Ao assistir A Vizinhança do Tigre (2014), logo pensei na inovação importante que aquele filme representava à representação da juventude periférica brasileira. Recordei do longa Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), que tinha assistido anteriormente e que fazia uma espécie de “duologia da ausência” ao lado desse primeiro filme do Uchôa. Fiquei pensando o quão promissor poderia ser aquele cineasta...
Ao entrar em contato com Arábia (2017, codirigido por João Dumans), pude notar ainda mais a inventividade estética e política que tal filme significava. Nessa grande obra, percebi o que significa cinema de qualidade feito por gente da periferia sobre a periferia. Ali, há as dores de uma pessoa em situação de vulnerabilidade e falta de oportunidades imerso nesse capitalismo neoliberal, e também todo o seu poder de reflexão e potência. Aliás, como já escrevi, Arábia lembra-me uma espécie de “Ladrões de Bicicletas brasileiro” (a “crise do pós-Guerra” é o cotidiano de sempre da periferia no Brasil).
Agora, conhecendo seu último trabalho, Sete Anos em Maio (2019) me faz lembrar de... Sete Anos em Maio. Me lembra Affonso Uchôa.
Acredito que isso significa que apenas com 2 longas e 1 média, esse cineasta já conseguiu consolidar sua própria autoria, numa linguagem cinematográfica única. É possível perceber que, como roteirista e diretor, ele já é muito consciente, sabendo exatamente onde quer chegar com cada um de seus filmes. Ao ponto de criar uma consistência, em que cada obra de sua filmografia vai se complementando, construindo assim uma filmografia de um hibridismo extraordinário e original entre documentário e ficção.
Abaixo, teço comentários e argumentos sobre a sua (excelente) última realização, enquanto faço algumas ligações sobre o que acho do seu cinema.
Em torno de 40 minutos preciosos, vemos uma construção originalíssima em cinco partes: 1) a caminhada no escuro; 2) a simulação do crime; 3) o relato; 4) o diálogo; e 5) o jogo da morte. Falarei mais adiante sobre a primeira cena, pois faz mais sentido quando unimos o início com os últimos minutos da obra.
Assim sendo, vamos à 2ª parte da simulação da violência policial que acompanhamos. Nesse trecho, tudo parece meio estranho, até que percebemos posteriormente a inventividade formal dessa cena. Historicamente, vemos as perspectivas de pessoas ricas (ou de classe média) sobre o que seriam as pessoas pobres. Não vou detalhar os estereótipos construídos e reproduzidos no cinema brasileiro a esse respeito (já fiz isso recentemente em minha crítica sobre o filme O Homem que Virou Suco), apenas afirmo aqui que essa obra rompe radicalmente todos eles.
Para reproduzir a violência sofrida por Rafael dos Santos Rocha, há o uso de pessoas da periferia de Contagem (MG), os quais podem interpretar o que significa simular a posição dos policiais corrompidos ao mesmo tempo em que se divertem ao ocupar o papel de atores. Nisso, existe essa mescla muito interessante entre documentário e ficção, que retoma o trabalho realizado em A Vizinhança do Tigre.
Destarte, há aqui uma radicalidade da reivindicação do lugar de fala do protagonista (que é periférico), o que representa uma desobediência estética à reprodução das imagens tão repetidas da pessoa de periferia sendo violentada. Abro um parêntese: falo de “radical” não como algo extremo ou exagerado, mas sim daquilo que é relativo à raiz, à origem ou ao fundamento de alguma coisa.
Então, se é para repetir imageticamente essa agressão, que haja algo de construtivo nisso... E, assim, aquilo que a princípio parece esquisito (falso até), revela-se uma escolha (política) muito inteligente. Pois não se trata de “dar voz ao pobre”, é usar da voz dessas pessoas para reconstruir uma tradição simbólica.
E isso é algo que já existe nos dois primeiros filmes desse diretor, contudo que só consegui perceber com mais nitidez em Sete Anos em Maio. Daqui em diante, vou defender a tese de que tal radicalidade estrutura Sete Anos em Maio (e a filmografia do Uchôa como um todo).
Em duração, o relato do Rafael (3ª parte) é a parte mais longa de Sete Anos em Maio. E isso se justifica pela riqueza de detalhes e a forma como sua vivência é transposta de forma dolorosamente real em tela. Nisso, é possível perceber que mais uma vez há a inovação de deixar a cena fixa num primeiro plano fixo e contínuo, pois não importa simular em imagens aquele trauma enorme, apenas a força de sua fala (e de seu olhar vazio/cheio) é o suficiente. Não há floreios, apenas palavras que machucam, uma imagem sóbria da violência.
Novamente, percebemos que, naquilo que há de documental na obra, não se faz necessário repetir estatísticas que explicitam como pessoas pobres e negras são tratadas como inferiores no Brasil. Estamos em 2020, dados quantitativos dão um quadro consistente acerca da proporção desses processos de exclusão, mas não são capazes de qualificar a experiência de dor e sofrimento subjetivo. Nessa obra, há o espaço para inovação estética a partir vivência crua e direta do que esses dados alarmantes (e tristemente repetidos) tanto apontam.
Para melhor explicar, vou me valer de uma breve comparação. Embora seja um ótimo filme, em Praça Paris (2018), Lúcia Murat tenta meio que se redimir usando cenas de violência de pessoas da favela como apenas fruto da imaginação de uma mulher branca e racista, em contraponto ao que existe muito na nossa cinematografia, inclusive no próprio Quase Dois Irmãos (2004) dessa cineasta... Com Uchôa, não há o que redimir, trata-se da reinvenção desse imaginário, mudado pela raiz desde o início. Dessa forma, apenas a fala do protagonista e sua imagem em primeiro plano já é o bastante para representar exatamente aquilo que está querendo ser passado.
4. Diálogo: o corte é profundo, o trauma é coletivo
A construção melhora quando percebemos o salto simbólico existente na 4ª parte do média-metragem. A radicalidade do lugar de fala continua: aquele relato não estava sendo dito para o espectador (que provavelmente é branco e ocupa um lugar de privilégio, dada a desigualdade de acesso à cultura no Brasil). Ele está sendo dito para ser ouvido e dialogado entre iguais.
Portanto, é no diálogo que aquele trauma individual se torna algo estrutural e histórico para grande parcela dos brasileiros. Isto é, são milhões de “já passei por tanta coisa, que toda história que ouço parece a minha”, de “a sua [história] é diferente?” seguido de “não, é igual a sua”. Esse tipo de relação particular-universal das desigualdades sociais brasileiras já é muito bem construído em Arábia (2017) e se repete aqui.
Se muitas pessoas podem escutar rap para ver sua realidade sendo representada por meio da arte, a filmografia de Uchôa comunica que elas podem também sentir diretamente retratos de suas vidas por meio da 7ª arte. Esses filmes mostram que espaço do cinema (de alto nível) é sim para todos, deve pertencer a todos. Essa ideia está inclusive na coletivização que ele faz em suas obras, sempre ao lado de muitas pessoas que não são (ainda) do cinema, aspecto que destacarei no tópico final.
Os caminhos que Rafael passa são o vício por drogas, o tráfico, a penitenciária, a rua, sempre com o trauma do rosto sanguinário da polícia em sua mente, mesmo depois de toda a tempestade ter diminuído. Se todo o genocídio da população negra é muito bem resumido nessa história, o fim da obra faz questão de usar uma metáfora rica a partir da brincadeira inocente de “morto vivo”, para passar de um modo inédito o que representa a atuação dessa instituição para as pessoas da periferia. Simplesmente doloroso e inesquecível.
O simbolismo é tão original quanto forte, porque para milhões de cidadãos, é exatamente isso que é o nosso Estado: uma máquina indiferente de matar corpos. Ainda, tal brincadeira lembra inclusive que desde a infância esses sujeitos precisam viver tal realidade de ausência de oportunidades e perdas afetivas. Não vou tratar de forma alongada sobre isso, cito apenas que tal cena ficará guardada para mim como uma síntese visual da necropolítica (conceito cunhado pelo Achille Mbembe).
Também destaco que, por a trama se passar em MG, não tive como não lembrar do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido também como o local responsável pelo “holocausto brasileiro”, em que cerca de 60 mil pessoas morreram nas mãos do Estado. O hospício foi praticamente o único caminho “destinado” aos corpos negros e periféricos que Rafael não conheceu em sua fatídica jornada, mas poderia muito bem ter parado lá (e nunca mais ter voltado).
Falando em ausências e pilhas de mortos pelo Estado... Chego à última camada que quero comentar. Vou falar da primeira cena, unindo-a com o fim da obra e a fotografia. A princípio, achamos que as cenas que acompanhamos se passam literalmente à noite, entretanto o campo de significado criado a partir do diálogo existente na trama reconstrói tudo que estamos assistindo até então.
A má iluminação pública de Contagem, com seu tom amarelado, mesclada o tempo todo com blocos de escuridão e chamas é transformada no próprio mundo subjetivo do protagonista. Aquilo que o ilumina, é insuficiente ou precisa consumir algo para continuar aceso. Como é dito num momento, a vida dele, que é a de muitos, envolve-se de uma pilha histórica de mortos. Pilha essa que se acumulou ao ponto de tomar a claridade que existia no céu. Trata-se de viver numa noite duradoura, num luto recorrente.
A cena inicial da caminhada no escuro é ao mesmo tempo literal e metafórica. Poderia ser de dia, inclusive; algum carro poderia passar subitamente por cima dele, também. Essa fragilidade e rispidez do ambiente representa a ferida profunda que carrega. Assim como ocorre com o momento final, quando Rocha recusa a morrer na cena, com seu corpo diminuído no plano geral e envolto na escuridão do horizonte citadino. Mais uma vez, as cores e a iluminação indicam essa situação desgastante e diminuída em que se encontra a subjetividade dele.
Então, tudo no mundo do Rafael é esse jogo barroco de claro-escuro. Um jogo de luz forjado radicalmente no ambiente a que pertence, sem nenhum artifício a mais para embelezar as imagens. Até nisso, a obra vai à radicalidade proposta, o que nos faz pensar que esse filme possui uma unidade muito rica e completa entre forma e conteúdo.
Chegando ao fim desse escrito, vale ressaltar que é injusto eu repetir tanto o nome do Affonso sem reforçar que sua filmografia é extremamente coletivizada, o que se exemplifica não só nas parcerias com Aristides de Souza e João Dumans, como também das muitas pessoas que protagonizam seus longas, feitos por atores não profissionais. Logo, o impacto social e político desse cinema é visto das próprias obras. E, assim sendo, não há separação explícita entre ficção e documentário, como citei.
Todo filme é uma obra coletiva, mas nessa filmografia isso é levado a outro nível, pois transforma a vida de pessoas comuns (dentro e fora das obras) ao realocá-las como protagonistas reais de histórias pertinentes aos grupos sociais que historicamente não controlam os meios de produção cinematográfica. E esse tipo de arte ajuda exatamente na produção do não esquecimento, na construção ativa de nossa memória social. Como é dito na obra, esquecer certas atrocidades ou violências existentes seria como completar o serviço de quem atua amolando a faca das estruturas racistas e genocidas do Brasil.
Quanto mais referências se tem, maiores são as possibilidades de uma pessoa realizar conexões com a realidade que nos rodeia. E isso é importante para podermos criticar/agir em direção ao que consideramos potente ou incorreto. Ou seja, essa filmografia é feita para produzir, pela arte, um diálogo entre essas pessoas (comuns) retratadas, para buscarmos uma mudança social efetiva diante dessa realidade corrosiva e revoltante. É um cinema que acredita que, apesar de tudo, “não tem noite que dure para sempre”.
Portanto, será que Uchôa não merece tanta atenção do público brasileiro quanto outros diretores iniciantes estrangeiros? Nomes como Ari Aster, Robert Eggers, Damien Chazelle merecem respeito, mas... Com muito menos dinheiro, Affonso tem produzido verdadeiras obras-primas, com dramas que nos deixam diretamente tocados com o terror que o Brasil significa para boa parte de nosso povo. Sem precisar se ancorar em pirotecnia ou espetacularização de nada... Nesse sentido, a experiência de seus filmes me lembra Belchior: “A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais”.
Temos o nosso grande cineasta em início de carreira, falando sobre nossas questões sem nenhuma maquiagem, reinventando o real e o imaginário pela 7ª arte. Caso não o conheça ou não tenha visto alguma das suas 3 primeiras obras, convido você a conhecer seu trabalho. Sua filmografia pode ser alugada por preços acessíveis no site da distribuidora Embaúba Filmes (A Vizinhança do Tigre também está disponível na plataforma MUBI).
Depois de tudo isso, concluo dizendo que não me surpreenderá vê-lo alcançar o mesmo patamar de reconhecimento que o Kleber Mendonça Filho conseguiu nos anos recentes. Não só em festivais (onde ele e seus parceiros já estão sendo reconhecidos), mas principalmente do público geral. Assim espero que aconteça: de Contagem para o mundo, de Contagem para todo mundo.
Sete Anos em Maio
4.1 101. Affonso Uchôa: não mais uma promessa, uma realidade
Ao assistir A Vizinhança do Tigre (2014), logo pensei na inovação importante que aquele filme representava à representação da juventude periférica brasileira. Recordei do longa Baronesa (2017, Dir.: Juliana Antunes), que tinha assistido anteriormente e que fazia uma espécie de “duologia da ausência” ao lado desse primeiro filme do Uchôa. Fiquei pensando o quão promissor poderia ser aquele cineasta...
Ao entrar em contato com Arábia (2017, codirigido por João Dumans), pude notar ainda mais a inventividade estética e política que tal filme significava. Nessa grande obra, percebi o que significa cinema de qualidade feito por gente da periferia sobre a periferia. Ali, há as dores de uma pessoa em situação de vulnerabilidade e falta de oportunidades imerso nesse capitalismo neoliberal, e também todo o seu poder de reflexão e potência. Aliás, como já escrevi, Arábia lembra-me uma espécie de “Ladrões de Bicicletas brasileiro” (a “crise do pós-Guerra” é o cotidiano de sempre da periferia no Brasil).
Agora, conhecendo seu último trabalho, Sete Anos em Maio (2019) me faz lembrar de... Sete Anos em Maio. Me lembra Affonso Uchôa.
Acredito que isso significa que apenas com 2 longas e 1 média, esse cineasta já conseguiu consolidar sua própria autoria, numa linguagem cinematográfica única. É possível perceber que, como roteirista e diretor, ele já é muito consciente, sabendo exatamente onde quer chegar com cada um de seus filmes. Ao ponto de criar uma consistência, em que cada obra de sua filmografia vai se complementando, construindo assim uma filmografia de um hibridismo extraordinário e original entre documentário e ficção.
Abaixo, teço comentários e argumentos sobre a sua (excelente) última realização, enquanto faço algumas ligações sobre o que acho do seu cinema.
2. A radicalidade do lugar de fala periférico
Em torno de 40 minutos preciosos, vemos uma construção originalíssima em cinco partes: 1) a caminhada no escuro; 2) a simulação do crime; 3) o relato; 4) o diálogo; e 5) o jogo da morte. Falarei mais adiante sobre a primeira cena, pois faz mais sentido quando unimos o início com os últimos minutos da obra.
Assim sendo, vamos à 2ª parte da simulação da violência policial que acompanhamos. Nesse trecho, tudo parece meio estranho, até que percebemos posteriormente a inventividade formal dessa cena. Historicamente, vemos as perspectivas de pessoas ricas (ou de classe média) sobre o que seriam as pessoas pobres. Não vou detalhar os estereótipos construídos e reproduzidos no cinema brasileiro a esse respeito (já fiz isso recentemente em minha crítica sobre o filme O Homem que Virou Suco), apenas afirmo aqui que essa obra rompe radicalmente todos eles.
Para reproduzir a violência sofrida por Rafael dos Santos Rocha, há o uso de pessoas da periferia de Contagem (MG), os quais podem interpretar o que significa simular a posição dos policiais corrompidos ao mesmo tempo em que se divertem ao ocupar o papel de atores. Nisso, existe essa mescla muito interessante entre documentário e ficção, que retoma o trabalho realizado em A Vizinhança do Tigre.
Destarte, há aqui uma radicalidade da reivindicação do lugar de fala do protagonista (que é periférico), o que representa uma desobediência estética à reprodução das imagens tão repetidas da pessoa de periferia sendo violentada. Abro um parêntese: falo de “radical” não como algo extremo ou exagerado, mas sim daquilo que é relativo à raiz, à origem ou ao fundamento de alguma coisa.
Então, se é para repetir imageticamente essa agressão, que haja algo de construtivo nisso... E, assim, aquilo que a princípio parece esquisito (falso até), revela-se uma escolha (política) muito inteligente. Pois não se trata de “dar voz ao pobre”, é usar da voz dessas pessoas para reconstruir uma tradição simbólica.
E isso é algo que já existe nos dois primeiros filmes desse diretor, contudo que só consegui perceber com mais nitidez em Sete Anos em Maio. Daqui em diante, vou defender a tese de que tal radicalidade estrutura Sete Anos em Maio (e a filmografia do Uchôa como um todo).
3. Um olhar cheio, um olhar vazio
Em duração, o relato do Rafael (3ª parte) é a parte mais longa de Sete Anos em Maio. E isso se justifica pela riqueza de detalhes e a forma como sua vivência é transposta de forma dolorosamente real em tela. Nisso, é possível perceber que mais uma vez há a inovação de deixar a cena fixa num primeiro plano fixo e contínuo, pois não importa simular em imagens aquele trauma enorme, apenas a força de sua fala (e de seu olhar vazio/cheio) é o suficiente. Não há floreios, apenas palavras que machucam, uma imagem sóbria da violência.
Novamente, percebemos que, naquilo que há de documental na obra, não se faz necessário repetir estatísticas que explicitam como pessoas pobres e negras são tratadas como inferiores no Brasil. Estamos em 2020, dados quantitativos dão um quadro consistente acerca da proporção desses processos de exclusão, mas não são capazes de qualificar a experiência de dor e sofrimento subjetivo. Nessa obra, há o espaço para inovação estética a partir vivência crua e direta do que esses dados alarmantes (e tristemente repetidos) tanto apontam.
Para melhor explicar, vou me valer de uma breve comparação. Embora seja um ótimo filme, em Praça Paris (2018), Lúcia Murat tenta meio que se redimir usando cenas de violência de pessoas da favela como apenas fruto da imaginação de uma mulher branca e racista, em contraponto ao que existe muito na nossa cinematografia, inclusive no próprio Quase Dois Irmãos (2004) dessa cineasta... Com Uchôa, não há o que redimir, trata-se da reinvenção desse imaginário, mudado pela raiz desde o início. Dessa forma, apenas a fala do protagonista e sua imagem em primeiro plano já é o bastante para representar exatamente aquilo que está querendo ser passado.
4. Diálogo: o corte é profundo, o trauma é coletivo
A construção melhora quando percebemos o salto simbólico existente na 4ª parte do média-metragem. A radicalidade do lugar de fala continua: aquele relato não estava sendo dito para o espectador (que provavelmente é branco e ocupa um lugar de privilégio, dada a desigualdade de acesso à cultura no Brasil). Ele está sendo dito para ser ouvido e dialogado entre iguais.
Portanto, é no diálogo que aquele trauma individual se torna algo estrutural e histórico para grande parcela dos brasileiros. Isto é, são milhões de “já passei por tanta coisa, que toda história que ouço parece a minha”, de “a sua [história] é diferente?” seguido de “não, é igual a sua”. Esse tipo de relação particular-universal das desigualdades sociais brasileiras já é muito bem construído em Arábia (2017) e se repete aqui.
Se muitas pessoas podem escutar rap para ver sua realidade sendo representada por meio da arte, a filmografia de Uchôa comunica que elas podem também sentir diretamente retratos de suas vidas por meio da 7ª arte. Esses filmes mostram que espaço do cinema (de alto nível) é sim para todos, deve pertencer a todos. Essa ideia está inclusive na coletivização que ele faz em suas obras, sempre ao lado de muitas pessoas que não são (ainda) do cinema, aspecto que destacarei no tópico final.
5. Brincando de genocídio
Os caminhos que Rafael passa são o vício por drogas, o tráfico, a penitenciária, a rua, sempre com o trauma do rosto sanguinário da polícia em sua mente, mesmo depois de toda a tempestade ter diminuído. Se todo o genocídio da população negra é muito bem resumido nessa história, o fim da obra faz questão de usar uma metáfora rica a partir da brincadeira inocente de “morto vivo”, para passar de um modo inédito o que representa a atuação dessa instituição para as pessoas da periferia. Simplesmente doloroso e inesquecível.
O simbolismo é tão original quanto forte, porque para milhões de cidadãos, é exatamente isso que é o nosso Estado: uma máquina indiferente de matar corpos. Ainda, tal brincadeira lembra inclusive que desde a infância esses sujeitos precisam viver tal realidade de ausência de oportunidades e perdas afetivas. Não vou tratar de forma alongada sobre isso, cito apenas que tal cena ficará guardada para mim como uma síntese visual da necropolítica (conceito cunhado pelo Achille Mbembe).
Também destaco que, por a trama se passar em MG, não tive como não lembrar do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido também como o local responsável pelo “holocausto brasileiro”, em que cerca de 60 mil pessoas morreram nas mãos do Estado. O hospício foi praticamente o único caminho “destinado” aos corpos negros e periféricos que Rafael não conheceu em sua fatídica jornada, mas poderia muito bem ter parado lá (e nunca mais ter voltado).
6 – Noite duradoura
Falando em ausências e pilhas de mortos pelo Estado... Chego à última camada que quero comentar. Vou falar da primeira cena, unindo-a com o fim da obra e a fotografia. A princípio, achamos que as cenas que acompanhamos se passam literalmente à noite, entretanto o campo de significado criado a partir do diálogo existente na trama reconstrói tudo que estamos assistindo até então.
A má iluminação pública de Contagem, com seu tom amarelado, mesclada o tempo todo com blocos de escuridão e chamas é transformada no próprio mundo subjetivo do protagonista. Aquilo que o ilumina, é insuficiente ou precisa consumir algo para continuar aceso. Como é dito num momento, a vida dele, que é a de muitos, envolve-se de uma pilha histórica de mortos. Pilha essa que se acumulou ao ponto de tomar a claridade que existia no céu. Trata-se de viver numa noite duradoura, num luto recorrente.
A cena inicial da caminhada no escuro é ao mesmo tempo literal e metafórica. Poderia ser de dia, inclusive; algum carro poderia passar subitamente por cima dele, também. Essa fragilidade e rispidez do ambiente representa a ferida profunda que carrega. Assim como ocorre com o momento final, quando Rocha recusa a morrer na cena, com seu corpo diminuído no plano geral e envolto na escuridão do horizonte citadino. Mais uma vez, as cores e a iluminação indicam essa situação desgastante e diminuída em que se encontra a subjetividade dele.
Então, tudo no mundo do Rafael é esse jogo barroco de claro-escuro. Um jogo de luz forjado radicalmente no ambiente a que pertence, sem nenhum artifício a mais para embelezar as imagens. Até nisso, a obra vai à radicalidade proposta, o que nos faz pensar que esse filme possui uma unidade muito rica e completa entre forma e conteúdo.
7 – Memória social e transformação
Chegando ao fim desse escrito, vale ressaltar que é injusto eu repetir tanto o nome do Affonso sem reforçar que sua filmografia é extremamente coletivizada, o que se exemplifica não só nas parcerias com Aristides de Souza e João Dumans, como também das muitas pessoas que protagonizam seus longas, feitos por atores não profissionais. Logo, o impacto social e político desse cinema é visto das próprias obras. E, assim sendo, não há separação explícita entre ficção e documentário, como citei.
Todo filme é uma obra coletiva, mas nessa filmografia isso é levado a outro nível, pois transforma a vida de pessoas comuns (dentro e fora das obras) ao realocá-las como protagonistas reais de histórias pertinentes aos grupos sociais que historicamente não controlam os meios de produção cinematográfica. E esse tipo de arte ajuda exatamente na produção do não esquecimento, na construção ativa de nossa memória social. Como é dito na obra, esquecer certas atrocidades ou violências existentes seria como completar o serviço de quem atua amolando a faca das estruturas racistas e genocidas do Brasil.
Quanto mais referências se tem, maiores são as possibilidades de uma pessoa realizar conexões com a realidade que nos rodeia. E isso é importante para podermos criticar/agir em direção ao que consideramos potente ou incorreto. Ou seja, essa filmografia é feita para produzir, pela arte, um diálogo entre essas pessoas (comuns) retratadas, para buscarmos uma mudança social efetiva diante dessa realidade corrosiva e revoltante. É um cinema que acredita que, apesar de tudo, “não tem noite que dure para sempre”.
8 – É só o começo
Portanto, será que Uchôa não merece tanta atenção do público brasileiro quanto outros diretores iniciantes estrangeiros? Nomes como Ari Aster, Robert Eggers, Damien Chazelle merecem respeito, mas... Com muito menos dinheiro, Affonso tem produzido verdadeiras obras-primas, com dramas que nos deixam diretamente tocados com o terror que o Brasil significa para boa parte de nosso povo. Sem precisar se ancorar em pirotecnia ou espetacularização de nada... Nesse sentido, a experiência de seus filmes me lembra Belchior: “A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais”.
Temos o nosso grande cineasta em início de carreira, falando sobre nossas questões sem nenhuma maquiagem, reinventando o real e o imaginário pela 7ª arte. Caso não o conheça ou não tenha visto alguma das suas 3 primeiras obras, convido você a conhecer seu trabalho. Sua filmografia pode ser alugada por preços acessíveis no site da distribuidora Embaúba Filmes (A Vizinhança do Tigre também está disponível na plataforma MUBI).
Depois de tudo isso, concluo dizendo que não me surpreenderá vê-lo alcançar o mesmo patamar de reconhecimento que o Kleber Mendonça Filho conseguiu nos anos recentes. Não só em festivais (onde ele e seus parceiros já estão sendo reconhecidos), mas principalmente do público geral. Assim espero que aconteça: de Contagem para o mundo, de Contagem para todo mundo.