A Pixar Studios deixou de ser, há mais de uma década, o núcleo de animações visualmente impressionantes e humanamente emocionantes para se tornar a loja de ponta de estoque da Disney, com exceções que confirmam a regra e justificam o lamento. No entanto, não foi somente a aquisição pela Disney que matou a Pixar. A saída de John Lasseter e Andrew Stanton acabou com o tripé criativo do estúdio, agora centrado em Pete Docter. Para piorar, o anúncio de sequências e não de obras originais somente reforça o coro dos detratores.
(Nunca inteiramente justo).
Até porque Elementos é um aceno à Pixar de ontem – ainda que em forma de uma brisa. O roteiro de Kat Likkel, Brenda Hsueh e John Hoberg equilibra o coming of age com romance e crítica social contemporânea. Faísca nasceu na utópica Cidade Elemento – em que os elementos, água, ar e terra, vivem em harmonia. A chegada aconteceu após os pais deixarem a Terra do Fogo em consequência de um desastre natural e em busca da promessa de recomeço.
Apesar de adorar Bumblebee, o gosto amargo deixado pelos filmes dirigidos por Michael Bay me pegou desde o início de Transformers: O Despertar das Feras. Steven Caple Jr. (de Creed II), que herdou a cadeira de direção, repetiu a marca registrada de toda a série assim que o ex-soldado Noah (Anthony Ramos) tentou furtar inadvertidamente um carro porsche que, na realidade, era o autobot Mirage. Corta para o desavisado e desesperado Noah dentro de um carro que não pode controlar, enquanto é perseguido pela polícia.
Após meu suspiro de tédio, Transformers: O Despertar das Feras revelou-se uma aventura hollywoodiana despretensiosa. O raro filme consciente do que deseja alcançar, das limitações narrativas e da bagagem (negativa, para mim) que trouxe dos antecessores. O ainda mais raro filme que rejeita o atributo épico onde não há épico, eliminando 30-45 minutos de inchaço dos anteriores. 16 anos após o original de 2007 (à época, considerei um bom filme), O Despertar das Feras colocou a franquia no patamar de um entretenimento descompromissado, onde deveria estar.
A essa altura do campeonato, criticar o cinema de Hong Sang-soo por ser como é fala mais sobre o crítico do que acerca do artista. Com dois e até três lançamentos anuais, o diretor sul-coreano está na zona de conforto temática, técnica e artística. Mas isto não é sinônimo de preguiça, é a consciência do diretor da ambição e poderio artístico. A cada capítulo (dá para chamar cada filme de capítulo de uma obra maior ou até mesmo de um diário), Hong Sang-soo revela mais sobre si mesmo, sobre a forma como pensa espaço e tempo no cinema e como acontecimentos, a priori mundanos, podem modelar a experiência de seus personagens.
Kwon Hae-hyo retoma a parceria com o diretor e interpreta seu alter-ego, um diretor de cinema famoso no circuito de festivais, que tenta se reconectar com a filha durante a visita à edificação reformada pela arquiteta Lee Hye-young. O desejo do diretor é de que a filha, que deseja ser designer de interiores, trabalhe com a arquiteta, e ela, a seu tempo, flerta e paparica com o diretor, oferecendo-lhe para morar gratuitamente na cobertura do prédio. No prédio, o restaurante da proprietária interpretada por Song Seon-mi, com quem o diretor inicia um relacionamento.
Hong Sang-soo explica, através da boca do vaidoso protagonista, a ambição de seu cinema. Ou está apenas brincando com o espectador acostumado a procurar seus traços pessoais em sua obra? Até que ponto os artistas (ou poetas) da obra de Sang-Soo são seu alter-ego ou pista falsa para fisgar quem pensa e reflete cinema a partir da relação entre autor e obra. Na realidade, a estratégia de Walk Up, além da reunião do elenco em cenas extensas em que os personagens bebem muito e jogam papo fora, é jogar com as políticas de espaço e tempo, matérias-primas do cinema, na opinião de Noël Burch.
O espaço não muda, mas continua comprimindo os personagens dentro dos cômodos da edificação. Quando muda, é de modo discreto para refletir a passagem do tempo. A cada episódio, reencontramos os personagens noutro momento da vida: a relação pacífica entre Hae-hyo e Hye-young azeda, já Hae-hyo e Seon-mi aproximam-se. O tempo não passa de maneira fluida, mas em cortes secos que desassociam o antes do agora, e é ressignificado na cena final que obriga o espectador a questionar o que assistiu. Se a obra de um diretor e criador talentoso refletindo o que a vida será ao ar livre arejado, não dentro da edificação, ou o retrato do que passou na figura de que a vida está sempre se repetindo.
E é por a vida estar sempre se repetindo, mas de modos diferentes, que Hong Sang-soo não pode ser criticado por fazer o mesmo filme, com detalhes diferentes. Ao entender que a vida é o eterno retorno ao ponto de origem, o diretor criou um ninho (e nicho) onde a arte pode fluir. Walk Up é só mais este capítulo no todo.
Tenha ressalvas nas apresentações de filmes feitas por elenco ou equipe. A de Wildflower é um bom exemplo. Matt Smukler, o diretor, quando subiu ao palco, adotou a concisão e o mistério. Nada poderia ser dito sob pena de estragar a surpresa contida no roteiro. Por si só, falar que há surpresas ou reviravoltas é uma maneira de spoiler (estragar), não acham? Pode não revelar o conteúdo do roteiro da obra, mas pode estragar a experiência do público que, agora, pode vivenciar a obra com expectativa e à procura da surpresa ou reviravolta. E não que Wildflower tenha, sob qualquer aspecto, algum dos dois; há somente o incomum, o traço característico de parte das comédias independentes norte-americanas.
Além, evidentemente, de uma família não convencional e uma adolescente, interpretada por Kiernan Shipka, que está na etapa de transição à vida adulta. Como a narrativa é contada em retrospecto, não há uma relação de causa e efeito que não a espera de saber o que acontecerá com Bea no presente. Aguardamos na antessala, onde a narradora passeia com o espectador por álbuns de fotografias metafóricos, reveladores da relação familiar com os pais, pessoas com problemas cognitivos congênitos ou adquiridos, e com os tios, que preenchem lacunas na formação pessoal e educacional de Bea, e do feudo que há entre as avós, interpretadas por Jean Smart e Jackie Weaver. Não há antecipação no ontem, apenas constatação, que ajuda a formar o estudo de personagem pregresso.
Apesar de contar com muitos atores coadjuvantes bacanas (além das veteranas citadas), o roteiro não sabe aproveitá-los senão em instantes esporádicos, que oferecem alternativas ao tradicional drama adolescente. Bea é marginalizada pelo grupo popular de alunas por ser pobre e pela família que tem, apaixona-se por um adolescente bacana (Charlie Plummer), cujo defeito somente pode ser tolo para ser solucionável, deve decidir entre ir ou não à festa de formatura e ainda briga com a melhor amiga por tê-la trocado pelo namorado.
Tudo resolvido com um abraço coletivo, a expressão do cinema independente McDonald’s, que mata a fome, mas não nutre, emociona de modo artificialmente calculado e, de alguma forma e apesar dos clichês e excessos, ainda deixa um gosto positivo. Deve ser porque Kiernan Shipka é uma atriz carismática, só pode.
A cada biografia que assisto, posso confirmar a existência de múltiplas formas que o gênero adota, seja na ficção ou no documentário, e dentre as muitas que tenho visto, posso afirmar que é a pluralidade a característica mais animadora de All the Beauty and the Bloodshed, o filme que venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2022 e tem a direção de Laura Poitras, a vencedora do Oscar por CitizenFour.
Talvez porque Nan Goldin seja plural. Todos somos, evidentemente, mas é o mosaico que melhor define a artista fotógrafa e ativista. Nan participa do documentário, é peça-chave em ser a guia através da história de sua vida e é atriz profissional, nos dias atuais, diante dos protestos contra a Purdue Pharma e a família Sackler, patrona de museus e galerias de arte em Nova York, e responsável pela epidemia dos opioides OxyContin. Pude conhecer a obra da artista, que explora as possibilidades do corpo com a lente de sua câmera em uma época de quebra de tabus, não de reconstrução deles; a lembrança dolorosa da sobrevivente de abuso doméstico e do luto pela perda da irmã; a alma aguerrida da ativista, que invade museus nos Estados Unidos para protestar contra os milhares de mortos pela epidemia de opioides (recomendo a minissérie Dopesick).
Os museus, onde Nan exibe o trabalho de sua vida, são também o ponto de intercessão da narrativa, por ser o ambiente onde acontecem os protestos e através do qual a família Sackler alegadamente lava dinheiro em filantropia e recebe o prestígio com o nome estampado nas galerias. O documentário optou por apresentar a figura do antagonista, com direito à batalha final, mas talvez isto fosse descartável, diante da riqueza da vida de Nan Goldin. Ao revelar a artista detrás de um prisma que refrata a luz em sensações visuais abstratas e indescritíveis, Laura Poitras celebra a força de que o gênero biográfico pode ter não em resumir o indivíduo, mas em revelar o mundo de abordagens e recortes possíveis.
No fim, é a colmeia de pequenos pontos no espaço que melhor definem cada qual de nós. Não somos apenas o resultado da arte ou do trabalho que realizamos, as pessoas que tocamos, as causas por que batalhamos, somos os espaços que há entre essas dimensões e as estradas que os conectam.
Através da linguagem do humor espertalhão e pastelão, os diretores Marcos Jorge (de Estômago, cuja continuação está em processo de filmagem enquanto escrevo esta crítica) e Marcelo Botta (do programa Furo MTV) explicam o ato de fazer cinema de modo irreverente e engraçado com Abestalhados 2. O próprio título já é uma piada com a indústria, pois, no lugar de desenvolver o um, melhor dirigir a continuação e ter como trunfo a ideia de sucesso do antecessor inexistente.
O roteiro escrito a oito mãos acompanha 4 amigos – Paulo (Paulino Serra), o diretor, Manuel (Raul Cheque), o roteirista, Eric (Leandro Ramos), o produtor e supervisor de som, e Alex (Felipe Torres), o diretor de fotografia – na tentativa de filme o projeto dos sonhos: o filme de ação Acelerados 2. Só que, durante a filmagem da cena final, que envolve o fechamento de ruas, a colocação de gruas, muita ação e efeitos visuais, a equipe torra o micro orçamento que havia à disposição e começa a entreter ideias de como filmar o restante do projeto. Ao mesmo tempo, o quarteto contrata a produção de documentário sobre os bastidores e têm a oportunidade de conversar com o espectador através da metalinguagem para explicar suas ambições e divergências em relação à produção.
O barato de Abestalhados 2 está em extrapolar as etapas do processo cinematográfico, mas sem torná-lo incompreensível, enquanto brinca com os estereótipos da indústria. Paulo e Manuel disputam a autoria da obra cinematográfica, no retrato do embate interminável entre diretor e roteirista, com o desejo do último em manter íntegra a visão escrita versus o esforço do primeiro em colocar a sua impressão digital através do língua de imagens; já Eric é perfeccionista e defensor apaixonado da edição sonora, interrompendo tomadas no meio caso capte ruídos – chegando a modificar o figurino do Herói para corrigir distorções no áudio -, enquanto Alex é o cara que pensa em fotografia apenas em termos do estilo noir – o que gera o momento divertido da cena de filme pornográfico em contraluz.
Sem abandonarem os estereótipos que criaram para si, o quarteto briga, discute, embora conserve a camaradagem mútua e o desejo em fazer cinema, aos trancos e barrancos. Aí entra a parte de processo cinematográfico com a chegada de um ex-piloto, DJ e investidor, Paolo (Nicola Siri), um sujeito malandro, que derrama dinheiro de procedência duvidosa na produção, e os pretextos que o quarteto realiza para filmar determinadas sequências: aí entram Alexandre Rodrigues, de Cidade de Deus, José Loreto, de Mais Forte que o Mundo, e Wellington Muniz, o Ceará, atuando no filme dentro do filme sem saber de que participam do projeto (similar a Os Picaretas, a comédia estrelada por Steve Martin e Eddie Murphy, com o estilo de The Office), e a decupagem heterodoxa de Paulo para filmar a mais simples das cenas, o plano e contraplano.
Mesmo a etapa de pós-produção, com a criação do vídeo promocional, a negociação junto à distribuidora, a criação e divulgação de material de publicidade e a montagem, que tenta o milagre de transformar os fragmentos filmados em longa-metragem entra na brincadeira do elenco que, na maior parte do tempo, acerta no humor descontraído, que somente funciona se houve a suspensão de descrença do espectador. A isso, ainda acrescento as tiradas ou cenas críticas do trabalho criativo, a exemplo do nome dos personagens no filme dentro do filme (Herói ou Mocinha 1 e 2) e da necessidade de ser aprovado no teste de Bechdel para garantir a distribuição.
Abestalhados 2 ainda tem a boa ideia de encerrar dando uma rasteira no espectador, com uma sacada descontraída que justifica o título da narrativa e o conceito metalinguístico. Afinal, ainda que fosse impossível sair algo que prestasse na produção sem pé nem cabeça do quarteto, havia algo melhor a ser descoberto no fim do dia.
O cinema argentino, tão amado por alguns brasileiros, até mesmo mais do que o nosso cinema, a ponto de inspirar comentários míopes do tipo “é tão bom que parece argentino“, nunca se acovardou do dever de utilizar o cinema como meio para revisitar as histórias da breve, mas sangrenta ditadura militar no país que iniciou em 1976 até 1983. Se o Brasil aborda a sua história dentro do envelope do documentário, de menor penetração no público cinematográfico, a Argentina tem o feito em ficções históricas premiadas (A História Oficial e O Segredo de Seus Olhos ganharam o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro). Seu cinema é um instrumento de tomada de conhecimento, de reencenação da época sombria do país para que nunca mais algo parecido seja repetido, de evidência de que a arte pode ser engajada e entreter. Argentina, 1985 é a aposta do país na corrida do Oscar de 2023 e é favorito para, ao menos, figurar na lista dos 5 finalistas.
Com o roteiro escrito por Mariano Llinás e Santiago Mitre, que dirige, Argentina, 1985 recorda a hesitação do promotor de justiça especializado em direitos humanos Julio Strassera (Ricardo Darín), encarregado de presidir a acusação do julgamento civil contra os militares acusados de ter cometido crimes contra civis durante a ditadura militar. O julgamento é a resposta digna a ser dada aos monstros de farda e coturno, que jamais deram a oportunidade para que os seus se defendessem contra as acusações que conduziam à tortura, ao exílio e à morte. Entretanto, não era tarefa fácil processar e julgar estes militares em face às ameaças feitas aos membros da família de Julio e também de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) e que colocavam em risco a continuidade do julgamento. Ou quando havia políticos isentos que acreditavam na pacificação do país pelo perdão, que prefeririam esquecer e virar a página, como se fosse possível virar a página depois de dezenas de milhares de vítimas.
Com o mesmo princípio que norteou o julgamento de 85, Santiago Mitre dá à História o filme justo que esta merece e celebra a figura do relutante, mas incansável Julio, e de Luis, que, por não estar associado ao comunismo, mas à elite econômica que possibilitou a ditadura no país, legitimaria o processo judicial. Em meio à recriação da época de Argentina, 1985, feita pela designer de produção Micaela Saiegh com o auxílio da fotografia acertadamente desbotada de Javier Julia, a contemporaneidade na forma de brigas familiares entre apoiadores da ditadura e os que desejam a punição dos militares. Embora narre eventos ocorridos há 37 anos, a narrativa é atualíssima (infelizmente), pois a sociedade permanece reverberando a justificativa indefensável dos militares de que havia uma guerra no país e de que era preciso combater os ideais comunistas.
Não, não havia guerra, senão a expressão da liberdade política e ideológica em defender o que julgava ser o que é melhor para o país, aí incluído o comunismo. E o que não é o comunismo senão uma pecha atribuída por aqueles contrários a ideias defendidas para reduzir o debate a um estereótipo tornado execrável em razão das consequências ocidentais da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética (Rússia). É por isto que a questão geracional é relevante e Julio Strassera se cerca de jovens e idealistas advogados que o auxiliarão a obter as provas necessárias para construir o caso apresentado em juízo.
Até mesmo quando previsível, a narrativa envolve com a habilidade de ensinar história (a disciplina) em diálogo com o tempo contemporâneo. Além disso, Ricardo Darín aproveita para evitar que Julio seja um paladino unidimensional da justiça, e sim um homem repleto de angústias e incertezas no julgamento do século na Argentina. Assim, enquanto a ansiedade provocada pelas ligações ameaçadoras leva-o a evitar entrar em um carro, ao lado do filho, com medo de que esteja armado de explosivo, a experiência com autoridades policiais durante o período ditatorial endurece a relação com a equipe policial responsável por cuidar de sua segurança. Já Peter Lanzani reproduz a insegurança do jovem advogado que é o pivô da mudança de pensamento dentro de sua família de elite. Porém é Daniela Leyva Becerra Acosta que espinha o coração do espectador ao depor sobre as violências emocionais, psicológicas, físicas e sexuais sofridas durante a tortura da ditadura.
Além disso, a abordagem de Santiago Mitre cria três níveis de relação do espectador com a imagem, obrigando-as a interagir em momentos-chave para fabricar o efeito do cinema quando desvenda ou articular a História ao espectador. A encenação dos fatos, em que atores dão vida aos personagens históricos que participaram do julgamento para às telas do cinema, fotografados segundo as técnicas contemporâneas, entra em atrito com a imagem-passado, que confere credibilidade e veracidade ao narrado em razão dos filtros que emulam os ruídos da imagem do cinema oitentista (parecido, nesse aspecto com NO). Ao lado dessas, a imagem revelada no televisor, a reprodutora do ponto de contato entre telespectador e história. Essa ciranda revela quais os valores da imagem cinematográfica: o do entretenimento criado na ficção, o do conhecimento gerado pela História, o da empatia.
E mesmo que a ameaça de impunidade consoma o oxigênio do julgamento de Argentina, 1985, ainda assim é revelador da importância da formação de comissões de verdade para expor a feridade e retirar aquele pus que a impede de cicatrizar. A imagem final de Julio Strassera é a de um homem admirável, falível e até mesmo vaidoso, porém que sabe que a manutenção da democracia é um esforço de vigília permanente. Nunca mais!
Sebastián Lelio, ao lado de Pablo Larraín, são os principais autores chilenos em atividade no mercado internacional. Ambos dedicaram esses anos de suas carreiras a explorar narrativas protagonizadas por mulheres. Pablo, com as biografias Jackie e Spencer e a minissérie Lisey’s Story; Lelio, com Uma Mulher Fantástica, Gloria Bell (a versão original e a refilmagem americana) e Desobediência, que reuniu Rachel Weisz e Rachel McAdams em um romance dentro da comunidade judaica hassídica. Agora, Lelio adapta o livro escrito por Emma Donoghue, intitulado The Wonder.
No roteiro, Florence Pugh interpreta a enfermeira Lib, que, no século XIX, é enviada para observar e relatar o milagroso fenômeno da jovem Anna (Kila Lord Cassidy), que jejua há cerca de 4 meses. A Igreja católica tem interesse no resultado da avaliação para ter a beata ou mesmo a santa para chamar de sua, bem como a família e a população do típico vilarejo supersticioso do interior. Entretanto, ninguém parece preocupado com o bem-estar de Anna, senão Lib. À medida que a narrativa e a debilidade de Anna avançam, Lib se vê no dever de cumprir a missão dela, que é de cuidar do próximo, em detrimento do desejado pelo comitê do município que encomendou a investigação ou pela família, resignada em perder a filha contanto que seja em nome da religião.
The Wonder explora o obscurantismo da contraposição entre ciência e religião (fé), e, ainda que seja ambientado no século XIX, não parece datado. A razão para isto é o imediatismo do tema e a forma inconvencional como Lelio aborda a narrativa. De um lado, apesar de inúmeros avanços do íntimo da consciência à exploração do espaço, a ciência continua a ser alvo de críticas por razões variadas: há quem opte por preteri-la em favor da fé no divino e quem resolva, por motivos políticos, desacreditá-la para perpetuar o poder e manter o povo dentro da caverna, alienado. Dentro da narrativa, isso pode significar o sacrifício de Anna, pois a família prefere ter a memória de uma mártir do que a oportunidade de conviver com ela (nem preciso comentar que o conselho da cidade ou a enfermeira auxiliar, uma freira, estão pouco se lixando com a garota). Até mesmo Anna rejeita os esforços de Lib em alimentá-la, e o absurdo coloca a protagonista em uma posição de desvantagem dentro da sociedade, senão pelo apoio do jornalista William (Tom Burke).
Aí estão dois alvos da sociedade contemporânea: ciência e informação, ambas fontes de luz em um mundo coberto de escuridão (claro, quando atuam de modo ético). Há o terceiro e derradeiro alvo: a arte, que convida o espectador a entrar no mundo do faz de conta como recurso da narrativa. Se, em geral, é tácito o pacto entre espectador e artista para crer, por 2 horas, nas imagens exibidas na tela de cinema, em The Wonder, Lelio exige mais. Desde o início, a direção quebra a ilusão de real quando a câmera entra em um galpão de estúdio de cinema e se dirige em direção ao contêiner onde está montado o cenário do século XIX, em uma revelação expressiva de suas pretensões. Sinto que Lelio comenta a respeito do milagre do cinema, que confere a aparência de realidade a mundos fantásticos e a períodos pretéritos, milagre possível pela ciência (tecnologia), mas também pela fé do espectador. E de como a fronteira entre o ontem e o hoje é artificial e está criada em um estúdio. Assim, a tentativa de Lib em abrir os olhos da família contra as forças religiosas e políticas é verdade ontem e hoje.
O recurso é apenas ponto de partida, mas não uma constante. Lelio concentra-se no mundo tornado real no interior do contêiner e também pela fotografia de Ari Wegner, que justapõe o sufocamento e escuridão dos interiores (a caverna) dos ambientes onde Lib frequenta (ex. a casa da família de Anna, o conselho, o hotel) com os planos abertos dela caminhando pela natureza daquele local, um respiro oportuno e uma visão clara e desobstruída daquela oferecida por aquele mundo fechado. E, enquanto escrevo, também reflito que o fato de a narrativa iniciar dentro de um estúdio de cinema, nos tempos contemporâneos, provoca a ideia de que Lib não é daquele período, dada a forma científica de observar e pensar em comparação com os seus pares.
Nas mãos de Florence Pugh, Lib revela-se uma mulher inconformada com as decisões tomadas ao seu redor e que tenta, com a intensidade e determinação inspiradas pela atriz com sua presença, modificar o destino de Anna, que parece certo. Entretanto, tenho lá meus senões com a relação além do profissionalismo desenvolvida entre Lib e William, que, além de destacável do tema, também reforça a obrigatoriedade de que as protagonistas de narrativas iguais a esta precisam de um relacionamento amoroso e sexual quase como um argumento de que desprezam as tradições impostas às mulheres.
Não parece ajudar The Wonder, mas tampouco reduz os méritos desta narrativa de época mais contemporânea do que desejaríamos que fosse.
Não li a obra de Karen Cushman em que se inspirou o roteiro escrito e dirigido por Lena Dunham (Girls), mas a impressão que tive desta comédia feminista de época era a de assistir à versão adolescente de Fleabag por muitos motivos. Primeiramente, a posição questionadora dos valores tradicionais da sociedade do período, que obriga os pais a lhe darem em casamento para quitar dívidas criadas pelos hábitos e pela gestão mal-sucedida do dinheiro herdado pelo pai da esposa. Depois, o elemento formal da quebra da quarta parede, pois Catarina se dirige ao espectador como a narradora da história, colocando-se em um momento futuro e levando o espectador a conhecer esse tempo específico na vida da pré-adolescente, logo depois de menstruar. E, acidentalmente ou não, a escalação de Andrew Scott, que aqui interpreta o pai de Catarina.
Interpretada por Bella Ramsey (a Lyanna Mormont de Game of Thrones), Catarina é um espírito livre que preferiria atrasar o relógio cronológico e biológico para continuar usufruindo a liberdade, brincando com as crianças de sua idade e realizando travessuras na acolhedora Stonebridge. Só que a idade chega e, com esta, a responsabilidade de casar com um homem rico cujo dote possa aliviar as dívidas contraídas por Sir Rollo, que aguarda a vinda do herdeiro com Lady Aislinn (Billie Piper). O roteiro acompanha as desventuras de Catarina a cada pretendente que lhe é apresentado - os quais despacha com senso de humor e espirituosidade - e evita transformar seu pai no vilão da história. Quando muito, Sir Rollo é ilustrado como um homem inconsequente que não percebe colocar em risco a felicidade de sua filha.
Formalmente, a direção de Lena Dunham é anacrônica. Enquanto estamos no território do cinema de época, com a pompa esperada do design de produção e dos figurinos, sobre este mundo está a camada contemporânea, com muitas canções pop e gírias e expressões características dos pré-adolescentes de hoje. A decisão da direção é coerente - repito, não posso dizer se com o material original - ao substituir a solenidade e sisudez habituais de dramas de época em favor da engenhosidade da comédia, facilitando a comunicação com o público-alvo da narrativa, jovens que têm a cabeça de Catarina e que vivem no mundo povoado por redes sociais.
Aliás, a quebra da quarta parede ainda torna a experiência de Catarina em um diário, bem ao estilo dos stories do Instagram ou do TikTok, em como a protagonista confidencia a sua vida a estranhos, em busca de quem simpatize com sua jornada. Isso ajuda a contrapor o tema ultrapassado, pois os casamentos arranjados são distantes da realidade da sociedade brasileira. E, mesmo que Lena Dunham esteja utilizando o cinema de época para revelar o patriarcado ou o sexismo persistente no mundo de hoje, apoia-se em elementos ineficazes (ao menos do ponto de vista do homem que vos escreve; pode ser que a crítica feminina e feminista pode expor pontos cego que não pude notar na minha).
De todo modo, gosto de como o roteiro é articulado entre a miríade de subtramas que comungam dos mesmos valores em alusão à interseccionalidade tão debatida nos dias de hoje: o tio George (Joe Alwyn, de A Favorita) casa-se com uma mulher mais velha e rica (Sophie Okonedo), o seu melhor amigo (Dean-Charles Chapman) é gay mas não tem meios de revelar dentro da sociedade, a relação do pai com a mãe e a obrigação dela de gestar filhos. É agradável assistir ao amadurecimento e aprendizado de Catarina, enquanto toma conhecimento de uma realidade além da gaiola onde habita, permitindo-lhe criar a empatia para lidar com cada aspecto de sua vida.
Além do mais, a narrativa ainda conta com a atuação de Bella Ramsey, uma atriz dinâmica e carismática, cuja jovialidade contagia o espectador e cujos questionamentos colocam-no a seu lado, não atrás dela, acompanhada de um elenco coadjuvante competente e igualmente cativante (Andrew Scott, por exemplo, é o tipo de sujeito que é difícil de antipatizar, mesmo que tome decisões erradas e contraditórias dentro da narrativa). Assim, Catarina, A Menina Chamada Passarinha, além de retrato de época com o dedo contemporâneo, é ainda retrato afetivo de hoje a partir do olhar carinhoso para o ontem.
É o tipo de filme que acerta exatamente onde deseja, e mesmo quando a conversa recai em temas já superados, é o equivalente a escutar a avó lembrando de seus tempos idos. Você pode até não se identificar, embora ainda escute com atenção o que esta tem a dizer.
Adaptado a partir do livro escrito por Benjamin Alire Sáenz pela diretora trans estreante em longas-metragens Aitch Alberto, Aristotle and Dante é um romance LGBTQ+ que explora o processo de amadurecimento do indivíduo em conjunto com o amadurecimento afetivo. A história é ambientada na década de 80, em cidade do Texas, cenário duplamente repressivo à livre expressão do amor, e enfatiza a jornada transformadora do antissocial e introspectivo Ari (Max Pelayo), após conhecer o expansivo Dante (Reese Gonzales), na piscina pública.
Como desconheço a obra literária original, não tenho o clássico sentimento de apego que a maioria demonstra com a narrativa, desenvolvida com carinho, sensibilidade e honestidade emocional pela diretora, mas sem qualquer traço de estilo ou formal que a individualize e a torne inesquecível. É o encontro de duas vidas que se completam, no romance timidamente desenvolvido, com o adicional da cobrança machista de origem latino-americano (mexicano, para ser exato).
Ou ao menos aparente. Respeitadas as diferenças culturais, o pai de Ari, Jaime, vivido por Eugenio Derbez tenta repetir Samuel Perlman, o pai de Élio em Me Chame pelo Seu Nome. Não chega a ter o mesmo êxito, nem tampouco encenar o monólogo que seria visto, revisto e compartilhado nas redes daquele filme vencedor do Oscar, embora vá ao encontro da desconstrução do machismo mexicano. Eva Longoria, que vive a mãe de Dante, demonstra candura e ternura em relação a ambos, enquanto os atores estreantes escalados cumprem o que a narrativa espera deles, exibindo a química exigida, dada a repressão emocional da época.
Embora esquecível e não haja as batidas no roteiro que o eternizem no imaginário popular, Aristotle and Dante deve agradar os fãs da obra original e também quem busca alternativas de romances retratados de modo honesta, além da dominação heterossexual do gênero.
O diretor Ti West filmou o terror slasher X: A Marca da Morte durante a pandemia de Covid-19 na Nova Zelândia, em razão do êxito do país em controlar a propagação do vírus. Durante o período obrigatório de quarentena no ingresso no país, Ti West e a atriz Mia Goth, que interpretou a protagonista sobrevivente Maxine e a assassina idosa Pearl (não há mais como manter o spoiler dentro da caixa), escreveram uma história de origem desta personagem que, na pior das hipóteses, seria um exercício para a atriz modelar a vilã de X. A dupla foi além. Além de se aproveitar dos cenários construídos, com equipe ainda mais reduzida, Ti filmou em sigilo da imprensa a história de origem, exibida na sessão da meia noite do Festival de Toronto após o lançamento no Festival de Veneza.
O ano é 1918. Os soldados americanos, que haviam viajado para combater na 1ª Guerra Mundial, estão começando a retornar para os seus lares, mas não Howard (Alistair Sewell). Enquanto o espera, Pearl permanece na fazenda da família a sós com a mãe conservadora e religiosa (Tandi Wright) e o pai debilitado pelo derrame (Matthew Sunderland). Só a amiga Mitsy (Emma Jenkins-Purro) quebra a morosidade da rotina, assim como as idas raríssimas à cidade a mando da mãe. Em uma dessas idas, Pearl conhece o projecionista vivido por David Corenswet, que a convence a participar da audição para integrar o espetáculo organizado por uma igreja itinerante e, talvez, realizar o sonho de ser vedete do cinema.
A narrativa adota a forma de um melodrama saído da Era de Ouro de Hollywood, com o excesso de cores do extinto padrão Technicolor, adaptado pelo diretor de fotografia Eliot Rockett, como se estivesse produzindo a versão macabra de O Mágico de Oz. Esta opção estilística rompe com X e explora o que a mídia cinematográfica tem de melhor: a habilidade de transformar algo apenas pelo poder da imagem. A fazenda decrépita parece até idílica e bucólica, em contraste com o interior escuro e opressivo da casa onde reside a família e as ações violentas abrigadas. O sangue evita o realismo típico do slasher contemporâneo, em favor da artificialidade de sua gênese, como uma tinta que perverte e degrada os cenários externos e frutifica os pensamentos maldosos da protagonista.
Assim, de formas diferentes, X e Pearl são filmes sobre a quarentena. Enquanto o primeiro trata a respeito do confinamento da equipe de gravação de um filme pornográfico numa fazenda texana e o desejo de fugir tão logo a matança começa, Pearl discute o isolamento noutras dimensões. A começar pelo pai, confinado a uma existência assistida, ou pela mãe, que assumiu o encargo de permanecer para cuidar da família e da fazenda. Já em Pearl, o espectador enxerga a consequência na mente suscetível de uma mulher ambiciosa, mesmo que inocente, posteriormente ressentida e temperamentalmente psicótica.
Tandi Wright modela a mãe inspirada na de Carrie, A Estranha, vivida pela indicada ao Oscar, Piper Laurie. Apesar de haver menos elementos religiosos e fundamentalistas, Ruth oprime a filha, humilhando-a e a violentando verbal e fisicamente. Já Emma Jenkins-Purro aparenta aquela jovem prístina, que pensa em Pearl como um projeto social e de caridade. Mas é a atuação de Mia Goth, ainda mais intensa do que em X, que eleva a narrativa além do estilo puro e simples. Existe uma componente macabra e perturbadora em Mia, que faz frente à previsibilidade do arco dramático negativo dela: é divertido, de modo sórdido, trilhar o caminho da personagem da ilusão à desilusão, do excesso inócuo ao excesso brutal. O monólogo dela durante o jantar é um daqueles momentos que, em outro gênero que não o terror (discriminado dentro das premiações), aguçaria a atenção de quem quer que fosse o votante.
É por Mia que Pearl se torna ainda mais sólido do que X, pois se o confinamento no anterior é desculpa para o assassinato serial, obediente às regras da maioria dos slashers, neste evidencia a deterioração e degradação da personagem até o close final, o iris shot (o círculo que foca na personagem) em que a atriz sustenta o olhar, o sorriso artificial e as lágrimas da maneira maníaca com que imaginamos ser a turbulenta mente da já clássica personagem do terror contemporâneo.
Dentro da tradição de produções gastronômicas, O Menu é convidativo ao ato do olhar e saboroso ao paladar, ainda que pareça mais envolvido na construção conceitual do que na elaboração da narrativa. Ok, gosto de produções que demonstrem esmero na apresentação, ainda que o conteúdo possa parecer mais infantil do que sugerido à primeira vista. Enfim, se continuar com as metáforas de comida, vocês puxam minha orelha.
A encenação, pois o caráter teatral da obra é essencial ao êxito do projeto, inicia após certo grupo de pessoas da elite da sociedade chega a uma ilha remota para viver a experiência gastronômica proporcionada pelo Chef, interpretado por Ralph Fiennes, com a disciplina de estadista totalitário. O séquito é composto por Lily (Janet McTeer), a crítica gastronômica que descobriu o Chef, o ator de cinema (John Leguizamo), que tenta reerguer-se à frente de programa de variedades, membros do crime organizado cuja empresa de fachada patrocina o restaurante, o casal Richard e Anne (Reed Birney e Judith Light), que está na enésima vez no restaurante do Chef, e Tyler (Nicholas Hoult), cozinheiro amador, junto à incógnita Margot (Anya Taylor-Joy).
A suntuosidade do salão onde é servido o jantar oprime os convidados no nível inferior e é a representação do estado de espírito niilista e impassível do Chef. Junto a isso, a devoção, não há termo melhor, dos funcionários da cozinha para com o Chef acende a luz amarela de alerta, sobretudo se considerada a onipresença de Elsa (Hong Chau). A sátira de Mark Mylod (de Qual seu número? e episódios de Succession e Game of Thrones) transforma a cozinha do Chef em um ambiente totalitário para expandir comentários sociais, na revelação dos segredos íntimos daqueles participantes, e artísticos, em como a experiência da arte é objeto da proposta do autor e da recepção do apreciador, que é quem complementa a obra.
Se o Chef tem o controle sobre a montagem dos pratos e a ordem das refeições, além de acompanhá-las de comentários que colocam a si mesmo dentro da experiência de criação, não tem ingerência se Margot não quiser comer acompanhamento sem pão, por exemplo. A personagem de Anya Taylor-Joy é o ponto fora da curva porque é a Outra naquele grupo de pessoas, é a que não pertence e a que frustra (ao mesmo tempo em que fascina) os planos do Chef. Sendo assim, o roteiro escrito por Seth Reiss e Will Tracy apimenta (droga, lá vem eu com metáforas culinárias) o jogo de egos, explorado pelos atores a partir da resiliência dos olhares.
A propósito, que ator soberbo é Ralph Fiennes, ao imbuir de tamanha melancolia o olhar do Chef, que parece haver perdido o amor do criador, conservando o ofício por não saber fazer diferente. Isto não atenua a severidade dos atos praticados, embora confira dimensão à luta de quem desistiu de procurar prazer e sentido em criar arte. Aqui, a narrativa de Mark Mylod se embanana, pois parece criticar o dito cinema de arte ou mesmo a experiência conceitual, quando, de modo ingênuo, aponta o dedo para si. Natural que, para alguns, uma pizza e um hambúrguer são melhores do que pratos refinados cujo nome exige conhecimento de língua estrangeira, da mesma forma que filmes de entretenimento saciam o desejo de escapismo de quem não deseja obras reflexivas e propositivas. Ao criticar essa forma de encarar a arte e colocar, na fritura, os arquétipos que representam, ao ver da narrativa, a aversão à arte ou ao prazer de criar a arte, o que isto diz sobre o próprio filme?
Pois Mark não está só criticando o personagem Tyler, o cara desprezível e empoderado que o ator Nicholas Hoult tem se habituado a interpretar na série The Great ou A Favorita, mas quem, igual a ele, acredita compreender a obra do autor e o seu sentido, e utiliza este saber a fim de humilhar quem não o faz (no meio cinéfilo, todo mundo conhece um e outro assim). Ao ver de Mark, são tipos iguais a esse que diminuem a paixão do criador em fazer arte, ao passo que as Margot que mantêm acesa a chama de criar.
Ainda que confuso das ideias e aberto a interpretações plurais, O Menu ainda assim é uma obra surpreendente a cada batida do roteiro - representada pela apresentação de um prato da degustação - e um entretenimento apto a confirmar a disciplina artística do protagonista a qualquer custo. É uma refeição que adoraria repetir, ainda que preferisse não pensar em seus ingredientes.
Harry Styles esteve na mídia durante o mês de setembro com produções que lhe trouxeram atenção e renderam comentários. Em Não se Preocupe, Querida, por causa da polêmica de que havia cuspido no ator Chris Pine durante a première do filme no Festival de Veneza - já desmentida pelos atores; em My Policeman, mais por conta da cena de sexo homossexual com David Dawson. Ainda que Harry tenha um caminho a percorrer, tampouco desaponta dentro de um filme convencional sobre romances proibidos ambientados em uma sociedade conservadora cuja publicidade se tornou maior do que os méritos narrativos.
Na Inglaterra dos anos 50 apresentada no roteiro escrito por Ron Nyswaner e adaptado a partir do livro de Bethan Roberts, Tom (Styles) é um policial obediente às leis e à moral do período, embora desumanas e indignas. Quando conhece a professora Marion (Emma Corrin, a Diana da 4ª temporada de The Crown), Tom encontra a parte que falta dentro do que a vida espera dele, embora falte amor e paixão ao romance que iniciam (se é que pode ser chamado de romance). A vida de Tom muda depois de conhecer Patrick (Dawson), curador de museu que o instiga a explorar sua sexualidade em uma Inglaterra em que a homossexualidade era crime. Entretanto, a história acima é apenas a memória desse trio, que, décadas depois, é interpretado por Linus Roache, Gina McKee e Rupert Everett, respectivamente.
My Policeman desestrutura a linearidade do romance, costurando passado com presente, quando Marion convence o marido Tom a assumir os cuidados de Patrick, após este sofrer derrame debilitante. A proposta da direção de Michael Grandage (de O Mestre dos Gênios) é contrapor o trio inseparável de ontem com a versão presente, propondo ao espectador responder algumas perguntas: Por que Tom não deseja conversar e sequer chegar próximo de Patrick? Por que Marion é quem deseja acolhê-lo e o que deseja expiar com o ato?
A sensação de mistério é apenas ilusória, porém, porque My Policeman é coerente com o que você pode presumir com base no contexto e no histórico de produções que porventura tenha assistido. Não é nenhum mérito meu saber a resposta daquelas perguntas com certa antecedência, e mesmo que possa ter me surpreendido em momento específico, tampouco esse constitui um momento de bravura narrativa. Detrás dessa fachada, há um melodrama romântico que adota a frieza como tema recorrente e um elemento estilístico na fotografia sem cor, sem vida, em que amores proibidos apenas podem existir seguros e desimpedidos em becos isolados e viagens inesperadas. A sensação de inevitabilidade de que, a qualquer momento, serão descobertos, oprimidos e punidos é parte essencial da narrativa.
Sem a existência de sentimentos aflorados por impossibilidade contextual, My Policeman é como a praia de pedras ásperas e mar gelado e não convidativo, onde os personagens se encontram e que margeia a propriedade onde Tom e Marion moram no tempo presente. Só resta a beleza a ser contemplada à distância, da mesma forma que o romance no passado sobrevive na memória, quando não é reprimido definitivamente. Como não poderia deixar de ser, o romance critica a opressão da época, aqui representada pelo uniforme policial, e o desamor, o resultado de impedir pessoas que se amam de viver o seu amor de forma livre. As cenas de sexo - que viraram inimigos de parte do público que ignoram a função narrativa que podem trazer em si - contrastam o amor por conveniência (Tom e Marion) do amor por que vale a pena viver (Tom e Patrick), cuja paixão é emoldura pela arte e poesia.
Emma Corrin confirma a expectativa criada após o papel de destaque em The Crown, com um papel a princípio emocionalmente frágil, mas que revela resiliência e malícia. Enquanto isso, David Dawson e Harry Styles têm atuações regulares, apesar de sensíveis. Por fim, há pouco que o trio Linus Roache, Gina McKee e Rupert Everett realizam com personagens fruto das circunstâncias construídas no ontem e de que são reféns até hoje. Restam-lhe as expressões que há nos olhares e o contraste contra a paisagem ilustrada em planos abertos e em que não há a tranquilidade que pareciam inspirar.
My Policeman é uma obra convencional que poderia aprender com um romance corajoso, em um período em que amar não era um direito universalmente concedido. Do jeito como é, serve somente de portfólio para Harry Styles e resquícios de épocas a que não desejamos retornar.
No Festival de Toronto, ocorrem as divertidas sessões da meia noite. Participei de algumas (Sisu, Pearl), desisti de outras (estava mais cansado que a sola do sapato), e a primeira delas foi com a biografia (ou “biografia”) do músico ‘Weird Al’ Yankovic, dirigido por Eric Appel, que revisita o trailer falso que havia criado em 2010, estrelado por Aaron Paul, Olivia Wilde e Patton Oswalt nos papéis que agora são interpretados por Daniel Radcliffe, Evan Rachel Wood e Rainn Wilson (respectivamente, ‘Werid Al’, Madonna e Dr. Demento).
Afinal, quem é ‘Weird Al’ Yankovic? A resposta para esta pergunta você NÃO encontrará em Weird: The Al Yankovic Story, não da maneira que espera, por a narrativa adotar a principal característica do músico, a paródia, para tornar rocambolesca a história do personagem. Na realidade, biografias iguais a essa deveriam ser regra, não exceção. No lugar do aborrecido clichê de contar a história do biografado da infância ou adolescência até atingir o ápice da carreira e, em alguns casos, investigar as causas da queda e/ou da morte, Weird emprega o estilo do artista em forma cinematográfica, parodiando a si mesmo e o gênero biográfico. Al se apropria de canções famosas e populares e substitui as letras clássicas por versões bem humoradas (Like a Surgeon é a paródia de Like a Virgin; Smells Like Nirvana, de Smells Like Teen Spirit, e por aí afora).
A partir do roteiro co-escrito por Eric e Al Yankovic, a história do artista é fabricada para os cinemas: a sua relação tumultuada com o pai (Toby Huss), que deseja que o filho trabalhe na fábrica, e com a mãe (Julianne Nicholson), a ascensão meteórica na fama auxiliado pelo pitoresco Dr. Demento, o romance tórrido com Madonna e mais. O roteiro abre oportunidade para que a narrativa brinque com as convenções de gêneros ou subgêneros tradicionais: o coming of age ou drama de amadurecimento de um artista dentro do mercado fonográfico, o thriller de ação contra um cartel de drogas ou mesmo o terror de zumbis (oi?). E tudo isto é potencializado, embora não maximizado, de modo inusitado e que confere ares cômicos sem descaracterizar a dramaticidade da narrativa.
Dramaticidade… risos. Weird é zoação do início ao fim, e se peca é por não pisar no acelerador o máximo que pode, às vezes puxando o freio de mão quando o ideal seria atirar a narrativa no muro e depois cobrar indenização para o seguro. É por isto que gosto muito da atuação de Evan Rachel Wood, que abraça o excesso na caracterização da rainha do pop e cujo interesse é muito além do romântico, já que a narrativa ainda defende o talento de Al em revitalizar a carreira dos músicos que parodia.
Já Daniel Radcliffe tenta equilibrar a forma ingênua, afetuosa e pitoresca com que Al enxergava a música (e a vida) e o desejo de ser acolhido pela família por quem é, não por quem desejam que seja, debaixo do cobertor do falso na narrativa, em um convite para abraçar o personagem a despeito da forma ou justo por causa dela. O ator tem realizado escolhas de personagens exóticos e diferentões para interpretar (vide Cidade Perdida, Armas em Jogo e Um Cadáver para Sobreviver), e Al é mais um dentre o rol destes sujeitos, com o benefício de ser curiosamente menos caricato do que os anteriores. Bom exemplo é na relação com o personagem interpretado por Rainn Wilson, de The Office, que apoia os sonhos de Al.
Com a introdução ainda de figurantes que interpretam personagens célebres, ou nem tanto, Weird não é a biografia de Al Yankovic, óbvio, mas talvez seja a que o artista desejava ter e, no mundo da arte, a caricatura muitas vezes pode ser melhor do que a versão original.
O dramaturgo Florian Zeller tem um universo teatral no ambiente familiar: The Mother (2010), a mãe; The Father (2012), adaptado nos filmes A Viagem de Meu Pai (2015) e Meu Pai (2020), que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Anthony Hopkins; e a mais recente The Son (2018), o filho, adaptado neste drama. Se em Meu Pai o diretor explorou a deterioração da mente e do eu causada pela doença de Alzheimer, em The Son aborda a depressão profunda, com tendência mutilatória e suicida, do jovem Nicholas (Zen McGrath), o filho do casal divorciado Peter (Hugh Jackman) e Kate (Laura Dern), abalado após o casamento do com Beth (Vanessa Kirby, de Pieces of a Woman).
The Son é devastador de maneira diferente do que foi Meu Pai, ainda que menos eficiente na manipulação da emoção do espectador. Se neste último, era o produto da percepção equivocada dos acontecimentos narrados a partir do ponto de vista não confiável do homem interpretado por Anthony Hopkins, em The Son a manipulação é sujeita à cegueira causada pela intensidade trabalhista e emocional do mundo contemporâneo que incapacita os pais e a madrasta de perceber o sofrimento extremo de Nicholas. O roteiro inicia com o pedido de Nicholas para morar com o pai, atendido pela mãe e aceito, com algumas ressalvas, pela madrasta, a dias de dar à luz a seu filho. O desejo dele é de estabelecer contato com Peter, embora este trabalhe o dia inteiro e viaje com frequência à Washington, para trabalhar na campanha de um Senador.
Diferente de Meu Pai, em que o design de produção desempenha um papel central na criação, desconstrução e recriação do olhar e da percepção do protagonista e do público do universo diegético, o de The Son é pragmático, realista e até certo modo acolhedor. Não é a externalidade que provoca a depressão de Nicholas, é o que habita dentro dele e, às vezes, mal consegue traduzir em palavras. Além de gazear colégio para perambular pela cidade e de se machucar para sentir algo concreto na pele - alertas vermelho para que a família tome providências -, Nicholas aprende a falar mentiras que julga que os pais desejam escutar e em que acreditam durante a maior parte do tempo.
A racionalidade e autoconfiança de Peter - realçadas pela ótima atuação de Hugh Jackman - impossibilitam-no de perceber o instante em que deve agir, e, quando o faz, não sabe bem o que fazer e passa do ponto aceitável. A melhor intenção de Peter e o desejo genuíno de não repetir o erro do pai, uma participação breve, mas intensa de Anthony Hopkins, não são suficientes para consertar Nicholas, pois o filho não precisa de reparo, mas de acolhimento. Nicholas tenta. Muda-se de casa. Esforça-se em sorrir. Entretanto não basta para superar a angústia profunda. Não basta apenas terceirizar o tratamento com psiquiatra, Peter e Kate precisam aprender a conversar com o filho, mas é Beth a única autêntica e honesta com os sentimentos dela.
A trama sabe para onde está dirigindo o espectador. A partir de certo instante, percebemos que o roteiro de Florian Zeller e Christopher Hampton só pode concluir a história da família de uma forma. Qualquer alternativa seria desleal com o investimento emocional do público, ainda que pudesse ser artificialmente gratificante. Desse modo, The Son é como a descarga ralo abaixo misturada com um conto de alerta, em que percebemos a tentativa dos pais e do filho, no que falham e a relação de alertas, para que não sejam repetidos os erros neste mundo real (além das telas de cinema). Isto atrapalhou a minha experiência, porque se o resultado é inevitável, então os 123 minutos apenas parecem uma contagem regressiva até que cheguemos lá, com relances esperançosos e felizes, a exemplo da cena da dança.
Florian oferece aos atores momentos Oscar: o encontro no restaurante entre Peter e Kate e a forma sensível com que a ex-esposa relembra o casamento sem precisar de um flashback ilustrativo daquele momento (basta o olhar de Laura Dern) e a cena em que Peter está com o filho recém nascido no braço, objeto do sorriso discretíssimo de Vanessa Kirby. Contudo, se os atores veteranos estão irrepreensíveis, o mesmo não posso falar de Zen McGrath (dói citar isso). Às vezes, não sabia se a intenção da direção era que o adolescente fosse ou aparente manipulador ou se havia a inocência de quem não entende a origem da angústia extrema que sente e nem como conversar a respeito. Uma cena exemplifica é nas lágrimas, que parecem forçadas. E, se forçadas, foi intencional ou reflexo da má direção do ator?
A simbologia de The Son também é óbvia: a máquina de lavar é o lembrete do sentimento turbulento de Nicholas, e a menção a certo dispositivo literário denominado a partir do poeta e escritor russo (se eu ficar, parece spoiler), enquanto o sibilo da chaleira em ebulição é tão evidente que não há como o interpretar de modo diverso. Aliás, óbvio ou não, é inegável o potencial dramático de The Son embora, diferentemente de Meu Pai, a forma de revelá-lo seja menos eficiente.
Jennifer Lawrence tem realizado retorno gradativo aos cinemas. Após protagonizar, ao lado de Leonardo DiCaprio, a comédia satírica apocalíptica Não Olhe para Cima, a atriz retorna às origens do cinema independente com este Passagem, drama produzido pela A24, com a direção de Lila Neugebauer, à frente da minissérie da Netflix Maid. Contudo, embora pertinente, o estudo de personagem realizado pela diretora é minimalista de tal maneira a desligar o centro emocional do espectador em uma narrativa destituída de vestígios de emoção.
Lawrence interpreta Lynsey, uma engenheira a serviço do exército americano na Guerra do Afeganistão que retorna aos Estados Unidos para se reabilitar, física e emocionalmente, depois de o veículo de transporte ser alvo de uma mina terrestre. Ao regressar a Nova Orleans, em que retorna à casa da mãe (Linda Emond), Lynsey aceita o emprego de limpar piscinas - enxergada de forma simbólica pela narrativa - enquanto aguarda o médico que a acompanha liberá-la para retornar à guerra. Enquanto recebe negativas sucessivas, Lynsey inicia amizade com James (Brian Tyree Henry, de Atlanta), que também tenta se recuperar do acidente que provocou e que lhe custou muito caro.
Emocionalmente, há muito em jogo na narrativa. Lynsey encara o estresse pós-traumático em forma semelhante ao do Sargento William James de Guerra ao Terror, alienada a crer não pertencer àquela sociedade, mas à guerra do outro lado do mundo. Lynsey até rejeita o diagnóstico, afirmando que o trauma por que atravessa é anterior à guerra, o que incendeia os momentos que compartilha com a mãe, em que o ressentimento permanece escondido debaixo do véu da sugestão. Enquanto isso, James sobrevive com fantasmas do passado. A oportunidade emocional e afetiva proporcionada pelo relacionamento com Lynsey é uma espécie precária de porto-seguro onde o personagem amarra alguma forma de esperança. Ainda há a discussão a respeito da dependência alcoólica da mãe de Lynsey, embora este tema seja mantido de maneira superficial.
O roteiro escrito a seis mãos por Otessa Moshfegh, Luke Goebel e Elizabeth Sanders é bem intencionado e investiga, igual a Maid, a dinâmica da classe média baixa americana, com o apagamento da classe média alta e rica - os donos da residência onde Lynsey presta serviço estão de férias. Nesta Nova Orleans escura e sombria, com fotografia dessaturada, somente há espaço para as almas quebradas iguais aos co-protagonistas, que tentam se apoiar uns nos outros para se manterem de pé. Há uma quantidade reduzida de ambientes onde podem se encontrar, seja no bar ou na porta de casa, com o roteiro optando em se aprofundar em cada momento, potencializando-o ao máximo ainda que isto o leve rumo ao mundano ou trivial.
Gosto da vulnerabilidade demonstrada por Bryan Tyree Henry, ator que admiro, enquanto a atuação de Jennifer Lawrence remete o espectador à de Inverno da Alma, criada a partir de detalhes no lugar de excessos. Entretanto, em certos momentos, a atriz exagera. A maneira de caminhar enquanto projeta o ombro para frente aproxima-se de estereotipar Lynsey, ou masculinizá-la, em razão da homossexualidade da personagem.
Atrás das câmeras, Lila Neugebauer deixa os atores à vontade para que a ação aconteça e a aproximação seja construída gradativamente. A piscina, além de evidenciar um abismo de desigualdade social na comparação entre a de plástico montada no quintal e a construída, é também metáfora da maneira como a narrativa (ou a protagonista) enxerga a contribuição do exército à sociedade, mantida invisível.
Enquanto escrevo a crítica, até consigo sentir a emoção que a narrativa sozinha não pôde me trazer naquele momento. Entretanto, o hermetismo de Passagem e más decisões criativas de Jennifer Lawrence interferiram, decisivamente, em minha relação com o filme.
Não sou aquele crítico que se preocupa muito com clichês. A vida é repleta deles. O que dói é o apego cego de produções a convenções e soluções de roteiro previsíveis e impossíveis de serem ignoradas e que diluem a emoção (ou qualquer coisa parecida com emoção) no gênero dramático, de tal modo que o torna semelhante à água salobra. Prisoner’s Daughter é um drama salobro, em que seus bons intérpretes (Kate Beckinsale e Brian Cox) não têm a mínima chance de reerguer a narrativa diante de um roteiro algoritmo.
A história inicia no presídio onde está preso Max (Cox), que recebe a oportunidade de saída solidária por ser paciente terminal de câncer e manter bom comportamento (o protagonista gerenciava um grupo de apoio para dependentes químicos), com duas condições: a utilização de tornozeleira eletrônica e que a filha, Maxine (Beckinsale), que abandonou quando era garota, aceite-o em casa. Maxine, cujo nome alude ao narcisismo do pai, reluta até aceitar Max por causa de dificuldades financeiras. Seu filho, Ezra (Christopher Convery), precisa de medicamentos controlados para enfrentar episódios epilépticos; para piorar, Maxine é demitida do emprego de garçonete depois do irresponsável e viciado pai de Ezra (Tyson Ritter) agredir o proprietário do estabelecimento, como o resultado da discussão em que cobra participar da criação do filho.
A partir da sinopse, dá para imaginar para onde a narrativa dirigida por Catherine Hardwicke caminha. Max e Maxine atravessarão uma estrada emocional até que a filha, naquele instante clássico de mágoa reprimida retratada de modo sentimentalista, abaixe a guarda e aceite o apoio emocional e financeiro do pai. Já o espirituoso Ezra, que enfrenta o bullying no colégio, aprenderá a se defender com o ex-pugilista avô (embora pense ser tio distante) e um episódio de epilepsia aguarda na curva do clímax. Enfim, Tyler encontrará dificuldade em administrar o vício complicado pela negativa de Maxine de compartilhar a guarda de seu filho.
Catherine Hardwicke, depois de estreias com os ótimos Aos Treze e Os Reis de Dogtown, não encontrou mais o caminho criativo com Crepúsculo, A Garota da Capa Vermelha, Já Estou com Saudades e a refilmagem de Miss Bala. Sem a mínima decisão cinematográfica que ajude a narrativa a respirar além do drama sufocante, a diretora encena o roteiro com a alternância entre planos e contraplanos e nada mais do que isso. Catherine ainda percorre, sobre a corda bamba, a discussão que há sobre a adoção da violência como o recurso para ser aceito na sociedade. Max trabalhou com o crime organizado como braço de ferro, Ezra recorre à violência para parar o assédio dos bullies - o fato de a mãe recebê-lo com alguma satisfação no sorriso anula o arrependimento posterior do garoto - e Tyler eventualmente se torna violento, exigindo alguma ação de Max, o salvador daquela família em análise final.
Se Prisoner’s Daughter deseja criticar o ciclo de violência e sugerir uma forma de quebrá-lo, apenas consegue através da mesma violência que provocou a cisão da família e a prisão de Max. E mesmo que goste da decisão altruísta do protagonista, que se enxerga quando era jovem em Tyler, a maneira como soluciona o problema central da narrativa impacta mais por ser um ato imprevisível aprisionado em um roteiro convencional. Não apenas isto, simplório. Não há conflito que Max não consiga resolver cobrando favor com a construtora imobiliária do antigo patrão ou o retorno do investimento que realizou na academia de boxe do amigo interpretado por Ernie Hudson.
Até admiro o comprometimento de Brian Cox em um papel que lhe exige além do que tem demonstrado em Succession ou de Kate Beckinsale, que tem amadurecido em uma atriz bastante interessante, mas pouco ajudam à narrativa dramática a exibir emoções fabricadas jamais genuínas e envolventes de Prisoner’s Daughter.
O filme de abertura do Festival de Toronto é baseado na história real e edificante das irmãs sírias Yusra e Sarah Mardini, refugiadas na Alemanha, durante a guerra no país, onde treinaram para realizar o sonho de competir nas Olimpíadas do Rio de Janeiro. Embora As Nadadoras tenha debaixo do braço uma história igual a esta, não significa que saiba como a aproveitar. E desperdícios iguais a esse tendem a gestar filmes decepcionantes que acreditam que seu valor cinematográfico está no conteúdo (a história), não na forma (o modo de contá-la).
Para se ter uma ideia, os melhores momentos de As Nadadoras são aqueles que recorrem a fatos impossíveis de serem ignorados, como o cemitério de coletes salva-vidas no litoral grego, a ocupação no aeroporto de Tempelhof, o objeto do documentário THF: Aeroporto Central, de Karim Aïnouz, e a angústia e o desespero dos refugiados durante a travessia do mar mediterrâneo. Nestes momentos, a diretora Sally El Hosaini apela à humanidade do espectador de forma direta, criando o peso dramático que falta ao restante da narrativa.
À narrativa falta a disciplina que um atleta olímpico deve ter, pois a superficialidade no mero ato de mostrar ou de refletir e questionar serviam à finalidade de retratar a trajetória heróica e de superação das dificuldades de Yusra e Sarah Mardini, sem se aprofundar, a exemplo da unidimensionalidade do treinador alemão vivido por Matthias Schweighöfer. Isto resulta em um ritmo inconstante, considerada a duração de 134 minutos, sem a construção de uma base sólida em que o espectador sinta que há ameaças ao destino das personagens (saber o fim da história, neste caso, prejudica porque torna o filme refém de chegar no momento da Olimpíada).
Além do mais, Sally se mostra indecisa entre o tom realista e onírico. É natural que uma jovem adulta recorra à poesia do mundo fantástico para enfrentar a realidade em que está, só que a direção torna casual a introdução desses momentos que, embora belos, terminam por super-simplificar uma história ímpar.
Após o Oscar de melhor roteiro original por Três Anúncios para um Crime e o divertido Sete Psicopatas e um Shih Tzu, Martin McDonagh reúne-se com a dupla do excelente Na Mira do Chefe para este drama cômico (ou seria comédia dramática?) The Banshees of Inisherin, uma analogia explícita à Guerra Civil irlandesa, posterior à independência da Inglaterra, que colocou amigos em lados opostos.
Enquanto a guerra acontece além das fronteiras da remota ilha de Inisherin, no litoral da Irlanda, o fazendeiro Pádraic (Colin Farrell) caminha despreocupado para se encontrar com o melhor amigo, Colm (Brendan Gleeson), para o programa que fazem todos os dias: ir ao pub local e jogar conversa fora. Algo está diferente, porém, e ao recebê-lo, Colm apenas lhe responde: “Eu não gosto mais de você”. Da forma casual como Brendan Gleeson enuncia a afirmação ao abalo emocional que provoca no ingênuo e bonachão Pádraic, o tom narrativo é prosaico (“Deve ser por causa do 1º de abril” sacramenta Pádraic) antes de se aprofundar por caminhos dramáticos inesperados, quiçá surreais.
É que, diante da insistência reiterada de Pádraic em compreender o motivo de o melhor amigo terminar a amizade e não desejar mais sua companhia, Colm realiza um ultimato: “Se você não parar de falar comigo, vou cortar um dedo de minha mão e continuarei a cortar até não ter mais dedos para cortar”. Vindo de um homem que começou a praticar o violino a fim de produzir uma canção por que será recordado, esta ameaça de automutilação serve ainda para revelar um eventual egoísmo de Pádraic, cuja curiosidade pode vir ao custo de arruinar o sonho de Colm em se eternizar na música.
O intrigante no roteiro de Martin McDonagh é a ausência de uma hostilidade desenvolvida entre os personagens para justificar o rompimento definitivo. Aliás, Colm respeita a amizade que teve, é paciente em pedir mais de uma vez para que Pádriac se afaste, até insiste com a sua irmã Siobhán (Kerry Condon), e defende o ex-amigo após ser espancado pelo policial da redondeza. Colm somente deseja a tranquilidade ou a seriedade que Pádriac não pode lhe oferecer. Assim, na ação ambientada em 1923, causa, consequência, acidente, absurdo e mesmo premonições na supersticiosa região jogam em um roteiro bastante articulado em relação ao conflito central - desenvolvendo-o até o limite das possibilidades -, como também quanto aos personagens coadjuvantes: Siobhán, que deseja deixar a região para morar na cidade, e Dominic (Barry Keoghan), abusado fisicamente pelo pai e que se torna, para Pádriac, o amigo que este era para Colm.
Além de a narrativa evidenciar o paralelo com a guerra civil irlandesa, ainda soa, para mim, metáfora de tópicos sobre saúde mental. Pádriac, desta maneira, é a vozinha ininterrupta e exaustiva na cabeça do artista Colm que o impede de criar. É o tumulto quando o cérebro somente exige a mesma paz que se encontra na idílica fotografia dos campos ou do mar da Irlanda. A amizade com Pádriac é, para Colm, o equivalente à perda de foco provocada pelo TDAH, e é compreensível que este último decida romper a qualquer custo a amizade, nem que isto custe a capacidade de criar a arte que ama. A propósito, a arrogância artística de Colm é desafiada por Siobhán ao recordá-lo que Mozart não é do século XVII, mas XVIII.
Com uma atuação serena de Brendan Gleeson, Colm é contraditório para dizer o mínimo: a forma pausada como fala e mesmo a composição que elabora são máscaras do desespero que confessa sentir ou das ações extremas que levam a consequências drásticas, no estilo de comédias de humor ácido (pinceladas com as cores do drama). Enquanto isto, Colin Farrell demonstra uma melancolia dolorosa de um modo particular, enquanto a ingenuidade passa a ser sufocada por adeus de muitos personagens com quem podia conversar.
Entretanto, o mais triste mesmo que há em Banshees of Inisherin é perceber como, na vida, amigos com quem passamos anos, décadas, podem amadurecer noutras pessoas e trilhar caminhos diferentes dos nossos. Afastar-se daqueles com quem crescemos ou com quem passamos a vida é natural, apesar de doloroso. E, no roteiro em que não há personagens maus (ao menos não no núcleo central), perceber como irmãos que antes cantavam juntos agora podem provocar danos irreparáveis uns nos outros é a constatação tragicômica do efeito até hoje nefasto da guerra na sociedade irlandesa. E na vida desses dois homens.
Tenho para mim que Empire of the Light é o Green Book: O Guia deste ano, em que um diretor de meia idade, branco e bem estabelecido na indústria de cinema (o vencedor do Oscar Sam Mendes, de Beleza Americana e 1917), pretende aliviar o sentimento de culpa através de uma história, ambientada na década de 80, crítica à xenofobia e ao preconceito inglês, mas também agregadora em como promove o cinema como um ponto focal em que as pessoas oprimidas podem encontrar consolo, não salvação, umas nas outras. Visto por este ângulo, Empire of the Light poderia até ser concorrente dentro da corrida da temporada de premiações se não tivesse sido recebido de maneira morna pela crítica e pelo público.
Na maior parte do tempo, o roteiro escrito por Sam Mendes acontece no interior do cinema de rua localizado na costa sul inglesa que dá nome ao filme, aberto e fechado por Hilary (a vencedora do Oscar Olivia Colman, de A Favorita e A Filha Perdida), que retornou introspectiva de uma clínica para tratamento da saúde mental. Isto não é obstáculo para que o gerente do estabelecimento Sr. Ellis (Colin Firth) a convoque para favores sexuais no escritório - um assédio subentendido por aqueles que dividem o mesmo espaço de trabalho, a exemplo do diligente projecionista Norman (Toby Jones). A rotina do Empire muda com a contratação do imigrante centro americano Stephen (Micheal Ward, da série Top Boy), que é acolhido com o calor no interior do cinema que não encontra nas ruas racistas da cidade. Quem mais sente o reflexo da chegada de Stephen é Hilary, cuja amizade romântica inusual ajuda-a a enfrentar o cotidiano opressivo.
Bem intencionado, Sam Mendes discorre acerca de uma mulher de meia idade, depressiva, institucionalizada por supostamente ser esquizofrênica e que é vítima de abuso (ao menos de assédio) no ambiente de trabalho e do jovem imigrante negro, vitimizado e agredido por odiosos xenofóbicos, com dificuldade em pertencer àquele país estrangeiro. É fácil perceber onde está o erro, mas antes que alguém critique o lugar de fala, o problema não é que Sam Mendes não deva falar sobre essas personagens, é que deveria evitar o discurso simplista, óbvio e auto congratulatório que permeia a narrativa.
Sabe como é possível perceber isto? Na narrativa fora de tom, em que cenas que deveriam ser fortes, foram recebidas com sorrisos. Não que a tragédia não possa ser enxergada pela lente da comédia, mas é que prefiro acreditar que a intenção de Sam Mendes não era que o assédio sexual desastrado cometido pelo Sr. Ellis ou que o racismo do homem que mastiga seu salgadinho e engole sua bebida na frente de Stephen não fossem recebidos com risos tímidos de canto de boca. Até há espaço para intervenções bem humoradas, e estas têm o seu lugar ao sol dentro da narrativa, mas é que cenas iguais a essas que mencionei não tiveram o tratamento que mereciam.
A narrativa é embaraçosa na forma como Hilary é enxergada com o cabelo desgrenhado e o dente sujo de batom (que clichê horripilante) ao subir no palco do cinema, não convidada, para declamar um poema antes da première de Carruagens de Fogo, com direito (claro) à microfonia. Sam Mendes é igualmente desinteressante em como sequestra o cinema como o espaço de empatia ao enfocar a dupla Gene Wilder e Richard Pryor como um comentário do relacionamento entre Hilary e Stephen. E a amizade romântica só não é mais forçada do que como está escrita no roteiro porque é trabalhada por atores competentes, que tirar leite de pedra para dar contornos aos personagens.
Aliás, Empire of Light apenas não desaponta se concentrarmos nossa atenção na fotografia de Roger Deakins e no elenco. Deakins idealiza as cenas corriqueiras de diálogos como se ocorressem dentro de minúsculas salas de cinema ao ar livre, com a luz externa e os atores em contraluz, como se o sol ou a iluminação justificada ou cênica substituíssem o projetor de cinema naquele momento. Se o cinema é a ilusão de vida real e a vida é a matéria prima do cinema, então é discretamente eficiente que os personagens sejam enxergados como se fossem estrelas de suas vidas.
Já o elenco, ainda que Empire of Light tenha a cara de que irá sobrar na temporada de premiações, não há não como não destacar a atuação de Olivia Colman, pálida, alheia mas ainda a dona de instantes de intensidade ao esbaforir o sentimento aprisionado dentro dela. Já Micheal Ward parece perder, pouco a pouco, o otimismo e a força de vontade em lutar contra a maré do preconceito, até reencontrar a exuberância no olhar. Já Toby Jones é mais um a entrar no clichê do projecionista como este sujeito recluso e super protetor dos filmes, até descobrirmos mais sobre os sentimentos que o movem. Quanto a Colin Firth, seu papel é enxuto demais para ser descartado apenas como o chefe opressivo e desprezível da vez.
Desprezível mesmo será caso Empire of Light belisque as indicações que devem ser de filmes melhores, mais ousados e ambiciosos e menos caretas e óbvios.
Quando estava folheando a programação do Festival de Toronto, um nome me chamou atenção, o do diretor indiano Shekhar Kapur. Foram dois motivos sequenciais. O primeiro é que acreditava que Shekhar tinha morrido alguns anos antes, até por fazer 15 anos de seu longa-metragem anterior, Elizabeth: A Era de Ouro (2007). Depois, o diretor participaria de projetos antológicos - Nova York, Eu Te Amo e Venice 70: Future Reloaded -, curtas e séries de TV. A segunda surpresa: que Shekhar tenha retornado aos cinemas com uma comédia romântica que explora as questões tradicionais envolvidas no matrimônio assistido paquistanês em O Que o Amor Tem a Ver Com Isso?, homônima da canção de Tina Turner, mas sem nenhuma relação além disso.
A bonitinha, mas dispensável comédia romântica acompanha as idas e vindas de dois amigos de infância, Zoe (Lily James) e Kazim (Shazad Latif). Ele, um homem que decide seguir o conselho dos pais e se casar com uma mulher escolhida por sua família. Ela, uma documentarista que aproveita a oportunidade para registar esta modalidade de casamento. Eu preciso repetir que, durante o processo, Zoe e Kazim irão desenvolver sentimentos além da amizade, em razão da intimidade, cumplicidade e do amor platônico conservado oculto?
O que o roteiro de Jemima Khan oferece de originalidade quando comparado com comédias românticas convencionais é a não estigmatização da cultura paquistanesa, enquanto crítica à tradição. Jemina é feliz quando associa o matrimônio assistido ao hábito que pais e mães ocidentais têm de empurrar filhos e filhas em relacionamentos com filhos e filhas de boas famílias, embora menos feliz quando realiza o paralelismo com aplicativos de namoro, pois estes, ao menos, partem do (aparente ou não) livre arbítrio de quem arrasta para cima, não para o lado.
Retomando, é a abordagem honesta da cultura paquistanesa, com as idiossincrasias típicas magnificadas pela lente da comédia e individualidades retocadas com a câmera de Shekhar Kapur, que a narrativa é um tico superior e não mais do mesmo. Ah, isto, Emma Thompson e Asim Chaudhry, que interpreta o casamenteiro, o típico coadjuvante que rouba cada cena em que aparece em razão do humor nonsense e das tiradas espirituosas. Quanto à Emma, que ano incrível está sendo para a atriz veterana: se em Boa Sorte, Leo Grande desnudou o corpo e prazer de uma mulher de terceira idade com transparência e bom humor, aqui liga a velocidade 2x para imprimir um ritmo frenético à mãe de Zoe: embora unidimensional como uma cartolina, Emma tem timing para tornar cada fala em uma oportunidade de riso fácil.
Em contrapartida, por mais que se esforcem, não há química entre Zoe e Kazim, a ponto de levar o espectador a torcer para que fiquem juntos. Se torcemos, é porque o subgênero da comédia romântica já nos doutrinou a acreditar que o melhor par amoroso é aquele que nos conhece desde sempre. Para piorar, Lily James não inspira confiança de ser a diretora de documentários bem sucedida que pensamos ser na narrativa. A sensação é de que Lily está fingindo filmar, não interpretando filmar, e é fácil perceber a falsidade desses momentos. E, ora, nem é preciso ser crítico ou cineasta para concluir que Zoe não conseguiria registrar as imagens que deseja da forma como posiciona e manipula a câmera.
Eu poderia ignorar essa artificialidade, pois comédias românticas tendem a ser, na maioria das vezes, artificiais, mas isto vem aliado à forma convencional: mesmo quando encena os instantes que aguardamos que encene, com a esperança de que fará de maneira original ao menos em função da cultural apresentada, Shekhar Khapur apenas repete o lugar comum. Até a ideia de revisitar trechos de contos de fada nas palavras de Lily James - que poderia repercutir em uma piada interna com o fato de ter interpretado a Cinderela de Kenneth Branagh - não leva senão à conclusão de que O Que o Amor Tem a Ver Com Isso? é o tipo de romance água com açúcar esquecível e não a forma que desejava reencontrar o diretor.
Depois de a tradução da Netflix brasileira preterir A Boa Enfermeira em favor de O Enfermeiro da Noite, ressaltando os crimes cometidos por Charles Cullen no lugar da coragem de Amy Loughren, percebemos o quanto o brasileiro valoriza o sensacionalismo em detrimento do resto. Mas não se preocupem, o título tampouco é algum spoiler. O thriller dramático de Tobias Lindholm (do indicado ao Oscar Guerra) está interessado na relação construída entre os dois personagens centrais, mais do que em surpreender o espectador, que já sabe, desde a cena inicial, que Charles é o assassino (embora a proporção de seus crimes apenas chegue ao conhecimento nos letreiros anteriores aos créditos finais).
Com roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro de Charles Graeber, a história apresenta Amy como uma enfermeira sobrecarregada no hospital onde trabalha, à espera de a duração do contrato de trabalho lhe dar a possibilidade de ter plano de saúde para que possa cuidar de um problema cardíaco congênito e que pode lhe custar a vida. Movimentar um paciente sobre a maca, por exemplo, pode lhe provocar arritmia e falta de ar. Por esse motivo que Amy celebra a chegada de Charles, pois, além de o introvertido enfermeiro ser prestativo no hospital, também preenche as lacunas da vida dela como amigo. Entretanto, a morte de uma mulher prestes a receber alta inicia uma investigação policial, administrativa e da enfermeira, que desconfia que Charles seja o responsável por administrar criminalmente insulina na paciente até causar sua morte.
O Enfermeiro da Morte é um típico filme de assassino em série, mas desenvolvido de forma anômala: não há como haver thrills, ou seja, sobressaltos, tensão e correria quando o ato provocaria a morte de Amy. Em seu lugar, a exploração da doença cardíaca dela como uma bomba relógio cinematográfica sempre na iminência de explodir, mas que nunca chega até esse momento. Para tanto, a edição sonora mistura os sons dos batimentos cardíacos dos pacientes no monitor com a irregularidade do ritmo do coração da protagonista, e até coloca o espectador a se questionar da necessidade de cenas que tem Amy subindo correndo as escadas do hospital, como se a vida dela dependesse disso. Na realidade, Amy ia somente conferir se os soros foram adulterados na dispensa. Ela poderia até ter pegado o elevador, embora o roteiro tenha achado melhor fabricar uma tensão onde não deveria haver.
O roteiro também explora a convivência dos hospitais com os crimes cometidos. Não por ação, mas por omissão, pois, a fim de evitar as ações judiciais dos familiares sobreviventes e a publicidade negativa que poderia existir, lavava as mãos, demitindo Charles, em vez de denunciá-lo para que fosse punido, deixando o caminho livre para o enfermeiro cometer crimes noutros hospitais. Dessa forma, é possível enxergar a personagem de Kim Dickens igualmente como vilã, do mesmo modo que víamos Tilda Swinton em Conduta de Risco, por agir somente em favor dos interesses corporativos e capitalistas, em detrimento de estancar os crimes praticados por Charles.
A propósito, o dinamarquês Tobias Lindholm realiza uma crítica óbvia ao sistema de saúde norte-americano: a questão do plano de saúde, da falta de um Sistema Único de Saúde (por mal gerido que seja o nosso) e o orçamento hospital que dificulta até mesmo a contratação de profissionais. Contrariamente, o roteiro retrata sob luzes boas a dupla de policiais Tim (Noah Emmerich) e Danny (Nnamdi Asomugha), determinados a desvendar o crime, nem que precisem usar Amy de meio para prender Charles.
Por falar neles, a relação construída é uma das mais intrigantes que vi no ano: no início, a presença de Charles assegura a tranquilidade de Amy; depois, esta deve fingir a ignorância quanto aos crimes cometidos, obrigando Jessica Chastain a adicionar dubiedade e urgência à composição esgotada da enfermeira. Enquanto isso, Eddie Redmayne atua dentro de um limiar em que não percebemos maldade ou crueldade em Charles (auxiliado pela montagem que deixa de fora os momentos em que poderia sentir prazer pelos crimes cometidos). A atuação também tem a boa decisão de revelá-lo como um sujeito que parece realizar um esforço imenso para socializar, menos perto de Amy, tornando ainda mais inflamável a sua relação com ela.
A fotografia de Jody Lee Lipes adota o verde como matriz, a cor predominante das fardas dos enfermeiros, mas também sugestiva da doença e da maldade que tem acontecido nos corredores hospitalares. Isto reforça a hostilidade da narrativa de O Enfermeiro da Morte, um dos exemplos de por que Hollywood acerta quando importa diretores estrangeiros e lhes dá liberdade criativa para dar vida a gêneros e subgêneros antes já explorados à exaustão.
Assim como Flux Gourmet, no Festival de Berlim, e For the Sake of Peace, no Festival de Cannes, Women Talking sempre estará na minha memória como o primeiro filme que assisti no Festival de Toronto. Diferente dos filmes anteriores, regular e medíocre respectivamente, o drama dirigido por Sarah Polley (das ficções Longe Dela e Entre o Amor e a Paixão e do documentário Histórias que Contamos) é arrebatador em como retrata o estado de espírito e vida de algumas dezenas de mulheres em uma comunidade remota nos Estados Unidos e conquistou, com mérito, o segundo lugar do prêmio do público.
O roteiro, de autoria de Sarah, tem vocação teatral ao reunir um elenco talentoso dentro de um espaço físico limitado, no qual as mulheres devem decidir o que irão fazer, na ausência dos homens da comunidade, para combater as agressões sexuais em série que sofrem na colônia religiosa onde habitam. Ona (Rooney Mara, de Os Homens que não Amavam as Mulheres) adota o ponto de vista do espectador no centro da balança que ora pende para o lado de Salome (Claire Foy, de The Crown), que inflama as mulheres a fugir dos captores pois caso contrário certamente irá se vingar deles, ora de Mariche (Jessie Buckley, de A Filha Perdida), que acredita que a fuga não é a melhor decisão com medo da retaliação. Ao lado das três, adolescentes (Michelle McLeod, Kate Hallett e Liv McNeil) e experientes (Judith Ivey, Sheila McCarthy, Frances McDormand) que têm a própria maneira de enxergar a situação ou mesmo o propósito desta reunião, assistida por August (Ben Whishaw), que é apaixonado por Ona.
A princípio, a sensação que tive era de assistir à obra de uma época passada: o ambiente rural, os figurinos característicos e os costumes sugerem isso. Até a violência física e sexual generalizada praticada contra as mulheres - sugerida, não explícita, mostrando a diferença de ter uma diretora atrás das câmeras dirigindo filmes com temática feminista - era também prova de estar em tempos idos. Até cair minha ficha. Não é que Sarah Polley esteja falando do ontem, mas de como este é conservado no hoje sob a desculpa de tradição ou costume, com o consequente comportamento patriarcal, machista e misógino de uma comunidade fundamentalista religiosa (parece mórmon, mas poderia ser de qualquer religião). A quebra da expectativa veio com o surgimento de uma caminhonete à distância, expressiva de uma atemporalidade da denúncia.
Desse modo, Women Talking, que leva a sério o título original, é uma obra sobre mulheres resgatando mulheres e a si mesmas em um plebiscito que é sinônimo de terapia individual e sororidade. Nele, deverão decidir entre perdoar os homens que as violentam para conservar a fé religiosa, permanecer na comunidade onde nasceram e foram criadas e se vingar dos mesmos homens ou deixar para trás o passado e começar a vida do zero. A narrativa está preocupada com a tomada de decisões, não com a ação posterior, em uma forma similar a de 12 Homens e uma Sentença: além de adotar o formato de câmara, reduzindo a ação ao mínimo de cenários, adota a discussão ideológica, com argumentos favoráveis e contrários, a fim de decidir sobre a própria existência feminina, seja na comunidade, seja além dela.
Além disso, muitas questões são tratadas discretamente embora conservem o impacto: a importância da educação (o analfabetismo da maioria exige que August assuma a função de redator), do direito ao voto conquistado pelas mulheres, a duras penas, em meados do século passado, da importância do papel do homem, não como um príncipe salvador, porém como apoiador do feminismo. Por falar neles, Ben Whishaw tem uma atuação doce, trágica e dilacerante, ao justificar a atitude dele porque deixaria a mãe dele orgulhosa (afinal, será que os homens que cometem atos contra mulheres não lembram que têm / tinham mães ou filhas?). A questão geracional é talvez a mais necessária, em como evidencia o esforço das mulheres que sofrem as violências com habitualidade no convencimento das mais jovens a se engajar e das mais velhas, e cansadas, a vencer o pessimismo de uma vida de abusos.
Se a temática é urgente, a forma usada para contá-la é poderosa. As cores dessaturadas tonalizam o mundo de trevas em que vivem as mulheres. Já a montagem pincela momentos de violência para pontuar argumentos, sem desejar reviver o trauma dos espectadores que já passaram por situações parecidas. E Sarah Polley também encontra espaço à esperança em meio ao medo e à violência, sentimento que brota a partir da comunhão de mulheres, ilustrada de modo caloroso.
E mesmo que Rooney Mara tenha pouco a oferecer senão a simpatia, dado o caráter mais utilitário da personagem em reproduzir o olhar do público, Jessie Buckley e Claire Foy estão incandescentes no modo como defendem os argumentos com paixão e ardor, sem que isto faça delas personagens unidimensionais (é possível vê-las como concorrentes a prêmios de atriz coadjuvante, caso a distribuidora jogue o jogo da temporada de premiações de modo correto). Já Frances McDormand tem uma performance poderosamente contida, movida a partir do olhar e sobretudo dos espinhos pragmáticos que precisou criar para se proteger do mundo dos homens.
Com um misto de força, empatia, humanidade e sensibilidade, Women Talking é o melhor trabalho da carreira de Sarah Polley e o melhor início possível de minha participação no Festival de Toronto.
Elementos
3.7 470A Pixar Studios deixou de ser, há mais de uma década, o núcleo de animações visualmente impressionantes e humanamente emocionantes para se tornar a loja de ponta de estoque da Disney, com exceções que confirmam a regra e justificam o lamento. No entanto, não foi somente a aquisição pela Disney que matou a Pixar. A saída de John Lasseter e Andrew Stanton acabou com o tripé criativo do estúdio, agora centrado em Pete Docter. Para piorar, o anúncio de sequências e não de obras originais somente reforça o coro dos detratores.
(Nunca inteiramente justo).
Até porque Elementos é um aceno à Pixar de ontem – ainda que em forma de uma brisa. O roteiro de Kat Likkel, Brenda Hsueh e John Hoberg equilibra o coming of age com romance e crítica social contemporânea. Faísca nasceu na utópica Cidade Elemento – em que os elementos, água, ar e terra, vivem em harmonia. A chegada aconteceu após os pais deixarem a Terra do Fogo em consequência de um desastre natural e em busca da promessa de recomeço.
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Transformers: O Despertar das Feras
3.1 198 Assista AgoraApesar de adorar Bumblebee, o gosto amargo deixado pelos filmes dirigidos por Michael Bay me pegou desde o início de Transformers: O Despertar das Feras. Steven Caple Jr. (de Creed II), que herdou a cadeira de direção, repetiu a marca registrada de toda a série assim que o ex-soldado Noah (Anthony Ramos) tentou furtar inadvertidamente um carro porsche que, na realidade, era o autobot Mirage. Corta para o desavisado e desesperado Noah dentro de um carro que não pode controlar, enquanto é perseguido pela polícia.
Após meu suspiro de tédio, Transformers: O Despertar das Feras revelou-se uma aventura hollywoodiana despretensiosa. O raro filme consciente do que deseja alcançar, das limitações narrativas e da bagagem (negativa, para mim) que trouxe dos antecessores. O ainda mais raro filme que rejeita o atributo épico onde não há épico, eliminando 30-45 minutos de inchaço dos anteriores. 16 anos após o original de 2007 (à época, considerei um bom filme), O Despertar das Feras colocou a franquia no patamar de um entretenimento descompromissado, onde deveria estar.
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A Imperatriz Yang Kwei-fei
4.0 5Para a pacificação do império, apenas o sacrifício da mulher, em face às atitudes dos homens ímpios, corruptos ou apenas covardes.
Uma tragédia de Mizoguchi com cores que antes vibravam e agora desbotam, em um pano de fundo árido e sombrio, tal como são as lembranças doloridas.
Walk Up
3.5 7A essa altura do campeonato, criticar o cinema de Hong Sang-soo por ser como é fala mais sobre o crítico do que acerca do artista. Com dois e até três lançamentos anuais, o diretor sul-coreano está na zona de conforto temática, técnica e artística. Mas isto não é sinônimo de preguiça, é a consciência do diretor da ambição e poderio artístico. A cada capítulo (dá para chamar cada filme de capítulo de uma obra maior ou até mesmo de um diário), Hong Sang-soo revela mais sobre si mesmo, sobre a forma como pensa espaço e tempo no cinema e como acontecimentos, a priori mundanos, podem modelar a experiência de seus personagens.
Kwon Hae-hyo retoma a parceria com o diretor e interpreta seu alter-ego, um diretor de cinema famoso no circuito de festivais, que tenta se reconectar com a filha durante a visita à edificação reformada pela arquiteta Lee Hye-young. O desejo do diretor é de que a filha, que deseja ser designer de interiores, trabalhe com a arquiteta, e ela, a seu tempo, flerta e paparica com o diretor, oferecendo-lhe para morar gratuitamente na cobertura do prédio. No prédio, o restaurante da proprietária interpretada por Song Seon-mi, com quem o diretor inicia um relacionamento.
Hong Sang-soo explica, através da boca do vaidoso protagonista, a ambição de seu cinema. Ou está apenas brincando com o espectador acostumado a procurar seus traços pessoais em sua obra? Até que ponto os artistas (ou poetas) da obra de Sang-Soo são seu alter-ego ou pista falsa para fisgar quem pensa e reflete cinema a partir da relação entre autor e obra. Na realidade, a estratégia de Walk Up, além da reunião do elenco em cenas extensas em que os personagens bebem muito e jogam papo fora, é jogar com as políticas de espaço e tempo, matérias-primas do cinema, na opinião de Noël Burch.
O espaço não muda, mas continua comprimindo os personagens dentro dos cômodos da edificação. Quando muda, é de modo discreto para refletir a passagem do tempo. A cada episódio, reencontramos os personagens noutro momento da vida: a relação pacífica entre Hae-hyo e Hye-young azeda, já Hae-hyo e Seon-mi aproximam-se. O tempo não passa de maneira fluida, mas em cortes secos que desassociam o antes do agora, e é ressignificado na cena final que obriga o espectador a questionar o que assistiu. Se a obra de um diretor e criador talentoso refletindo o que a vida será ao ar livre arejado, não dentro da edificação, ou o retrato do que passou na figura de que a vida está sempre se repetindo.
E é por a vida estar sempre se repetindo, mas de modos diferentes, que Hong Sang-soo não pode ser criticado por fazer o mesmo filme, com detalhes diferentes. Ao entender que a vida é o eterno retorno ao ponto de origem, o diretor criou um ninho (e nicho) onde a arte pode fluir. Walk Up é só mais este capítulo no todo.
Uma Família Extraordinária
3.6 46Tenha ressalvas nas apresentações de filmes feitas por elenco ou equipe. A de Wildflower é um bom exemplo. Matt Smukler, o diretor, quando subiu ao palco, adotou a concisão e o mistério. Nada poderia ser dito sob pena de estragar a surpresa contida no roteiro. Por si só, falar que há surpresas ou reviravoltas é uma maneira de spoiler (estragar), não acham? Pode não revelar o conteúdo do roteiro da obra, mas pode estragar a experiência do público que, agora, pode vivenciar a obra com expectativa e à procura da surpresa ou reviravolta. E não que Wildflower tenha, sob qualquer aspecto, algum dos dois; há somente o incomum, o traço característico de parte das comédias independentes norte-americanas.
Além, evidentemente, de uma família não convencional e uma adolescente, interpretada por Kiernan Shipka, que está na etapa de transição à vida adulta. Como a narrativa é contada em retrospecto, não há uma relação de causa e efeito que não a espera de saber o que acontecerá com Bea no presente. Aguardamos na antessala, onde a narradora passeia com o espectador por álbuns de fotografias metafóricos, reveladores da relação familiar com os pais, pessoas com problemas cognitivos congênitos ou adquiridos, e com os tios, que preenchem lacunas na formação pessoal e educacional de Bea, e do feudo que há entre as avós, interpretadas por Jean Smart e Jackie Weaver. Não há antecipação no ontem, apenas constatação, que ajuda a formar o estudo de personagem pregresso.
Apesar de contar com muitos atores coadjuvantes bacanas (além das veteranas citadas), o roteiro não sabe aproveitá-los senão em instantes esporádicos, que oferecem alternativas ao tradicional drama adolescente. Bea é marginalizada pelo grupo popular de alunas por ser pobre e pela família que tem, apaixona-se por um adolescente bacana (Charlie Plummer), cujo defeito somente pode ser tolo para ser solucionável, deve decidir entre ir ou não à festa de formatura e ainda briga com a melhor amiga por tê-la trocado pelo namorado.
Tudo resolvido com um abraço coletivo, a expressão do cinema independente McDonald’s, que mata a fome, mas não nutre, emociona de modo artificialmente calculado e, de alguma forma e apesar dos clichês e excessos, ainda deixa um gosto positivo. Deve ser porque Kiernan Shipka é uma atriz carismática, só pode.
All the Beauty and the Bloodshed
3.6 23A cada biografia que assisto, posso confirmar a existência de múltiplas formas que o gênero adota, seja na ficção ou no documentário, e dentre as muitas que tenho visto, posso afirmar que é a pluralidade a característica mais animadora de All the Beauty and the Bloodshed, o filme que venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2022 e tem a direção de Laura Poitras, a vencedora do Oscar por CitizenFour.
Talvez porque Nan Goldin seja plural. Todos somos, evidentemente, mas é o mosaico que melhor define a artista fotógrafa e ativista. Nan participa do documentário, é peça-chave em ser a guia através da história de sua vida e é atriz profissional, nos dias atuais, diante dos protestos contra a Purdue Pharma e a família Sackler, patrona de museus e galerias de arte em Nova York, e responsável pela epidemia dos opioides OxyContin. Pude conhecer a obra da artista, que explora as possibilidades do corpo com a lente de sua câmera em uma época de quebra de tabus, não de reconstrução deles; a lembrança dolorosa da sobrevivente de abuso doméstico e do luto pela perda da irmã; a alma aguerrida da ativista, que invade museus nos Estados Unidos para protestar contra os milhares de mortos pela epidemia de opioides (recomendo a minissérie Dopesick).
Os museus, onde Nan exibe o trabalho de sua vida, são também o ponto de intercessão da narrativa, por ser o ambiente onde acontecem os protestos e através do qual a família Sackler alegadamente lava dinheiro em filantropia e recebe o prestígio com o nome estampado nas galerias. O documentário optou por apresentar a figura do antagonista, com direito à batalha final, mas talvez isto fosse descartável, diante da riqueza da vida de Nan Goldin. Ao revelar a artista detrás de um prisma que refrata a luz em sensações visuais abstratas e indescritíveis, Laura Poitras celebra a força de que o gênero biográfico pode ter não em resumir o indivíduo, mas em revelar o mundo de abordagens e recortes possíveis.
No fim, é a colmeia de pequenos pontos no espaço que melhor definem cada qual de nós. Não somos apenas o resultado da arte ou do trabalho que realizamos, as pessoas que tocamos, as causas por que batalhamos, somos os espaços que há entre essas dimensões e as estradas que os conectam.
Abestalhados 2
2.6 6 Assista AgoraAtravés da linguagem do humor espertalhão e pastelão, os diretores Marcos Jorge (de Estômago, cuja continuação está em processo de filmagem enquanto escrevo esta crítica) e Marcelo Botta (do programa Furo MTV) explicam o ato de fazer cinema de modo irreverente e engraçado com Abestalhados 2. O próprio título já é uma piada com a indústria, pois, no lugar de desenvolver o um, melhor dirigir a continuação e ter como trunfo a ideia de sucesso do antecessor inexistente.
O roteiro escrito a oito mãos acompanha 4 amigos – Paulo (Paulino Serra), o diretor, Manuel (Raul Cheque), o roteirista, Eric (Leandro Ramos), o produtor e supervisor de som, e Alex (Felipe Torres), o diretor de fotografia – na tentativa de filme o projeto dos sonhos: o filme de ação Acelerados 2. Só que, durante a filmagem da cena final, que envolve o fechamento de ruas, a colocação de gruas, muita ação e efeitos visuais, a equipe torra o micro orçamento que havia à disposição e começa a entreter ideias de como filmar o restante do projeto. Ao mesmo tempo, o quarteto contrata a produção de documentário sobre os bastidores e têm a oportunidade de conversar com o espectador através da metalinguagem para explicar suas ambições e divergências em relação à produção.
O barato de Abestalhados 2 está em extrapolar as etapas do processo cinematográfico, mas sem torná-lo incompreensível, enquanto brinca com os estereótipos da indústria. Paulo e Manuel disputam a autoria da obra cinematográfica, no retrato do embate interminável entre diretor e roteirista, com o desejo do último em manter íntegra a visão escrita versus o esforço do primeiro em colocar a sua impressão digital através do língua de imagens; já Eric é perfeccionista e defensor apaixonado da edição sonora, interrompendo tomadas no meio caso capte ruídos – chegando a modificar o figurino do Herói para corrigir distorções no áudio -, enquanto Alex é o cara que pensa em fotografia apenas em termos do estilo noir – o que gera o momento divertido da cena de filme pornográfico em contraluz.
Sem abandonarem os estereótipos que criaram para si, o quarteto briga, discute, embora conserve a camaradagem mútua e o desejo em fazer cinema, aos trancos e barrancos. Aí entra a parte de processo cinematográfico com a chegada de um ex-piloto, DJ e investidor, Paolo (Nicola Siri), um sujeito malandro, que derrama dinheiro de procedência duvidosa na produção, e os pretextos que o quarteto realiza para filmar determinadas sequências: aí entram Alexandre Rodrigues, de Cidade de Deus, José Loreto, de Mais Forte que o Mundo, e Wellington Muniz, o Ceará, atuando no filme dentro do filme sem saber de que participam do projeto (similar a Os Picaretas, a comédia estrelada por Steve Martin e Eddie Murphy, com o estilo de The Office), e a decupagem heterodoxa de Paulo para filmar a mais simples das cenas, o plano e contraplano.
Mesmo a etapa de pós-produção, com a criação do vídeo promocional, a negociação junto à distribuidora, a criação e divulgação de material de publicidade e a montagem, que tenta o milagre de transformar os fragmentos filmados em longa-metragem entra na brincadeira do elenco que, na maior parte do tempo, acerta no humor descontraído, que somente funciona se houve a suspensão de descrença do espectador. A isso, ainda acrescento as tiradas ou cenas críticas do trabalho criativo, a exemplo do nome dos personagens no filme dentro do filme (Herói ou Mocinha 1 e 2) e da necessidade de ser aprovado no teste de Bechdel para garantir a distribuição.
Abestalhados 2 ainda tem a boa ideia de encerrar dando uma rasteira no espectador, com uma sacada descontraída que justifica o título da narrativa e o conceito metalinguístico. Afinal, ainda que fosse impossível sair algo que prestasse na produção sem pé nem cabeça do quarteto, havia algo melhor a ser descoberto no fim do dia.
Argentina, 1985
4.3 335O cinema argentino, tão amado por alguns brasileiros, até mesmo mais do que o nosso cinema, a ponto de inspirar comentários míopes do tipo “é tão bom que parece argentino“, nunca se acovardou do dever de utilizar o cinema como meio para revisitar as histórias da breve, mas sangrenta ditadura militar no país que iniciou em 1976 até 1983. Se o Brasil aborda a sua história dentro do envelope do documentário, de menor penetração no público cinematográfico, a Argentina tem o feito em ficções históricas premiadas (A História Oficial e O Segredo de Seus Olhos ganharam o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro). Seu cinema é um instrumento de tomada de conhecimento, de reencenação da época sombria do país para que nunca mais algo parecido seja repetido, de evidência de que a arte pode ser engajada e entreter. Argentina, 1985 é a aposta do país na corrida do Oscar de 2023 e é favorito para, ao menos, figurar na lista dos 5 finalistas.
Com o roteiro escrito por Mariano Llinás e Santiago Mitre, que dirige, Argentina, 1985 recorda a hesitação do promotor de justiça especializado em direitos humanos Julio Strassera (Ricardo Darín), encarregado de presidir a acusação do julgamento civil contra os militares acusados de ter cometido crimes contra civis durante a ditadura militar. O julgamento é a resposta digna a ser dada aos monstros de farda e coturno, que jamais deram a oportunidade para que os seus se defendessem contra as acusações que conduziam à tortura, ao exílio e à morte. Entretanto, não era tarefa fácil processar e julgar estes militares em face às ameaças feitas aos membros da família de Julio e também de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) e que colocavam em risco a continuidade do julgamento. Ou quando havia políticos isentos que acreditavam na pacificação do país pelo perdão, que prefeririam esquecer e virar a página, como se fosse possível virar a página depois de dezenas de milhares de vítimas.
Com o mesmo princípio que norteou o julgamento de 85, Santiago Mitre dá à História o filme justo que esta merece e celebra a figura do relutante, mas incansável Julio, e de Luis, que, por não estar associado ao comunismo, mas à elite econômica que possibilitou a ditadura no país, legitimaria o processo judicial. Em meio à recriação da época de Argentina, 1985, feita pela designer de produção Micaela Saiegh com o auxílio da fotografia acertadamente desbotada de Javier Julia, a contemporaneidade na forma de brigas familiares entre apoiadores da ditadura e os que desejam a punição dos militares. Embora narre eventos ocorridos há 37 anos, a narrativa é atualíssima (infelizmente), pois a sociedade permanece reverberando a justificativa indefensável dos militares de que havia uma guerra no país e de que era preciso combater os ideais comunistas.
Não, não havia guerra, senão a expressão da liberdade política e ideológica em defender o que julgava ser o que é melhor para o país, aí incluído o comunismo. E o que não é o comunismo senão uma pecha atribuída por aqueles contrários a ideias defendidas para reduzir o debate a um estereótipo tornado execrável em razão das consequências ocidentais da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética (Rússia). É por isto que a questão geracional é relevante e Julio Strassera se cerca de jovens e idealistas advogados que o auxiliarão a obter as provas necessárias para construir o caso apresentado em juízo.
Até mesmo quando previsível, a narrativa envolve com a habilidade de ensinar história (a disciplina) em diálogo com o tempo contemporâneo. Além disso, Ricardo Darín aproveita para evitar que Julio seja um paladino unidimensional da justiça, e sim um homem repleto de angústias e incertezas no julgamento do século na Argentina. Assim, enquanto a ansiedade provocada pelas ligações ameaçadoras leva-o a evitar entrar em um carro, ao lado do filho, com medo de que esteja armado de explosivo, a experiência com autoridades policiais durante o período ditatorial endurece a relação com a equipe policial responsável por cuidar de sua segurança. Já Peter Lanzani reproduz a insegurança do jovem advogado que é o pivô da mudança de pensamento dentro de sua família de elite. Porém é Daniela Leyva Becerra Acosta que espinha o coração do espectador ao depor sobre as violências emocionais, psicológicas, físicas e sexuais sofridas durante a tortura da ditadura.
Além disso, a abordagem de Santiago Mitre cria três níveis de relação do espectador com a imagem, obrigando-as a interagir em momentos-chave para fabricar o efeito do cinema quando desvenda ou articular a História ao espectador. A encenação dos fatos, em que atores dão vida aos personagens históricos que participaram do julgamento para às telas do cinema, fotografados segundo as técnicas contemporâneas, entra em atrito com a imagem-passado, que confere credibilidade e veracidade ao narrado em razão dos filtros que emulam os ruídos da imagem do cinema oitentista (parecido, nesse aspecto com NO). Ao lado dessas, a imagem revelada no televisor, a reprodutora do ponto de contato entre telespectador e história. Essa ciranda revela quais os valores da imagem cinematográfica: o do entretenimento criado na ficção, o do conhecimento gerado pela História, o da empatia.
E mesmo que a ameaça de impunidade consoma o oxigênio do julgamento de Argentina, 1985, ainda assim é revelador da importância da formação de comissões de verdade para expor a feridade e retirar aquele pus que a impede de cicatrizar. A imagem final de Julio Strassera é a de um homem admirável, falível e até mesmo vaidoso, porém que sabe que a manutenção da democracia é um esforço de vigília permanente. Nunca mais!
O Milagre
3.5 219Sebastián Lelio, ao lado de Pablo Larraín, são os principais autores chilenos em atividade no mercado internacional. Ambos dedicaram esses anos de suas carreiras a explorar narrativas protagonizadas por mulheres. Pablo, com as biografias Jackie e Spencer e a minissérie Lisey’s Story; Lelio, com Uma Mulher Fantástica, Gloria Bell (a versão original e a refilmagem americana) e Desobediência, que reuniu Rachel Weisz e Rachel McAdams em um romance dentro da comunidade judaica hassídica. Agora, Lelio adapta o livro escrito por Emma Donoghue, intitulado The Wonder.
No roteiro, Florence Pugh interpreta a enfermeira Lib, que, no século XIX, é enviada para observar e relatar o milagroso fenômeno da jovem Anna (Kila Lord Cassidy), que jejua há cerca de 4 meses. A Igreja católica tem interesse no resultado da avaliação para ter a beata ou mesmo a santa para chamar de sua, bem como a família e a população do típico vilarejo supersticioso do interior. Entretanto, ninguém parece preocupado com o bem-estar de Anna, senão Lib. À medida que a narrativa e a debilidade de Anna avançam, Lib se vê no dever de cumprir a missão dela, que é de cuidar do próximo, em detrimento do desejado pelo comitê do município que encomendou a investigação ou pela família, resignada em perder a filha contanto que seja em nome da religião.
The Wonder explora o obscurantismo da contraposição entre ciência e religião (fé), e, ainda que seja ambientado no século XIX, não parece datado. A razão para isto é o imediatismo do tema e a forma inconvencional como Lelio aborda a narrativa. De um lado, apesar de inúmeros avanços do íntimo da consciência à exploração do espaço, a ciência continua a ser alvo de críticas por razões variadas: há quem opte por preteri-la em favor da fé no divino e quem resolva, por motivos políticos, desacreditá-la para perpetuar o poder e manter o povo dentro da caverna, alienado. Dentro da narrativa, isso pode significar o sacrifício de Anna, pois a família prefere ter a memória de uma mártir do que a oportunidade de conviver com ela (nem preciso comentar que o conselho da cidade ou a enfermeira auxiliar, uma freira, estão pouco se lixando com a garota). Até mesmo Anna rejeita os esforços de Lib em alimentá-la, e o absurdo coloca a protagonista em uma posição de desvantagem dentro da sociedade, senão pelo apoio do jornalista William (Tom Burke).
Aí estão dois alvos da sociedade contemporânea: ciência e informação, ambas fontes de luz em um mundo coberto de escuridão (claro, quando atuam de modo ético). Há o terceiro e derradeiro alvo: a arte, que convida o espectador a entrar no mundo do faz de conta como recurso da narrativa. Se, em geral, é tácito o pacto entre espectador e artista para crer, por 2 horas, nas imagens exibidas na tela de cinema, em The Wonder, Lelio exige mais. Desde o início, a direção quebra a ilusão de real quando a câmera entra em um galpão de estúdio de cinema e se dirige em direção ao contêiner onde está montado o cenário do século XIX, em uma revelação expressiva de suas pretensões. Sinto que Lelio comenta a respeito do milagre do cinema, que confere a aparência de realidade a mundos fantásticos e a períodos pretéritos, milagre possível pela ciência (tecnologia), mas também pela fé do espectador. E de como a fronteira entre o ontem e o hoje é artificial e está criada em um estúdio. Assim, a tentativa de Lib em abrir os olhos da família contra as forças religiosas e políticas é verdade ontem e hoje.
O recurso é apenas ponto de partida, mas não uma constante. Lelio concentra-se no mundo tornado real no interior do contêiner e também pela fotografia de Ari Wegner, que justapõe o sufocamento e escuridão dos interiores (a caverna) dos ambientes onde Lib frequenta (ex. a casa da família de Anna, o conselho, o hotel) com os planos abertos dela caminhando pela natureza daquele local, um respiro oportuno e uma visão clara e desobstruída daquela oferecida por aquele mundo fechado. E, enquanto escrevo, também reflito que o fato de a narrativa iniciar dentro de um estúdio de cinema, nos tempos contemporâneos, provoca a ideia de que Lib não é daquele período, dada a forma científica de observar e pensar em comparação com os seus pares.
Nas mãos de Florence Pugh, Lib revela-se uma mulher inconformada com as decisões tomadas ao seu redor e que tenta, com a intensidade e determinação inspiradas pela atriz com sua presença, modificar o destino de Anna, que parece certo. Entretanto, tenho lá meus senões com a relação além do profissionalismo desenvolvida entre Lib e William, que, além de destacável do tema, também reforça a obrigatoriedade de que as protagonistas de narrativas iguais a esta precisam de um relacionamento amoroso e sexual quase como um argumento de que desprezam as tradições impostas às mulheres.
Não parece ajudar The Wonder, mas tampouco reduz os méritos desta narrativa de época mais contemporânea do que desejaríamos que fosse.
Catarina, A Menina Chamada Passarinha
3.3 30 Assista AgoraNão li a obra de Karen Cushman em que se inspirou o roteiro escrito e dirigido por Lena Dunham (Girls), mas a impressão que tive desta comédia feminista de época era a de assistir à versão adolescente de Fleabag por muitos motivos. Primeiramente, a posição questionadora dos valores tradicionais da sociedade do período, que obriga os pais a lhe darem em casamento para quitar dívidas criadas pelos hábitos e pela gestão mal-sucedida do dinheiro herdado pelo pai da esposa. Depois, o elemento formal da quebra da quarta parede, pois Catarina se dirige ao espectador como a narradora da história, colocando-se em um momento futuro e levando o espectador a conhecer esse tempo específico na vida da pré-adolescente, logo depois de menstruar. E, acidentalmente ou não, a escalação de Andrew Scott, que aqui interpreta o pai de Catarina.
Interpretada por Bella Ramsey (a Lyanna Mormont de Game of Thrones), Catarina é um espírito livre que preferiria atrasar o relógio cronológico e biológico para continuar usufruindo a liberdade, brincando com as crianças de sua idade e realizando travessuras na acolhedora Stonebridge. Só que a idade chega e, com esta, a responsabilidade de casar com um homem rico cujo dote possa aliviar as dívidas contraídas por Sir Rollo, que aguarda a vinda do herdeiro com Lady Aislinn (Billie Piper). O roteiro acompanha as desventuras de Catarina a cada pretendente que lhe é apresentado - os quais despacha com senso de humor e espirituosidade - e evita transformar seu pai no vilão da história. Quando muito, Sir Rollo é ilustrado como um homem inconsequente que não percebe colocar em risco a felicidade de sua filha.
Formalmente, a direção de Lena Dunham é anacrônica. Enquanto estamos no território do cinema de época, com a pompa esperada do design de produção e dos figurinos, sobre este mundo está a camada contemporânea, com muitas canções pop e gírias e expressões características dos pré-adolescentes de hoje. A decisão da direção é coerente - repito, não posso dizer se com o material original - ao substituir a solenidade e sisudez habituais de dramas de época em favor da engenhosidade da comédia, facilitando a comunicação com o público-alvo da narrativa, jovens que têm a cabeça de Catarina e que vivem no mundo povoado por redes sociais.
Aliás, a quebra da quarta parede ainda torna a experiência de Catarina em um diário, bem ao estilo dos stories do Instagram ou do TikTok, em como a protagonista confidencia a sua vida a estranhos, em busca de quem simpatize com sua jornada. Isso ajuda a contrapor o tema ultrapassado, pois os casamentos arranjados são distantes da realidade da sociedade brasileira. E, mesmo que Lena Dunham esteja utilizando o cinema de época para revelar o patriarcado ou o sexismo persistente no mundo de hoje, apoia-se em elementos ineficazes (ao menos do ponto de vista do homem que vos escreve; pode ser que a crítica feminina e feminista pode expor pontos cego que não pude notar na minha).
De todo modo, gosto de como o roteiro é articulado entre a miríade de subtramas que comungam dos mesmos valores em alusão à interseccionalidade tão debatida nos dias de hoje: o tio George (Joe Alwyn, de A Favorita) casa-se com uma mulher mais velha e rica (Sophie Okonedo), o seu melhor amigo (Dean-Charles Chapman) é gay mas não tem meios de revelar dentro da sociedade, a relação do pai com a mãe e a obrigação dela de gestar filhos. É agradável assistir ao amadurecimento e aprendizado de Catarina, enquanto toma conhecimento de uma realidade além da gaiola onde habita, permitindo-lhe criar a empatia para lidar com cada aspecto de sua vida.
Além do mais, a narrativa ainda conta com a atuação de Bella Ramsey, uma atriz dinâmica e carismática, cuja jovialidade contagia o espectador e cujos questionamentos colocam-no a seu lado, não atrás dela, acompanhada de um elenco coadjuvante competente e igualmente cativante (Andrew Scott, por exemplo, é o tipo de sujeito que é difícil de antipatizar, mesmo que tome decisões erradas e contraditórias dentro da narrativa). Assim, Catarina, A Menina Chamada Passarinha, além de retrato de época com o dedo contemporâneo, é ainda retrato afetivo de hoje a partir do olhar carinhoso para o ontem.
É o tipo de filme que acerta exatamente onde deseja, e mesmo quando a conversa recai em temas já superados, é o equivalente a escutar a avó lembrando de seus tempos idos. Você pode até não se identificar, embora ainda escute com atenção o que esta tem a dizer.
Os Segredos do Universo por Aristóteles e Dante
3.3 42 Assista AgoraAdaptado a partir do livro escrito por Benjamin Alire Sáenz pela diretora trans estreante em longas-metragens Aitch Alberto, Aristotle and Dante é um romance LGBTQ+ que explora o processo de amadurecimento do indivíduo em conjunto com o amadurecimento afetivo. A história é ambientada na década de 80, em cidade do Texas, cenário duplamente repressivo à livre expressão do amor, e enfatiza a jornada transformadora do antissocial e introspectivo Ari (Max Pelayo), após conhecer o expansivo Dante (Reese Gonzales), na piscina pública.
Como desconheço a obra literária original, não tenho o clássico sentimento de apego que a maioria demonstra com a narrativa, desenvolvida com carinho, sensibilidade e honestidade emocional pela diretora, mas sem qualquer traço de estilo ou formal que a individualize e a torne inesquecível. É o encontro de duas vidas que se completam, no romance timidamente desenvolvido, com o adicional da cobrança machista de origem latino-americano (mexicano, para ser exato).
Ou ao menos aparente. Respeitadas as diferenças culturais, o pai de Ari, Jaime, vivido por Eugenio Derbez tenta repetir Samuel Perlman, o pai de Élio em Me Chame pelo Seu Nome. Não chega a ter o mesmo êxito, nem tampouco encenar o monólogo que seria visto, revisto e compartilhado nas redes daquele filme vencedor do Oscar, embora vá ao encontro da desconstrução do machismo mexicano. Eva Longoria, que vive a mãe de Dante, demonstra candura e ternura em relação a ambos, enquanto os atores estreantes escalados cumprem o que a narrativa espera deles, exibindo a química exigida, dada a repressão emocional da época.
Embora esquecível e não haja as batidas no roteiro que o eternizem no imaginário popular, Aristotle and Dante deve agradar os fãs da obra original e também quem busca alternativas de romances retratados de modo honesta, além da dominação heterossexual do gênero.
Pearl
3.9 994O diretor Ti West filmou o terror slasher X: A Marca da Morte durante a pandemia de Covid-19 na Nova Zelândia, em razão do êxito do país em controlar a propagação do vírus. Durante o período obrigatório de quarentena no ingresso no país, Ti West e a atriz Mia Goth, que interpretou a protagonista sobrevivente Maxine e a assassina idosa Pearl (não há mais como manter o spoiler dentro da caixa), escreveram uma história de origem desta personagem que, na pior das hipóteses, seria um exercício para a atriz modelar a vilã de X. A dupla foi além. Além de se aproveitar dos cenários construídos, com equipe ainda mais reduzida, Ti filmou em sigilo da imprensa a história de origem, exibida na sessão da meia noite do Festival de Toronto após o lançamento no Festival de Veneza.
O ano é 1918. Os soldados americanos, que haviam viajado para combater na 1ª Guerra Mundial, estão começando a retornar para os seus lares, mas não Howard (Alistair Sewell). Enquanto o espera, Pearl permanece na fazenda da família a sós com a mãe conservadora e religiosa (Tandi Wright) e o pai debilitado pelo derrame (Matthew Sunderland). Só a amiga Mitsy (Emma Jenkins-Purro) quebra a morosidade da rotina, assim como as idas raríssimas à cidade a mando da mãe. Em uma dessas idas, Pearl conhece o projecionista vivido por David Corenswet, que a convence a participar da audição para integrar o espetáculo organizado por uma igreja itinerante e, talvez, realizar o sonho de ser vedete do cinema.
A narrativa adota a forma de um melodrama saído da Era de Ouro de Hollywood, com o excesso de cores do extinto padrão Technicolor, adaptado pelo diretor de fotografia Eliot Rockett, como se estivesse produzindo a versão macabra de O Mágico de Oz. Esta opção estilística rompe com X e explora o que a mídia cinematográfica tem de melhor: a habilidade de transformar algo apenas pelo poder da imagem. A fazenda decrépita parece até idílica e bucólica, em contraste com o interior escuro e opressivo da casa onde reside a família e as ações violentas abrigadas. O sangue evita o realismo típico do slasher contemporâneo, em favor da artificialidade de sua gênese, como uma tinta que perverte e degrada os cenários externos e frutifica os pensamentos maldosos da protagonista.
Assim, de formas diferentes, X e Pearl são filmes sobre a quarentena. Enquanto o primeiro trata a respeito do confinamento da equipe de gravação de um filme pornográfico numa fazenda texana e o desejo de fugir tão logo a matança começa, Pearl discute o isolamento noutras dimensões. A começar pelo pai, confinado a uma existência assistida, ou pela mãe, que assumiu o encargo de permanecer para cuidar da família e da fazenda. Já em Pearl, o espectador enxerga a consequência na mente suscetível de uma mulher ambiciosa, mesmo que inocente, posteriormente ressentida e temperamentalmente psicótica.
Tandi Wright modela a mãe inspirada na de Carrie, A Estranha, vivida pela indicada ao Oscar, Piper Laurie. Apesar de haver menos elementos religiosos e fundamentalistas, Ruth oprime a filha, humilhando-a e a violentando verbal e fisicamente. Já Emma Jenkins-Purro aparenta aquela jovem prístina, que pensa em Pearl como um projeto social e de caridade. Mas é a atuação de Mia Goth, ainda mais intensa do que em X, que eleva a narrativa além do estilo puro e simples. Existe uma componente macabra e perturbadora em Mia, que faz frente à previsibilidade do arco dramático negativo dela: é divertido, de modo sórdido, trilhar o caminho da personagem da ilusão à desilusão, do excesso inócuo ao excesso brutal. O monólogo dela durante o jantar é um daqueles momentos que, em outro gênero que não o terror (discriminado dentro das premiações), aguçaria a atenção de quem quer que fosse o votante.
É por Mia que Pearl se torna ainda mais sólido do que X, pois se o confinamento no anterior é desculpa para o assassinato serial, obediente às regras da maioria dos slashers, neste evidencia a deterioração e degradação da personagem até o close final, o iris shot (o círculo que foca na personagem) em que a atriz sustenta o olhar, o sorriso artificial e as lágrimas da maneira maníaca com que imaginamos ser a turbulenta mente da já clássica personagem do terror contemporâneo.
O Menu
3.6 1,0K Assista AgoraDentro da tradição de produções gastronômicas, O Menu é convidativo ao ato do olhar e saboroso ao paladar, ainda que pareça mais envolvido na construção conceitual do que na elaboração da narrativa. Ok, gosto de produções que demonstrem esmero na apresentação, ainda que o conteúdo possa parecer mais infantil do que sugerido à primeira vista. Enfim, se continuar com as metáforas de comida, vocês puxam minha orelha.
A encenação, pois o caráter teatral da obra é essencial ao êxito do projeto, inicia após certo grupo de pessoas da elite da sociedade chega a uma ilha remota para viver a experiência gastronômica proporcionada pelo Chef, interpretado por Ralph Fiennes, com a disciplina de estadista totalitário. O séquito é composto por Lily (Janet McTeer), a crítica gastronômica que descobriu o Chef, o ator de cinema (John Leguizamo), que tenta reerguer-se à frente de programa de variedades, membros do crime organizado cuja empresa de fachada patrocina o restaurante, o casal Richard e Anne (Reed Birney e Judith Light), que está na enésima vez no restaurante do Chef, e Tyler (Nicholas Hoult), cozinheiro amador, junto à incógnita Margot (Anya Taylor-Joy).
A suntuosidade do salão onde é servido o jantar oprime os convidados no nível inferior e é a representação do estado de espírito niilista e impassível do Chef. Junto a isso, a devoção, não há termo melhor, dos funcionários da cozinha para com o Chef acende a luz amarela de alerta, sobretudo se considerada a onipresença de Elsa (Hong Chau). A sátira de Mark Mylod (de Qual seu número? e episódios de Succession e Game of Thrones) transforma a cozinha do Chef em um ambiente totalitário para expandir comentários sociais, na revelação dos segredos íntimos daqueles participantes, e artísticos, em como a experiência da arte é objeto da proposta do autor e da recepção do apreciador, que é quem complementa a obra.
Se o Chef tem o controle sobre a montagem dos pratos e a ordem das refeições, além de acompanhá-las de comentários que colocam a si mesmo dentro da experiência de criação, não tem ingerência se Margot não quiser comer acompanhamento sem pão, por exemplo. A personagem de Anya Taylor-Joy é o ponto fora da curva porque é a Outra naquele grupo de pessoas, é a que não pertence e a que frustra (ao mesmo tempo em que fascina) os planos do Chef. Sendo assim, o roteiro escrito por Seth Reiss e Will Tracy apimenta (droga, lá vem eu com metáforas culinárias) o jogo de egos, explorado pelos atores a partir da resiliência dos olhares.
A propósito, que ator soberbo é Ralph Fiennes, ao imbuir de tamanha melancolia o olhar do Chef, que parece haver perdido o amor do criador, conservando o ofício por não saber fazer diferente. Isto não atenua a severidade dos atos praticados, embora confira dimensão à luta de quem desistiu de procurar prazer e sentido em criar arte. Aqui, a narrativa de Mark Mylod se embanana, pois parece criticar o dito cinema de arte ou mesmo a experiência conceitual, quando, de modo ingênuo, aponta o dedo para si. Natural que, para alguns, uma pizza e um hambúrguer são melhores do que pratos refinados cujo nome exige conhecimento de língua estrangeira, da mesma forma que filmes de entretenimento saciam o desejo de escapismo de quem não deseja obras reflexivas e propositivas. Ao criticar essa forma de encarar a arte e colocar, na fritura, os arquétipos que representam, ao ver da narrativa, a aversão à arte ou ao prazer de criar a arte, o que isto diz sobre o próprio filme?
Pois Mark não está só criticando o personagem Tyler, o cara desprezível e empoderado que o ator Nicholas Hoult tem se habituado a interpretar na série The Great ou A Favorita, mas quem, igual a ele, acredita compreender a obra do autor e o seu sentido, e utiliza este saber a fim de humilhar quem não o faz (no meio cinéfilo, todo mundo conhece um e outro assim). Ao ver de Mark, são tipos iguais a esse que diminuem a paixão do criador em fazer arte, ao passo que as Margot que mantêm acesa a chama de criar.
Ainda que confuso das ideias e aberto a interpretações plurais, O Menu ainda assim é uma obra surpreendente a cada batida do roteiro - representada pela apresentação de um prato da degustação - e um entretenimento apto a confirmar a disciplina artística do protagonista a qualquer custo. É uma refeição que adoraria repetir, ainda que preferisse não pensar em seus ingredientes.
Meu Policial
3.4 145 Assista AgoraHarry Styles esteve na mídia durante o mês de setembro com produções que lhe trouxeram atenção e renderam comentários. Em Não se Preocupe, Querida, por causa da polêmica de que havia cuspido no ator Chris Pine durante a première do filme no Festival de Veneza - já desmentida pelos atores; em My Policeman, mais por conta da cena de sexo homossexual com David Dawson. Ainda que Harry tenha um caminho a percorrer, tampouco desaponta dentro de um filme convencional sobre romances proibidos ambientados em uma sociedade conservadora cuja publicidade se tornou maior do que os méritos narrativos.
Na Inglaterra dos anos 50 apresentada no roteiro escrito por Ron Nyswaner e adaptado a partir do livro de Bethan Roberts, Tom (Styles) é um policial obediente às leis e à moral do período, embora desumanas e indignas. Quando conhece a professora Marion (Emma Corrin, a Diana da 4ª temporada de The Crown), Tom encontra a parte que falta dentro do que a vida espera dele, embora falte amor e paixão ao romance que iniciam (se é que pode ser chamado de romance). A vida de Tom muda depois de conhecer Patrick (Dawson), curador de museu que o instiga a explorar sua sexualidade em uma Inglaterra em que a homossexualidade era crime. Entretanto, a história acima é apenas a memória desse trio, que, décadas depois, é interpretado por Linus Roache, Gina McKee e Rupert Everett, respectivamente.
My Policeman desestrutura a linearidade do romance, costurando passado com presente, quando Marion convence o marido Tom a assumir os cuidados de Patrick, após este sofrer derrame debilitante. A proposta da direção de Michael Grandage (de O Mestre dos Gênios) é contrapor o trio inseparável de ontem com a versão presente, propondo ao espectador responder algumas perguntas: Por que Tom não deseja conversar e sequer chegar próximo de Patrick? Por que Marion é quem deseja acolhê-lo e o que deseja expiar com o ato?
A sensação de mistério é apenas ilusória, porém, porque My Policeman é coerente com o que você pode presumir com base no contexto e no histórico de produções que porventura tenha assistido. Não é nenhum mérito meu saber a resposta daquelas perguntas com certa antecedência, e mesmo que possa ter me surpreendido em momento específico, tampouco esse constitui um momento de bravura narrativa. Detrás dessa fachada, há um melodrama romântico que adota a frieza como tema recorrente e um elemento estilístico na fotografia sem cor, sem vida, em que amores proibidos apenas podem existir seguros e desimpedidos em becos isolados e viagens inesperadas. A sensação de inevitabilidade de que, a qualquer momento, serão descobertos, oprimidos e punidos é parte essencial da narrativa.
Sem a existência de sentimentos aflorados por impossibilidade contextual, My Policeman é como a praia de pedras ásperas e mar gelado e não convidativo, onde os personagens se encontram e que margeia a propriedade onde Tom e Marion moram no tempo presente. Só resta a beleza a ser contemplada à distância, da mesma forma que o romance no passado sobrevive na memória, quando não é reprimido definitivamente. Como não poderia deixar de ser, o romance critica a opressão da época, aqui representada pelo uniforme policial, e o desamor, o resultado de impedir pessoas que se amam de viver o seu amor de forma livre. As cenas de sexo - que viraram inimigos de parte do público que ignoram a função narrativa que podem trazer em si - contrastam o amor por conveniência (Tom e Marion) do amor por que vale a pena viver (Tom e Patrick), cuja paixão é emoldura pela arte e poesia.
Emma Corrin confirma a expectativa criada após o papel de destaque em The Crown, com um papel a princípio emocionalmente frágil, mas que revela resiliência e malícia. Enquanto isso, David Dawson e Harry Styles têm atuações regulares, apesar de sensíveis. Por fim, há pouco que o trio Linus Roache, Gina McKee e Rupert Everett realizam com personagens fruto das circunstâncias construídas no ontem e de que são reféns até hoje. Restam-lhe as expressões que há nos olhares e o contraste contra a paisagem ilustrada em planos abertos e em que não há a tranquilidade que pareciam inspirar.
My Policeman é uma obra convencional que poderia aprender com um romance corajoso, em um período em que amar não era um direito universalmente concedido. Do jeito como é, serve somente de portfólio para Harry Styles e resquícios de épocas a que não desejamos retornar.
Weird: The Al Yankovic Story
3.4 41No Festival de Toronto, ocorrem as divertidas sessões da meia noite. Participei de algumas (Sisu, Pearl), desisti de outras (estava mais cansado que a sola do sapato), e a primeira delas foi com a biografia (ou “biografia”) do músico ‘Weird Al’ Yankovic, dirigido por Eric Appel, que revisita o trailer falso que havia criado em 2010, estrelado por Aaron Paul, Olivia Wilde e Patton Oswalt nos papéis que agora são interpretados por Daniel Radcliffe, Evan Rachel Wood e Rainn Wilson (respectivamente, ‘Werid Al’, Madonna e Dr. Demento).
Afinal, quem é ‘Weird Al’ Yankovic? A resposta para esta pergunta você NÃO encontrará em Weird: The Al Yankovic Story, não da maneira que espera, por a narrativa adotar a principal característica do músico, a paródia, para tornar rocambolesca a história do personagem. Na realidade, biografias iguais a essa deveriam ser regra, não exceção. No lugar do aborrecido clichê de contar a história do biografado da infância ou adolescência até atingir o ápice da carreira e, em alguns casos, investigar as causas da queda e/ou da morte, Weird emprega o estilo do artista em forma cinematográfica, parodiando a si mesmo e o gênero biográfico. Al se apropria de canções famosas e populares e substitui as letras clássicas por versões bem humoradas (Like a Surgeon é a paródia de Like a Virgin; Smells Like Nirvana, de Smells Like Teen Spirit, e por aí afora).
A partir do roteiro co-escrito por Eric e Al Yankovic, a história do artista é fabricada para os cinemas: a sua relação tumultuada com o pai (Toby Huss), que deseja que o filho trabalhe na fábrica, e com a mãe (Julianne Nicholson), a ascensão meteórica na fama auxiliado pelo pitoresco Dr. Demento, o romance tórrido com Madonna e mais. O roteiro abre oportunidade para que a narrativa brinque com as convenções de gêneros ou subgêneros tradicionais: o coming of age ou drama de amadurecimento de um artista dentro do mercado fonográfico, o thriller de ação contra um cartel de drogas ou mesmo o terror de zumbis (oi?). E tudo isto é potencializado, embora não maximizado, de modo inusitado e que confere ares cômicos sem descaracterizar a dramaticidade da narrativa.
Dramaticidade… risos. Weird é zoação do início ao fim, e se peca é por não pisar no acelerador o máximo que pode, às vezes puxando o freio de mão quando o ideal seria atirar a narrativa no muro e depois cobrar indenização para o seguro. É por isto que gosto muito da atuação de Evan Rachel Wood, que abraça o excesso na caracterização da rainha do pop e cujo interesse é muito além do romântico, já que a narrativa ainda defende o talento de Al em revitalizar a carreira dos músicos que parodia.
Já Daniel Radcliffe tenta equilibrar a forma ingênua, afetuosa e pitoresca com que Al enxergava a música (e a vida) e o desejo de ser acolhido pela família por quem é, não por quem desejam que seja, debaixo do cobertor do falso na narrativa, em um convite para abraçar o personagem a despeito da forma ou justo por causa dela. O ator tem realizado escolhas de personagens exóticos e diferentões para interpretar (vide Cidade Perdida, Armas em Jogo e Um Cadáver para Sobreviver), e Al é mais um dentre o rol destes sujeitos, com o benefício de ser curiosamente menos caricato do que os anteriores. Bom exemplo é na relação com o personagem interpretado por Rainn Wilson, de The Office, que apoia os sonhos de Al.
Com a introdução ainda de figurantes que interpretam personagens célebres, ou nem tanto, Weird não é a biografia de Al Yankovic, óbvio, mas talvez seja a que o artista desejava ter e, no mundo da arte, a caricatura muitas vezes pode ser melhor do que a versão original.
Um Filho
3.3 76O dramaturgo Florian Zeller tem um universo teatral no ambiente familiar: The Mother (2010), a mãe; The Father (2012), adaptado nos filmes A Viagem de Meu Pai (2015) e Meu Pai (2020), que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Anthony Hopkins; e a mais recente The Son (2018), o filho, adaptado neste drama. Se em Meu Pai o diretor explorou a deterioração da mente e do eu causada pela doença de Alzheimer, em The Son aborda a depressão profunda, com tendência mutilatória e suicida, do jovem Nicholas (Zen McGrath), o filho do casal divorciado Peter (Hugh Jackman) e Kate (Laura Dern), abalado após o casamento do com Beth (Vanessa Kirby, de Pieces of a Woman).
The Son é devastador de maneira diferente do que foi Meu Pai, ainda que menos eficiente na manipulação da emoção do espectador. Se neste último, era o produto da percepção equivocada dos acontecimentos narrados a partir do ponto de vista não confiável do homem interpretado por Anthony Hopkins, em The Son a manipulação é sujeita à cegueira causada pela intensidade trabalhista e emocional do mundo contemporâneo que incapacita os pais e a madrasta de perceber o sofrimento extremo de Nicholas. O roteiro inicia com o pedido de Nicholas para morar com o pai, atendido pela mãe e aceito, com algumas ressalvas, pela madrasta, a dias de dar à luz a seu filho. O desejo dele é de estabelecer contato com Peter, embora este trabalhe o dia inteiro e viaje com frequência à Washington, para trabalhar na campanha de um Senador.
Diferente de Meu Pai, em que o design de produção desempenha um papel central na criação, desconstrução e recriação do olhar e da percepção do protagonista e do público do universo diegético, o de The Son é pragmático, realista e até certo modo acolhedor. Não é a externalidade que provoca a depressão de Nicholas, é o que habita dentro dele e, às vezes, mal consegue traduzir em palavras. Além de gazear colégio para perambular pela cidade e de se machucar para sentir algo concreto na pele - alertas vermelho para que a família tome providências -, Nicholas aprende a falar mentiras que julga que os pais desejam escutar e em que acreditam durante a maior parte do tempo.
A racionalidade e autoconfiança de Peter - realçadas pela ótima atuação de Hugh Jackman - impossibilitam-no de perceber o instante em que deve agir, e, quando o faz, não sabe bem o que fazer e passa do ponto aceitável. A melhor intenção de Peter e o desejo genuíno de não repetir o erro do pai, uma participação breve, mas intensa de Anthony Hopkins, não são suficientes para consertar Nicholas, pois o filho não precisa de reparo, mas de acolhimento. Nicholas tenta. Muda-se de casa. Esforça-se em sorrir. Entretanto não basta para superar a angústia profunda. Não basta apenas terceirizar o tratamento com psiquiatra, Peter e Kate precisam aprender a conversar com o filho, mas é Beth a única autêntica e honesta com os sentimentos dela.
A trama sabe para onde está dirigindo o espectador. A partir de certo instante, percebemos que o roteiro de Florian Zeller e Christopher Hampton só pode concluir a história da família de uma forma. Qualquer alternativa seria desleal com o investimento emocional do público, ainda que pudesse ser artificialmente gratificante. Desse modo, The Son é como a descarga ralo abaixo misturada com um conto de alerta, em que percebemos a tentativa dos pais e do filho, no que falham e a relação de alertas, para que não sejam repetidos os erros neste mundo real (além das telas de cinema). Isto atrapalhou a minha experiência, porque se o resultado é inevitável, então os 123 minutos apenas parecem uma contagem regressiva até que cheguemos lá, com relances esperançosos e felizes, a exemplo da cena da dança.
Florian oferece aos atores momentos Oscar: o encontro no restaurante entre Peter e Kate e a forma sensível com que a ex-esposa relembra o casamento sem precisar de um flashback ilustrativo daquele momento (basta o olhar de Laura Dern) e a cena em que Peter está com o filho recém nascido no braço, objeto do sorriso discretíssimo de Vanessa Kirby. Contudo, se os atores veteranos estão irrepreensíveis, o mesmo não posso falar de Zen McGrath (dói citar isso). Às vezes, não sabia se a intenção da direção era que o adolescente fosse ou aparente manipulador ou se havia a inocência de quem não entende a origem da angústia extrema que sente e nem como conversar a respeito. Uma cena exemplifica é nas lágrimas, que parecem forçadas. E, se forçadas, foi intencional ou reflexo da má direção do ator?
A simbologia de The Son também é óbvia: a máquina de lavar é o lembrete do sentimento turbulento de Nicholas, e a menção a certo dispositivo literário denominado a partir do poeta e escritor russo (se eu ficar, parece spoiler), enquanto o sibilo da chaleira em ebulição é tão evidente que não há como o interpretar de modo diverso. Aliás, óbvio ou não, é inegável o potencial dramático de The Son embora, diferentemente de Meu Pai, a forma de revelá-lo seja menos eficiente.
Passagem
3.3 113 Assista AgoraJennifer Lawrence tem realizado retorno gradativo aos cinemas. Após protagonizar, ao lado de Leonardo DiCaprio, a comédia satírica apocalíptica Não Olhe para Cima, a atriz retorna às origens do cinema independente com este Passagem, drama produzido pela A24, com a direção de Lila Neugebauer, à frente da minissérie da Netflix Maid. Contudo, embora pertinente, o estudo de personagem realizado pela diretora é minimalista de tal maneira a desligar o centro emocional do espectador em uma narrativa destituída de vestígios de emoção.
Lawrence interpreta Lynsey, uma engenheira a serviço do exército americano na Guerra do Afeganistão que retorna aos Estados Unidos para se reabilitar, física e emocionalmente, depois de o veículo de transporte ser alvo de uma mina terrestre. Ao regressar a Nova Orleans, em que retorna à casa da mãe (Linda Emond), Lynsey aceita o emprego de limpar piscinas - enxergada de forma simbólica pela narrativa - enquanto aguarda o médico que a acompanha liberá-la para retornar à guerra. Enquanto recebe negativas sucessivas, Lynsey inicia amizade com James (Brian Tyree Henry, de Atlanta), que também tenta se recuperar do acidente que provocou e que lhe custou muito caro.
Emocionalmente, há muito em jogo na narrativa. Lynsey encara o estresse pós-traumático em forma semelhante ao do Sargento William James de Guerra ao Terror, alienada a crer não pertencer àquela sociedade, mas à guerra do outro lado do mundo. Lynsey até rejeita o diagnóstico, afirmando que o trauma por que atravessa é anterior à guerra, o que incendeia os momentos que compartilha com a mãe, em que o ressentimento permanece escondido debaixo do véu da sugestão. Enquanto isso, James sobrevive com fantasmas do passado. A oportunidade emocional e afetiva proporcionada pelo relacionamento com Lynsey é uma espécie precária de porto-seguro onde o personagem amarra alguma forma de esperança. Ainda há a discussão a respeito da dependência alcoólica da mãe de Lynsey, embora este tema seja mantido de maneira superficial.
O roteiro escrito a seis mãos por Otessa Moshfegh, Luke Goebel e Elizabeth Sanders é bem intencionado e investiga, igual a Maid, a dinâmica da classe média baixa americana, com o apagamento da classe média alta e rica - os donos da residência onde Lynsey presta serviço estão de férias. Nesta Nova Orleans escura e sombria, com fotografia dessaturada, somente há espaço para as almas quebradas iguais aos co-protagonistas, que tentam se apoiar uns nos outros para se manterem de pé. Há uma quantidade reduzida de ambientes onde podem se encontrar, seja no bar ou na porta de casa, com o roteiro optando em se aprofundar em cada momento, potencializando-o ao máximo ainda que isto o leve rumo ao mundano ou trivial.
Gosto da vulnerabilidade demonstrada por Bryan Tyree Henry, ator que admiro, enquanto a atuação de Jennifer Lawrence remete o espectador à de Inverno da Alma, criada a partir de detalhes no lugar de excessos. Entretanto, em certos momentos, a atriz exagera. A maneira de caminhar enquanto projeta o ombro para frente aproxima-se de estereotipar Lynsey, ou masculinizá-la, em razão da homossexualidade da personagem.
Atrás das câmeras, Lila Neugebauer deixa os atores à vontade para que a ação aconteça e a aproximação seja construída gradativamente. A piscina, além de evidenciar um abismo de desigualdade social na comparação entre a de plástico montada no quintal e a construída, é também metáfora da maneira como a narrativa (ou a protagonista) enxerga a contribuição do exército à sociedade, mantida invisível.
Enquanto escrevo a crítica, até consigo sentir a emoção que a narrativa sozinha não pôde me trazer naquele momento. Entretanto, o hermetismo de Passagem e más decisões criativas de Jennifer Lawrence interferiram, decisivamente, em minha relação com o filme.
Filha do Prisioneiro
2.8 15 Assista AgoraNão sou aquele crítico que se preocupa muito com clichês. A vida é repleta deles. O que dói é o apego cego de produções a convenções e soluções de roteiro previsíveis e impossíveis de serem ignoradas e que diluem a emoção (ou qualquer coisa parecida com emoção) no gênero dramático, de tal modo que o torna semelhante à água salobra. Prisoner’s Daughter é um drama salobro, em que seus bons intérpretes (Kate Beckinsale e Brian Cox) não têm a mínima chance de reerguer a narrativa diante de um roteiro algoritmo.
A história inicia no presídio onde está preso Max (Cox), que recebe a oportunidade de saída solidária por ser paciente terminal de câncer e manter bom comportamento (o protagonista gerenciava um grupo de apoio para dependentes químicos), com duas condições: a utilização de tornozeleira eletrônica e que a filha, Maxine (Beckinsale), que abandonou quando era garota, aceite-o em casa. Maxine, cujo nome alude ao narcisismo do pai, reluta até aceitar Max por causa de dificuldades financeiras. Seu filho, Ezra (Christopher Convery), precisa de medicamentos controlados para enfrentar episódios epilépticos; para piorar, Maxine é demitida do emprego de garçonete depois do irresponsável e viciado pai de Ezra (Tyson Ritter) agredir o proprietário do estabelecimento, como o resultado da discussão em que cobra participar da criação do filho.
A partir da sinopse, dá para imaginar para onde a narrativa dirigida por Catherine Hardwicke caminha. Max e Maxine atravessarão uma estrada emocional até que a filha, naquele instante clássico de mágoa reprimida retratada de modo sentimentalista, abaixe a guarda e aceite o apoio emocional e financeiro do pai. Já o espirituoso Ezra, que enfrenta o bullying no colégio, aprenderá a se defender com o ex-pugilista avô (embora pense ser tio distante) e um episódio de epilepsia aguarda na curva do clímax. Enfim, Tyler encontrará dificuldade em administrar o vício complicado pela negativa de Maxine de compartilhar a guarda de seu filho.
Catherine Hardwicke, depois de estreias com os ótimos Aos Treze e Os Reis de Dogtown, não encontrou mais o caminho criativo com Crepúsculo, A Garota da Capa Vermelha, Já Estou com Saudades e a refilmagem de Miss Bala. Sem a mínima decisão cinematográfica que ajude a narrativa a respirar além do drama sufocante, a diretora encena o roteiro com a alternância entre planos e contraplanos e nada mais do que isso. Catherine ainda percorre, sobre a corda bamba, a discussão que há sobre a adoção da violência como o recurso para ser aceito na sociedade. Max trabalhou com o crime organizado como braço de ferro, Ezra recorre à violência para parar o assédio dos bullies - o fato de a mãe recebê-lo com alguma satisfação no sorriso anula o arrependimento posterior do garoto - e Tyler eventualmente se torna violento, exigindo alguma ação de Max, o salvador daquela família em análise final.
Se Prisoner’s Daughter deseja criticar o ciclo de violência e sugerir uma forma de quebrá-lo, apenas consegue através da mesma violência que provocou a cisão da família e a prisão de Max. E mesmo que goste da decisão altruísta do protagonista, que se enxerga quando era jovem em Tyler, a maneira como soluciona o problema central da narrativa impacta mais por ser um ato imprevisível aprisionado em um roteiro convencional. Não apenas isto, simplório. Não há conflito que Max não consiga resolver cobrando favor com a construtora imobiliária do antigo patrão ou o retorno do investimento que realizou na academia de boxe do amigo interpretado por Ernie Hudson.
Até admiro o comprometimento de Brian Cox em um papel que lhe exige além do que tem demonstrado em Succession ou de Kate Beckinsale, que tem amadurecido em uma atriz bastante interessante, mas pouco ajudam à narrativa dramática a exibir emoções fabricadas jamais genuínas e envolventes de Prisoner’s Daughter.
As Nadadoras
3.9 91 Assista AgoraO filme de abertura do Festival de Toronto é baseado na história real e edificante das irmãs sírias Yusra e Sarah Mardini, refugiadas na Alemanha, durante a guerra no país, onde treinaram para realizar o sonho de competir nas Olimpíadas do Rio de Janeiro. Embora As Nadadoras tenha debaixo do braço uma história igual a esta, não significa que saiba como a aproveitar. E desperdícios iguais a esse tendem a gestar filmes decepcionantes que acreditam que seu valor cinematográfico está no conteúdo (a história), não na forma (o modo de contá-la).
Para se ter uma ideia, os melhores momentos de As Nadadoras são aqueles que recorrem a fatos impossíveis de serem ignorados, como o cemitério de coletes salva-vidas no litoral grego, a ocupação no aeroporto de Tempelhof, o objeto do documentário THF: Aeroporto Central, de Karim Aïnouz, e a angústia e o desespero dos refugiados durante a travessia do mar mediterrâneo. Nestes momentos, a diretora Sally El Hosaini apela à humanidade do espectador de forma direta, criando o peso dramático que falta ao restante da narrativa.
À narrativa falta a disciplina que um atleta olímpico deve ter, pois a superficialidade no mero ato de mostrar ou de refletir e questionar serviam à finalidade de retratar a trajetória heróica e de superação das dificuldades de Yusra e Sarah Mardini, sem se aprofundar, a exemplo da unidimensionalidade do treinador alemão vivido por Matthias Schweighöfer. Isto resulta em um ritmo inconstante, considerada a duração de 134 minutos, sem a construção de uma base sólida em que o espectador sinta que há ameaças ao destino das personagens (saber o fim da história, neste caso, prejudica porque torna o filme refém de chegar no momento da Olimpíada).
Além do mais, Sally se mostra indecisa entre o tom realista e onírico. É natural que uma jovem adulta recorra à poesia do mundo fantástico para enfrentar a realidade em que está, só que a direção torna casual a introdução desses momentos que, embora belos, terminam por super-simplificar uma história ímpar.
Os Banshees de Inisherin
3.9 571 Assista AgoraApós o Oscar de melhor roteiro original por Três Anúncios para um Crime e o divertido Sete Psicopatas e um Shih Tzu, Martin McDonagh reúne-se com a dupla do excelente Na Mira do Chefe para este drama cômico (ou seria comédia dramática?) The Banshees of Inisherin, uma analogia explícita à Guerra Civil irlandesa, posterior à independência da Inglaterra, que colocou amigos em lados opostos.
Enquanto a guerra acontece além das fronteiras da remota ilha de Inisherin, no litoral da Irlanda, o fazendeiro Pádraic (Colin Farrell) caminha despreocupado para se encontrar com o melhor amigo, Colm (Brendan Gleeson), para o programa que fazem todos os dias: ir ao pub local e jogar conversa fora. Algo está diferente, porém, e ao recebê-lo, Colm apenas lhe responde: “Eu não gosto mais de você”. Da forma casual como Brendan Gleeson enuncia a afirmação ao abalo emocional que provoca no ingênuo e bonachão Pádraic, o tom narrativo é prosaico (“Deve ser por causa do 1º de abril” sacramenta Pádraic) antes de se aprofundar por caminhos dramáticos inesperados, quiçá surreais.
É que, diante da insistência reiterada de Pádraic em compreender o motivo de o melhor amigo terminar a amizade e não desejar mais sua companhia, Colm realiza um ultimato: “Se você não parar de falar comigo, vou cortar um dedo de minha mão e continuarei a cortar até não ter mais dedos para cortar”. Vindo de um homem que começou a praticar o violino a fim de produzir uma canção por que será recordado, esta ameaça de automutilação serve ainda para revelar um eventual egoísmo de Pádraic, cuja curiosidade pode vir ao custo de arruinar o sonho de Colm em se eternizar na música.
O intrigante no roteiro de Martin McDonagh é a ausência de uma hostilidade desenvolvida entre os personagens para justificar o rompimento definitivo. Aliás, Colm respeita a amizade que teve, é paciente em pedir mais de uma vez para que Pádriac se afaste, até insiste com a sua irmã Siobhán (Kerry Condon), e defende o ex-amigo após ser espancado pelo policial da redondeza. Colm somente deseja a tranquilidade ou a seriedade que Pádriac não pode lhe oferecer. Assim, na ação ambientada em 1923, causa, consequência, acidente, absurdo e mesmo premonições na supersticiosa região jogam em um roteiro bastante articulado em relação ao conflito central - desenvolvendo-o até o limite das possibilidades -, como também quanto aos personagens coadjuvantes: Siobhán, que deseja deixar a região para morar na cidade, e Dominic (Barry Keoghan), abusado fisicamente pelo pai e que se torna, para Pádriac, o amigo que este era para Colm.
Além de a narrativa evidenciar o paralelo com a guerra civil irlandesa, ainda soa, para mim, metáfora de tópicos sobre saúde mental. Pádriac, desta maneira, é a vozinha ininterrupta e exaustiva na cabeça do artista Colm que o impede de criar. É o tumulto quando o cérebro somente exige a mesma paz que se encontra na idílica fotografia dos campos ou do mar da Irlanda. A amizade com Pádriac é, para Colm, o equivalente à perda de foco provocada pelo TDAH, e é compreensível que este último decida romper a qualquer custo a amizade, nem que isto custe a capacidade de criar a arte que ama. A propósito, a arrogância artística de Colm é desafiada por Siobhán ao recordá-lo que Mozart não é do século XVII, mas XVIII.
Com uma atuação serena de Brendan Gleeson, Colm é contraditório para dizer o mínimo: a forma pausada como fala e mesmo a composição que elabora são máscaras do desespero que confessa sentir ou das ações extremas que levam a consequências drásticas, no estilo de comédias de humor ácido (pinceladas com as cores do drama). Enquanto isto, Colin Farrell demonstra uma melancolia dolorosa de um modo particular, enquanto a ingenuidade passa a ser sufocada por adeus de muitos personagens com quem podia conversar.
Entretanto, o mais triste mesmo que há em Banshees of Inisherin é perceber como, na vida, amigos com quem passamos anos, décadas, podem amadurecer noutras pessoas e trilhar caminhos diferentes dos nossos. Afastar-se daqueles com quem crescemos ou com quem passamos a vida é natural, apesar de doloroso. E, no roteiro em que não há personagens maus (ao menos não no núcleo central), perceber como irmãos que antes cantavam juntos agora podem provocar danos irreparáveis uns nos outros é a constatação tragicômica do efeito até hoje nefasto da guerra na sociedade irlandesa. E na vida desses dois homens.
Império da Luz
3.3 65 Assista AgoraTenho para mim que Empire of the Light é o Green Book: O Guia deste ano, em que um diretor de meia idade, branco e bem estabelecido na indústria de cinema (o vencedor do Oscar Sam Mendes, de Beleza Americana e 1917), pretende aliviar o sentimento de culpa através de uma história, ambientada na década de 80, crítica à xenofobia e ao preconceito inglês, mas também agregadora em como promove o cinema como um ponto focal em que as pessoas oprimidas podem encontrar consolo, não salvação, umas nas outras. Visto por este ângulo, Empire of the Light poderia até ser concorrente dentro da corrida da temporada de premiações se não tivesse sido recebido de maneira morna pela crítica e pelo público.
Na maior parte do tempo, o roteiro escrito por Sam Mendes acontece no interior do cinema de rua localizado na costa sul inglesa que dá nome ao filme, aberto e fechado por Hilary (a vencedora do Oscar Olivia Colman, de A Favorita e A Filha Perdida), que retornou introspectiva de uma clínica para tratamento da saúde mental. Isto não é obstáculo para que o gerente do estabelecimento Sr. Ellis (Colin Firth) a convoque para favores sexuais no escritório - um assédio subentendido por aqueles que dividem o mesmo espaço de trabalho, a exemplo do diligente projecionista Norman (Toby Jones). A rotina do Empire muda com a contratação do imigrante centro americano Stephen (Micheal Ward, da série Top Boy), que é acolhido com o calor no interior do cinema que não encontra nas ruas racistas da cidade. Quem mais sente o reflexo da chegada de Stephen é Hilary, cuja amizade romântica inusual ajuda-a a enfrentar o cotidiano opressivo.
Bem intencionado, Sam Mendes discorre acerca de uma mulher de meia idade, depressiva, institucionalizada por supostamente ser esquizofrênica e que é vítima de abuso (ao menos de assédio) no ambiente de trabalho e do jovem imigrante negro, vitimizado e agredido por odiosos xenofóbicos, com dificuldade em pertencer àquele país estrangeiro. É fácil perceber onde está o erro, mas antes que alguém critique o lugar de fala, o problema não é que Sam Mendes não deva falar sobre essas personagens, é que deveria evitar o discurso simplista, óbvio e auto congratulatório que permeia a narrativa.
Sabe como é possível perceber isto? Na narrativa fora de tom, em que cenas que deveriam ser fortes, foram recebidas com sorrisos. Não que a tragédia não possa ser enxergada pela lente da comédia, mas é que prefiro acreditar que a intenção de Sam Mendes não era que o assédio sexual desastrado cometido pelo Sr. Ellis ou que o racismo do homem que mastiga seu salgadinho e engole sua bebida na frente de Stephen não fossem recebidos com risos tímidos de canto de boca. Até há espaço para intervenções bem humoradas, e estas têm o seu lugar ao sol dentro da narrativa, mas é que cenas iguais a essas que mencionei não tiveram o tratamento que mereciam.
A narrativa é embaraçosa na forma como Hilary é enxergada com o cabelo desgrenhado e o dente sujo de batom (que clichê horripilante) ao subir no palco do cinema, não convidada, para declamar um poema antes da première de Carruagens de Fogo, com direito (claro) à microfonia. Sam Mendes é igualmente desinteressante em como sequestra o cinema como o espaço de empatia ao enfocar a dupla Gene Wilder e Richard Pryor como um comentário do relacionamento entre Hilary e Stephen. E a amizade romântica só não é mais forçada do que como está escrita no roteiro porque é trabalhada por atores competentes, que tirar leite de pedra para dar contornos aos personagens.
Aliás, Empire of Light apenas não desaponta se concentrarmos nossa atenção na fotografia de Roger Deakins e no elenco. Deakins idealiza as cenas corriqueiras de diálogos como se ocorressem dentro de minúsculas salas de cinema ao ar livre, com a luz externa e os atores em contraluz, como se o sol ou a iluminação justificada ou cênica substituíssem o projetor de cinema naquele momento. Se o cinema é a ilusão de vida real e a vida é a matéria prima do cinema, então é discretamente eficiente que os personagens sejam enxergados como se fossem estrelas de suas vidas.
Já o elenco, ainda que Empire of Light tenha a cara de que irá sobrar na temporada de premiações, não há não como não destacar a atuação de Olivia Colman, pálida, alheia mas ainda a dona de instantes de intensidade ao esbaforir o sentimento aprisionado dentro dela. Já Micheal Ward parece perder, pouco a pouco, o otimismo e a força de vontade em lutar contra a maré do preconceito, até reencontrar a exuberância no olhar. Já Toby Jones é mais um a entrar no clichê do projecionista como este sujeito recluso e super protetor dos filmes, até descobrirmos mais sobre os sentimentos que o movem. Quanto a Colin Firth, seu papel é enxuto demais para ser descartado apenas como o chefe opressivo e desprezível da vez.
Desprezível mesmo será caso Empire of Light belisque as indicações que devem ser de filmes melhores, mais ousados e ambiciosos e menos caretas e óbvios.
Minha Família Quer que Eu Case
3.2 11 Assista AgoraQuando estava folheando a programação do Festival de Toronto, um nome me chamou atenção, o do diretor indiano Shekhar Kapur. Foram dois motivos sequenciais. O primeiro é que acreditava que Shekhar tinha morrido alguns anos antes, até por fazer 15 anos de seu longa-metragem anterior, Elizabeth: A Era de Ouro (2007). Depois, o diretor participaria de projetos antológicos - Nova York, Eu Te Amo e Venice 70: Future Reloaded -, curtas e séries de TV. A segunda surpresa: que Shekhar tenha retornado aos cinemas com uma comédia romântica que explora as questões tradicionais envolvidas no matrimônio assistido paquistanês em O Que o Amor Tem a Ver Com Isso?, homônima da canção de Tina Turner, mas sem nenhuma relação além disso.
A bonitinha, mas dispensável comédia romântica acompanha as idas e vindas de dois amigos de infância, Zoe (Lily James) e Kazim (Shazad Latif). Ele, um homem que decide seguir o conselho dos pais e se casar com uma mulher escolhida por sua família. Ela, uma documentarista que aproveita a oportunidade para registar esta modalidade de casamento. Eu preciso repetir que, durante o processo, Zoe e Kazim irão desenvolver sentimentos além da amizade, em razão da intimidade, cumplicidade e do amor platônico conservado oculto?
O que o roteiro de Jemima Khan oferece de originalidade quando comparado com comédias românticas convencionais é a não estigmatização da cultura paquistanesa, enquanto crítica à tradição. Jemina é feliz quando associa o matrimônio assistido ao hábito que pais e mães ocidentais têm de empurrar filhos e filhas em relacionamentos com filhos e filhas de boas famílias, embora menos feliz quando realiza o paralelismo com aplicativos de namoro, pois estes, ao menos, partem do (aparente ou não) livre arbítrio de quem arrasta para cima, não para o lado.
Retomando, é a abordagem honesta da cultura paquistanesa, com as idiossincrasias típicas magnificadas pela lente da comédia e individualidades retocadas com a câmera de Shekhar Kapur, que a narrativa é um tico superior e não mais do mesmo. Ah, isto, Emma Thompson e Asim Chaudhry, que interpreta o casamenteiro, o típico coadjuvante que rouba cada cena em que aparece em razão do humor nonsense e das tiradas espirituosas. Quanto à Emma, que ano incrível está sendo para a atriz veterana: se em Boa Sorte, Leo Grande desnudou o corpo e prazer de uma mulher de terceira idade com transparência e bom humor, aqui liga a velocidade 2x para imprimir um ritmo frenético à mãe de Zoe: embora unidimensional como uma cartolina, Emma tem timing para tornar cada fala em uma oportunidade de riso fácil.
Em contrapartida, por mais que se esforcem, não há química entre Zoe e Kazim, a ponto de levar o espectador a torcer para que fiquem juntos. Se torcemos, é porque o subgênero da comédia romântica já nos doutrinou a acreditar que o melhor par amoroso é aquele que nos conhece desde sempre. Para piorar, Lily James não inspira confiança de ser a diretora de documentários bem sucedida que pensamos ser na narrativa. A sensação é de que Lily está fingindo filmar, não interpretando filmar, e é fácil perceber a falsidade desses momentos. E, ora, nem é preciso ser crítico ou cineasta para concluir que Zoe não conseguiria registrar as imagens que deseja da forma como posiciona e manipula a câmera.
Eu poderia ignorar essa artificialidade, pois comédias românticas tendem a ser, na maioria das vezes, artificiais, mas isto vem aliado à forma convencional: mesmo quando encena os instantes que aguardamos que encene, com a esperança de que fará de maneira original ao menos em função da cultural apresentada, Shekhar Khapur apenas repete o lugar comum. Até a ideia de revisitar trechos de contos de fada nas palavras de Lily James - que poderia repercutir em uma piada interna com o fato de ter interpretado a Cinderela de Kenneth Branagh - não leva senão à conclusão de que O Que o Amor Tem a Ver Com Isso? é o tipo de romance água com açúcar esquecível e não a forma que desejava reencontrar o diretor.
O Enfermeiro da Noite
3.4 401 Assista AgoraDepois de a tradução da Netflix brasileira preterir A Boa Enfermeira em favor de O Enfermeiro da Noite, ressaltando os crimes cometidos por Charles Cullen no lugar da coragem de Amy Loughren, percebemos o quanto o brasileiro valoriza o sensacionalismo em detrimento do resto. Mas não se preocupem, o título tampouco é algum spoiler. O thriller dramático de Tobias Lindholm (do indicado ao Oscar Guerra) está interessado na relação construída entre os dois personagens centrais, mais do que em surpreender o espectador, que já sabe, desde a cena inicial, que Charles é o assassino (embora a proporção de seus crimes apenas chegue ao conhecimento nos letreiros anteriores aos créditos finais).
Com roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro de Charles Graeber, a história apresenta Amy como uma enfermeira sobrecarregada no hospital onde trabalha, à espera de a duração do contrato de trabalho lhe dar a possibilidade de ter plano de saúde para que possa cuidar de um problema cardíaco congênito e que pode lhe custar a vida. Movimentar um paciente sobre a maca, por exemplo, pode lhe provocar arritmia e falta de ar. Por esse motivo que Amy celebra a chegada de Charles, pois, além de o introvertido enfermeiro ser prestativo no hospital, também preenche as lacunas da vida dela como amigo. Entretanto, a morte de uma mulher prestes a receber alta inicia uma investigação policial, administrativa e da enfermeira, que desconfia que Charles seja o responsável por administrar criminalmente insulina na paciente até causar sua morte.
O Enfermeiro da Morte é um típico filme de assassino em série, mas desenvolvido de forma anômala: não há como haver thrills, ou seja, sobressaltos, tensão e correria quando o ato provocaria a morte de Amy. Em seu lugar, a exploração da doença cardíaca dela como uma bomba relógio cinematográfica sempre na iminência de explodir, mas que nunca chega até esse momento. Para tanto, a edição sonora mistura os sons dos batimentos cardíacos dos pacientes no monitor com a irregularidade do ritmo do coração da protagonista, e até coloca o espectador a se questionar da necessidade de cenas que tem Amy subindo correndo as escadas do hospital, como se a vida dela dependesse disso. Na realidade, Amy ia somente conferir se os soros foram adulterados na dispensa. Ela poderia até ter pegado o elevador, embora o roteiro tenha achado melhor fabricar uma tensão onde não deveria haver.
O roteiro também explora a convivência dos hospitais com os crimes cometidos. Não por ação, mas por omissão, pois, a fim de evitar as ações judiciais dos familiares sobreviventes e a publicidade negativa que poderia existir, lavava as mãos, demitindo Charles, em vez de denunciá-lo para que fosse punido, deixando o caminho livre para o enfermeiro cometer crimes noutros hospitais. Dessa forma, é possível enxergar a personagem de Kim Dickens igualmente como vilã, do mesmo modo que víamos Tilda Swinton em Conduta de Risco, por agir somente em favor dos interesses corporativos e capitalistas, em detrimento de estancar os crimes praticados por Charles.
A propósito, o dinamarquês Tobias Lindholm realiza uma crítica óbvia ao sistema de saúde norte-americano: a questão do plano de saúde, da falta de um Sistema Único de Saúde (por mal gerido que seja o nosso) e o orçamento hospital que dificulta até mesmo a contratação de profissionais. Contrariamente, o roteiro retrata sob luzes boas a dupla de policiais Tim (Noah Emmerich) e Danny (Nnamdi Asomugha), determinados a desvendar o crime, nem que precisem usar Amy de meio para prender Charles.
Por falar neles, a relação construída é uma das mais intrigantes que vi no ano: no início, a presença de Charles assegura a tranquilidade de Amy; depois, esta deve fingir a ignorância quanto aos crimes cometidos, obrigando Jessica Chastain a adicionar dubiedade e urgência à composição esgotada da enfermeira. Enquanto isso, Eddie Redmayne atua dentro de um limiar em que não percebemos maldade ou crueldade em Charles (auxiliado pela montagem que deixa de fora os momentos em que poderia sentir prazer pelos crimes cometidos). A atuação também tem a boa decisão de revelá-lo como um sujeito que parece realizar um esforço imenso para socializar, menos perto de Amy, tornando ainda mais inflamável a sua relação com ela.
A fotografia de Jody Lee Lipes adota o verde como matriz, a cor predominante das fardas dos enfermeiros, mas também sugestiva da doença e da maldade que tem acontecido nos corredores hospitalares. Isto reforça a hostilidade da narrativa de O Enfermeiro da Morte, um dos exemplos de por que Hollywood acerta quando importa diretores estrangeiros e lhes dá liberdade criativa para dar vida a gêneros e subgêneros antes já explorados à exaustão.
Entre Mulheres
3.7 262Assim como Flux Gourmet, no Festival de Berlim, e For the Sake of Peace, no Festival de Cannes, Women Talking sempre estará na minha memória como o primeiro filme que assisti no Festival de Toronto. Diferente dos filmes anteriores, regular e medíocre respectivamente, o drama dirigido por Sarah Polley (das ficções Longe Dela e Entre o Amor e a Paixão e do documentário Histórias que Contamos) é arrebatador em como retrata o estado de espírito e vida de algumas dezenas de mulheres em uma comunidade remota nos Estados Unidos e conquistou, com mérito, o segundo lugar do prêmio do público.
O roteiro, de autoria de Sarah, tem vocação teatral ao reunir um elenco talentoso dentro de um espaço físico limitado, no qual as mulheres devem decidir o que irão fazer, na ausência dos homens da comunidade, para combater as agressões sexuais em série que sofrem na colônia religiosa onde habitam. Ona (Rooney Mara, de Os Homens que não Amavam as Mulheres) adota o ponto de vista do espectador no centro da balança que ora pende para o lado de Salome (Claire Foy, de The Crown), que inflama as mulheres a fugir dos captores pois caso contrário certamente irá se vingar deles, ora de Mariche (Jessie Buckley, de A Filha Perdida), que acredita que a fuga não é a melhor decisão com medo da retaliação. Ao lado das três, adolescentes (Michelle McLeod, Kate Hallett e Liv McNeil) e experientes (Judith Ivey, Sheila McCarthy, Frances McDormand) que têm a própria maneira de enxergar a situação ou mesmo o propósito desta reunião, assistida por August (Ben Whishaw), que é apaixonado por Ona.
A princípio, a sensação que tive era de assistir à obra de uma época passada: o ambiente rural, os figurinos característicos e os costumes sugerem isso. Até a violência física e sexual generalizada praticada contra as mulheres - sugerida, não explícita, mostrando a diferença de ter uma diretora atrás das câmeras dirigindo filmes com temática feminista - era também prova de estar em tempos idos. Até cair minha ficha. Não é que Sarah Polley esteja falando do ontem, mas de como este é conservado no hoje sob a desculpa de tradição ou costume, com o consequente comportamento patriarcal, machista e misógino de uma comunidade fundamentalista religiosa (parece mórmon, mas poderia ser de qualquer religião). A quebra da expectativa veio com o surgimento de uma caminhonete à distância, expressiva de uma atemporalidade da denúncia.
Desse modo, Women Talking, que leva a sério o título original, é uma obra sobre mulheres resgatando mulheres e a si mesmas em um plebiscito que é sinônimo de terapia individual e sororidade. Nele, deverão decidir entre perdoar os homens que as violentam para conservar a fé religiosa, permanecer na comunidade onde nasceram e foram criadas e se vingar dos mesmos homens ou deixar para trás o passado e começar a vida do zero. A narrativa está preocupada com a tomada de decisões, não com a ação posterior, em uma forma similar a de 12 Homens e uma Sentença: além de adotar o formato de câmara, reduzindo a ação ao mínimo de cenários, adota a discussão ideológica, com argumentos favoráveis e contrários, a fim de decidir sobre a própria existência feminina, seja na comunidade, seja além dela.
Além disso, muitas questões são tratadas discretamente embora conservem o impacto: a importância da educação (o analfabetismo da maioria exige que August assuma a função de redator), do direito ao voto conquistado pelas mulheres, a duras penas, em meados do século passado, da importância do papel do homem, não como um príncipe salvador, porém como apoiador do feminismo. Por falar neles, Ben Whishaw tem uma atuação doce, trágica e dilacerante, ao justificar a atitude dele porque deixaria a mãe dele orgulhosa (afinal, será que os homens que cometem atos contra mulheres não lembram que têm / tinham mães ou filhas?). A questão geracional é talvez a mais necessária, em como evidencia o esforço das mulheres que sofrem as violências com habitualidade no convencimento das mais jovens a se engajar e das mais velhas, e cansadas, a vencer o pessimismo de uma vida de abusos.
Se a temática é urgente, a forma usada para contá-la é poderosa. As cores dessaturadas tonalizam o mundo de trevas em que vivem as mulheres. Já a montagem pincela momentos de violência para pontuar argumentos, sem desejar reviver o trauma dos espectadores que já passaram por situações parecidas. E Sarah Polley também encontra espaço à esperança em meio ao medo e à violência, sentimento que brota a partir da comunhão de mulheres, ilustrada de modo caloroso.
E mesmo que Rooney Mara tenha pouco a oferecer senão a simpatia, dado o caráter mais utilitário da personagem em reproduzir o olhar do público, Jessie Buckley e Claire Foy estão incandescentes no modo como defendem os argumentos com paixão e ardor, sem que isto faça delas personagens unidimensionais (é possível vê-las como concorrentes a prêmios de atriz coadjuvante, caso a distribuidora jogue o jogo da temporada de premiações de modo correto). Já Frances McDormand tem uma performance poderosamente contida, movida a partir do olhar e sobretudo dos espinhos pragmáticos que precisou criar para se proteger do mundo dos homens.
Com um misto de força, empatia, humanidade e sensibilidade, Women Talking é o melhor trabalho da carreira de Sarah Polley e o melhor início possível de minha participação no Festival de Toronto.