A cultura é uma das armas mais subversivas da história da humanidade. E seu golpe é tão singelo e melífluo que, em diversas vezes, o atingido é também mais um propagador da chama da resistência. Na Paris sitiada pelos nazistas durante a segunda guerra mundial não foi diferente. Enquanto a ocupação alemã aumentava, mais precisa era a necessidade de capilarizar a cultura francesa entre os povos. Como? Fazendo arte em seu esplendor, para demonstrar aos invasores que havia ali uma barreira intelectual inquebrável, que não se ruía pelo poderio militar. O filme O ÚLTIMO METRÔ (1980), de François Truffaut, retrata muito bem aquela época sob um olhar cultural.
Como Paris estava dominada, havia o toque de recolher num determinado horário, sendo, este, a derradeira viagem do metrô na cidade para retornar com as pessoas para casa. Tudo se resolvia até o último metrô. E, ainda por causa da falta de opções de lazer, muita gente frequentava os teatros em busca de divertimento e fuga momentânea do pesadelo que viviam. As casas lotavam e os agentes culturais começaram a enxergar, nas peças teatrais, formas de resistência. E as mensagens invadiam o local mesmo recheado de personalidades nazistas que, com as cabeças fixas nas bombas, riam e aplaudiam seus próprios deboches.
Truffaut não passou pano e nem era um alienado político por não enfatizar tiros, mortes e passagens fúnebres nesta obra. Pelo contrário, ele fez um ode à arte por ajudar a livrar sua França do domínio maléfico nazista. Sendo mais ainda uma declaração de amor ao teatro, pois utiliza-se da metalinguagem não apenas como forma, mas como verdadeira personagem da fita. Um exercício cultural necessário num tempo difícil de trevas.
A escolha da produção em se passar quase toda a história num teatro pode fazer cansar o espectador, mas é algo logicamente aceitável, além de possuir o simbolismo supracitado. Contudo, a atmosfera é envolvente e cativante, tal qual Catherine Deneuve, Gérard Depardieu e Heinz Bennet quando aparecem na tela com suas ambiguidades e destrezas. Em suma, um filme de 1980 que rememora o horror de 1944 e que traz à tona o desafio de lutar contra o obscurantismo da atualidade, pois nos lança a pulga atrás da orelha. Porque derrotar o fascismo não é fácil. Mas o caminho transita pela arte e pela cultura.
Uma história impressionante sobre o universo jurídico e a dualidade que tal disciplina carrega, precisando, em diversas ocasiões, caminhar lado a lado com amoralismo e, consequentemente, despertar sensações de injustiça. Jeremy Irons (excelência de atuação) no papel do milionário Claus Von Büllow é ao mesmo tempo cínico e sedutor, o que nos deixa eternamente com a dúvida: culpado ou inocente, apesar de já condenado socialmente? E essa espiral de morte social é um outro aspecto interessante da trama que, com tons de tragicomédia, retrata as "boas maneiras" da alta sociedade. Uma saga do nosso tempo, mesmo não sendo da nossa classe econômica.
A criança que habita em nós nunca deixa de existir. Ela apenas se torna cada vez mais cínica e impaciente, preferindo, com o passar do tempo, a reclusão à liberdade. Este terno e belo drama com jeitão documental atesta a sisudez do envelhecimento, dando mais ênfase às memórias das pequenas coisas do que propriamente à psicologia coming of age. E mais: a criançada está, sim, preocupada com o futuro. Num claro recado à labuta de ser mãe, vemos o cuidado diário como algo penoso, desafiador mas satisfatório, pois pais e filhos desenvolvem-se e evoluem-se mutuamente (no caso do longa, tio e sobrinho), cada qual descobrindo um pouco de si no outro. Além do ato de escutar, literalmente. Pois estreitar laços é o modo mais fácil de desatar nós.
P.S.¹ - Como as entrevistas com as crianças foram realizadas realmente, seria interessante lançar um documentário com as respostas dada.
P.S.² - Até que enfim uma criança fazendo o papel de criança com criancice.
P.S.³ - Quem ainda usa post scriptum em pleno século XXI?
Agatha Christie, a Rainha do Crime, é um prato cheio para a cinematografia. Sua obra é um roteiro pronto para qualquer diretor botar as imagens em cena. Porém, como sabido pela imensa massa de seres pensantes, nada supera a imaginação de ler o livro. Não que este longa seja ruim, pelo contrário, elenco afiado, história intrigante, mistério atraente, situações inesperadas e um espirituoso e bem humorado Hercule Poirot, o icônico detetive belga criado pela escritora inglesa. Só que não há aprofundamento e nem algo excepcional, deixando a obra meio monótona para o gênero "quem é o assassino?". E os movimentos românticos da trama não são muito convincentes, como se as atividades das pequenas células cinzentas dos espectadores fossem menosprezadas. Mas é um bom e elegante filme da estirpe britânica.
Necessária animação que a Disney, corajosamente, abraçou. O novo sempre vem, porém, parece tabu falar de uma garota em seus 13 anos, época marcada pela puberdade e transição à vida adulta. E, aqui, não se trata de ritos e mitos sobre crescimento do corpo ou primeira menstruação, pois é sobre algo mais profundo e adorável - os monstros internos de uma pré-adolescente. Passando pela manutenção das tradições e estabelecimento das raízes, esta obra utiliza o surrealismo do absurdo como simbologia para a mudança que a vida pede. Assim, os elementos fantásticos servem para emocionar o espectador e unir as camadas geracionais de uma família em desavença. Só que tal "magia da Pixar" pode soar forçada em determinadas situações, resultando em desdobramentos previsíveis e redundantes. Mas as intenções são válidas e o resultado é efetivo, indo do humor às lagrimas de cena em cena. Vale a sessão!
Publicado pela primeira vez em 7 de abril de 1845, 'Os Sapatinhos Vermelhos' é o conto de fadas mais famoso do poeta e autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Trata-se da história de uma garota camponesa que deseja um par de sapatos vermelhos a qualquer custo. E consegue. Porém, ao calçá-los, os sapatos, diferentemente da sua dona, não querem parar de dançar, levando a garota ao cansaço extremo, logo, à morte. Simbolicamente refletindo a cobiça e ambição em sustentar a vaidade e luxúria humana.
Tendo como base o supracitado conto, o excelente filme OS SAPATINHOS VERMELHOS (1948), de Emeric Pressburger e Michael Powell, trabalha a magnitude da arte em várias vertentes e abstrações. Além de requintado, mexe com a intersetorialidade cultural ao juntar, numa obra só, o cinema, a literatura, o teatro, a música e a dança. Ou seja, pra quem aprecia a discussão artística é um manjar delicioso e delirante.
Fazendo o bom uso do technicolor (pois à época as gravações ainda eram em preto e branco), os diretores ingleses produzem um longa que passeia na magia das grandes produções hollywoodianas e na solidez da cinematografia europeia para entregarem um lindo e trágico musical, daqueles que deixam o queixo caído e a alma leve por horas. E sem o moralismo cristão proposto na fábula dinamarquesa. Assim, a trama se desenvolve sobre uma aspirante a bailarina que precisa, num determinado momento, escolher entre a fama e o amor.
Pode-se citar algumas narrativas quebradas como fator desconfortável ao espectador, mas todos os arcos dramáticos são muito bem trabalhados, que vai desde a rigidez talentosa da dança russa ao cenário paradisíaco e glamoroso da estância monegasca de Monte Carlo, além do embate entre o sonho e a realidade fabulado pela edição. Ademais, a cena inicial do balé 'The Red Shoes' é algo próximo da perfeição.
Enfim, um filme fantástico que não se configura como um musical autêntico nem como um drama de suspense, até porque não há personagens dúbios na trama. Todos ali são o que são e, a partir disso, desenvolvem-se no pessimismo que a vida propicia. Infelizmente é uma obra subestimada e pouco conhecida do grande público (mesmo entre os cinéfilos), porém, grandiosa e seminal, sendo um pouco responsável pelo que a sétima arte é atualmente.
Mais um blockbuster filme apocalíptico cheio de clichês do gênero "ficção científica da catástrofe". O empenho foi completamente gasto nos aspectos técnicos e efeitos especiais enquanto a horda narrativa derramava platitudes na tela - diálogos sofríveis, reviravoltas ineptas, pouca inspiração dos atores. De aproveitável tem somente a excêntrica ideia da história que, dentro do universo _sci-fi_, pode render boas tramas quando bem cuidadas, além do não realismo das viagens espaciais que sai um pouco do lugar comum de sempre querermos não escutar som no espaço por causa do vácuo. Uma esquisitice sideral.
Lembranças e memórias são sempre mais significativas para os seus donos, e isso pode virar um problema quando se quer transportar para a telona. É o caso deste filme. Tem uma história interessante, um trabalho de áudio e imagem sensacional, personagens que se destacam, mas afunda numa narrativa psicológica e intelectual desconfortante para (a maioria) os espectadores. Talvez esse toque pesado seja para desencorajar o julgamento fácil, pois relacionamentos são sempre complicados, principalmente nas proximidades e separações. Enfim, uma obra britânica de ritmo lento que tentou ser universal.
Um primor técnico magnânimo, capaz de ativar emoções diversas por meio de uma experiência sensorial inigualável. O tom acinzentado da poeira do deserto embalsando o branco doloroso do céu só reforça o ambiente sombrio e urgente que a trama quer prever. Porém, falta futuro. Por mais que os subtemas estejam atuais (colonialismo, ativismo ecológico, exploração econômica), o deslumbramento ficcional da narrativa perde força e cansa rápido demais, tornando-se indecisa. As soluções do protagonista são fáceis e apressadas, falta humanidade nos personagens, muita apresentação e pouco aprofundamento, enfim, parece que mais está por vir do que o já apresentado. Mas é grandioso pelo tamanho de tudo. E, pra quem curte, é um apuro imagético que salva a produção.
Aparentemente digressivo e bagunçado, este filme ratifica o status quo "diferentão" do diretor, pois, embora pareça, a trama não é aleatória e as histórias não são soltas. Já que o famigerado acaso é um personagem importante dentre os vários (e dispensáveis) personagens do longa. Tudo isso ligado ao fator romance. E é incrível como a apatia e a resignação dos personagens principais são retratadas - com a mais sincera das aceitações porque eles não sabem (e não conseguem) se expressar/comunicar. É uma vida comum e sem rumo baseada na teoria behaviorista de Skinner: observo, logo, ajo. Porém, por mais que essa alienação possa ser incompreensível para os espectadores, é carismática ao extremo. Em suma, uma obra sobre amadurecimento, tal qual uma corrida para os sonhos. Ou para um abraço.
Uma verdadeira viagem sobre a psiquê humana e como a nossa monstruosidade nasce da ambição efervescente de cada dia. Sofrimento, castigo, morbidez e morte causam traumas, e estes se transformam em vazios que, automaticamente, precisam ser preenchidos. Mas com quais sentimentos? Quanto mais estímulos maléficos, mais cruel será a fera humana (cuja alimentação é administrada pelo próprio homem). Uma obra interessantíssima só que com graves problemas de desequilíbrio na trama e no roteiro. Dois cenários distintos, duas histórias que pouco se conectam, dois atos com personagens secundários diferentes, enfim, um neo noir que profana e titubeia na mesma intensidade. Mas sem deixar de ser um horror cru e moderno dos lixos viventes em nós, os reais criadores de tais monstros.
Possuindo todos os sentidos e temperos da excelência do cinema italiano, esta autobiografia real e surreal é deliciosa. Aludindo ao gol de Maradona e ao entorno que tal tento simbolizou, especificamente para os napolitanos, eis uma obra política, reveladora e dotada de esperança e dor tal qual a juventude que guerreia. É cativante e perspicaz mas apresenta certas desconexões por causa do excessivo número de personagens secundários, pois muitos são deixados pra trás e outros aparecem e somem sem explicações. Mas quem há de dizer que a vida não é desconexa? Assim, nessa picotada relação de beleza e tristeza eximiamente fotografada pelas câmeras de Paolo Sorrentino, há encantos e descobertas. Logo, saboroso.
Mistura de literatura, teatro e cinema numa realidade multilíngue onde o luto e o autoconhecimento são os donos do espetáculo. Além da reconstrução pessoal (não à toa Hiroshima é escolhida como cidade da narrativa), sobre relações e afetos. E são situações complexas e complicadas retratadas, como solidão, culpa, fuga e autoflagelo, no melhor estilo do cinema oriental, com calma e precisão de detalhes (vide a leitura meticulosa do roteiro repetidas vezes), o que justifica suas três horas de duração, pois o tempo também é personagem já que se pensa o passado como estrada pra construir o futuro. Outro personagem marcante é o carro Saab 900, local onde verdades surgem como simples piscar de olhos. E, de uma maneira singela e perfurante, o realismo de Anton Tchekhov encerra esta bela obra: "você nunca conheceu a felicidade, mas espere". Não recomendado àqueles que veem filmes com pressa, pois o cochilo virá invariavelmente.
Shows ao ar livre no verão estadunidense de 1969? Sim, quase todo o mundo vai responder Woodstock. Pois para a população negra e latina do Harlem, Nova Iorque, os olhos e ouvidos estavam virados para o Festival Cultural do Harlem durante seis finais de semanas seguidos. E que não teve exposição televisiva nem midiática porque se tratava de pretos. Guerra do Vietnã, Partido dos Panteras Negras, assassinatos de líderes emblemáticos como os Kennedys, Malcolm X e Martin Luther King, toda essa atmosfera contribuiu para a revolução cultural que não foi televisionada. E gratuitamente para um mar de pessoas negras que buscavam a igualdade identitária e se libertavam das amarras do racismo pela catarse cultural chamada música. Uma joia que ficou esquecida por 50 anos mas que é imprescindível a quem ama não só a arte, mas a humanidade.
Na esteira de desmitificar os contos de fadas de reis, rainhas, príncipes e princesas, a Disney, conhecida por sua excelência na produção de animações, toca num tema ardiloso mas urgente - a instituição familiar. Sem conotações do lar como refúgio doce e acolhedor, a questão abordada é: o quanto conhecemos as pessoas da nossa família? Ou melhor, o quanto nos conhecemos dentro das nossas relações familiares? Sob o mote da opressora colonização latina (especificamente a colombiana) e baseada na terapêutica constelação familiar (ordem, pertencimento e equilíbrio), esta bela obra apresenta diversas camadas de representatividade e aceitação que se discutem entre si. Porém, falta força na magia esperada do filme, pois tudo se resolve fácil demais. Só que, mesmo assim, funciona e encanta.
Retratar personagens icônicas é andar numa linha tênue, que se torna ainda mais ardilosa por se tratar de uma personagem midiática da evangelização na TV. E não se discute a fé (nem aqui nem no filme), mas os caminhos que levaram Tammy Faye (Jessica Chastain numa atuação de gala) ao estrelato, queda e redenção. Com excessivo foco nela e no marido, muitas questões da sociedade evangélica norte-americana ficaram sem resposta. E as saídas políticas e religiosas escolhidas pelo diretor foram preenchidas com humor, o que nem sempre funciona em cinebiografias. Ou seja, o contexto crítico esperado para a obra se perdeu. Ainda assim há algo de proveitoso no longa, como conhecer a história dos precursores do televangelismo e do fascínio que o amor de Deus causa nas pessoas. Seja pro bem ou pro mal. Vale a sessão.
É inevitável não fazer comparações com o clássico original. Porém, mais inevitável ainda é querer tapar os olhos para este remake. Que sensibilidade de Spielberg! Se, nos anos 60, a disputa entre os Jets e os Sharks se dava apenas por etnias imigrantes, esta nova obra trouxe todas as lutas que o mundo do século XXI precisa atentar - racismo, transfobia, desigualdade econômica, abismo social. Isso ao som da inesquecível e inalterada trilha sonora de Leonard Bernstein e tendo como pano de fundo o amor entre diferentes no estilo Romeu e Julieta. Praticamente uma aula de como fazer musicais no cinema (referências, domínio narrativo, cores, coreografias), até chegar ao ato final que, inexplicavelmente, sai do eixo. Sem contar que a entrada e a saída do casal apaixonado acontecem abruptamente. Agora, a Rita Moreno é uma emoção à parte.
Os interessantes conflitos que acontecem/acontecerão em famílias de pais surdos e filhos ouvintes são postos em cena nesta bela, tocante, sutil e hilária obra. Não tratando a surdez como pena nem com teor de caridade, estabelece-se a possibilidade de ouvirmos além da barreira do som. E, sob tal óptica, foge da pieguice e consegue comover e prender a atenção do espectador, principalmente no que tange à equivocada dependência pelos surdos dos seus entes ouvintes. Porém, o ato final cambaleia nos momentos cafonas e de água com açúcar que o filme sempre evitou, trazendo aquela previsibilidade dos filmes do gênero, mas nada que desabone o produto final. E a escolha das canções potencializou a emoção, que visa o coração e atinge o alvo.
Parece clichê falar de filmes biográficos que usam a mesma proposta formulaica para o gênero. Neste caso, o mote esportivo dobra o conceito para o clichê do clichê: luta de classe, moral familiar, superação de obstáculos e redenção. De ritmo propositadamente lento para beneficiar a estupenda atuação de Will Smith, o longa cansa e dá a impressão de repetição (talvez seja porque o jogo de tênis seja assim). Não há arco dramático na relação pai/filhas e tudo se resolve na base da fábula contada. Ainda assim, é um filme da nossa era, por apresentar as melhores tenistas de todos os tempos se consagrando pelos seus talentos num esporte predominantemente branco e abastado. E, assim como King Richard, Venus e Serena possuem o triunfo da autodeterminação. Pois, de louco, cada um tem um pouco.
No lugar do PIB, o Butão criou o FIB, Felicidade Interna Bruta, cujo índice é avaliado pelo rei em busca de melhorias do bem estar da população. Isto é bastante claro e segue como premissa deste belo exemplar de filme butanês. Essencialmente simplória, a obra viaja as montanhas do país subindo, literalmente, em direção aos céus, onde, metaforicamente, o homem é mais humilde, cortês e feliz. No estilo "a cidade grande torna o ser humano frio e desconectado com a natureza", o longa funciona muito bem como propaganda imagética de um lindo local a ser visitado. Pois fabular sobre a corrupção pela sociedade do homem puro, apesar de bonito e singelo, não funciona em pleno século XXI. Mas, por se tratar de costumes distantes e valorização do professor, há esperança de cativar os espectadores como lição de vida oferecendo uma reflexão pronta. E quem a receber assim com certeza irá se emocionar.
Os vários significados da maternidade foram explorados em mais um colorido filme de Almodóvar. Inclusive o da mãe Espanha repleta de cicatrizes ainda abertas e dolorosas por conta de sua guerra civil. E é esse simbolismo que permeia esta intrigante obra, porém, de maneira abrupta e desconexa. Inicia-se num tema, desfoca-se, entra outra narrativa, intensifica-se e finaliza-se num anticlímax não desejado, como se o espectador fosse forçado a acreditar nas sucessivas surpresas do enredo. Mas, mesmo com as pontas soltas, é prazeroso sentir o universo feminino como a rédea principal da sociedade. Afinal, existem e estão entre nós as mães paralelas, tão sedentas de atenção quanto as películas políticas do diretor, que nos ensinam a fechar ciclos e abraçar o novo. Uma abordagem moderna e madura da história e tradição.
Um filme estadunidense feito para estadunidenses. Quem não conhece o mínimo da história de Lucille Ball (Nicole Kidman excelente!) ficará sem saber que esta foi uma das pioneiras e importantes atrizes que popularizou o sitcom nos EUA, as famigeradas séries de comédia de televisão. Recheado de gente boa no elenco (Javier Bardem também está ótimo e J.K. Simmons rouba a cena quando aparece), o longa oferece, por meio de diálogos afiados, ágeis e inteligentes, dois dramas vividos por Lucy concomitantemente: o da perseguição política, era o auge da Guerra Fria, e o do casamento com o artista cubano Desi Arnaz. Em suma, um recorte de biografia que não conseguiu capturar a magia desejada, mas que serve de insight para buscar vídeos de 'I Love Lucy' no YouTube.
A mulher não nasce mulher, torna-se mulher. Sob a bênção de Simone de Beauvoir, este belo filme retrata a dor e a delícia da maternidade, sem adereços passionais e tradicionais que foram (e são) impostos nesta modalidade, como a romantização de ser mãe. "São minhas filhas, logo, eu as amo. Mas, se eu não suportar a ideia de ser mãe? Eu posso me priorizar ao invés das minhas filhas? Por que a culpa em ser mãe desnaturada?" Sem tabu ou panfletarismo, a agonia brutal dessas questões são transformadas num thriller psicológico que sufoca tanto a personagem principal quanto o espectador. Afinal, todo mundo possui segredos e conflitos. Infelizmente, a obra tem uma dramatização carregada que enerva. Mas as atuações fazem valer a pena.
O Último Metrô
3.8 68 Assista AgoraA RESISTÊNCIA NA ARTE
A cultura é uma das armas mais subversivas da história da humanidade. E seu golpe é tão singelo e melífluo que, em diversas vezes, o atingido é também mais um propagador da chama da resistência. Na Paris sitiada pelos nazistas durante a segunda guerra mundial não foi diferente. Enquanto a ocupação alemã aumentava, mais precisa era a necessidade de capilarizar a cultura francesa entre os povos. Como? Fazendo arte em seu esplendor, para demonstrar aos invasores que havia ali uma barreira intelectual inquebrável, que não se ruía pelo poderio militar. O filme O ÚLTIMO METRÔ (1980), de François Truffaut, retrata muito bem aquela época sob um olhar cultural.
Como Paris estava dominada, havia o toque de recolher num determinado horário, sendo, este, a derradeira viagem do metrô na cidade para retornar com as pessoas para casa. Tudo se resolvia até o último metrô. E, ainda por causa da falta de opções de lazer, muita gente frequentava os teatros em busca de divertimento e fuga momentânea do pesadelo que viviam. As casas lotavam e os agentes culturais começaram a enxergar, nas peças teatrais, formas de resistência. E as mensagens invadiam o local mesmo recheado de personalidades nazistas que, com as cabeças fixas nas bombas, riam e aplaudiam seus próprios deboches.
Truffaut não passou pano e nem era um alienado político por não enfatizar tiros, mortes e passagens fúnebres nesta obra. Pelo contrário, ele fez um ode à arte por ajudar a livrar sua França do domínio maléfico nazista. Sendo mais ainda uma declaração de amor ao teatro, pois utiliza-se da metalinguagem não apenas como forma, mas como verdadeira personagem da fita. Um exercício cultural necessário num tempo difícil de trevas.
A escolha da produção em se passar quase toda a história num teatro pode fazer cansar o espectador, mas é algo logicamente aceitável, além de possuir o simbolismo supracitado. Contudo, a atmosfera é envolvente e cativante, tal qual Catherine Deneuve, Gérard Depardieu e Heinz Bennet quando aparecem na tela com suas ambiguidades e destrezas. Em suma, um filme de 1980 que rememora o horror de 1944 e que traz à tona o desafio de lutar contra o obscurantismo da atualidade, pois nos lança a pulga atrás da orelha. Porque derrotar o fascismo não é fácil. Mas o caminho transita pela arte e pela cultura.
O Reverso da Fortuna
3.5 53 Assista AgoraUma história impressionante sobre o universo jurídico e a dualidade que tal disciplina carrega, precisando, em diversas ocasiões, caminhar lado a lado com amoralismo e, consequentemente, despertar sensações de injustiça. Jeremy Irons (excelência de atuação) no papel do milionário Claus Von Büllow é ao mesmo tempo cínico e sedutor, o que nos deixa eternamente com a dúvida: culpado ou inocente, apesar de já condenado socialmente? E essa espiral de morte social é um outro aspecto interessante da trama que, com tons de tragicomédia, retrata as "boas maneiras" da alta sociedade. Uma saga do nosso tempo, mesmo não sendo da nossa classe econômica.
Sempre em Frente
3.9 160A criança que habita em nós nunca deixa de existir. Ela apenas se torna cada vez mais cínica e impaciente, preferindo, com o passar do tempo, a reclusão à liberdade. Este terno e belo drama com jeitão documental atesta a sisudez do envelhecimento, dando mais ênfase às memórias das pequenas coisas do que propriamente à psicologia coming of age. E mais: a criançada está, sim, preocupada com o futuro. Num claro recado à labuta de ser mãe, vemos o cuidado diário como algo penoso, desafiador mas satisfatório, pois pais e filhos desenvolvem-se e evoluem-se mutuamente (no caso do longa, tio e sobrinho), cada qual descobrindo um pouco de si no outro. Além do ato de escutar, literalmente. Pois estreitar laços é o modo mais fácil de desatar nós.
P.S.¹ - Como as entrevistas com as crianças foram realizadas realmente, seria interessante lançar um documentário com as respostas dada.
P.S.² - Até que enfim uma criança fazendo o papel de criança com criancice.
P.S.³ - Quem ainda usa post scriptum em pleno século XXI?
Morte no Nilo
3.1 354 Assista AgoraAgatha Christie, a Rainha do Crime, é um prato cheio para a cinematografia. Sua obra é um roteiro pronto para qualquer diretor botar as imagens em cena. Porém, como sabido pela imensa massa de seres pensantes, nada supera a imaginação de ler o livro. Não que este longa seja ruim, pelo contrário, elenco afiado, história intrigante, mistério atraente, situações inesperadas e um espirituoso e bem humorado Hercule Poirot, o icônico detetive belga criado pela escritora inglesa. Só que não há aprofundamento e nem algo excepcional, deixando a obra meio monótona para o gênero "quem é o assassino?". E os movimentos românticos da trama não são muito convincentes, como se as atividades das pequenas células cinzentas dos espectadores fossem menosprezadas. Mas é um bom e elegante filme da estirpe britânica.
Secretária
3.5 296Uma excêntrica crítica ao amor limpinho, fofinho e cheiroso.
Red: Crescer é uma Fera
3.9 555 Assista AgoraNecessária animação que a Disney, corajosamente, abraçou. O novo sempre vem, porém, parece tabu falar de uma garota em seus 13 anos, época marcada pela puberdade e transição à vida adulta. E, aqui, não se trata de ritos e mitos sobre crescimento do corpo ou primeira menstruação, pois é sobre algo mais profundo e adorável - os monstros internos de uma pré-adolescente. Passando pela manutenção das tradições e estabelecimento das raízes, esta obra utiliza o surrealismo do absurdo como simbologia para a mudança que a vida pede. Assim, os elementos fantásticos servem para emocionar o espectador e unir as camadas geracionais de uma família em desavença. Só que tal "magia da Pixar" pode soar forçada em determinadas situações, resultando em desdobramentos previsíveis e redundantes. Mas as intenções são válidas e o resultado é efetivo, indo do humor às lagrimas de cena em cena. Vale a sessão!
Os Sapatinhos Vermelhos
4.3 171 Assista AgoraA ARTE ESPETACULAR QUE COLORE E DANÇA
Publicado pela primeira vez em 7 de abril de 1845, 'Os Sapatinhos Vermelhos' é o conto de fadas mais famoso do poeta e autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Trata-se da história de uma garota camponesa que deseja um par de sapatos vermelhos a qualquer custo. E consegue. Porém, ao calçá-los, os sapatos, diferentemente da sua dona, não querem parar de dançar, levando a garota ao cansaço extremo, logo, à morte. Simbolicamente refletindo a cobiça e ambição em sustentar a vaidade e luxúria humana.
Tendo como base o supracitado conto, o excelente filme OS SAPATINHOS VERMELHOS (1948), de Emeric Pressburger e Michael Powell, trabalha a magnitude da arte em várias vertentes e abstrações. Além de requintado, mexe com a intersetorialidade cultural ao juntar, numa obra só, o cinema, a literatura, o teatro, a música e a dança. Ou seja, pra quem aprecia a discussão artística é um manjar delicioso e delirante.
Fazendo o bom uso do technicolor (pois à época as gravações ainda eram em preto e branco), os diretores ingleses produzem um longa que passeia na magia das grandes produções hollywoodianas e na solidez da cinematografia europeia para entregarem um lindo e trágico musical, daqueles que deixam o queixo caído e a alma leve por horas. E sem o moralismo cristão proposto na fábula dinamarquesa. Assim, a trama se desenvolve sobre uma aspirante a bailarina que precisa, num determinado momento, escolher entre a fama e o amor.
Pode-se citar algumas narrativas quebradas como fator desconfortável ao espectador, mas todos os arcos dramáticos são muito bem trabalhados, que vai desde a rigidez talentosa da dança russa ao cenário paradisíaco e glamoroso da estância monegasca de Monte Carlo, além do embate entre o sonho e a realidade fabulado pela edição. Ademais, a cena inicial do balé 'The Red Shoes' é algo próximo da perfeição.
Enfim, um filme fantástico que não se configura como um musical autêntico nem como um drama de suspense, até porque não há personagens dúbios na trama. Todos ali são o que são e, a partir disso, desenvolvem-se no pessimismo que a vida propicia. Infelizmente é uma obra subestimada e pouco conhecida do grande público (mesmo entre os cinéfilos), porém, grandiosa e seminal, sendo um pouco responsável pelo que a sétima arte é atualmente.
Moonfall: Ameaça Lunar
2.4 553 Assista AgoraMais um blockbuster filme apocalíptico cheio de clichês do gênero "ficção científica da catástrofe". O empenho foi completamente gasto nos aspectos técnicos e efeitos especiais enquanto a horda narrativa derramava platitudes na tela - diálogos sofríveis, reviravoltas ineptas, pouca inspiração dos atores. De aproveitável tem somente a excêntrica ideia da história que, dentro do universo _sci-fi_, pode render boas tramas quando bem cuidadas, além do não realismo das viagens espaciais que sai um pouco do lugar comum de sempre querermos não escutar som no espaço por causa do vácuo. Uma esquisitice sideral.
O Souvenir
3.0 51 Assista AgoraLembranças e memórias são sempre mais significativas para os seus donos, e isso pode virar um problema quando se quer transportar para a telona. É o caso deste filme. Tem uma história interessante, um trabalho de áudio e imagem sensacional, personagens que se destacam, mas afunda numa narrativa psicológica e intelectual desconfortante para (a maioria) os espectadores. Talvez esse toque pesado seja para desencorajar o julgamento fácil, pois relacionamentos são sempre complicados, principalmente nas proximidades e separações. Enfim, uma obra britânica de ritmo lento que tentou ser universal.
Duna: Parte 1
3.8 1,6K Assista AgoraUm primor técnico magnânimo, capaz de ativar emoções diversas por meio de uma experiência sensorial inigualável. O tom acinzentado da poeira do deserto embalsando o branco doloroso do céu só reforça o ambiente sombrio e urgente que a trama quer prever. Porém, falta futuro. Por mais que os subtemas estejam atuais (colonialismo, ativismo ecológico, exploração econômica), o deslumbramento ficcional da narrativa perde força e cansa rápido demais, tornando-se indecisa. As soluções do protagonista são fáceis e apressadas, falta humanidade nos personagens, muita apresentação e pouco aprofundamento, enfim, parece que mais está por vir do que o já apresentado. Mas é grandioso pelo tamanho de tudo. E, pra quem curte, é um apuro imagético que salva a produção.
Licorice Pizza
3.5 598Aparentemente digressivo e bagunçado, este filme ratifica o status quo "diferentão" do diretor, pois, embora pareça, a trama não é aleatória e as histórias não são soltas. Já que o famigerado acaso é um personagem importante dentre os vários (e dispensáveis) personagens do longa. Tudo isso ligado ao fator romance. E é incrível como a apatia e a resignação dos personagens principais são retratadas - com a mais sincera das aceitações porque eles não sabem (e não conseguem) se expressar/comunicar. É uma vida comum e sem rumo baseada na teoria behaviorista de Skinner: observo, logo, ajo. Porém, por mais que essa alienação possa ser incompreensível para os espectadores, é carismática ao extremo. Em suma, uma obra sobre amadurecimento, tal qual uma corrida para os sonhos. Ou para um abraço.
O Beco do Pesadelo
3.5 497 Assista AgoraUma verdadeira viagem sobre a psiquê humana e como a nossa monstruosidade nasce da ambição efervescente de cada dia. Sofrimento, castigo, morbidez e morte causam traumas, e estes se transformam em vazios que, automaticamente, precisam ser preenchidos. Mas com quais sentimentos? Quanto mais estímulos maléficos, mais cruel será a fera humana (cuja alimentação é administrada pelo próprio homem). Uma obra interessantíssima só que com graves problemas de desequilíbrio na trama e no roteiro. Dois cenários distintos, duas histórias que pouco se conectam, dois atos com personagens secundários diferentes, enfim, um neo noir que profana e titubeia na mesma intensidade. Mas sem deixar de ser um horror cru e moderno dos lixos viventes em nós, os reais criadores de tais monstros.
A Mão de Deus
3.6 189Possuindo todos os sentidos e temperos da excelência do cinema italiano, esta autobiografia real e surreal é deliciosa. Aludindo ao gol de Maradona e ao entorno que tal tento simbolizou, especificamente para os napolitanos, eis uma obra política, reveladora e dotada de esperança e dor tal qual a juventude que guerreia. É cativante e perspicaz mas apresenta certas desconexões por causa do excessivo número de personagens secundários, pois muitos são deixados pra trás e outros aparecem e somem sem explicações. Mas quem há de dizer que a vida não é desconexa? Assim, nessa picotada relação de beleza e tristeza eximiamente fotografada pelas câmeras de Paolo Sorrentino, há encantos e descobertas. Logo, saboroso.
Drive My Car
3.8 388 Assista AgoraMistura de literatura, teatro e cinema numa realidade multilíngue onde o luto e o autoconhecimento são os donos do espetáculo. Além da reconstrução pessoal (não à toa Hiroshima é escolhida como cidade da narrativa), sobre relações e afetos. E são situações complexas e complicadas retratadas, como solidão, culpa, fuga e autoflagelo, no melhor estilo do cinema oriental, com calma e precisão de detalhes (vide a leitura meticulosa do roteiro repetidas vezes), o que justifica suas três horas de duração, pois o tempo também é personagem já que se pensa o passado como estrada pra construir o futuro. Outro personagem marcante é o carro Saab 900, local onde verdades surgem como simples piscar de olhos. E, de uma maneira singela e perfurante, o realismo de Anton Tchekhov encerra esta bela obra: "você nunca conheceu a felicidade, mas espere". Não recomendado àqueles que veem filmes com pressa, pois o cochilo virá invariavelmente.
Summer of Soul (...ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser …
4.3 61 Assista AgoraShows ao ar livre no verão estadunidense de 1969? Sim, quase todo o mundo vai responder Woodstock. Pois para a população negra e latina do Harlem, Nova Iorque, os olhos e ouvidos estavam virados para o Festival Cultural do Harlem durante seis finais de semanas seguidos. E que não teve exposição televisiva nem midiática porque se tratava de pretos. Guerra do Vietnã, Partido dos Panteras Negras, assassinatos de líderes emblemáticos como os Kennedys, Malcolm X e Martin Luther King, toda essa atmosfera contribuiu para a revolução cultural que não foi televisionada. E gratuitamente para um mar de pessoas negras que buscavam a igualdade identitária e se libertavam das amarras do racismo pela catarse cultural chamada música. Uma joia que ficou esquecida por 50 anos mas que é imprescindível a quem ama não só a arte, mas a humanidade.
Encanto
3.8 806Na esteira de desmitificar os contos de fadas de reis, rainhas, príncipes e princesas, a Disney, conhecida por sua excelência na produção de animações, toca num tema ardiloso mas urgente - a instituição familiar. Sem conotações do lar como refúgio doce e acolhedor, a questão abordada é: o quanto conhecemos as pessoas da nossa família? Ou melhor, o quanto nos conhecemos dentro das nossas relações familiares? Sob o mote da opressora colonização latina (especificamente a colombiana) e baseada na terapêutica constelação familiar (ordem, pertencimento e equilíbrio), esta bela obra apresenta diversas camadas de representatividade e aceitação que se discutem entre si. Porém, falta força na magia esperada do filme, pois tudo se resolve fácil demais. Só que, mesmo assim, funciona e encanta.
Os Olhos de Tammy Faye
3.3 177 Assista AgoraRetratar personagens icônicas é andar numa linha tênue, que se torna ainda mais ardilosa por se tratar de uma personagem midiática da evangelização na TV. E não se discute a fé (nem aqui nem no filme), mas os caminhos que levaram Tammy Faye (Jessica Chastain numa atuação de gala) ao estrelato, queda e redenção. Com excessivo foco nela e no marido, muitas questões da sociedade evangélica norte-americana ficaram sem resposta. E as saídas políticas e religiosas escolhidas pelo diretor foram preenchidas com humor, o que nem sempre funciona em cinebiografias. Ou seja, o contexto crítico esperado para a obra se perdeu. Ainda assim há algo de proveitoso no longa, como conhecer a história dos precursores do televangelismo e do fascínio que o amor de Deus causa nas pessoas. Seja pro bem ou pro mal. Vale a sessão.
Amor, Sublime Amor
3.4 355 Assista AgoraÉ inevitável não fazer comparações com o clássico original. Porém, mais inevitável ainda é querer tapar os olhos para este remake. Que sensibilidade de Spielberg! Se, nos anos 60, a disputa entre os Jets e os Sharks se dava apenas por etnias imigrantes, esta nova obra trouxe todas as lutas que o mundo do século XXI precisa atentar - racismo, transfobia, desigualdade econômica, abismo social. Isso ao som da inesquecível e inalterada trilha sonora de Leonard Bernstein e tendo como pano de fundo o amor entre diferentes no estilo Romeu e Julieta. Praticamente uma aula de como fazer musicais no cinema (referências, domínio narrativo, cores, coreografias), até chegar ao ato final que, inexplicavelmente, sai do eixo. Sem contar que a entrada e a saída do casal apaixonado acontecem abruptamente. Agora, a Rita Moreno é uma emoção à parte.
No Ritmo do Coração
4.1 754 Assista AgoraOs interessantes conflitos que acontecem/acontecerão em famílias de pais surdos e filhos ouvintes são postos em cena nesta bela, tocante, sutil e hilária obra. Não tratando a surdez como pena nem com teor de caridade, estabelece-se a possibilidade de ouvirmos além da barreira do som. E, sob tal óptica, foge da pieguice e consegue comover e prender a atenção do espectador, principalmente no que tange à equivocada dependência pelos surdos dos seus entes ouvintes. Porém, o ato final cambaleia nos momentos cafonas e de água com açúcar que o filme sempre evitou, trazendo aquela previsibilidade dos filmes do gênero, mas nada que desabone o produto final. E a escolha das canções potencializou a emoção, que visa o coração e atinge o alvo.
King Richard: Criando Campeãs
3.8 409Parece clichê falar de filmes biográficos que usam a mesma proposta formulaica para o gênero. Neste caso, o mote esportivo dobra o conceito para o clichê do clichê: luta de classe, moral familiar, superação de obstáculos e redenção. De ritmo propositadamente lento para beneficiar a estupenda atuação de Will Smith, o longa cansa e dá a impressão de repetição (talvez seja porque o jogo de tênis seja assim). Não há arco dramático na relação pai/filhas e tudo se resolve na base da fábula contada. Ainda assim, é um filme da nossa era, por apresentar as melhores tenistas de todos os tempos se consagrando pelos seus talentos num esporte predominantemente branco e abastado. E, assim como King Richard, Venus e Serena possuem o triunfo da autodeterminação. Pois, de louco, cada um tem um pouco.
A Felicidade das Pequenas Coisas
4.0 96 Assista AgoraNo lugar do PIB, o Butão criou o FIB, Felicidade Interna Bruta, cujo índice é avaliado pelo rei em busca de melhorias do bem estar da população. Isto é bastante claro e segue como premissa deste belo exemplar de filme butanês. Essencialmente simplória, a obra viaja as montanhas do país subindo, literalmente, em direção aos céus, onde, metaforicamente, o homem é mais humilde, cortês e feliz. No estilo "a cidade grande torna o ser humano frio e desconectado com a natureza", o longa funciona muito bem como propaganda imagética de um lindo local a ser visitado. Pois fabular sobre a corrupção pela sociedade do homem puro, apesar de bonito e singelo, não funciona em pleno século XXI. Mas, por se tratar de costumes distantes e valorização do professor, há esperança de cativar os espectadores como lição de vida oferecendo uma reflexão pronta. E quem a receber assim com certeza irá se emocionar.
Mães Paralelas
3.7 411Os vários significados da maternidade foram explorados em mais um colorido filme de Almodóvar. Inclusive o da mãe Espanha repleta de cicatrizes ainda abertas e dolorosas por conta de sua guerra civil. E é esse simbolismo que permeia esta intrigante obra, porém, de maneira abrupta e desconexa. Inicia-se num tema, desfoca-se, entra outra narrativa, intensifica-se e finaliza-se num anticlímax não desejado, como se o espectador fosse forçado a acreditar nas sucessivas surpresas do enredo. Mas, mesmo com as pontas soltas, é prazeroso sentir o universo feminino como a rédea principal da sociedade. Afinal, existem e estão entre nós as mães paralelas, tão sedentas de atenção quanto as películas políticas do diretor, que nos ensinam a fechar ciclos e abraçar o novo. Uma abordagem moderna e madura da história e tradição.
Apresentando os Ricardos
3.2 179Um filme estadunidense feito para estadunidenses. Quem não conhece o mínimo da história de Lucille Ball (Nicole Kidman excelente!) ficará sem saber que esta foi uma das pioneiras e importantes atrizes que popularizou o sitcom nos EUA, as famigeradas séries de comédia de televisão. Recheado de gente boa no elenco (Javier Bardem também está ótimo e J.K. Simmons rouba a cena quando aparece), o longa oferece, por meio de diálogos afiados, ágeis e inteligentes, dois dramas vividos por Lucy concomitantemente: o da perseguição política, era o auge da Guerra Fria, e o do casamento com o artista cubano Desi Arnaz. Em suma, um recorte de biografia que não conseguiu capturar a magia desejada, mas que serve de insight para buscar vídeos de 'I Love Lucy' no YouTube.
A Filha Perdida
3.6 573A mulher não nasce mulher, torna-se mulher. Sob a bênção de Simone de Beauvoir, este belo filme retrata a dor e a delícia da maternidade, sem adereços passionais e tradicionais que foram (e são) impostos nesta modalidade, como a romantização de ser mãe. "São minhas filhas, logo, eu as amo. Mas, se eu não suportar a ideia de ser mãe? Eu posso me priorizar ao invés das minhas filhas? Por que a culpa em ser mãe desnaturada?" Sem tabu ou panfletarismo, a agonia brutal dessas questões são transformadas num thriller psicológico que sufoca tanto a personagem principal quanto o espectador. Afinal, todo mundo possui segredos e conflitos. Infelizmente, a obra tem uma dramatização carregada que enerva. Mas as atuações fazem valer a pena.