Admirável como Shimizu controla metodicamente uma mudança de tom de modo muito natural nessa história sobre o ato de olhar em seu mais profundo sentido. Quando menos se espera, estamos vendo outro filme. Uma história que se passa em um resort, onde encontros são transitórios e imprevisíveis, e perceber o outro em sua mais profunda camada diante desse contexto é algo precioso.
Fukasaku adota uma câmera nervosa e instável em uma montagem tanto ágil como caótica, com cortes abruptos contrabalanceados por pontuais momentos de sensibilidade em uma obra que importa muito da estética de documentário. A atuação minimalista e quase animalesca de Tesuya Watari como o personagem principal, Rikio Ishikawa, uma força autodestrutiva baseada em um personagem histórico da máfia japonesa do pós-guerra, além da fotografia que varia entre o preto e branco, o sépia ou um colorido opaco e escurecido, marca o filme como daqueles onde a forma é a expressão mais imediata da mensagem.
Horror com fundo político que mantém o interesse na maior parte do tempo, até se revelar uma propaganda ideológica desonesta. Acho curioso como os sul-coreanos mantêm uma linha cada vez mais crítica ao passado colonialista japonês, o que é justíssimo, mas não conseguem ver de modo claro sua própria história, tendo em vista que a divisão da Coreia não foi em definitivo uma empresa japonesa, mas norte-americana. Em certo trecho do filme ainda expressa que o demônio belígero caminha pro norte (Coreia do Norte), quando de fato é a Coreia do Sul que serve de base para os Estados Unidos cercarem cada vez mais a China, hoje o maior rival econômico dos Estados Unidos, e que foram os comunistas coreanos liderados por Kim Il-sung que expulsaram os imperialistas japoneses da península. Às vezes o cinema coreano me cansa.
Queria ler o livro no qual a animação se baseou, Les Hommes-machines contre Gandahar, escrito por Jean-Pierre Andrevon e lançado originalmente em 1969, mas aparentemente não existe tradução nem em inglês. A animação é irregular em termos de ritmo e qualidade técnica, mas a história é interessante, se alinhando a outras obras dos anos 60 que já se preocupavam com ética científica e ecologia. A ideia é mostrar como passado e futuro são continuidades delicadas de um mesmo fio, determinadas pelo senso de responsabilidade de quem promove e explora a ciência.
O passado científico irresponsável de Gandahar cobra um tributo pesado ao presente, enquanto o Metamorfo, consciente do que representa, promove seu próprio suicídio no futuro.
A título de curiosidade, a animação foi produzida pelo estúdio de animação SEK Studio da Coreia do Norte (Coreia Popular).
Rose Glass já havia chamado minha atenção com seu filme prévio, Saunt Maud. Aqui acerta novamente com uma abordagem meio 'Thelma e Louise homoerótico surrealista'. O que chama a atenção logo de início é a boa montagem que além de fluida, coloca o espectador atento a certos detalhes importantes no decorrer da trama. Há também boas atuações do elenco principal em uma abordagem temática que gira em torno do desejo, vícios, obsessões, traumas e transformação. Há muitas camadas aqui, e o fato de se passar no final dos anos 80, numa época na qual a Aids ainda era um perigo mortal (o filme faz questão de nos lembrar disso na cena do hospital, no qual um pôster sobre a doença pode ser visto), marca o terreno perigoso e incerto no qual transitam os personagens.
Eros e Tânatos. A transmutabilidade dos corpos faz relação com a transformação geopolítica do momento (a queda do muro de Berlim também é lembrada em determinada cena) e também pela busca individual de cada personagem, seja pela luta para romper sua próprias barreiras sociais e psicológicas, ou mesmo pela própria relação que se faz com outras pessoas. Enquanto Beth em cada cena está com seu corpo transformado por novas marcas de agressão de seu marido, Jackie se vê cada vez mais uma espécie de She-Hulk ou a personagem de "O Ataque da Mulher de 15 Metros", filme cult dos anos 50, refilmado nos anos 90. A relação com o corpo funciona aqui como uma metáfora para a nossa rendição ou busca pela independência (social, psíquica, química). Sobre isso, é interessante notar a batalha contra o vício em cigarros que a Lou trava consigo desde o princípio da história, e como isso é levado de forma irônica até a cena final.
A tribo mostrada no filme é o povo da etnia Selk'nam, da Terra do Fogo. Já havia lido sobre eles anteriormente (pesquisando sobre a limpeza étnica na Argentina) e fiquei fascinado e comovido pelo seu acaso. Vale uma pesquisa sobre. Achei interessante que a única cena de assassinato dos indígenas pelos colonos é meio camuflada pela névoa no cenário, e a cena mais gráfica é em tom de misericórdia. O mais brutal é apenas contado ou mencionado. O fato do filme ocultar boa parte desse massacre, talvez até por causa de orçamento, no final corrobora para a visão que a obra tem sobre a história de uma sociedade que precisa lidar com seus pecados contra a humanidade, e que são muitas vezes embaçados ou apagados pelo tempo.
Gostei de como faz uso de tropos do Western norte-americano para criar uma correlação com outros povos nativos oprimidos, contrapondo a visão do que esse tipo de gênero defendeu no passado. O modus operandi é o mesmo quando se trata de colonialismo. Essa relação se dá também pela inserção de um personagem natural dos EUA que efetivamente participou de massacres de autóctones em seu país. Só achei que a relação entre os personagens (um mestiço, um ex-soldado britânico e esse 'cowboy') poderia ser melhor explorada. Com exceção do mestiço, que age para garantir a própria sobrevivência, o que os liga é o gosto pela violência. Daí a cena na qual esses milicianos e alguns soldados que encontram no caminho, para se divertirem, só conseguem disputar jogos no qual a força e a violência estejam envolvidas.
O final se resolve muito bem, tendo Kiepja como a grande personagem. Ela contra-argumenta a ideia de justiça através do registro histórico, pois na época a maioria desses povos já haviam sido eliminados e seus perpetradores eram pessoas totalmente ligadas ao funcionamento do sistema, como o filme deixa claro. O personagem José Menéndez, o "Rei da Patagônia", é baseado numa figura real da história chilena e seus crimes só vieram a ser descobertos em 2008, 90 anos após sua morte. Seu capataz, Alexander MacLennan, também existiu. Apesar de se apresentar como Rosa, por uma imposição de um sociedade que prega a assimilação do que restou dos povos originários, ela ainda só responde como Kiepja. Um boa estreia em longa metragens do diretor Felipe Gálvez.
Gostei de Loving Vincent (Com Amor, Van Gogh, 2017), trabalho anterior de Hugh Welchman, mas esse é bem inferior. Não li o romance no qual foi baseado (Camponeses de Wladyslaw Reymont, 1904), mas essa adaptação tem pontos problemáticos, a começar pela personagem Jagna, que cambaleia estranhamente entre o estereótipo da mulher lasciva e individualista e o da inocente violada e sensível. Por um lado ela não parece ter o mínimo de empatia com outras personagens femininas, como Hanka, esposa de Antek, camponês com quem tem um caso amoroso, e por outro lado se importa com o destino de uma ave ferida. Não reprime o desejo sexual, ao mesmo tempo que cria delicados e infantis recortes de papel como passatempo. De certo modo contribui para o conflito entre a opressão cultural de uma comunidade patriarcal e uma individualidade de caráter elusivo da personagem, mas por outro lado torna difícil manter uma conexão que nos faça importar com seu destino final. A condução da história, que trata também de outros temas como rigor da vida no campo, conflito familiar e luta pela terra, não oferece um olhar mais aprofundado sobre tais problemas. A animação, assim como Loving Vincent, usa uma técnica de pintura sobre atores reais, mas o resultado aqui não é harmonioso, nem tem tanta razão de ser como no filme anterior (ainda que faça algumas homenagens a algumas pinturas clássicas). A técnica de pintura só efetivamente é interessante quando substitui a câmera para criar alguns travellings e transições mais elaborados. Entretanto, ainda que cause algum deslumbramento inicial, parece mais perfumaria que não acrescenta nada mais substancioso.
Documentário colossal de quatro horas baseado no livro "Atlas of an Occupied City: Amsterdam 1940-1945" de Bianca Stigter (esposa do diretor). O filme cria um instigante quadro comparativo entre o espaço físico atual, lugares onde prédios e casas ainda existem ou já foram demolidos, com relatos históricos ocorridos nesses locais, alguns profundamente perturbadores, da época da ocupação nazista na cidade de Amsterdam, dando certo enfoque ao destino dos judeus que lá tiveram passagem. Cria momentos interessantes de contrastes, pois a imagem é sempre contemporânea enquanto a narração é sempre sobre esse passado traumático. Invariavelmente nos deparamos com imagens de jovens a se divertir, beber, fumar, brincar. Nada que qualquer jovem não faria, mas funciona como um contraponto ilustrativo no filme. Ainda que a história de Anne Frank seja conhecida no mundo todo, uma pesquisa divulgada em 2023 relata que mais da metade dos holandeses não estava ciente da deportação e assassinato de judeus do país durante a Segunda Guerra Mundial, que um quarto dos millennials e da geração z do país acredita que o Holocausto é um mito ou um exagero.
Quem tem interesse por história, já visitou ou mesmo mora em lugares que foram palco de eventos significativos (ainda que mesmo só em nível pessoal ou familiar), já deve ter pensado muito nesse sentido, de como esses lugares meio que carregam consigo fantasmas do passado. Assim que se conhece a história, esses espaços se tornam um terreno extrafísico. Lembrei de uma graphic novel que faz algo neste sentido, "Aqui" de Richard McGuire, que aparentemente está em fase de adaptação para o cinema. Occupied City, filmado durante a pandemia da Covid-19, traz pelo menos para mim uma relação confusa que pode levar a ilações perigosas entre a ocupação nazista na cidade, com suas restrições, proibições e perseguições, com as regras de controle de saúde necessárias para a época. Talvez McQueen queria apenas mostrar diferentes e intensos episódios breves de limitações individuais na cidade. Mas enquanto o cerceamento nazista matou milhares de pessoas, o lockdown era necessário para poupar mais vidas. O filme a mim foi um tanto cansativo depois de um tempo, pois a forma é levada de maneira regular do início ao fim, provocando uma narcotização dos sentidos. A narração é quase ininterrupta, com breves momentos de alívio.
Filme de fantasia mais introspectivo do Miyazaki. Francamente autorreferenciado tanto em relação a trabalhos prévios (Totoro, Chihiro, Mononoke) como a impressões da própria vida pessoal do diretor. Como de costume em muitas de suas obras, retoma a figura do jovem que tem que lidar com a inclemência da realidade e intempéries da vida adulta, recriando-se no processo. De forma análoga a "O Castelo Animado" (2004), resgata a dualidade jovem/idoso, mas aqui de maneira muito mais personalista, através da representação incomum do idealismo de um jovem Miyazaki, representado curiosamente na figura do ancião (o Tio-avô), e da resolutividade e austeridade do velho Miyazaki (o jovem Mahito). Mas tudo isso construído de maneira não antagônica, como versões que coabitam e se combinam. Afinal, o mundo para o qual Mahito se aventura em busca não só de Natsuko (sua tia e agora madrasta), mas também como maneira intuitiva de se resolver com seu trauma (representado visualmente na lesão auto imposta na cabeça) em relação a perda da mãe, é um lugar onde o passado, o presente e o futuro se combinam, onde vivos e mortos coexistem. É o cinema do Miyazaki pensado com a cabeça do velho, quando se chega a um patamar da vida onde aceitamos que iremos passar deste mundo sem entender muito de seus mistérios e enigmas, quando as memórias se misturam com imaginação numa dialética de criação de novos sentidos, onde impera a lógica distorcida e irregular do sonho. Parece-me aquele tipo de filme que provavelmente crescerá a cada revisão.
Filme de caráter dramático-expressionista estrelado pela trágica estrela do cinema alemão Sybille Schmitz (Diary of a Lost Girl, Vampyr) que revisita o tema de uma mulher que luta contra o destino (personificado na figura da própria morte) na intenção de salvar o seu amado. História semelhante a um das linhas narrativas do clássico "A Morte Cansada", de Fritz Lang.
Exceto pelo personagem do homem fugitivo que não tem muito a oferecer em termos de performance, os principais personagens são interessantes. A interpretação de Sybille dá um caráter melancólico a Maria, que gradualmente se torna mais assertiva de seu destino e desejo de salvar o amado, um fugitivo perseguido por funestas figuras de preto que dominaram a sua região do outro lado do rio. A morte, que vem buscar o fugitivo pouco depois, interpretado por Peter Voß, é também marcante, denotando um caráter impassível e implacável.
O filme funciona como um conto místico e alegórico de luta contra um destino inclemente. A atmosfera enigmática é proporcionada pela fotografia evocativa de Franz Weihmayr (Senhoritas em Uniforme) e música marcante a cargo de Herbert Windt (Triunfo da Vontade, Olympia), um dos principais compositores do cinema na Alemanha nazista. Na época de seu lançamento foi criticado pelo seu caráter ambíguo de discurso e por não atender aos padrões de caracterização da mulher alemã intencionados pelo regime nazista. Esse caráter ambíguo pode levar alguns a interpretar as opressivas figuras de preto que perseguem o fugitivo como uma referência ao regime de exceção do partido nazista, que tomara o poder pouco tempo antes do lançamento do filme.
Ainda que o diretor e co-escritor do roteiro, Frank Wisbar, tenha fugido do país em 1938 por desavenças contra o regime, Hans Jürgen Nierentz, também roteirista, permaneceu no país e ajudou vigorosamente a construir obras que enalteciam o regime nazista, como até diretamente no aparato de propaganda estatal. Sybille Schmitz também permaneceu no país, trabalhando em produções da época, o que acabou prejudicando sua reputação no pós-guerra. Suicidou-se com apenas 45 anos. Sua figura e história serviram de inspiração para o filme "O Desespero de Veronika Voss", último filme produzido pelo seminal diretor alemão Rainer Fassbinder.
Comédia estrelada pela deslumbrante e frágil Lilian Harvey, maior estrela alemã da UFA nos anos 30, e pela dupla Willy Fritsch e Willi Forst, atores de sucesso em sua época. A maior curiosidade fica por conta do roteiro, co-escrito por Billy Wilder antes de migrar para Hollywood. Não só isso, como o filme trata exatamente dessa relação entre uma artista alemã (Jou Jou, interpretada por Harvey) e o sonho de se tornar uma estrela de cinema nos E.U.A. Seu projeto nunca vai para frente, mas ela acaba sendo acolhida, para não dizer assediada, por dois limpadores de janelas (Willy I e Willy II) que vivem a disputá-la.
O roteiro de Walter Reisch e Billy Wilder brinca o tempo todo com a ideia de perseguição de sonhos e realização da felicidade em meio a uma realidade de penúria e falta de oportunidades, algo que a população alemã da época vivia realmente. Ein blonder Traum, apesar de curto para os padrões de longa (90 e poucos minutos), parece se alongar demais. Ainda assim foi um sucesso. Os números musicais são típicos do cinema alemão da época, nada de muito elaborado ou imaginativo. A sequência mais inspirada é uma representação do sonho de Jou Jou nos E.U.A., que reafirma o tom tragicômico do filme.
O final visto aos olhos de hoje é estranho, para dizer o mínimo:
Jou Jou abdica de seu sonho profissional em favor de um amor romântico incerto, enquanto um dos Willis, o mal caráter, toma o lugar dela. Ideologicamente parece ser um discurso contra a dispersão dos cidadãos de uma Alemanha em trabalho de reestruturação econômica, o que infelizmente levaria os nazistas ao poder, tendo como fundação básica a "Wehrwirtschaft" (economia de defesa). Ou seja, produção de armamentos para utilização na conquista de novos territórios. O final do filme também já contém um fio de pensamento que se tornaria basilar da idealização da mulher na Alemanha nazista: ser uma mulher fiel, voltada ao afazeres domésticos, e que se abstém de sonhos profissionais para atender a um homem que trabalharia para ela e a família. Esse mesmo tipo de conclusão é presente em outro filme da Lily, Frau am Steuer (Mulher ao Volante, 1939). Aqui já durante o regime nazista. Esse ideal da mulher do lar seria revisto quando a guerra demandou o trabalho feminino para abastecer a indústria bélica.
Numa outra curiosidade que dialoga com o filme, Harvey ainda faria alguns filmes em Hollywood antes da Segunda Guerra eclodir, mas sem obter sucesso comercial. Voltou para a Alemanha, onde acabou por criar desavença com Goebbels e o regime nazista (uma cena de Bastardos Inglórias do Tarantino brinca com isso). Ajudou perseguidos pelo regime nazista a fugir do país, sendo que ela mesma acabou por fazer o mesmo em 1939, primeiro para França, onde fez dois filmes, depois para os E.U.A., mas sem dar continuidade a carreira de atriz de cinema. A indústria de cinema a esqueceu, e ela, por sua vez, resignou-se a um estado de ex-estrela de cinema.
O filme de 1931, dirigido pela Leontine Sagan, é especial por que foi produzido em um contexto de uma Alemanha ainda na iminência de ser contaminada pelo ideal nazista. Essa refilmagem, dirigido por Géza von Radványi, com a vantagem do conhecimento histórico, aproveita para imbuir um caráter mais personalista a esse contexto. Em uma das cenas, a personagem da diretora parece evocar a figura de Hitler. Em seu escritório, a afeição por peixes em um minúsculo aquário meio que remete ao que ela espera a respeito do comportamento das jovens em confinamento. O filme de '31 é premonitório (as garotas até usam roupas que terrivelmente se assemelham aos uniformes dos prisioneiros de campo de concentração), anunciando a tragédia de uma sociedade autoritária e repressora, enquanto esse é retrocognitivo, apontando os erros do passado. O final do filme do Géza von Radványi há um detalhe a mais, sugerindo uma sensível mudança de comportamento da diretora da escola, mas prefiro a crueza impactante e silenciosa da mesma personagem no filme da Leontine Sagan.
Os mais velhos são meio que forçados a usar instrumentos tecnologicamente avançados, mas pensar menos sobre o futuro, enquanto pensa o passado como algo idílico, e usa instrumentos obsoletos como forma de preservar uma identidade. O futuro (presente) tecnológico é apenas algo que é necessário a uma adaptação para o trabalho e vida social (o banheiro), enquanto o passado tecnológico é um rastro histórico, que lhe retoma algo do melhor tempo de sua vida (as fitas cassete). No entremear dessa disputa, há o momento único, komorebi, que não pode ser disputado no tempo. É presente, mas ainda que você pense sobre ele em instantâneo, ele já se torna passado. A fotografia de luzes e sombras filtradas pelas folhas de uma árvore é um registro de algo que nem a mente é capaz de captar de imediato. Daí a necessidade do registro.
Garrone acerta ao humanizar a figura do refugiado e muçulmano. A extenuante odisseia da imigração impressiona, traduzida com brutal naturalismo, mas também poesia. O destaque maior está na atuação marcante do jovem Seydor Sarr, ainda que seu personagem não ofereça muito mais que o da figura de superação de dificuldades e dignidade. Incomodou-me mais uma não contextualização das motivações reais da imigração. Especialmente por um filme produzido pela Itália, que no máximo pediu perdão à Líbia, rompendo qualquer acordo de retratação após a queda e assassinato de Ghaddafi pela Europa e EUA, e pela Bélgica, que até hoje não respondeu à altura aos crimes do colonialismo praticados no Congo. O Senegal do filme é mostrado em tom, senão fantasioso, insincero ou omissivo, como um lugar pobre, mas com uma comunidade festiva e ausente de problemas. Há trabalho, há escola, há lazer. A Europa não é mistificada, mas a ela não se coloca, nem ao menos de forma subjacente, a raiz da miséria, e por tabela, da imigração. Seydou e Moussa querem emigrar apenas por um desejo, um impulso de mudança e concretização de sonhos de artistas. Mais nada nos é oferecido na construção das personagens, mais nada é discutido a respeito do âmago do problema. Em tempo, até hoje Senegal é escravizado monetariamente pela França através do 'Franco CFA', moeda que transita exclusivamente na "ex"-colônias francesas da África, e que os obriga a operar com baixa reservas monetárias, sendo grande parte armazenadas no tesouro françês. Está aí a causa de boa parte da rebelião recente do Níger contra a exploração francesa.
Identidade e representação. Na vida em comunidade muitas vezes pensamos que somos algo pelo papel que nos foi oferecido, pacificamente aceito, ou mesmo imposto. Segundo o próprio Todd Haynes, o filme Persona de Ingmar Bergman foi a inspiração ideológica para criar o seu May December - título que remete a um tipo de relacionamento com um grande intervalo etário entre os parceiros. Para além disso, a estética do filme, com trilha marcante invocando um terror, como também o constante uso de zoom in, meio que convida o espectador a escrutinar com uma lupa essas pessoas. A história, por sua vez, é inspirada em um caso real: o relacionamento com gravidez entre Mary Kay LeTourneau, uma professora de trinta e quatro anos e Vili Fualaau, na época um pré-adolescente de 12 anos.
Há 20 anos Joe se coloca como alguém que teve que adentrar o mundo adulto precocemente, mas que tinha perfeita noção e responsabilidade sobre suas ações, enquanto Gracie como uma adulta ingênua que teve que pagar com sua liberdade por uma relação proibida. Entre eles entra um terceiro elemento, Elizabeth, a atriz que fará o papel de Gracie em uma nova produção sobre o caso, e que coloca em cheque o entendimento sobre essa relação. Ainda que as analogias com o reino animal corroborem uma certa visão, Joe como uma borboleta ainda em forma de pupa e Gracie como alguém que se reconhece numa das últimas cenas como uma raposa predadora, nada aqui é tão preto no branco. Há realmente uma fragilidade recôndita em Gracie, invocada por um possível caso de abuso, como há também muito senso de responsabilidade em Joe. Mas tudo isso é um eco de algo que aconteceu no passado, moralmente injustificável, e que não deixa de assombrá-los até hoje. A cena final, no set de filmagem, mostra que mesmo com a pesquisa intensa, e moralmente controversa, sobre os personagens, Elizabeth não consegue desvendar as máscaras, e apenas replica a representação mais superficial e comumente aceita sobre Gracie.
Único longa metragem dirigido por Awtar Krishna Kaul, que faleceu pouco depois de ser produzido. Essa nota baixa não condiz com esse clássico pouco lembrado do cinema indiano. Uma obra permeada de alegorias ligadas a figura do trem e seus passageiros. Sim, é uma abordagem já um tanto comum ligar a representação da viagem de um trem à própria vida, mas Awtar consegue imprimir um ar autoral mesmo em seu primeiro e único longa.
Erich von Stroheim criou aqui um dos personagens mais sórdidos e degradantes do audiovisual, o "Conde" Karamzin. É um filme dialoga com contrastes, seja entre a cultura europeia e a norte-americana, a ingenuidade e astúcia, a verdade e a mentira, ou altivez e torpeza. Mas o que fica na retina ao final, além da memorável figura do falso conde, são as fenomenais cenas de abertura e a final, que coincidentemente lembra a cena final de Nosferatu, que seria lançado meses depois do mesmo ano.
The Masseurs and a Woman
3.7 2 Assista AgoraAdmirável como Shimizu controla metodicamente uma mudança de tom de modo muito natural nessa história sobre o ato de olhar em seu mais profundo sentido. Quando menos se espera, estamos vendo outro filme. Uma história que se passa em um resort, onde encontros são transitórios e imprevisíveis, e perceber o outro em sua mais profunda camada diante desse contexto é algo precioso.
Alugados Pelo Inferno
3.7 4Fukasaku adota uma câmera nervosa e instável em uma montagem tanto ágil como caótica, com cortes abruptos contrabalanceados por pontuais momentos de sensibilidade em uma obra que importa muito da estética de documentário. A atuação minimalista e quase animalesca de Tesuya Watari como o personagem principal, Rikio Ishikawa, uma força autodestrutiva baseada em um personagem histórico da máfia japonesa do pós-guerra, além da fotografia que varia entre o preto e branco, o sépia ou um colorido opaco e escurecido, marca o filme como daqueles onde a forma é a expressão mais imediata da mensagem.
Uma dúvida me instigou no final, talvez por falta de atenção minha. Por que Ishikawa encomendou uma lápide para três, sendo que ele só tinha a Chieko?
Exhuma
3.4 7Horror com fundo político que mantém o interesse na maior parte do tempo, até se revelar uma propaganda ideológica desonesta. Acho curioso como os sul-coreanos mantêm uma linha cada vez mais crítica ao passado colonialista japonês, o que é justíssimo, mas não conseguem ver de modo claro sua própria história, tendo em vista que a divisão da Coreia não foi em definitivo uma empresa japonesa, mas norte-americana. Em certo trecho do filme ainda expressa que o demônio belígero caminha pro norte (Coreia do Norte), quando de fato é a Coreia do Sul que serve de base para os Estados Unidos cercarem cada vez mais a China, hoje o maior rival econômico dos Estados Unidos, e que foram os comunistas coreanos liderados por Kim Il-sung que expulsaram os imperialistas japoneses da península. Às vezes o cinema coreano me cansa.
Os Anos De Luz
4.0 30Queria ler o livro no qual a animação se baseou, Les Hommes-machines contre Gandahar, escrito por Jean-Pierre Andrevon e lançado originalmente em 1969, mas aparentemente não existe tradução nem em inglês. A animação é irregular em termos de ritmo e qualidade técnica, mas a história é interessante, se alinhando a outras obras dos anos 60 que já se preocupavam com ética científica e ecologia. A ideia é mostrar como passado e futuro são continuidades delicadas de um mesmo fio, determinadas pelo senso de responsabilidade de quem promove e explora a ciência.
O passado científico irresponsável de Gandahar cobra um tributo pesado ao presente, enquanto o Metamorfo, consciente do que representa, promove seu próprio suicídio no futuro.
A título de curiosidade, a animação foi produzida pelo estúdio de animação SEK Studio da Coreia do Norte (Coreia Popular).
Love Lies Bleeding: O Amor Sangra
3.5 71Rose Glass já havia chamado minha atenção com seu filme prévio, Saunt Maud. Aqui acerta novamente com uma abordagem meio 'Thelma e Louise homoerótico surrealista'. O que chama a atenção logo de início é a boa montagem que além de fluida, coloca o espectador atento a certos detalhes importantes no decorrer da trama. Há também boas atuações do elenco principal em uma abordagem temática que gira em torno do desejo, vícios, obsessões, traumas e transformação. Há muitas camadas aqui, e o fato de se passar no final dos anos 80, numa época na qual a Aids ainda era um perigo mortal (o filme faz questão de nos lembrar disso na cena do hospital, no qual um pôster sobre a doença pode ser visto), marca o terreno perigoso e incerto no qual transitam os personagens.
Eros e Tânatos. A transmutabilidade dos corpos faz relação com a transformação geopolítica do momento (a queda do muro de Berlim também é lembrada em determinada cena) e também pela busca individual de cada personagem, seja pela luta para romper sua próprias barreiras sociais e psicológicas, ou mesmo pela própria relação que se faz com outras pessoas. Enquanto Beth em cada cena está com seu corpo transformado por novas marcas de agressão de seu marido, Jackie se vê cada vez mais uma espécie de She-Hulk ou a personagem de "O Ataque da Mulher de 15 Metros", filme cult dos anos 50, refilmado nos anos 90. A relação com o corpo funciona aqui como uma metáfora para a nossa rendição ou busca pela independência (social, psíquica, química). Sobre isso, é interessante notar a batalha contra o vício em cigarros que a Lou trava consigo desde o princípio da história, e como isso é levado de forma irônica até a cena final.
Os Colonos
3.7 20 Assista AgoraA tribo mostrada no filme é o povo da etnia Selk'nam, da Terra do Fogo. Já havia lido sobre eles anteriormente (pesquisando sobre a limpeza étnica na Argentina) e fiquei fascinado e comovido pelo seu acaso. Vale uma pesquisa sobre. Achei interessante que a única cena de assassinato dos indígenas pelos colonos é meio camuflada pela névoa no cenário, e a cena mais gráfica é em tom de misericórdia. O mais brutal é apenas contado ou mencionado. O fato do filme ocultar boa parte desse massacre, talvez até por causa de orçamento, no final corrobora para a visão que a obra tem sobre a história de uma sociedade que precisa lidar com seus pecados contra a humanidade, e que são muitas vezes embaçados ou apagados pelo tempo.
Gostei de como faz uso de tropos do Western norte-americano para criar uma correlação com outros povos nativos oprimidos, contrapondo a visão do que esse tipo de gênero defendeu no passado. O modus operandi é o mesmo quando se trata de colonialismo. Essa relação se dá também pela inserção de um personagem natural dos EUA que efetivamente participou de massacres de autóctones em seu país. Só achei que a relação entre os personagens (um mestiço, um ex-soldado britânico e esse 'cowboy') poderia ser melhor explorada. Com exceção do mestiço, que age para garantir a própria sobrevivência, o que os liga é o gosto pela violência. Daí a cena na qual esses milicianos e alguns soldados que encontram no caminho, para se divertirem, só conseguem disputar jogos no qual a força e a violência estejam envolvidas.
O final se resolve muito bem, tendo Kiepja como a grande personagem. Ela contra-argumenta a ideia de justiça através do registro histórico, pois na época a maioria desses povos já haviam sido eliminados e seus perpetradores eram pessoas totalmente ligadas ao funcionamento do sistema, como o filme deixa claro. O personagem José Menéndez, o "Rei da Patagônia", é baseado numa figura real da história chilena e seus crimes só vieram a ser descobertos em 2008, 90 anos após sua morte. Seu capataz, Alexander MacLennan, também existiu. Apesar de se apresentar como Rosa, por uma imposição de um sociedade que prega a assimilação do que restou dos povos originários, ela ainda só responde como Kiepja. Um boa estreia em longa metragens do diretor Felipe Gálvez.
Em Nome da Terra
3.4 2Gostei de Loving Vincent (Com Amor, Van Gogh, 2017), trabalho anterior de Hugh Welchman, mas esse é bem inferior. Não li o romance no qual foi baseado (Camponeses de Wladyslaw Reymont, 1904), mas essa adaptação tem pontos problemáticos, a começar pela personagem Jagna, que cambaleia estranhamente entre o estereótipo da mulher lasciva e individualista e o da inocente violada e sensível. Por um lado ela não parece ter o mínimo de empatia com outras personagens femininas, como Hanka, esposa de Antek, camponês com quem tem um caso amoroso, e por outro lado se importa com o destino de uma ave ferida. Não reprime o desejo sexual, ao mesmo tempo que cria delicados e infantis recortes de papel como passatempo. De certo modo contribui para o conflito entre a opressão cultural de uma comunidade patriarcal e uma individualidade de caráter elusivo da personagem, mas por outro lado torna difícil manter uma conexão que nos faça importar com seu destino final. A condução da história, que trata também de outros temas como rigor da vida no campo, conflito familiar e luta pela terra, não oferece um olhar mais aprofundado sobre tais problemas. A animação, assim como Loving Vincent, usa uma técnica de pintura sobre atores reais, mas o resultado aqui não é harmonioso, nem tem tanta razão de ser como no filme anterior (ainda que faça algumas homenagens a algumas pinturas clássicas). A técnica de pintura só efetivamente é interessante quando substitui a câmera para criar alguns travellings e transições mais elaborados. Entretanto, ainda que cause algum deslumbramento inicial, parece mais perfumaria que não acrescenta nada mais substancioso.
Os Rejeitados
4.0 316Torcendo pra ganhar o oscar de roteiro original só pra ver o circo pegando fogo.
The Occupied City
3.0 1Documentário colossal de quatro horas baseado no livro "Atlas of an Occupied City: Amsterdam 1940-1945" de Bianca Stigter (esposa do diretor). O filme cria um instigante quadro comparativo entre o espaço físico atual, lugares onde prédios e casas ainda existem ou já foram demolidos, com relatos históricos ocorridos nesses locais, alguns profundamente perturbadores, da época da ocupação nazista na cidade de Amsterdam, dando certo enfoque ao destino dos judeus que lá tiveram passagem. Cria momentos interessantes de contrastes, pois a imagem é sempre contemporânea enquanto a narração é sempre sobre esse passado traumático. Invariavelmente nos deparamos com imagens de jovens a se divertir, beber, fumar, brincar. Nada que qualquer jovem não faria, mas funciona como um contraponto ilustrativo no filme. Ainda que a história de Anne Frank seja conhecida no mundo todo, uma pesquisa divulgada em 2023 relata que mais da metade dos holandeses não estava ciente da deportação e assassinato de judeus do país durante a Segunda Guerra Mundial, que um quarto dos millennials e da geração z do país acredita que o Holocausto é um mito ou um exagero.
Quem tem interesse por história, já visitou ou mesmo mora em lugares que foram palco de eventos significativos (ainda que mesmo só em nível pessoal ou familiar), já deve ter pensado muito nesse sentido, de como esses lugares meio que carregam consigo fantasmas do passado. Assim que se conhece a história, esses espaços se tornam um terreno extrafísico. Lembrei de uma graphic novel que faz algo neste sentido, "Aqui" de Richard McGuire, que aparentemente está em fase de adaptação para o cinema. Occupied City, filmado durante a pandemia da Covid-19, traz pelo menos para mim uma relação confusa que pode levar a ilações perigosas entre a ocupação nazista na cidade, com suas restrições, proibições e perseguições, com as regras de controle de saúde necessárias para a época. Talvez McQueen queria apenas mostrar diferentes e intensos episódios breves de limitações individuais na cidade. Mas enquanto o cerceamento nazista matou milhares de pessoas, o lockdown era necessário para poupar mais vidas. O filme a mim foi um tanto cansativo depois de um tempo, pois a forma é levada de maneira regular do início ao fim, provocando uma narcotização dos sentidos. A narração é quase ininterrupta, com breves momentos de alívio.
O Menino e a Garça
4.0 215Filme de fantasia mais introspectivo do Miyazaki. Francamente autorreferenciado tanto em relação a trabalhos prévios (Totoro, Chihiro, Mononoke) como a impressões da própria vida pessoal do diretor. Como de costume em muitas de suas obras, retoma a figura do jovem que tem que lidar com a inclemência da realidade e intempéries da vida adulta, recriando-se no processo. De forma análoga a "O Castelo Animado" (2004), resgata a dualidade jovem/idoso, mas aqui de maneira muito mais personalista, através da representação incomum do idealismo de um jovem Miyazaki, representado curiosamente na figura do ancião (o Tio-avô), e da resolutividade e austeridade do velho Miyazaki (o jovem Mahito). Mas tudo isso construído de maneira não antagônica, como versões que coabitam e se combinam. Afinal, o mundo para o qual Mahito se aventura em busca não só de Natsuko (sua tia e agora madrasta), mas também como maneira intuitiva de se resolver com seu trauma (representado visualmente na lesão auto imposta na cabeça) em relação a perda da mãe, é um lugar onde o passado, o presente e o futuro se combinam, onde vivos e mortos coexistem. É o cinema do Miyazaki pensado com a cabeça do velho, quando se chega a um patamar da vida onde aceitamos que iremos passar deste mundo sem entender muito de seus mistérios e enigmas, quando as memórias se misturam com imaginação numa dialética de criação de novos sentidos, onde impera a lógica distorcida e irregular do sonho. Parece-me aquele tipo de filme que provavelmente crescerá a cada revisão.
Fährmann Maria
3.5 1Filme de caráter dramático-expressionista estrelado pela trágica estrela do cinema alemão Sybille Schmitz (Diary of a Lost Girl, Vampyr) que revisita o tema de uma mulher que luta contra o destino (personificado na figura da própria morte) na intenção de salvar o seu amado. História semelhante a um das linhas narrativas do clássico "A Morte Cansada", de Fritz Lang.
Exceto pelo personagem do homem fugitivo que não tem muito a oferecer em termos de performance, os principais personagens são interessantes. A interpretação de Sybille dá um caráter melancólico a Maria, que gradualmente se torna mais assertiva de seu destino e desejo de salvar o amado, um fugitivo perseguido por funestas figuras de preto que dominaram a sua região do outro lado do rio. A morte, que vem buscar o fugitivo pouco depois, interpretado por Peter Voß, é também marcante, denotando um caráter impassível e implacável.
O filme funciona como um conto místico e alegórico de luta contra um destino inclemente. A atmosfera enigmática é proporcionada pela fotografia evocativa de Franz Weihmayr (Senhoritas em Uniforme) e música marcante a cargo de Herbert Windt (Triunfo da Vontade, Olympia), um dos principais compositores do cinema na Alemanha nazista. Na época de seu lançamento foi criticado pelo seu caráter ambíguo de discurso e por não atender aos padrões de caracterização da mulher alemã intencionados pelo regime nazista. Esse caráter ambíguo pode levar alguns a interpretar as opressivas figuras de preto que perseguem o fugitivo como uma referência ao regime de exceção do partido nazista, que tomara o poder pouco tempo antes do lançamento do filme.
Ainda que o diretor e co-escritor do roteiro, Frank Wisbar, tenha fugido do país em 1938 por desavenças contra o regime, Hans Jürgen Nierentz, também roteirista, permaneceu no país e ajudou vigorosamente a construir obras que enalteciam o regime nazista, como até diretamente no aparato de propaganda estatal. Sybille Schmitz também permaneceu no país, trabalhando em produções da época, o que acabou prejudicando sua reputação no pós-guerra. Suicidou-se com apenas 45 anos. Sua figura e história serviram de inspiração para o filme "O Desespero de Veronika Voss", último filme produzido pelo seminal diretor alemão Rainer Fassbinder.
Um Sonho Dourado
3.0 1Comédia estrelada pela deslumbrante e frágil Lilian Harvey, maior estrela alemã da UFA nos anos 30, e pela dupla Willy Fritsch e Willi Forst, atores de sucesso em sua época. A maior curiosidade fica por conta do roteiro, co-escrito por Billy Wilder antes de migrar para Hollywood. Não só isso, como o filme trata exatamente dessa relação entre uma artista alemã (Jou Jou, interpretada por Harvey) e o sonho de se tornar uma estrela de cinema nos E.U.A. Seu projeto nunca vai para frente, mas ela acaba sendo acolhida, para não dizer assediada, por dois limpadores de janelas (Willy I e Willy II) que vivem a disputá-la.
O roteiro de Walter Reisch e Billy Wilder brinca o tempo todo com a ideia de perseguição de sonhos e realização da felicidade em meio a uma realidade de penúria e falta de oportunidades, algo que a população alemã da época vivia realmente. Ein blonder Traum, apesar de curto para os padrões de longa (90 e poucos minutos), parece se alongar demais. Ainda assim foi um sucesso. Os números musicais são típicos do cinema alemão da época, nada de muito elaborado ou imaginativo. A sequência mais inspirada é uma representação do sonho de Jou Jou nos E.U.A., que reafirma o tom tragicômico do filme.
O final visto aos olhos de hoje é estranho, para dizer o mínimo:
Jou Jou abdica de seu sonho profissional em favor de um amor romântico incerto, enquanto um dos Willis, o mal caráter, toma o lugar dela. Ideologicamente parece ser um discurso contra a dispersão dos cidadãos de uma Alemanha em trabalho de reestruturação econômica, o que infelizmente levaria os nazistas ao poder, tendo como fundação básica a "Wehrwirtschaft" (economia de defesa). Ou seja, produção de armamentos para utilização na conquista de novos territórios. O final do filme também já contém um fio de pensamento que se tornaria basilar da idealização da mulher na Alemanha nazista: ser uma mulher fiel, voltada ao afazeres domésticos, e que se abstém de sonhos profissionais para atender a um homem que trabalharia para ela e a família. Esse mesmo tipo de conclusão é presente em outro filme da Lily, Frau am Steuer (Mulher ao Volante, 1939). Aqui já durante o regime nazista. Esse ideal da mulher do lar seria revisto quando a guerra demandou o trabalho feminino para abastecer a indústria bélica.
Numa outra curiosidade que dialoga com o filme, Harvey ainda faria alguns filmes em Hollywood antes da Segunda Guerra eclodir, mas sem obter sucesso comercial. Voltou para a Alemanha, onde acabou por criar desavença com Goebbels e o regime nazista (uma cena de Bastardos Inglórias do Tarantino brinca com isso). Ajudou perseguidos pelo regime nazista a fugir do país, sendo que ela mesma acabou por fazer o mesmo em 1939, primeiro para França, onde fez dois filmes, depois para os E.U.A., mas sem dar continuidade a carreira de atriz de cinema. A indústria de cinema a esqueceu, e ela, por sua vez, resignou-se a um estado de ex-estrela de cinema.
Os Três do Posto de Gasolina
1Pessoal deve ter mais cuidado na hora de fazer o cadastro. Essa capa de DVD é da versão de 1955.
Senhoritas em Uniforme
3.8 14O filme de 1931, dirigido pela Leontine Sagan, é especial por que foi produzido em um contexto de uma Alemanha ainda na iminência de ser contaminada pelo ideal nazista. Essa refilmagem, dirigido por Géza von Radványi, com a vantagem do conhecimento histórico, aproveita para imbuir um caráter mais personalista a esse contexto. Em uma das cenas, a personagem da diretora parece evocar a figura de Hitler. Em seu escritório, a afeição por peixes em um minúsculo aquário meio que remete ao que ela espera a respeito do comportamento das jovens em confinamento. O filme de '31 é premonitório (as garotas até usam roupas que terrivelmente se assemelham aos uniformes dos prisioneiros de campo de concentração), anunciando a tragédia de uma sociedade autoritária e repressora, enquanto esse é retrocognitivo, apontando os erros do passado. O final do filme do Géza von Radványi há um detalhe a mais, sugerindo uma sensível mudança de comportamento da diretora da escola, mas prefiro a crueza impactante e silenciosa da mesma personagem no filme da Leontine Sagan.
Dias Perfeitos
4.2 250 Assista AgoraOs mais velhos são meio que forçados a usar instrumentos tecnologicamente avançados, mas pensar menos sobre o futuro, enquanto pensa o passado como algo idílico, e usa instrumentos obsoletos como forma de preservar uma identidade. O futuro (presente) tecnológico é apenas algo que é necessário a uma adaptação para o trabalho e vida social (o banheiro), enquanto o passado tecnológico é um rastro histórico, que lhe retoma algo do melhor tempo de sua vida (as fitas cassete). No entremear dessa disputa, há o momento único, komorebi, que não pode ser disputado no tempo. É presente, mas ainda que você pense sobre ele em instantâneo, ele já se torna passado. A fotografia de luzes e sombras filtradas pelas folhas de uma árvore é um registro de algo que nem a mente é capaz de captar de imediato. Daí a necessidade do registro.
Eu, Capitão
4.0 70 Assista AgoraGarrone acerta ao humanizar a figura do refugiado e muçulmano. A extenuante odisseia da imigração impressiona, traduzida com brutal naturalismo, mas também poesia. O destaque maior está na atuação marcante do jovem Seydor Sarr, ainda que seu personagem não ofereça muito mais que o da figura de superação de dificuldades e dignidade. Incomodou-me mais uma não contextualização das motivações reais da imigração. Especialmente por um filme produzido pela Itália, que no máximo pediu perdão à Líbia, rompendo qualquer acordo de retratação após a queda e assassinato de Ghaddafi pela Europa e EUA, e pela Bélgica, que até hoje não respondeu à altura aos crimes do colonialismo praticados no Congo. O Senegal do filme é mostrado em tom, senão fantasioso, insincero ou omissivo, como um lugar pobre, mas com uma comunidade festiva e ausente de problemas. Há trabalho, há escola, há lazer. A Europa não é mistificada, mas a ela não se coloca, nem ao menos de forma subjacente, a raiz da miséria, e por tabela, da imigração. Seydou e Moussa querem emigrar apenas por um desejo, um impulso de mudança e concretização de sonhos de artistas. Mais nada nos é oferecido na construção das personagens, mais nada é discutido a respeito do âmago do problema. Em tempo, até hoje Senegal é escravizado monetariamente pela França através do 'Franco CFA', moeda que transita exclusivamente na "ex"-colônias francesas da África, e que os obriga a operar com baixa reservas monetárias, sendo grande parte armazenadas no tesouro françês. Está aí a causa de boa parte da rebelião recente do Níger contra a exploração francesa.
Segredos de um Escândalo
3.5 271 Assista AgoraIdentidade e representação. Na vida em comunidade muitas vezes pensamos que somos algo pelo papel que nos foi oferecido, pacificamente aceito, ou mesmo imposto. Segundo o próprio Todd Haynes, o filme Persona de Ingmar Bergman foi a inspiração ideológica para criar o seu May December - título que remete a um tipo de relacionamento com um grande intervalo etário entre os parceiros. Para além disso, a estética do filme, com trilha marcante invocando um terror, como também o constante uso de zoom in, meio que convida o espectador a escrutinar com uma lupa essas pessoas. A história, por sua vez, é inspirada em um caso real: o relacionamento com gravidez entre Mary Kay LeTourneau, uma professora de trinta e quatro anos e Vili Fualaau, na época um pré-adolescente de 12 anos.
Há 20 anos Joe se coloca como alguém que teve que adentrar o mundo adulto precocemente, mas que tinha perfeita noção e responsabilidade sobre suas ações, enquanto Gracie como uma adulta ingênua que teve que pagar com sua liberdade por uma relação proibida. Entre eles entra um terceiro elemento, Elizabeth, a atriz que fará o papel de Gracie em uma nova produção sobre o caso, e que coloca em cheque o entendimento sobre essa relação. Ainda que as analogias com o reino animal corroborem uma certa visão, Joe como uma borboleta ainda em forma de pupa e Gracie como alguém que se reconhece numa das últimas cenas como uma raposa predadora, nada aqui é tão preto no branco. Há realmente uma fragilidade recôndita em Gracie, invocada por um possível caso de abuso, como há também muito senso de responsabilidade em Joe. Mas tudo isso é um eco de algo que aconteceu no passado, moralmente injustificável, e que não deixa de assombrá-los até hoje. A cena final, no set de filmagem, mostra que mesmo com a pesquisa intensa, e moralmente controversa, sobre os personagens, Elizabeth não consegue desvendar as máscaras, e apenas replica a representação mais superficial e comumente aceita sobre Gracie.
Fechar os Olhos
4.3 15Victor Erice e Ana Torrent 49 anos depois de O Espírito da Colmeia. Quero muito ver.
Sisu: Uma História De Determinação
3.5 225 Assista AgoraMad Max Fury Road + John Wick que deu errado.
Zona de Interesse
3.6 579 Assista AgoraThe Zone of Interest é o título
John Wick 4: Baba Yaga
3.9 691 Assista AgoraDonnie Yen roubou o filme com sua releitura de Zatoichi.
O Dono da Noite
3.5 33 Assista AgoraTensão demarcada pelo acúmulo progressivo de sacos de lixo por toda a cidade. Bom filme do Schrader.
27 Down
3.2 1Único longa metragem dirigido por Awtar Krishna Kaul, que faleceu pouco depois de ser produzido. Essa nota baixa não condiz com esse clássico pouco lembrado do cinema indiano. Uma obra permeada de alegorias ligadas a figura do trem e seus passageiros. Sim, é uma abordagem já um tanto comum ligar a representação da viagem de um trem à própria vida, mas Awtar consegue imprimir um ar autoral mesmo em seu primeiro e único longa.
Esposas Ingênuas
3.4 27 Assista AgoraErich von Stroheim criou aqui um dos personagens mais sórdidos e degradantes do audiovisual, o "Conde" Karamzin. É um filme dialoga com contrastes, seja entre a cultura europeia e a norte-americana, a ingenuidade e astúcia, a verdade e a mentira, ou altivez e torpeza. Mas o que fica na retina ao final, além da memorável figura do falso conde, são as fenomenais cenas de abertura e a final, que coincidentemente lembra a cena final de Nosferatu, que seria lançado meses depois do mesmo ano.