Paredes de um quarto sujo

Interessante e instigante registro de como um espaço de música underground pode ser um marco dentro de uma cultura local ao divulgar, reunir e , até certo ponto, estabelecer novas tendências. O modo como o Napalm acabou por se tornar também um ponto de ebulição cultural, ao ser o ponto de encontro de músicos, jornalistas e público, com a divulgação de novos clipes e filmes, criação do fanzine SPALT, gravação dos show's das bandas e etc., dando oportunidade para a aparição não somente das bandas, mas também de um jornalismo cultural em torno dessa nova cena.

Tendo em vista o cotidiano atual, chama atenção também o fato de que o público que frequentava a casa ia em busca de, como dito no documentário, novas experiências de conhecer novas bandas e não somente referendar o já conhecido. O que significa bastante para a reflexão do nosso modo atual de nos relacionarmos com a música, a arte e etc, onde o material é encontrado com muito mais facilidade, mas a curiosidade para as buscas não parece acompanhar o advento das novas ferramentas.

Os inúmeros problemas que aconteceram durante o período de funcionamento do Napalm também são retratados de maneira sincera e muito direta através dos depoimentos, desde a tensão em relação às bandas que tocavam- vale lembrar que a primeira proposta do espaço era ser um casa punk - em relação a um público com diversos segmentos, até mesmo a violência recorrente que surgia dessas tensões. Com depoimentos e histórias de grande valia e interesse para quem gosta de música e os modos com que ela acontece e é recebida, o documentário se mostra um registro extremamente válido e enriquecedor, dirigido pelo excelente jornalista Ricardo Alexandre.

Em Coração Satânico, o diretor Alan Parker consegue construir uma incrível ambientação, em que cada detalhe, situação e diálogo se mostram enquanto elementos de um grande quebra-cabeça, montado magistralmente, sem arroubos de grandiosidade, mas não menos poderoso e impactante. Nesse quebra-cabeça – que não se apresenta exatamente como tal, pois podemos vê-lo inicialmente como apenas mais uma investigação que visa uma cassada para saldo de uma dívida, a trama se desenvolve de modo impecável.

Entre becos escuros esfumaçados, inferninhos de blues, bares vazios e cultos e seitas repletos de comunhão, Harry Angel (Mickey Rourke em atuação precisa e irretocável) aceita embarcar na sua mais perigosa e intricada tarefa enquanto pacato investigador de até então, sem desconfiar que tal investigação o levará a descobertas e angústias muito mais definitivas e perturbadoras do que somente suspeitas de assassinatos recaídas sobre seus ombro. A trilha sonora minimalista e bem ajustada é um bom componente na composição de um cenário variante entre dias escaldantes e momentos de tempestade, porém, igualmente sufocantes a seu modo, e embalam a solidão implícita do personagem em uma jornada muito mais pessoal do que o próprio imagina e pode perceber. Seja visto como uma daquelas histórias em que ao acaso se apresenta um martírio sem qualquer resquício nem de culpa, ou responsabilidade ao diretamente afetado, ou da perspectiva de uma busca de conhecimento fadada a conclusões indesejáveis, mesmo com a aparente despretensão do motivo impulsionador, Coração Satânico é um daqueles filmes que te prendem a todo segundo, sem lançar mão de qualquer tipo de recurso decorativo ou dispensável. É um filme certeiro, muito bem conduzido, instigante do início ao fim, com um final espetacular que coroa essa grande obra do cinema.