro da narrativa como algo que toda casa ali deveria ter. Como a janela de vista para o lago em "Tudo que o céu permite" (1955). Nesta metáfora, está a ironia do sonho americano, se todos observam através do mesmo enquadramento de uma mesma janela, observam necessariamente de uma mesma perspectiva de mundo. Vemos no filme a construção de uma época de total desconstrução de identidade e de conformação às normas, o casal protagonista gostaria de fugir disso, mas quão capáveis somos de renegar estas convenções?
Blue Jasmine
3.7 1,7K Assista AgoraBLUE JASMINE
Entre o sofrimento existencial e o perfume das flores, um dilema tennessiano.
Nos mostra a experiência de um autor que aceita a sua obra cruzada no reconhecimento daqueles que vieram antes, como Tennessee Williams. Pautando seu filme na construção sulista de um dos principais contribuintes do texto teatral americano, Woody Allen consegue brincar com duas questões de seu afã, o cruzamento entre a tragédia e a comédia, lembre-se de “Mighty Aphrodite” (1995), concebendo um trabalho fundamental para a atriz Cate Blanchett que vem de realizar no teatro uma leitura da construção do principal personagem tennessiano, Blanche DuBois. [...]
LEIA MAIS, deste texto & homenagem a um grande expoente do cinema autoral.
http://cinexistencia.blogspot.fr/2013/09/blue-jasmine-entre-o-sofrimento.html
Celebridades
3.2 172 Assista AgoraPelo enquadramento do fotógrafo que busca as notícias quentes do mundo dos famosos, assistimos a uma narrativa que se trata de espremer o celebritismo para extrair comicidade até a última gota. A incansável perseguição de seus personagens por completude é um tema muito explorado na filmografia de Allen, dá para observar como seus personagens nunca estão satisfeitos, essa é a principal gag do diretor desde "Annie Hall", mas aqui em "Celebridades" o tema, então, um pouco desgastado fica muito atrás do desempenho delicioso de Judy Davis. É um filme que se completa a partir da discussão dos outros, mas que não faz tanto sentido sozinho. Vale a pena rir dos deboches clássicos metalinguísticos, por exemplo: quando algum personagem reclama de diretores que fazem filmes pretensiosos em P&B, isso sai pela culatra e é fantástico.
Imitação da Vida
4.0 38Como vários deboches curiosos que já li enquanto comparações das versões de Stahl e de Sirk, as inflamadas cores e os rocambolescos diálogos de Sirk fazem a narrativa de Stahl parecer minimal com seus vestidos de seda e suas festas de gala. O que mais impressiona nesta versão é a atuação de Delilah, que possui a doçura que Hollywood construiu ao longo de décadas em torno da figura do bom-negro, ainda que esta revele um subtexto separatista quanto à polêmica questão da racialidade. O filme possui enquadramentos completamente "sirkianos" com significações simbólicas que mostram, por exemplo, o enaltecimento da mãe branca que mora no pisos mais altos e a miséria existencial da mãe negra potencializada pela impressão de morar nos fundos. É um filme de discussões fortes, tomadas pelo molde do clássico melodrama teatral e popular.
Landes
3.2 2Acaba de sair do forno no circuito do cinema francês, a produção franco-belga do realizador François-Xavier Vives (que não parece ter outros filmes no currículo ou não consegui encontrá-los) sobre a vida em LANDES do início do séc.XX, entre suas belíssimas florestas de pinheiros, com uma fotografia valorosa e ainda que com furos quaisquer na montagem, o jump-cut que o diretor utiliza de vez em quando diz pouco sobre o filme, a obra vista de longe é um ponta-pé inicial fantástico. As imagens da praia ao final podem remeter à tantas outras narrativas, ao desfecho de "Humoresque", estrelando Joan Crawford ou à epifania brilhante de Woody Allen em "Interiores". Um filme com delicadezas aqui e ali.
Jovem e Bela
3.4 477 Assista AgoraJEUNE & JOLIE, nouveau film de François Ozon
"Le Monde" de 21 de agosto, a capa revela atenção ao novo filme de François Ozon, Jeune & Jolie/Jovem & Bela que esteve na seleção de Cannes 2013. Desde o primeiro momento em que os olhos da jovem prostituta no cartaz cruzaram com os meus senti a necessidade de vê-lo, melhor ainda num cinema cheio de francesas de mesma idade que a protagonista, suspeitando. O filme mostra quatro estações da vida de uma garota que secretamente se prostitui e gosta. A estética flamboyant típica do diretor me atraiu a uma armadilha e fui sair do cinema com as impressões da frieza ali trabalhada. A crítica do jornal Isabelle Regnier pontua valiosas informações sobre o filme, a primeira questão é de que Ozon pretende este filme ser uma representação do "fantasme de prostitution" vivido por muitas garotas de 17 anos. Leia o dicionário sexual da língua francesa (http://www.dictionnaire-sexuel.com/) e verá que "fantasme" aqui tem um significado mais psicológico do que pensamos, diz sobre algo que desejamos mas que pode não acontecer. Fazer atenção a esta informação que não está disponível nas telas entrega a chave da nova "caixa de pandora" de Ozon, um francês com menos surtos de extravagância fílmica que atinge a uma provocação deliciosa, ainda que com poucas reflexões sólidas. Vale a pena assistir, especialmente, pela experiência estética e a protagonista, soberba em suas emoções plácidas e em seu erotismo entediado.
Anjos do Pecado
4.1 8Dá para fazer um "double feature" bem interessante assistindo a este seguido de "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filmes que possuem algo interessante a dizer sobre a vida em convento. O olhar bressoniano captura um pouco da dificuldade nesta escolha de vida, há por ali um bem construído subtexto de obsessão entre as mulheres, algo que beira o fetiche lesbiano.
A forma como a religião se encontra atrelada à culpa e às humilhações das personagens dá envolvência à trama, a hipocrisia no ato da penitência ou como descreve soeur Anne-Marie, "a poeira das almas", desvelando-se aqui astutamente como um dos emblemas católicos.
Picnic na Montanha Misteriosa
3.8 175 Assista AgoraExperiência de estética sublime que nos mostra como o cinema tem o poder de nos fazer enxergar um mundo completo a sua maneira, durante toda a sensação uma coisa me incomodou e foi esta mesma coisa que me deixou atordoado de prazer, a maneira como Peter Weir mistifica a feminilidade nesta desventura de garotas que nos parecem travadas em suas vestes e costumes aristocráticos, encontrando escape de fantasias numa montanha encantada. É um longo sonho com doçuras femininas e frutas do bosque.
O Demônio das Onze Horas
4.2 430 Assista AgoraSe tornou meu Godard favorito em instantes depois que a sessão começou. O uso simbólico das cores, a forma como Godard apresenta a versatilidade de sua feitura cinematográfica, a capacidade de PIERROT LE FOU em ser muito além do que Bonnie & Clyde à francesa me deixa ainda estarrecido. Pode ser um road-movie com pitadas de noir ou um filme político com o disfarce da fotografia hollywoodiana perfeita. Godard nunca escondeu sua admiração pela cinema americano, provocá-lo era o seu grande deleite. Esta obra seminal do cinema possui um dos diálogos e uma das composições visuais mais emblemáticas da história do cinema.
Os Tempos de Harvey Milk
4.5 22Absolutamente fantástico e trágico documentário dos anos 80 sobre uma das figuras mais emblemáticas, senão o maior ativista homossexual que já tivemos. Definitivamente, é muito mais recomendável enquanto registro histórico do que a versão dirigida por Gus Van Sant em 2008. Sua forma incisiva de montar as passagens da vida de Milk, os depoimentos dos amigos, seguem num ritmo que desenvolve a sensibilidade e o significado da história sem demais idealismos, chega a ser cru e nos atinge diretamente no peito ao exibir a cena da passeata em homenagem a sua morte, a importância da vida de Milk e a influência que poderia ter ainda na vida de tantas pessoas, uma tragédia que nos estimulará a carregar a sua herança, sua ideologia e as suas ações conosco. Sessão obrigatória.
http://www.youtube.com/watch?v=4HfrAyS65pI
Videodrome: A Síndrome do Vídeo
3.7 545 Assista AgoraCá entre nós, muito mais do que um filme qualquer do circuitão, né? VIDEODROME é uma produção de metalinguagem, enrustida em suas críticas sociais e disfarçada de uma alucinação ambulante, além de contar com as duas faces da moeda: o transe de estar grudado na cadeira com a pipoca e a sensação pós-fílmica de que aquilo ainda faz todo sentido. Naquela época, era o vídeo, hoje pode ser a rede social. A questão é que estamos totalmente perdendo a corporeidade para ficar que nem Brian O'Blivion, figuras capazes de aparecer apenas enquanto prótese da tela de um computador. E as alucinações são fantásticas como mais tarde ele iria prolongar a piração em filmes como eXistenZ, o impacto criativo do diretor em conceber coisas como uma entrada para videocassete na barriga é no mínimo estarrecedor, mas nada disso parece mais uma ficção científica idiota, pois a verve psicológica torna imagético justamente tudo aquele que a nossa produção onírica encara como inverossímil, valendo-se de associações ao psicológico, de crítica social. Em vão, nem a pipoca e o refrigerante.
Segredos e Mentiras
4.1 97 Assista AgoraNos momentos de introdução do filme de Mike Leigh, entrando em contato com a sublime composição do diretor britânico, o espectador sente com certeza de que está prestes a embarcar numa aventura humana. É sensacional cada minúcia proposta pelo filme, os olhares dos personagens comunicam desde o começo a última impressão que irá peregrinar pelas nossas reflexões, a veracidade e as identificações da narrativa pedem uma eternidade para serem digeridas.
Outro exemplo de filme que podemos citar como inspirado pela obra do príncipe dos melodramas Douglas Sirk, mais especificamente "Imitação da Vida" 1959, Mike Leigh bebe nesta fonte para poder revigorar a sua estética com a construção de personagens extremamente arraigados de temáticas folhetinescas e melodramáticas, apresentando assim a importância de representá-las e, mais do que isso, reafirmação a ideia de que é possível dar vida a elas a partir de outras linguagens.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme triunfa em sua proposta de subnúcleos de enredo a partir de uma família, discutindo a noção de que tudo parece estar interligado de alguma forma, como a banda R.E.M. mais tarde iria satirizar em seu vídeo que não foi nomeado em vão IMITAÇÃO DA VIDA.
A estética de Mike Leigh propõe enquadramentos fantásticos e reproduz com cores das casas de boneca a família protagonista pequeno-burguesa, inspirada nas pessoas do technicolor de filmes sirkianos. As quebras da narrativa que acumulam intervalos entre um subnúcleo e outro se fazem em moldes extremamente folhetinescos, herança direta da noção de história seriada. Rica em diálogos e acompanhada por violinos nos momentos certos, a narrativa possui momentos de genialidade e grande perspicácia ao moldar a humanidade de seus personagens.
Não deixem a cena em que o fotógrafo registra todos aquelas tentativas de fazer sorrir escapar-lhes a memória, pela beleza do mundo contida nesse diálogo, o contraponto o seu trabalho e a necessidade de si próprio. O existencialismo que envolve os personagens mostra-se palpável e incrivelmente real.
O Amor Por Terra
3.8 1Exibido ontem numa sublime película 35 mm, na Cinemaison de France, cinemateca do Consulado francês no Rio de Janeiro, L'AMOUR PAR TERRE é um filme com discussões teatrais impressionantes e atuações excepcionais das protagonistas Jane Birkin e Geraldine Chaplin. O problema é que as legendas em português não estavam bem sincronizadas como poderiam, aí tinha também a possibilidade de que a película estava com legendas em inglês embutidas, o que pode ter ajudado quem esteve presente na sessão, acontecida simultaneamente com a passagem do Papa no centro carioca. "O amor por terra" tem uma fotografia bela, recheado de iluminações teatralizadas para expor um pouco das relações entre os personagens e brincar também com a discussão entre o espectador e o ator.
http://www.cinefrance.com.br/cinemaison/22072013.jpg
Gêmeos: Mórbida Semelhança
3.7 193Será possível que a hipnótica e sombria narrativa de Cronenberg tinha ciência da existência do filme "Dead Ringer" de 1964, estrelando Bette Davis em interpretação de irmãs gêmeas, o clássico troca-troca?
A inspiradora coincidência impele a revisão do clássico de Davis, especialmente agora depois da experiência intensa de GÊMEOS na linguagem cronenberguiana. Roger Ebert aponta o seu desgosto pela emoção trabalhada no filme e levanta em sua análise uma discussão interessante acerca da estética do diretor.
Sabemos que mesmo se seu filme possui uma história de profundidade questionável, o resultado será interessante pela questão da abordagem. Há muitas sombras entre as palavras dos diálogos de personagens e as palavras sugeridas na mente do espectador em decorrência das imagens que chegam a sua mente, codificadas em seguida pelas ferramentas do imaginário.
Descrevo a experiência cronenberguiana da seguinte forma onde caiu por terra a noção de uma narrativa com eventos bem delimitados, a ação de seus personagens perdura no espectador com a sua própria capacidade de atmosfera e dos primorosos efeitos especiais que contam uma nova história por trás do que o filme formalmente oferece.
Os gêmeos de DEAD RINGERS estão unidos pelo imaginário que perpetuamos e mistificamos da relação entre pessoas idênticas, além disso há a impressão do uso abusivo de drogas. É possível que num momento ou noutro o espectador não saiba mais qual gêmeo está assistindo, especialmente pelo split screen impecável do mestre do SIMULACRO.
Mistérios e Paixões
3.8 312Há por trás do título MISTÉRIOS E PAIXÕES, na melhor das hipóteses, o desejo da indústria de simplificar o Almoço Nu cronenberguiano num saco de pipocas. Pondo, então, o título e as consequências da tradução de lado para ponderar a experiência estética do filme, cada momento em que o espectador se toma pela trilha de Howard Shore, colaborador há longa data do diretor, vale a sessão. Para além do cinematógrafo, assistir à imagetização do texto de Burroughs pela perspectiva cronenberguiana favorece notavelmente a IMPRESSÃO dos obscuros objetos formulados pela mente humana, dentro de temáticas recorrentes do diretor, o simulacro e a virtualidade, qual é o momento em que o protagonista está drogado e em quais não? O vício aos poucos torna algo intrínseco à experiência do próprio espectador pela identificação SURREAL proposta *através* do protagonista.
eXistenZ
3.6 317Discutindo questões emblemáticas acerca da virtualidade, o filme de Cronenberg com sua pompa de manifesto causa na cabeça do espectador a sensação dos protagonistas, um embate desconcertante e fluido entre realidade e simulacro. As questões são por natureza complexas, antevisões de hoje e destas necessidades que nos faz estar aqui, por exemplo. O espaço virtual enquanto momento de experimentação para o espectador atingir alguma transcendência e obter algo melhor, as máquinas tornam-se extensões do indivíduo. Estas válvulas de escape no simulacro que outrora foram criadas com a proposta de nos ajudar, porém nos escravizaram. Isto está no filme de Cronenberg, seus personagens aparecem dispostos a jogar, mas nunca estão seguros do significado intrínseco à conexão da bioporta. Estar num meio de animais mutantes e controladores simulados biologicamente é apenas uma desculpa para abrir o olhar a si próprio e poder perceber as mudanças de caráter que estão aliadas por meio da narrativa fílmica ao passar de fases e que funcionam muito bem como uma metáfora da comunicação contemporânea.
Cão Danado
4.0 43 Assista AgoraA leitura de Kurosawa da estética Noir mostra intimidade do diretor com o cinema americano e aponta para esta transculturalidade adotada por ele até mesmo em fim de carreira. CÃO DANADO/Nora inu é sofisticado, um filme com uma trama de altos momentos de ação e intervenções cômicas deliciosas. Por trás de uma narrativa passional e elétrica, o panorama social do diretor se retrata de maneira fluida com movimentos de sua câmera gentil. A edição de fades, em muitos momentos, vai expressar uma temporalidade arrastada para a vida do protagonista à procura do que lhe foi roubado e à flor da pele, numa experiência ocidental do Japão pós-guerra, imagens iniciais do cão já haviam nos avisado as maravilhas.
Mekong Hotel
3.3 22A experiência não-convencional do diretor, como pode ser vista em galeria montada na OI FUTURO de Belo Horizonte-MG até 1º de Setembro, torna a experiência fragmentada de Apichatpong algo daquelas listas de coisas que precisamos fazer pelo menos uma vez na vida: http://www.fluxusonline.com/aw/. Sua linguagem é ponte para imaginação e muitos sonhos, MEKONG HOTEL é a obra-chave da exposição, à sua presença o espectador ouve os infinitos acordes de violão por onde andar, envolto por cortinas verde-musgo, símbolo textil para as florestas do diretor. Quando senta numa das cadeiras perto de fone de ouvido, deixa tudo para trás. Tanto o violão quanto o próprio diretor, deixa-os para assistir aos seus vários curtas, um ao lado do outro, numa experiência visual única e cultural das impressões deste inspirado tailandês.
Corações do Deserto
3.7 43Ainda que com um trabalho afetivo mais racional, pouco envolvente e com uma experiência estética diluída, DESERT HEARTS precisa ser conhecido como um start, à forma que Making Love-1982 influenciou o retrato homossexual masculino pelo cinema, de um fazer mais humano e honesto do cinema lésbico, ponto de origem referencial aos filmes que viriam depois. Vale a pena tê-lo em repertório, acho esta capa um deleite!
Traídos Pelo Desejo
3.8 161Olhares reinounidenses de Neil Jordan fazem THE CRYING GAME um filme que brilha em sensibilidade, seus personagens possuem feições tão humanas que a narrativa aparece desde o início, das nuanças de seriedade ao olhar lúdico dos cantores de bar, como um tratado acerca de relacionamentos. Boy George cantando "The Crying Game" é uma das coisas mais virtuosas que já tive o prazer de acompanhar!
Herói por Acaso
3.8 12Um filme que poderia ser encarado como o oposto do exaltado "A Lista de Schindler" (1993) de Spielberg. Monsieur Batignole traz mais sensibilidade e menos pretensão ao tratar de um assunto tão delicado quanto o nazismo. O altruísmo do protagonista em sua luta por ajudar crianças judias não aparece condecorado com medalhas e traz muito de uma discussão em que gestos singelos de companheirismo não costumam ser notados. Noção que vai me fazer relembrar do mote em SUBLIME OBSESSÃO do diretor alemão Douglas Sirk, que cozinha dentro dos valores da estética melodramática hollywoodiana, quase que uma religião em que a prática se dá a partir do guardar segredos, atos de boa-fé. Além de tudo, o ator/diretor que ficou famoso por sua trupe de teatro nos anos 70, Gérard Jugnot, está mais do que carismático.