Sobre What happened Miss Simone? (Com spoilers) Finalmente, após dois meses da estreia, tive tempo para ver o documentário da Netflix sobre Nina Simone. E confesso que foi uma das experiências mais dolorosas que eu já tive com o cinema.
[spoiler]
No final do documentário não há muitos detalhes sobre os últimos anos da vida da cantora, já que a narrativa procura explicar como Nina ascendeu, caiu e voltou novamente. A música que revive no final e o aparente conforto da cantora em voltar aos palcos após os anos de isolamento não são em medida alguma um consolo. Em uma das sequências, a filha de Nina diz que o remédio pode ter aliviado os problemas decorrentes da bipolaridade da cantora, mas ela sentia que, ao final, não havia para a mãe dela a família e os amigos que seriam importantes para a recuperação de qualquer pessoa. Após essa cena, há uma fala de Nina em que ela diz que reconhece o quanto sacrificou a vida pessoal pela música. É um close-up rápido e que aparece após mais de 60 minutos de histórias sobre Nina e sua entrega à música, à luta pelos direitos civis. Logo, vê-la falar após todo esses momentos só me fez encontrar, em seu rosto, marcas pesadas de desgaste e ressentimento, e foi como se nesse momento saísse da tela do notebook alguma forma de dor que se estendeu até tocar o meu próprio rosto. Eu já tinha lido algumas críticas sobre o filme, a maioria favoráveis, mas me chamava a atenção algumas sobre o possível "gaslighting" realizado contra a identidade da cantora como mulher. Afinal, a questão que dá nome ao filme é muito presente nas falas de amigos, parentes e outras pessoas entrevistadas para o documentário: em suas memórias, há sempre uma tentativa para explicar o que aconteceu com a cantora a partir da década de 70, quando saiu dos Estados Unidos para nunca mais voltar. O ex-marido de Nina também foi entrevistado, uma pessoa que gerenciou a carreira dela mesmo após o divórcio e que bancou muitos shows quando o ativismo de Nina a afastou de muitas produtoras musicais .Mas com ele a cantora teve um casamento doloroso, abusivo, que prejudicou o relacionamento dela com a própria filha. Achei muito cruel, da parte do documentário, em mostrar com tamanha honestidade os relatos de Nina sobre agressões e estupros sofridas por ela dentro do próprio casamento sem que houvesse um relato de Andrew sobre isso, ele sempre culpa o ativismo dela pelo fim do casamento mas ninguém o questiona sobre o que ele fez com ela! A filha deles, Lisa, é uma das produtoras do filme, e também realiza comentários duros sobre a atitude da mãe dentro do casamento, mas é a percepção de uma filha que, também, foi vítima, e é graças a ela que podemos ver, no documentário, as cartas em que Nina conta detalhes sobre seu relacionamento com Andrew. Ao mesmo tempo, pode-se ver a ausência de relatos que deixassem mais claros o duplo sofrimento de Nina durante o casamento (afinal, não bastasse isso, havia todo o problema dentro da luta pelos direitos civis) como uma opção do próprio documentário em, mais do que responder ao questionamento central, lançar mais perguntas. É perturbador no caso de Nina e não sei avaliar se conseguiria ver o peso de todos esses problemas na vida da cantora caso eu não fosse sua fã há tantos anos e, principalmente, caso eu nunca housesse sentido o que uma música como Mississipi Goddam representa. De toda forma, o filme vai além de Nina e traz um incômodo que passam dos seus 102 minutos, e pesa muito pensar que não terei a mesma impressão do filme mais tarde já que, como toda boa experiência fílmica, as cenas sempre voltam na memória com outros significados. Por hora, só resta a certeza de que passarei os próximos dias assombradas pelas cenas que pertencem tanto a Nina quanto a todas as mulheres que precisam ouvi-las para não calar a si mesmas.
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What Happened, Miss Simone?
4.4 401 Assista AgoraSobre What happened Miss Simone? (Com spoilers)
Finalmente, após dois meses da estreia, tive tempo para ver o documentário da Netflix sobre Nina Simone. E confesso que foi uma das experiências mais dolorosas que eu já tive com o cinema.
[spoiler]
No final do documentário não há muitos detalhes sobre os últimos anos da vida da cantora, já que a narrativa procura explicar como Nina ascendeu, caiu e voltou novamente. A música que revive no final e o aparente conforto da cantora em voltar aos palcos após os anos de isolamento não são em medida alguma um consolo.
Em uma das sequências, a filha de Nina diz que o remédio pode ter aliviado os problemas decorrentes da bipolaridade da cantora, mas ela sentia que, ao final, não havia para a mãe dela a família e os amigos que seriam importantes para a recuperação de qualquer pessoa. Após essa cena, há uma fala de Nina em que ela diz que reconhece o quanto sacrificou a vida pessoal pela música. É um close-up rápido e que aparece após mais de 60 minutos de histórias sobre Nina e sua entrega à música, à luta pelos direitos civis. Logo, vê-la falar após todo esses momentos só me fez encontrar, em seu rosto, marcas pesadas de desgaste e ressentimento, e foi como se nesse momento saísse da tela do notebook alguma forma de dor que se estendeu até tocar o meu próprio rosto.
Eu já tinha lido algumas críticas sobre o filme, a maioria favoráveis, mas me chamava a atenção algumas sobre o possível "gaslighting" realizado contra a identidade da cantora como mulher. Afinal, a questão que dá nome ao filme é muito presente nas falas de amigos, parentes e outras pessoas entrevistadas para o documentário: em suas memórias, há sempre uma tentativa para explicar o que aconteceu com a cantora a partir da década de 70, quando saiu dos Estados Unidos para nunca mais voltar. O ex-marido de Nina também foi entrevistado, uma pessoa que gerenciou a carreira dela mesmo após o divórcio e que bancou muitos shows quando o ativismo de Nina a afastou de muitas produtoras musicais .Mas com ele a cantora teve um casamento doloroso, abusivo, que prejudicou o relacionamento dela com a própria filha.
Achei muito cruel, da parte do documentário, em mostrar com tamanha honestidade os relatos de Nina sobre agressões e estupros sofridas por ela dentro do próprio casamento sem que houvesse um relato de Andrew sobre isso, ele sempre culpa o ativismo dela pelo fim do casamento mas ninguém o questiona sobre o que ele fez com ela! A filha deles, Lisa, é uma das produtoras do filme, e também realiza comentários duros sobre a atitude da mãe dentro do casamento, mas é a percepção de uma filha que, também, foi vítima, e é graças a ela que podemos ver, no documentário, as cartas em que Nina conta detalhes sobre seu relacionamento com Andrew.
Ao mesmo tempo, pode-se ver a ausência de relatos que deixassem mais claros o duplo sofrimento de Nina durante o casamento (afinal, não bastasse isso, havia todo o problema dentro da luta pelos direitos civis) como uma opção do próprio documentário em, mais do que responder ao questionamento central, lançar mais perguntas. É perturbador no caso de Nina e não sei avaliar se conseguiria ver o peso de todos esses problemas na vida da cantora caso eu não fosse sua fã há tantos anos e, principalmente, caso eu nunca housesse sentido o que uma música como Mississipi Goddam representa.
De toda forma, o filme vai além de Nina e traz um incômodo que passam dos seus 102 minutos, e pesa muito pensar que não terei a mesma impressão do filme mais tarde já que, como toda boa experiência fílmica, as cenas sempre voltam na memória com outros significados. Por hora, só resta a certeza de que passarei os próximos dias assombradas pelas cenas que pertencem tanto a Nina quanto a todas as mulheres que precisam ouvi-las para não calar a si mesmas.