Ruy Gardnier escreveu um belíssimo texto sobre essa obra-prima do nosso cinema :
"A metáfora materna está em todos os lugares de Anjos do Arrabalde. Inicialmente no subtítulo do filme – As Professoras (sabendo-se que a professora é uma segunda mãe) –, mas depois em todos os lugares: a relação que Betty Faria tem com o irmão, deficiente mental; a relação que mantém Irene Stefânia com Vanessa Alves; e sobretudo as homenagens cinematográficas a Luís Sérgio Person (nome da escola) e José Carlos Burle (do hospital). Anjos do Arrabalde retrata o mondo cane do cotidiano de três professoras num bairro de periferia de São Paulo. Mas antes de retratar a violência que vem de fora (fábula paranóica), Carlos Reichenbach prefere mostrar a violência do que está perto: a violência que vem do marido, do vizinho, do amante, do irmão, todos possíveis violentadores (e de fato o filme comeca com um estupro). Mas o cinema de Reichenbach não é um cinema da crueldade, longe disso. Se ele mostra todo esse ambiente de violência, é para melhor realçar a flor que poode surgir da lama, a beleza de relacionamento que pode brotar de uma sociedade estilhaçada pela pobreza física e espiritual. De forma que a cena mais bonita é o clip na praia, espécie de homenagem godardiana aos filmes de praia. Oásis num deserto de sofrimentos, essa única cena denota toda a grandeza de seu cinema: o mundo meio que pára de modo a dar um instante de felicidade àqueles personagens desgastados por um meio-ambiente hostil. Mas a última coisa que Reichenbach faria seria transformar essa felicidade em denominador comum. As coisas podem dar errado e dão: uma vingança, uma sodomia, uma tentativa de suicídio, um assassinato... Em sua primeira incursão ao melodrama, Reichenbach dá aulas de cinema ao filmar as carnes de cada personagem até atingir suas tripas. Filme duro, sem concessões, é também um de seus filmes mais bem construídos no enquadramento. A cena do parque de diversões talvez seja uma das melhores de toda sua carreira: um lento passeio em que dois jovens – em ações concomitantes – se perdem, num plano só, que acaba numa panorâmica, de cima, tal qual O Intendente Sansho, melodrama de Mizoguchi. Dele Reichenbach aprendeu o realismo, a confiança em filmar as coisas com a forte crença de que elas existem. E se o cinema constrói mundos, é só essa crença que faz com que elas existam."
"O Homem Errado" é o filme que mais intensamente clarifica a função do olhar em Hitchcock. A escolha do ator é determinante. Henry Fonda tinha uma imagem ambígua: forte e fraca ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, possuía um olhar interiorizado. A capacidade de ver, em Balestrero, está associada diretamente à de fixar-se no vazio. E fazer com que o vazio seja uma forma de plenitude, de ocupação do ser por uma instância superior. Este é um dos mais belos filmes sobre o olhar já feitos em todos os tempos. - Inácio Araújo, em crítica de 1991
Ensaio de um Crime mostra como o sexo é psicologicamente tão pecaminoso quanto o assassinato em nossa sociedade. No mundo moderno, em que podemos assistir a Rambo matando 249 pessoas mas somos tarados se observarmos um mamilo, Archibaldo passa a associar os dois:
a cada resposta contrária, a cada desejo contido, um desejo irrefreado de morte. Só que esse desejo de morte é uma inevitável mostra de impotência (tanto social quanto sexual): ele sempre deseja a morte das mulheres, só que elas morrem antes que ele possa matá-las. O momento alto do filme se faz quando Lavinia, uma moça que trabalha como guia turístico, lhe dá um cartão de endereço. O endereço, entretanto, não corresponde: trata-se de uma loja de roupas, mas ela não trabalha lá. Archibaldo vê, entretanto, um manequim desenhado que foi fatalmente usado como Lavinia de modelo. Num fabuloso processo de desejo, Archibaldo compra da loja o manequim e prepara-lhe o "assassinato", incinerando-o. Archibaldo é impotente: seu desejo de morte (duplo de seu desejo sexual) sempre se realiza através de um duplo fictício (assassinato falso de uma mulher verdadeira, assassinato verdadeiro de uma mulher falsa). Archibaldo não goza porque não adentra na instância do proibido (o sexo, o assassinato). Ele será impotente até que saia da obsessão infantil (a caixa de música) e consiga entrar no mundo adulto (onde o sexo não é proibido). Entretanto, ele só conseguirá fazê-lo depois de "ensaiar" um crime - Ruy Gardnier.
"O destino da mulher que pega o metrô é a casa em que seu filho deficiente se encontra. Os planos que o apresentam são estranhos, “incorretos”, despudorados, no limite da crueldade. Carinho com o personagem é uma ova. Essa história de carinho e afeto, que virou a moeda de troca mais corrente no cinema e na crítica, encobre na maioria das vezes uma covardia diante das principais questões morais. Em vez de definir um ponto de vista sobre o personagem, o filme embarca com ele num universo de sensações. O plano-afeto é a dramaturgia das almas frouxas. A verdadeira moral do cineasta é sua crueldade, pois somente ela pode despertar no espectador uma consciência incontornável sobre as coisas, isto é, uma necessidade de estabelecer um ponto de vista, de afrontar. O olhar cruel é o oposto do olhar inocente; é o olhar que reconhece as forças obscuras que atravessam o mundo. Esse olhar consiste tão-somente em encarar as coisas de frente e admitir que toda ação tem uma conseqüência. Lang, Renoir, Mizoguchi, Eastwood, Pialat, Bresson: os grandes cineastas morais sempre nos mostraram que a existência tem um peso.
É o que faz Antônio Meliande na cena da eutanásia: as ações de pegar a seringa, preparar a injeção, injetar a substância letal e aguardar pela morte são mostradas em sua duração agonizante, em seu peso bruto. Os planos destacam das ações e das expressões o essencial, seguem uma decupagem dramática, constroem o tempo da cena. Saber decupar é saber entender o momento dos personagens.
Nessa cena de Damas do Prazer, uma mãe põe fim à vida de seu filho. Por amor e por desespero. “A eutanásia é a morte por amor”, Corsário lhe havia dito. Meliande decupa tudo, passo a passo. Escolha cruel, escolha moral."
- Luiz Carlos Oliveira Jr., em texto da revista Contracampo
Anjos do Arrabalde
3.8 34Ruy Gardnier escreveu um belíssimo texto sobre essa obra-prima do nosso cinema :
"A metáfora materna está em todos os lugares de Anjos do Arrabalde. Inicialmente no subtítulo do filme – As Professoras (sabendo-se que a professora é uma segunda mãe) –, mas depois em todos os lugares: a relação que Betty Faria tem com o irmão, deficiente mental; a relação que mantém Irene Stefânia com Vanessa Alves; e sobretudo as homenagens cinematográficas a Luís Sérgio Person (nome da escola) e José Carlos Burle (do hospital). Anjos do Arrabalde retrata o mondo cane do cotidiano de três professoras num bairro de periferia de São Paulo. Mas antes de retratar a violência que vem de fora (fábula paranóica), Carlos Reichenbach prefere mostrar a violência do que está perto: a violência que vem do marido, do vizinho, do amante, do irmão, todos possíveis violentadores (e de fato o filme comeca com um estupro). Mas o cinema de Reichenbach não é um cinema da crueldade, longe disso. Se ele mostra todo esse ambiente de violência, é para melhor realçar a flor que poode surgir da lama, a beleza de relacionamento que pode brotar de uma sociedade estilhaçada pela pobreza física e espiritual. De forma que a cena mais bonita é o clip na praia, espécie de homenagem godardiana aos filmes de praia. Oásis num deserto de sofrimentos, essa única cena denota toda a grandeza de seu cinema: o mundo meio que pára de modo a dar um instante de felicidade àqueles personagens desgastados por um meio-ambiente hostil. Mas a última coisa que Reichenbach faria seria transformar essa felicidade em denominador comum. As coisas podem dar errado e dão: uma vingança, uma sodomia, uma tentativa de suicídio, um assassinato... Em sua primeira incursão ao melodrama, Reichenbach dá aulas de cinema ao filmar as carnes de cada personagem até atingir suas tripas. Filme duro, sem concessões, é também um de seus filmes mais bem construídos no enquadramento. A cena do parque de diversões talvez seja uma das melhores de toda sua carreira: um lento passeio em que dois jovens – em ações concomitantes – se perdem, num plano só, que acaba numa panorâmica, de cima, tal qual O Intendente Sansho, melodrama de Mizoguchi. Dele Reichenbach aprendeu o realismo, a confiança em filmar as coisas com a forte crença de que elas existem. E se o cinema constrói mundos, é só essa crença que faz com que elas existam."
O Homem Errado
3.9 96 Assista Agora"O Homem Errado" é o filme que mais intensamente clarifica a função do olhar em Hitchcock. A escolha do ator é determinante. Henry Fonda tinha uma imagem ambígua: forte e fraca ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, possuía um olhar interiorizado. A capacidade de ver, em Balestrero, está associada diretamente à de fixar-se no vazio. E fazer com que o vazio seja uma forma de plenitude, de ocupação do ser por uma instância superior. Este é um dos mais belos filmes sobre o olhar já feitos em todos os tempos. - Inácio Araújo, em crítica de 1991
Ensaio de um Crime
4.0 33 Assista AgoraEnsaio de um Crime mostra como o sexo é psicologicamente tão pecaminoso quanto o assassinato em nossa sociedade. No mundo moderno, em que podemos assistir a Rambo matando 249 pessoas mas somos tarados se observarmos um mamilo, Archibaldo passa a associar os dois:
a cada resposta contrária, a cada desejo contido, um desejo irrefreado de morte. Só que esse desejo de morte é uma inevitável mostra de impotência (tanto social quanto sexual): ele sempre deseja a morte das mulheres, só que elas morrem antes que ele possa matá-las. O momento alto do filme se faz quando Lavinia, uma moça que trabalha como guia turístico, lhe dá um cartão de endereço. O endereço, entretanto, não corresponde: trata-se de uma loja de roupas, mas ela não trabalha lá. Archibaldo vê, entretanto, um manequim desenhado que foi fatalmente usado como Lavinia de modelo. Num fabuloso processo de desejo, Archibaldo compra da loja o manequim e prepara-lhe o "assassinato", incinerando-o. Archibaldo é impotente: seu desejo de morte (duplo de seu desejo sexual) sempre se realiza através de um duplo fictício (assassinato falso de uma mulher verdadeira, assassinato verdadeiro de uma mulher falsa). Archibaldo não goza porque não adentra na instância do proibido (o sexo, o assassinato). Ele será impotente até que saia da obsessão infantil (a caixa de música) e consiga entrar no mundo adulto (onde o sexo não é proibido). Entretanto, ele só conseguirá fazê-lo depois de "ensaiar" um crime - Ruy Gardnier.
Damas do Prazer
3.9 6"O destino da mulher que pega o metrô é a casa em que seu filho deficiente se encontra. Os planos que o apresentam são estranhos, “incorretos”, despudorados, no limite da crueldade. Carinho com o personagem é uma ova. Essa história de carinho e afeto, que virou a moeda de troca mais corrente no cinema e na crítica, encobre na maioria das vezes uma covardia diante das principais questões morais. Em vez de definir um ponto de vista sobre o personagem, o filme embarca com ele num universo de sensações. O plano-afeto é a dramaturgia das almas frouxas. A verdadeira moral do cineasta é sua crueldade, pois somente ela pode despertar no espectador uma consciência incontornável sobre as coisas, isto é, uma necessidade de estabelecer um ponto de vista, de afrontar. O olhar cruel é o oposto do olhar inocente; é o olhar que reconhece as forças obscuras que atravessam o mundo. Esse olhar consiste tão-somente em encarar as coisas de frente e admitir que toda ação tem uma conseqüência. Lang, Renoir, Mizoguchi, Eastwood, Pialat, Bresson: os grandes cineastas morais sempre nos mostraram que a existência tem um peso.
É o que faz Antônio Meliande na cena da eutanásia: as ações de pegar a seringa, preparar a injeção, injetar a substância letal e aguardar pela morte são mostradas em sua duração agonizante, em seu peso bruto. Os planos destacam das ações e das expressões o essencial, seguem uma decupagem dramática, constroem o tempo da cena. Saber decupar é saber entender o momento dos personagens.
Nessa cena de Damas do Prazer, uma mãe põe fim à vida de seu filho. Por amor e por desespero. “A eutanásia é a morte por amor”, Corsário lhe havia dito. Meliande decupa tudo, passo a passo. Escolha cruel, escolha moral."
- Luiz Carlos Oliveira Jr., em texto da revista Contracampo
Tatuagem
4.2 923 Assista AgoraUm filme 100% de humanas.
Era uma Vez na América
4.4 529 Assista AgoraSergio Leone mais uma vez aprimorando a arte de fazer épicos de três (ou quatro) horas que mais parecem 90 minutos.
Heima
4.7 140 Assista AgoraUm videoclipe de 97 minutos