A chave para compreender completamente le couple témoin é a frase dita pela criança: "Você não sabe que a política é só um espetáculo?". William Klein foi terrível em sua sátira mordaz ao espetáculo que reina nas sociedades ocidentais industrializadas. (qualifiquei bem onde reina esse "estado de espetáculo" para não cair na crítica genérica de sociedade do espetáculo, já que dizer que "vivemos em uma sociedade do espetáculo" é de um provincianismo assombroso) Tudo é colocado em questão aqui: a felicidade, o desejo, os modelos, a vida. Klein coloca uma sombra de suspeição sobre tudo aquilo que julgamos como natural. A vida pode ser programada e é isso o que este filme nos joga na cara. Aquilo que somos o somos pelo que? Ora essa, admitamos que seguimos manuais. Le couple témoin cai, assim, como uma bomba sobre nossas certezas. A gente ri, claro, pois Klein é um satirista, mas o riso é uma gargalhada nervosa, porque sabemos o quão desnudados nos encontramos diante de Claudine e Jean-Michel. Primeiro, aquele inferno de polishop que o casal adentra, segundo, as funções pré-estabelecidas para o feminino e o masculino, terceiro, a profunda manipulação de nossas mentes e quarto, a tendência contemporânea para relativizar a intimidade que, por sinal, já quase entra em extinção nessa segunda década do século XXI. Para além da crítica óbvia à reality showização da vida, o filme de Klein questiona a nossa conduta: afinal, o livre-arbítrio existe ou somos massa de modelar da próxima propaganda de maionese?
Cada vez mais me surpreendo com o cinema de Zanussi. O ritmo que ele insere em seus filmes é sui generis: a maneira como entramos dentro da vida de Marta é digna das mais sofisticadas narrativas cinematográficas. No entanto, para além do tour de force técnico cujo trabalho já me era conhecido, a surpresa quanto à personagem de Marta foi avassaladora. É (ou deveria ser) uma das grandes personagens femininas do cinema. Não sei como era a relação feminina na Polônia comunista, mas a liberdade (ou a subversão total) de Marta é explosiva. Somos arremessados dentro de uma lógica completamente desconhecida até então: uma mulher colocando a própria vida em suas mãos. Talvez para mim, como um brasileiro, crescido num lar conservador, em que a mulher é enjaulada em uma situação de completa submissão, encontrar a figura de Marta foi como um choque elétrico. É perturbador! É inacreditável, também, que um filme como Balanço Trimestral tenha sido feito por um homem. Isso também choca. Marta ficará para mim com uma espécie de Madame Bovary do século XX, uma Madame Bovary que colocou a vida sob controle e tentou, mesmo que com tropeços, driblar o destino. (outro nome para destino seria: condicionamento cultural e histórico) O filme nos convida, ou nós mesmo nos convidamos o tempo todo, a julgar a conduta de Marta. Porém, o tempo de filme passa e o que resta de julgamento é conservadorismo e medo, pois somos tragados na voragem que a consome. Viva Zanussi! Mas mais que isso: Viva Marta! Que mulher! Depois deste filme, le déluge
A homossexualidade é uma experiência, não uma identidade. Un enfant dans la foule consegue capturar toda a pungência da descoberta humana da sexualidade e da impossibilidade do amor - logo, a descoberta fascinante da solidão, maximizada nos minutos finais do filme. É incrível como acompanhar a trajetória de Paul é reconhecer o quão estão errados certos filmes que, na ânsia de descobrir as partículas elementares da experiência homoerótica, não conseguem retratar a humanidade dos homens, mas apenas o fetiche da romantização absurda da questão. Por mais filmes que retratem a descoberta profunda de um ser humano no mundo que experimenta as coisas como se ainda estivéssemos no éden. O escândalo deste filme não está nas supostas cenas que ele deixou de mostrar (como se o cinema fosse meramente a arte didática de contar exatamente tudo através das imagens, como se a mera sugestão fosse crime imperdoável) mas sim no seu retrato profundamente íntimo de uma criança de 13 anos que está descobrindo o mundo e o prazer nos braços de homens e mulheres - independente da obsessão contemporânea em enquadrar as pessoas em caixotes. "Ou se é isto ou aquilo" - já escrevia uma irritada Virginia Woolf no Quarto de Jacob.
Iluminacja é uma obra muito poderosa, cujos momentos de delicadeza rapidamente são sufocados por perturbações físicas e metafísicas. A sonoplastia é igualmente genial. O modo como a história se desenrola é outra delícia: como pode alguém negar tão violentamente o didatismo vulgar? Zanussi foi espetacular aqui e estou muito, muito contente com o que vi. Singular!
Impressionante a melancolia que nos persegue durante toda a projeção do filme. Algo nos invade, nos faz suspirar, nos coloca em um mundo de tristeza profunda. Para além de roteiros inóspitos que pregam o didatismo acima de tudo, Garrel projeta um filme selvagem em seus meandros, extremamente melancólico e soberbo no seu labirinto de emoções. Para além da compreensão, L'enfant secret nos convida a sentir - antes de racionalizar. Muito bonito!
A atmosfera é realmente perturbadora, principalmente pelo fato de que estamos em solo alemão "horas depois" da queda de Hitler. Berlim destruída consegue fazer a gente se sentir mal. Ademais, os personagens se apresentam, eles também, como ruínas de uma antiga civilização que desapareceu. Não é um filme sobre a guerra e o nazismo de forma objetiva, mas um retrato psicológico do imediato pós-guerra. A história de amor é amarga, a tentativa de recomeço é estilhaçada, o ambiente é ácido... tudo trabalha contra a euforia. São "almas mortas".
Behindert é uma dessas experiências radicais que o cinema nos oferece uma ou outra vez na vida. Ao transferir a debilidade motora do personagem central para dentro da própria estrutura fílmica, Dwoskin radicalizou a câmera, o olhar, os movimentos... todos os sentidos parecem comprometidos e alvos de alguma desordem de natureza sistêmica. Mas o filme é, antes de tudo, uma história de amor. Behindert é um filme que não tem precedentes (seria como um daqueles filmes da transição do cinema mudo ao falado não fosse a radicalização da câmera) e oferece uma experiência de imersão profunda.
Estou chocado! A temática do filme é completamente incendiária, o desenvolvimento do roteiro vai nos jogando cada vez mais dentro de um abismo moral... até culminar na última cena em que Pepe, injuntivamente, nos desafia. Alguém sai ileso? Pepe descobriu a ficção dos "homens de bem" e a sua sociedade, outrora magnifica, ruiu. Existe, por outro lado, um ataque extremamente moralista da parte de Pepe, pois, no fundo, o que está em questão não é a moralidade dos seus concidadãos, mas a inocência infantil que sustenta a sua visão de mundo. Os homens não são anjos e ele deveria saber disso, mas preferiu tergiversar... até ser lançado contra a parede. Ettore Scola filmou um manifesto retumbante sobre a moralidade na sociedade ocidental: aos pobres, a moral e a lei, aos ricos, a hipocrisia e o perdão. A cena final reunindo a galeria dos dignos dentro da igreja deveria ser um martelo sobre nossas ilusões... mas tem gente que insiste em acreditar que o homem ainda pode ser um anjo.
Precisamos tanto de obras como Piège para que lembremos das capacidades infinitas do cinema. É uma coisa deliciosa, um delírio selvagem com uma sonoplastia arrebatadora. Tudo é ousadia aqui... Há momentos de pavor como se fosse um filme de terror maluco, há momentos de delicadeza como se se tratasse de um filme de amor e, no final, Piège é tudo isso no seu desdém pelos gêneros e no seu desprezo pelo "cinema de roteiro". Dura pouco e deixa saudades. Há quem prefira o cinema enquanto instituição, mas Piège prefere o cinema enquanto destruição... destruição das nossas visões mesquinhas. Gostei muito e quero mais Zanzibar!
Filmes sobre guerras geralmente exploram o lado espetacular (transformar a guerra em entretenimento) ou o lado cruel (revelar toda a desumanidade delas), Overlord, no entanto, segue uma terceira via: transforma a guerra em paisagem subjetiva de uma mente estilhaçada. É notável a melancolia, a introspecção, a sensação desoladora que se segue com a colagem das imagens de bombas que caem, de eventos que não se realizam e das fantasmagóricas revelações de Tom. Filme sui generis ao abordar o lado mais esquecido das guerras: além do sofrimento físico, a exasperante dor subjetiva.
Nenhum filme descreve tão bem aquilo que Mikhail Romm chamou de "fascismo ordinário", esse nosso fascismo básico de todos os dias. A vida em comunidade que as pessoas costumam fetichizar de forma naïf pode se tornar não um reduto de solidariedade, mas um bunker dos piores preconceitos. É incrível como todos compartilham da violência simbólica perpetrada contra "invasores", contra àqueles que desestruturam as visões sólidas e acabadas dos moradores dessa redoma de vidro moral que é o vilarejo. Esse filme é como um mecanismo desmontado: nele podemos ver - assim como se fosse um relógio aberto diante de nós - girar as engrenagens da xenofobia, homofobia, intolerância, enfim, todo o lixo humano que lutamos diariamente para expurgar de nossas vidas. Triste e, por isso mesmo, cômico.
Em tempos de crise da imigração, o filme de Troell cai como uma bomba sobre o nosso imaginário. São três horas de um périplo tortuoso, nada agradável, perscrutado em seus mínimos detalhes para aumentar a carga de empatia sobre os personagens. Um dia os Europeus abandonaram suas terras e sua vida para se aventurar no mundo, tentar construir uma nova... a terra prometida não era bem um paraíso e Troell mostrou isso com muita perspicácia, sem sensacionalismos. O tom documental do filme cujas imagens parecem "papel velho e surrado", as interpretações naturalistas sem os dramalhões clássicos do cinema vulgar, a obsessão por mostrar cada detalhe do sofrimento humano são elementos que só acentuam o páthos deste filme. Que os europeus lembrem de seus antepassados e que a América lembre que o novo mundo é um país de imigrantes: viva Troell e seu documento da escalada humana rumo à sobrevivência.
Muito se fala sobre a destruição física causada pela bomba atômica - inimaginável sob qualquer aspecto - no entanto, Kurasawa queria falar sobre a devastação psicológica causada por ela (aspecto negligenciado quase sempre) e o corte foi profundo. Nossa geração não conhece o reino de terror causado pela guerra fria, com ameaças e especulações de destruição mundial diárias, mas nossa geração poderá encontrar em Anatomia do medo um retrato lancinante de um período horroroso da história mundial, vivido por aqueles que foram vítimas diretas da maior arma já criada pelo homem... contra a humanidade. "A terra está queimando!"
Meu deus! Tenho que deixar registrado aqui o quanto esse filme é grandioso e imperdível. O brilhantismo técnico, a temática incendiária, a longa duração que só faz acentuar o interesse por tudo o que está em jogo, enfim, tudo trabalha para o êxito dessa obra. Como eu disse em outra ocasião: faltaram mulheres na direção nos anos 50 e 60, mas não faltou a preocupação com o lugar da mulher na sociedade japonesa. Conservadores ou progressistas, os diretores da época sempre colocaram a figura feminina no centro do furacão: e Imamura não fez feio. Que filme!
O cinema colocando a imagem em estado de vertigem alucinatória. Que experiência radical: os olhos explodem em cores e tentativas de capturar as imagens ensandecidas. Lindo mesmo! Carmelo Bene explode a narrativa convencional com um "dane-se" de pura cor e nos brinda com uma viagem vertiginosa.
A decadência do império Austro-Húngaro e a infância de Nikki - uma infância despida de qualquer fetiche romântico, vista em sua crueldade e humanidade - são os dois relatos do filme que se conjugam num único quadro doloroso: a dissolução de um império e o fim da inocência nunca conquistada. À pergunta do diretor (você está feliz?) segue a resposta dada com sonoplastia de fanfarra: NÃO! São muitas descobertas que competem por espaço, muitas angústias num único saco: Nikki enfrenta o mistério da vida (afinal, não há alma?) com a espada da poesia. É um relato minucioso, a infância nua e a adolescência rasgada pela certeza de que há algo mudando para sempre na vida de Nikki: seu próprio corpo e o corpo de sua pátria. Provavelmente a sua vida será cortada pelo redemoinho histórico: a primeira e a segunda guerras. Mas fica a infância sob o império dos Habsburgos, a intransigência de professores que ensinam a submissão, a descoberta do próprio corpo e da mortalidade. "Só há cérebro" - diz o professor de Nikki.
O realismo soviético é muito preocupado com a dignidade do povo russo e, no caso do filme, preocupado com a dignidade do soldado russo que abandonou tudo e partiu para compor o exército vermelho e derrotar as forças fascistas na 2º guerra mundial. O filme é um retrato lírico desse momento: a guerra é esquecida por um instante e Alyosha vai se retirar do terror por alguns dias; o realismo soviético também está preocupado com o patriotismo do homem russo e está preocupação vai se refletir de forma máxima no final melancólico do filme. A balada do soldado é um primor técnico, unindo a beleza desoladora da imensidão russa com a tristeza escancarada de Alyosha; o realismo soviético, no entanto, têm seus limites: é sempre perceptível, quando colocamos de lado toda a carga emocional que o filme carrega, a presença de preocupações políticas e qualquer polêmica é evitada: o patriotismo, a beleza, a emoção, o esmero técnico, etc, são elementos reforçados a cada minuto, mas fica no ar a sensação de que algo não está sendo contado: nem para nós nem para o público de 1959.
É claro que o filme foi proibido na união soviética por longos 15 anos: quem ousaria mostrar nos cinemas as fissuras do patriotismo, o realismo introspectivo, a guerra sem heróis, o humano sem máscaras? Aleksei German foi lá e mostrou, o resultado não poderia ser melhor. Grande filme soviético que não faz concessões ao realismo barato do stalinismo, ao contrário, é um realismo que não pinta deuses, mas homens.
Diante da enxurrada de comentários negativos aqui me vejo obrigado a fazer a defesa deste filme originalíssimo na sua abordagem acerca da homoafetividade e na estrutura do seu enredo. Temos aqui um personagem criado sob a juventude de Hitler que encontra em seu caminho um jovem epiléptico que vive na mais pura solidão e juntos, de repente, eles vão descobrir que mais coisas existem: o mundo não é apenas um lugar para os fortes como "L'assassin" aprendeu e nem um lugar solitário como Guy aprendeu. Personagens imprevisíveis, agindo dentro de um mundo conturbado pela guerra, descobrem a complexidade do amor. Chamam o filme de chato. É claro que um filme que não faz concessões ao realismo mesquinho será taxado de chato por aqueles que se acostumaram com os enredos pobres de filmes com temática gay. Chamam o filme de "nonsense". É claro que um filme que não está interessado na "interpretação hollywoodiana da realidade" é nonsense, afinal, ao colocar em cena um epiléptico e um jovem soldado perturbado pela guerra e pela filosofia nazista e tirar de ambos uma interpretação de novela seria condenável e artisticamente falho, mas Philippe Valois não caiu na armadilha: seu filme é esquizofrênico como a epilepsia de Guy, é conturbado como os tempos de guerra, é desaforado com o canon da interpretação e do roteiro medíocre do status quo. Não, não há aqui mais um filme sobre gays que se apaixonam: Valois sabe que o mundo é muito mais complexo do que aquilo que nossas gramáticas da normalidade possam supor. O final é lindo, a sequência amorosa é soberba e a interpretação de ambos é coerente com tudo. Tem falhas na sua precariedade técnica, mas é um filme digno de nota. Minimalista e brilhante! Não se deixem enganar por aqui com a taxação de chato, arrastado, sem noção. Chato mesmo é a mediocridade daquilo que é normal.
É sobretudo um filme sobre mulheres. Primeiro a mãe, depois a filha. Todas vítimas da lógica inconsequente do universo masculino: o pai de Maria sabota o próprio gênero feminino, identificando-o como o chamariz da violência. A filha tem de negar a sua identidade, embarcar na odisséia de justiça promovida pelo pai e transformar-se em vez de transformar o mundo. Simples, sem ambições melodramáticas, quase sem diálogos, apenas as imagens sacudindo a história como alguém que atira no ar o próprio destino. Maria é o eterno feminino: negado, sabotado, despido de livre arbítrio; apenas uma luva vestida numa mão masculina. O chifre da cabra é um excelente filme.
Ah, o neorrealismo italiano.... sempre contido, sempre uma antítese do artificialismo de estúdio, sempre minimalista para extrair da vida aquilo que importa, aquilo que faz sermos isso e não aquilo. "Deve ser o destino", diz o personagem principal. Deve ser a arte. Essas ovelhas são as ondas do destino. Filme muy especial!
Desilusões Futuristas
3.9 2A chave para compreender completamente le couple témoin é a frase dita pela criança: "Você não sabe que a política é só um espetáculo?". William Klein foi terrível em sua sátira mordaz ao espetáculo que reina nas sociedades ocidentais industrializadas. (qualifiquei bem onde reina esse "estado de espetáculo" para não cair na crítica genérica de sociedade do espetáculo, já que dizer que "vivemos em uma sociedade do espetáculo" é de um provincianismo assombroso) Tudo é colocado em questão aqui: a felicidade, o desejo, os modelos, a vida. Klein coloca uma sombra de suspeição sobre tudo aquilo que julgamos como natural. A vida pode ser programada e é isso o que este filme nos joga na cara. Aquilo que somos o somos pelo que? Ora essa, admitamos que seguimos manuais. Le couple témoin cai, assim, como uma bomba sobre nossas certezas. A gente ri, claro, pois Klein é um satirista, mas o riso é uma gargalhada nervosa, porque sabemos o quão desnudados nos encontramos diante de Claudine e Jean-Michel. Primeiro, aquele inferno de polishop que o casal adentra, segundo, as funções pré-estabelecidas para o feminino e o masculino, terceiro, a profunda manipulação de nossas mentes e quarto, a tendência contemporânea para relativizar a intimidade que, por sinal, já quase entra em extinção nessa segunda década do século XXI. Para além da crítica óbvia à reality showização da vida, o filme de Klein questiona a nossa conduta: afinal, o livre-arbítrio existe ou somos massa de modelar da próxima propaganda de maionese?
Balanço Trimestral
3.7 3Cada vez mais me surpreendo com o cinema de Zanussi. O ritmo que ele insere em seus filmes é sui generis: a maneira como entramos dentro da vida de Marta é digna das mais sofisticadas narrativas cinematográficas. No entanto, para além do tour de force técnico cujo trabalho já me era conhecido, a surpresa quanto à personagem de Marta foi avassaladora. É (ou deveria ser) uma das grandes personagens femininas do cinema. Não sei como era a relação feminina na Polônia comunista, mas a liberdade (ou a subversão total) de Marta é explosiva. Somos arremessados dentro de uma lógica completamente desconhecida até então: uma mulher colocando a própria vida em suas mãos. Talvez para mim, como um brasileiro, crescido num lar conservador, em que a mulher é enjaulada em uma situação de completa submissão, encontrar a figura de Marta foi como um choque elétrico. É perturbador! É inacreditável, também, que um filme como Balanço Trimestral tenha sido feito por um homem. Isso também choca. Marta ficará para mim com uma espécie de Madame Bovary do século XX, uma Madame Bovary que colocou a vida sob controle e tentou, mesmo que com tropeços, driblar o destino. (outro nome para destino seria: condicionamento cultural e histórico) O filme nos convida, ou nós mesmo nos convidamos o tempo todo, a julgar a conduta de Marta. Porém, o tempo de filme passa e o que resta de julgamento é conservadorismo e medo, pois somos tragados na voragem que a consome. Viva Zanussi! Mas mais que isso: Viva Marta! Que mulher! Depois deste filme, le déluge
Um Garoto na Multidão
3.4 16A homossexualidade é uma experiência, não uma identidade. Un enfant dans la foule consegue capturar toda a pungência da descoberta humana da sexualidade e da impossibilidade do amor - logo, a descoberta fascinante da solidão, maximizada nos minutos finais do filme. É incrível como acompanhar a trajetória de Paul é reconhecer o quão estão errados certos filmes que, na ânsia de descobrir as partículas elementares da experiência homoerótica, não conseguem retratar a humanidade dos homens, mas apenas o fetiche da romantização absurda da questão. Por mais filmes que retratem a descoberta profunda de um ser humano no mundo que experimenta as coisas como se ainda estivéssemos no éden. O escândalo deste filme não está nas supostas cenas que ele deixou de mostrar (como se o cinema fosse meramente a arte didática de contar exatamente tudo através das imagens, como se a mera sugestão fosse crime imperdoável) mas sim no seu retrato profundamente íntimo de uma criança de 13 anos que está descobrindo o mundo e o prazer nos braços de homens e mulheres - independente da obsessão contemporânea em enquadrar as pessoas em caixotes. "Ou se é isto ou aquilo" - já escrevia uma irritada Virginia Woolf no Quarto de Jacob.
Iluminação
3.8 15 Assista AgoraIluminacja é uma obra muito poderosa, cujos momentos de delicadeza rapidamente são sufocados por perturbações físicas e metafísicas. A sonoplastia é igualmente genial. O modo como a história se desenrola é outra delícia: como pode alguém negar tão violentamente o didatismo vulgar? Zanussi foi espetacular aqui e estou muito, muito contente com o que vi. Singular!
A Criança Secreta
4.0 8Impressionante a melancolia que nos persegue durante toda a projeção do filme. Algo nos invade, nos faz suspirar, nos coloca em um mundo de tristeza profunda. Para além de roteiros inóspitos que pregam o didatismo acima de tudo, Garrel projeta um filme selvagem em seus meandros, extremamente melancólico e soberbo no seu labirinto de emoções. Para além da compreensão, L'enfant secret nos convida a sentir - antes de racionalizar. Muito bonito!
A Cecilia
3.8 5 Assista Agoraascensão e queda do socialismo utópico.
Os Assassinos Estão Entre Nós
3.9 7A atmosfera é realmente perturbadora, principalmente pelo fato de que estamos em solo alemão "horas depois" da queda de Hitler. Berlim destruída consegue fazer a gente se sentir mal. Ademais, os personagens se apresentam, eles também, como ruínas de uma antiga civilização que desapareceu. Não é um filme sobre a guerra e o nazismo de forma objetiva, mas um retrato psicológico do imediato pós-guerra. A história de amor é amarga, a tentativa de recomeço é estilhaçada, o ambiente é ácido... tudo trabalha contra a euforia. São "almas mortas".
Behindert
4.0 1Behindert é uma dessas experiências radicais que o cinema nos oferece uma ou outra vez na vida. Ao transferir a debilidade motora do personagem central para dentro da própria estrutura fílmica, Dwoskin radicalizou a câmera, o olhar, os movimentos... todos os sentidos parecem comprometidos e alvos de alguma desordem de natureza sistêmica. Mas o filme é, antes de tudo, uma história de amor. Behindert é um filme que não tem precedentes (seria como um daqueles filmes da transição do cinema mudo ao falado não fosse a radicalização da câmera) e oferece uma experiência de imersão profunda.
O Comissário Pepe
3.6 3Estou chocado! A temática do filme é completamente incendiária, o desenvolvimento do roteiro vai nos jogando cada vez mais dentro de um abismo moral... até culminar na última cena em que Pepe, injuntivamente, nos desafia. Alguém sai ileso? Pepe descobriu a ficção dos "homens de bem" e a sua sociedade, outrora magnifica, ruiu. Existe, por outro lado, um ataque extremamente moralista da parte de Pepe, pois, no fundo, o que está em questão não é a moralidade dos seus concidadãos, mas a inocência infantil que sustenta a sua visão de mundo. Os homens não são anjos e ele deveria saber disso, mas preferiu tergiversar... até ser lançado contra a parede. Ettore Scola filmou um manifesto retumbante sobre a moralidade na sociedade ocidental: aos pobres, a moral e a lei, aos ricos, a hipocrisia e o perdão. A cena final reunindo a galeria dos dignos dentro da igreja deveria ser um martelo sobre nossas ilusões... mas tem gente que insiste em acreditar que o homem ainda pode ser um anjo.
Piège
3.6 3Precisamos tanto de obras como Piège para que lembremos das capacidades infinitas do cinema. É uma coisa deliciosa, um delírio selvagem com uma sonoplastia arrebatadora. Tudo é ousadia aqui... Há momentos de pavor como se fosse um filme de terror maluco, há momentos de delicadeza como se se tratasse de um filme de amor e, no final, Piège é tudo isso no seu desdém pelos gêneros e no seu desprezo pelo "cinema de roteiro". Dura pouco e deixa saudades. Há quem prefira o cinema enquanto instituição, mas Piège prefere o cinema enquanto destruição... destruição das nossas visões mesquinhas. Gostei muito e quero mais Zanzibar!
Overlord
3.7 2Filmes sobre guerras geralmente exploram o lado espetacular (transformar a guerra em entretenimento) ou o lado cruel (revelar toda a desumanidade delas), Overlord, no entanto, segue uma terceira via: transforma a guerra em paisagem subjetiva de uma mente estilhaçada. É notável a melancolia, a introspecção, a sensação desoladora que se segue com a colagem das imagens de bombas que caem, de eventos que não se realizam e das fantasmagóricas revelações de Tom. Filme sui generis ao abordar o lado mais esquecido das guerras: além do sofrimento físico, a exasperante dor subjetiva.
Cenas de Caça na Baixa Baviera
3.8 7Nenhum filme descreve tão bem aquilo que Mikhail Romm chamou de "fascismo ordinário", esse nosso fascismo básico de todos os dias. A vida em comunidade que as pessoas costumam fetichizar de forma naïf pode se tornar não um reduto de solidariedade, mas um bunker dos piores preconceitos. É incrível como todos compartilham da violência simbólica perpetrada contra "invasores", contra àqueles que desestruturam as visões sólidas e acabadas dos moradores dessa redoma de vidro moral que é o vilarejo. Esse filme é como um mecanismo desmontado: nele podemos ver - assim como se fosse um relógio aberto diante de nós - girar as engrenagens da xenofobia, homofobia, intolerância, enfim, todo o lixo humano que lutamos diariamente para expurgar de nossas vidas. Triste e, por isso mesmo, cômico.
Depois de Lúcia
3.8 1,1Knossa.
Os Emigrantes
4.3 19Em tempos de crise da imigração, o filme de Troell cai como uma bomba sobre o nosso imaginário. São três horas de um périplo tortuoso, nada agradável, perscrutado em seus mínimos detalhes para aumentar a carga de empatia sobre os personagens. Um dia os Europeus abandonaram suas terras e sua vida para se aventurar no mundo, tentar construir uma nova... a terra prometida não era bem um paraíso e Troell mostrou isso com muita perspicácia, sem sensacionalismos. O tom documental do filme cujas imagens parecem "papel velho e surrado", as interpretações naturalistas sem os dramalhões clássicos do cinema vulgar, a obsessão por mostrar cada detalhe do sofrimento humano são elementos que só acentuam o páthos deste filme. Que os europeus lembrem de seus antepassados e que a América lembre que o novo mundo é um país de imigrantes: viva Troell e seu documento da escalada humana rumo à sobrevivência.
A Noite da Freira
3.7 2Onírico, sensual, pastelão de vanguarda e iconoclastia feminina: é assim que o cinema tcheco da década de 60 surpreende sempre.
Anatomia do Medo
4.2 26Muito se fala sobre a destruição física causada pela bomba atômica - inimaginável sob qualquer aspecto - no entanto, Kurasawa queria falar sobre a devastação psicológica causada por ela (aspecto negligenciado quase sempre) e o corte foi profundo. Nossa geração não conhece o reino de terror causado pela guerra fria, com ameaças e especulações de destruição mundial diárias, mas nossa geração poderá encontrar em Anatomia do medo um retrato lancinante de um período horroroso da história mundial, vivido por aqueles que foram vítimas diretas da maior arma já criada pelo homem... contra a humanidade. "A terra está queimando!"
Segredos de uma Esposa
4.0 11Meu deus! Tenho que deixar registrado aqui o quanto esse filme é grandioso e imperdível. O brilhantismo técnico, a temática incendiária, a longa duração que só faz acentuar o interesse por tudo o que está em jogo, enfim, tudo trabalha para o êxito dessa obra. Como eu disse em outra ocasião: faltaram mulheres na direção nos anos 50 e 60, mas não faltou a preocupação com o lugar da mulher na sociedade japonesa. Conservadores ou progressistas, os diretores da época sempre colocaram a figura feminina no centro do furacão: e Imamura não fez feio. Que filme!
Salomé
4.0 5O cinema colocando a imagem em estado de vertigem alucinatória. Que experiência radical: os olhos explodem em cores e tentativas de capturar as imagens ensandecidas. Lindo mesmo! Carmelo Bene explode a narrativa convencional com um "dane-se" de pura cor e nos brinda com uma viagem vertiginosa.
Pesadelos
3.2 2A decadência do império Austro-Húngaro e a infância de Nikki - uma infância despida de qualquer fetiche romântico, vista em sua crueldade e humanidade - são os dois relatos do filme que se conjugam num único quadro doloroso: a dissolução de um império e o fim da inocência nunca conquistada. À pergunta do diretor (você está feliz?) segue a resposta dada com sonoplastia de fanfarra: NÃO! São muitas descobertas que competem por espaço, muitas angústias num único saco: Nikki enfrenta o mistério da vida (afinal, não há alma?) com a espada da poesia. É um relato minucioso, a infância nua e a adolescência rasgada pela certeza de que há algo mudando para sempre na vida de Nikki: seu próprio corpo e o corpo de sua pátria. Provavelmente a sua vida será cortada pelo redemoinho histórico: a primeira e a segunda guerras. Mas fica a infância sob o império dos Habsburgos, a intransigência de professores que ensinam a submissão, a descoberta do próprio corpo e da mortalidade. "Só há cérebro" - diz o professor de Nikki.
A Balada do Soldado
4.3 48 Assista AgoraO realismo soviético é muito preocupado com a dignidade do povo russo e, no caso do filme, preocupado com a dignidade do soldado russo que abandonou tudo e partiu para compor o exército vermelho e derrotar as forças fascistas na 2º guerra mundial. O filme é um retrato lírico desse momento: a guerra é esquecida por um instante e Alyosha vai se retirar do terror por alguns dias; o realismo soviético também está preocupado com o patriotismo do homem russo e está preocupação vai se refletir de forma máxima no final melancólico do filme. A balada do soldado é um primor técnico, unindo a beleza desoladora da imensidão russa com a tristeza escancarada de Alyosha; o realismo soviético, no entanto, têm seus limites: é sempre perceptível, quando colocamos de lado toda a carga emocional que o filme carrega, a presença de preocupações políticas e qualquer polêmica é evitada: o patriotismo, a beleza, a emoção, o esmero técnico, etc, são elementos reforçados a cada minuto, mas fica no ar a sensação de que algo não está sendo contado: nem para nós nem para o público de 1959.
Provação nas Estradas
3.9 2É claro que o filme foi proibido na união soviética por longos 15 anos: quem ousaria mostrar nos cinemas as fissuras do patriotismo, o realismo introspectivo, a guerra sem heróis, o humano sem máscaras? Aleksei German foi lá e mostrou, o resultado não poderia ser melhor. Grande filme soviético que não faz concessões ao realismo barato do stalinismo, ao contrário, é um realismo que não pinta deuses, mas homens.
Éramos Um Só Homem
3.4 20 Assista AgoraDiante da enxurrada de comentários negativos aqui me vejo obrigado a fazer a defesa deste filme originalíssimo na sua abordagem acerca da homoafetividade e na estrutura do seu enredo. Temos aqui um personagem criado sob a juventude de Hitler que encontra em seu caminho um jovem epiléptico que vive na mais pura solidão e juntos, de repente, eles vão descobrir que mais coisas existem: o mundo não é apenas um lugar para os fortes como "L'assassin" aprendeu e nem um lugar solitário como Guy aprendeu. Personagens imprevisíveis, agindo dentro de um mundo conturbado pela guerra, descobrem a complexidade do amor. Chamam o filme de chato. É claro que um filme que não faz concessões ao realismo mesquinho será taxado de chato por aqueles que se acostumaram com os enredos pobres de filmes com temática gay. Chamam o filme de "nonsense". É claro que um filme que não está interessado na "interpretação hollywoodiana da realidade" é nonsense, afinal, ao colocar em cena um epiléptico e um jovem soldado perturbado pela guerra e pela filosofia nazista e tirar de ambos uma interpretação de novela seria condenável e artisticamente falho, mas Philippe Valois não caiu na armadilha: seu filme é esquizofrênico como a epilepsia de Guy, é conturbado como os tempos de guerra, é desaforado com o canon da interpretação e do roteiro medíocre do status quo. Não, não há aqui mais um filme sobre gays que se apaixonam: Valois sabe que o mundo é muito mais complexo do que aquilo que nossas gramáticas da normalidade possam supor. O final é lindo, a sequência amorosa é soberba e a interpretação de ambos é coerente com tudo. Tem falhas na sua precariedade técnica, mas é um filme digno de nota. Minimalista e brilhante! Não se deixem enganar por aqui com a taxação de chato, arrastado, sem noção. Chato mesmo é a mediocridade daquilo que é normal.
O Chifre da Cabra
3.8 7É sobretudo um filme sobre mulheres. Primeiro a mãe, depois a filha. Todas vítimas da lógica inconsequente do universo masculino: o pai de Maria sabota o próprio gênero feminino, identificando-o como o chamariz da violência. A filha tem de negar a sua identidade, embarcar na odisséia de justiça promovida pelo pai e transformar-se em vez de transformar o mundo. Simples, sem ambições melodramáticas, quase sem diálogos, apenas as imagens sacudindo a história como alguém que atira no ar o próprio destino. Maria é o eterno feminino: negado, sabotado, despido de livre arbítrio; apenas uma luva vestida numa mão masculina. O chifre da cabra é um excelente filme.
Banditi a Orgosolo
4.5 4Ah, o neorrealismo italiano.... sempre contido, sempre uma antítese do artificialismo de estúdio, sempre minimalista para extrair da vida aquilo que importa, aquilo que faz sermos isso e não aquilo. "Deve ser o destino", diz o personagem principal. Deve ser a arte. Essas ovelhas são as ondas do destino. Filme muy especial!