"Você ficaria doente se usasse a saudação fascista, é isso? Você acha que seu braço iria entorpecer se o levantasse para cumprimentar?"
Mesmo cinéfilos de longa data podem se surpreender com diferentes enquadramentos, personagens e ambientes para retratar o contexto da II Guerra Mundial a partir de filmes que estão fora do mainstream. Alguns dos melhores filmes já produzidos na Europa se alimentam não diretamente dos conflitos armados, como fazem ainda hoje os estadunidenses, mas da vida das pessoas em suas existências cotidianas em meio à gravidade do seu tempo. Hollywood ganha nas bilheterias, mas perde e perde de muito na reconstrução da subjetividade e complexidade que envolve os conflitos.
A Pequena Loja da Rua Principal, filme de 1965, se passa em uma cidade provinciana da Checoslováquia, em 1942, quando o país estava sob o jugo dos nazistas. Nessa cidade, o processo de "arianização" está a todo vapor, e especificamente as últimas lojas comerciais pertencentes aos judeus, as menos valiosas, estão sendo transferidas para os não-judeus, em especial os colaboracionistas. O cunhado de Brtko, protagonista do filme, é um dos mais notórios e entusiastas colaboradores do regime de ocupação e empreende, logo no início do enredo, a transferência da loja de uma velha senhora judia (senhora Lautmann) a Brtko.
O filme lança mão de elementos cômicos, fazendo certa menção à arte de Charles Chaplin, para aliviar um pouco o peso que a própria temática carrega. Quando Brtko vai à loja da senhora Lautmann para arianização da loja, percebe que ela já não escuta bem e a coisa se torna um pouco ridícula; ela não entende o que ele diz e também não consegue ler o documento oficial que Brtko tem nas mãos. É graças à mediação de um checo, amigo dos judeus, que os três conseguem se entender e que Brtko nota que a loja, que lhe havia caído como graças, já fora, anteriormente, rapinada e que o presente é, como se diz, "de grego".
Brtko é um típico tolo, alguém que nos filmes aparece em funções que envolvem pouco talento e imaginação. Em casa, os ânimos pendem para lá e para cá à medida que Brtko oferece à mulher condições materiais melhores do que aquelas em que vivem. A esposa aparece em completo alijamento da realidade à sua volta, das perseguições e humilhações proferidas contra os judeus, interessada exclusivamente em seu próprio destino e em frugalidades de seu estado apartado.
A tolice de Brtko é, assim, acossada constantemente por essa situação de alienação no lar - onde ele não pode contar todos os eventos que compõem a sua aliança provisória com os judeus - como acossada também pela empatia e preocupação que vai assumindo em relação à senhora Lautmann, com quem nos identificamos em sua quase absoluta solidão. À medida que a perseguição aos judeus avança mais um passo, o estado mental de Brtko vai acompanhando esse antagonismo, colocando-o diante da escolha mais difícil de sua vida.
A cena final é magistral, uma tenebrosa tentativa de equilíbrio de Brtko, que parecia caminhar resolutamente para uma saída honrosa e heróica, de tolo a herói, mas que é assombrado pelas vozes que ecoam do lado de fora da loja, na praça, com o oficial bradando os nomes dos judeus que devem se juntar para a partida do trem. Sua dúvida entre proteger a senhora Lautmann e arriscar a própria pele como "amigo dos judeus" ou de jogá-la aos lobos é construída com uma imensa carga de tensão, de modo que partilhamos de suas dúvidas morais naquele pequeno momento em que anos da vida são decididos em poucos segundos.
A maior parte da originalidade do filme se situa nesse momento final, de decisão moral do protagonista. Mas sua conversão, embora seja parcialmente em função das rendas que extrai dos judeus, também tem a ver com aspectos menos visíveis e diretos, que aparecem também em nosso enredamento emocional com o filme, a despeito do carinho que vamos cultivando pela senhora Lautmann ou pelo senhor Kuchar, que embora não seja judeu detém um humanismo que o coloca do lado justo das trincheiras.
Sem um contexto de guerra, de crise, sem qualquer ambientação atípica, talvez Edifício Master seja o melhor filme-documentário já produzido a respeito de como é duro e implacável existir no mundo. Sem dizer isso ostensivamente no filme, Eduardo Coutinho o diz por meio de sua mágica: a vasta solidão estética das moradias e daquilo que os moradores (não) falam explicitamente. Trata-se de um profundo contraste em relação ao próprio lugar escolhido pelo diretor: o edifício Master, um prédio de 12 andares, com nada menos que 23 apartamentos por andar, localizado no bairro de Copacabana, um dos mais populosos do país.
Nesse edifício, Eduardo Coutinho entrevista 37 pessoas. Elas se abrem diante das câmeras, expõem suas emoções e se oferecem ao ritual de um dos maiores documentaristas do mundo. Elas ficam pouco tempo diante de nós, mas o suficiente para deixar - ao menos a maioria delas - uma marca singular. É o que cada uma delas procura mesmo expressar, suas singularidades. Quando o documentário termina, queremos saber mais sobre elas, agora que estamos 21 anos distantes de suas vidas de outrora. E assim, sem que o espectador perceba, lhe foi introjetado um pouquinho mais de alteridade, uma qualidade essencial para existir no mundo.
Como Coutinho nos enlaça tanto nesse documentário? Ao retratar essas pessoas, o diretor está falando de nós mesmos. A mistura que ele entrega de medos, desejos, fobias sociais, problemas conjugais e afetivos, violência urbana, solidão, sonhos, relações de classe, frustrações, tudo isso diz respeito às nossas vidas. Vê-los é como contemplar a morte do romantismo, das grandes paixões e ideias. Não há, em nenhum dos entrevistados, solo fértil para sonhar. A vida é crua no edifício Master e ninguém leva a sério o síndico aforista que aparece no começo do filme, mas quando ele diz que "a realidade da vida é o funeral das ilusões" está mesmo nos preparando para o que vem a seguir: uma torrente de sensações que, ao fim e ao cabo, tem tudo a ver com provérbio.
É difícil dizer quem é o mais solitário dos moradores, mas o homem que canta My Way, recordando-se dos seus dias áureos de quando trabalhava nos Estados Unidos, onde ainda moram seus três filhos, é um forte concorrente. Ele chora e imaginamos a falta que faz a esse homem o longínquo mundo dos idos de 1960, 1970. Pensamos no quanto há de recordações de sua ex-esposa, falecida há pouco tempo, a sua história de superação sozinho em outro país; coisas que só fazem sentido para ele e para mais ninguém, mas que se tornam menos importante por isso? O truque do documentário é notarmos o quanto isso é importante, mas também revela que só importa a nós mesmos: a vida é muito solitária não somente no sentido objetivo, dos móveis, da estética do lugar, da quantidade de pessoas que residem no espaço, mas num ambiente ainda mais amplo, o da mente, pois é impossível acessar o processo emocional do outro de forma consistente - Edifício Master é um breve relampejo de contato.
O documentário é de uma falsa simplicidade. O mundo pode ser acessado nesse documentário, ao menos no que diz respeito ao que mais nos importa ou deveria nos importar. Ele nos comove, eleva nossa capacidade emocional e é de um realismo desafiador. Essa busca de Coutinho por verdades que não estão aparentes e que são captadas magistralmente pelo diretor é o que fez dele um dos nossos maiores cineastas.
Candelaria e Victor Hugo, casal de cubanos, levam uma vida de sobreviventes. Na década de 1990, período de grave crise econômica em Cuba, os dois, idosos, trabalham para sustentar-se do jeito que dá, sob imensas dificuldades. No prédio em que moram, o racionamento de luz constante e a escassez de refeições fazem de suas vidas uma batalha cotidiana, inclusive à margem da legalidade: Victor Hugo desvia parte dos charutos da fábrica onde trabalha para vender no mercado paralelo e complementar a renda. Numa das primeiras cenas, o casal está deitado, prestes a dormir, e Candelaria observa o lustre no teto, adorno de tempos muito antigos e já sem qualquer função, e sugere, bem humorada, uma história que sairia no Granma (jornal oficial) sobre um lustre inútil que cai do teto matando dois idosos. As coisas parecem mortas por fora, mas pulsam por dentro.
A vida do casal está prestes a mudar. No hotel em que trabalha, Candelaria, cuja função é separar lençóis e roupas sujas na lavanderia, se depara com uma câmera filmadora que é jogada por engano, pelo duto do hotel, por uma das funcionárias da limpeza. Ela leva o objeto para a casa na esperança de fazer algum dinheiro com ele, mas Victor Hugo não quer que ela se envolva em qualquer ilegalidade, por isso lhe diz para devolver a câmera. O objeto logo perde a função comercial e ganha função afetiva, quando Victor Hugo, à noite, resolve testar o equipamento e grava Candelaria se preparando para dormir. Isso desperta nele emoções que pareciam adormecidas e nos faz lembrar uma criança descobrindo um brinquedo novo e encantador.
Candelaria passa a se entregar a esse jogo junto com o marido. Ela se filma para que ele a assista. Ele se empolga numa manhã e tenta beijá-la na praça em uma bela cena cômica - ela rejeita o gesto abruptamente pois há muito tempo que ele não a beija. Há um voyeurismo tardio que Victor Hugo descobre nessa conexão com a câmera, pois os vídeos parecem revelar a ele algo que sem o apoio do aparelho não lhe era visível aos olhos. Vemos o despertar de algo mágico presente nos enquadramentos, na encenação, na naturalidade com que esses corpos se desnudam e se revelam em uma beleza que diz respeito não exclusivamente ao aspecto físico, mas na magia de uma força primitiva que imaginavam não existir mais.
Acessamos a crise econômica do país especialmente através da rádio oficial, é por ele que o casal se informa sobre as dificuldades de Cuba. Misturada à atmosfera melancólica e sem vida da residência do casal, a cena gera uma caótica recordação do ambiente orwelliano de 1984, com a teletela anunciando os sucessos do regime político na economia. Mas não vejo o filme como uma crítica ao governo de Cuba. Essa tensa convivência com o embargo econômico, e sua trajetória como minoritário ponto de resistência à lógica da ordem global, acabam fazendo parte necessariamente de plano de fundo de qualquer filme que trate minimamente de aspectos sociais do país.
A redescoberta do desejo rende a melhor cena do filme, uma combinação de vida e de tristeza ao mesmo tempo, pois as coisas andam mais juntas do que a maioria das pessoas gostaria de admitir. Victor Hugo vendeu um relógio antigo e caro por uma mixaria. Tudo isso para proporcionar uma noite mais íntima com Candelaria. Nessa noite, a mesa é farta, eles riem, se divertem e, pouco antes de fazerem amor, trocando carícias, Candelaria sente falta do relógio e critica Victor Hugo por vendê-lo. Ele responde com muita ternura: "o que fazemos guardando coisas quando podemos morrer amanhã?" e então um estalo desperta em Candelaria todo o esforço que o homem teve e as renúncias para proporcionar a ambos um momento que transcende qualquer noção objetivada de valor.
1981. Dois amigos, homens de meia idade, se reúnem para jantar em Nova York: Wallace Shawm e André Gregory. Nos próximos cem minutos eles protagonizarão um dos encontros mais emblemáticos da história do cinema, apesar da sua completa ausência de presunção. O filme se desenvolve em praticamente uma única locação, um restaurante na região central de Manhattan, e Wallace e André nos transportam, por meio da imaginação, para florestas e desertos, para experiências místicas de uma existência que se alarga por redescobertas que são, de fato, extraordinárias.
Meu Jantar com André é uma obra-prima de homenagem ao diálogo. Os dois personagens falam, escutam, cada qual no seu tempo. A conversa é humana, pessoal, André se expõe sem medo, Wallace é um bom interlocutor e desenvolve convincentemente seus argumentos, ambos são interessantes e revelam, em suas falas, algo de fundamental na existência humana: uma busca sincera pelas sensações que emanam da vida, sejam elas resultados dos pequenos hábitos ou dos momentos raros e inesquecíveis.
Mais especificamente, eles veem essas coisas de maneira oposta. Insatisfeito com a vida em Nova York, André foi em busca de regiões menos opulentas e de vivências mais simples e conectadas com a natureza primitiva para escapar da asfixia da cidade grande. Sua opinião é de que o grande mundo urbano foi tomado por um estado onírico em que as pessoas não veem umas às outras, as relações são superficiais e a comodidade do consumo nos impede de ver as coisas como são. Wallace não discorda, mas acredita que a vida já é dura o suficiente e que são as comodidades que tornam a existência possível.
É provável que a diferença de renda dos personagens seja o verdadeiro divisor de águas entre eles. A esposa de Wallace, como ficamos sabendo no início, começou a trabalhar fora para complementar a renda. Ele se desloca para o restaurante em um metrô caindo aos pedaços. André, por sua vez, é rico e é quem paga a conta do restaurante ao final do encontro. Para Wallace, o cobertor elétrico, à noite, na hora de dormir, é uma fuga dos sofrimentos e seu contentamento está no café quentinho com bolo e jornal pela manhã.
A cena final é linda e torna insuspeitas as ideias de Wallace. No táxi, indo para casa, ele observa e ressignifica os lugares de sua infância. A conversa com André o marcou como um daqueles grandes acontecimentos idílicos. A resposta da sua sensibilidade ao jantar diz muito sobre o que significa estar aberto a reagir a um outro ser humano. Livre de qualquer julgamento ou concepção arbitrária e dogmática da vida, o encontro com André teve nele o efeito poético, de uma beleza delicada e inesquecível.
O filme é uma homenagem ao diálogo em que pontos de vista divergentes são expostos sem que isso polarize os dois protagonistas. É um filme que ajuda a educar nossa paciência e atenção como espectadores pois o filme consiste de dois personagens que conversam durante mais de cem minutos. Produz referências universais para o significado de conversar. Trata-se de um filme humanista, em que parte das incertezas de existir são compartilhadas por meio de passagens brilhantes; nesse sentido, produz reflexões duradouras e pessoais sobre a vida e seu significado mais profundo.
Na Tchecoslováquia, à mercê de uma invasão das tropas alemãs nazistas, um dono de crematório leva uma rotina muito comum: toca seu negócio, compra quadros de gosto duvidoso para casa e tem encontros sexuais no bordel da cidade longe das vistas da esposa. Apesar do espectro totalitário rondando, politicamente não há nada que o desabone, a priori: seu médico é judeu, assim como seus funcionários, cujos nomes são os de grandes músicos como Strauss e Dvorak. O protagonista, contudo, é convencido por um amigo de que tem sangue alemão e de que seus filhos e esposa têm hábitos e características de judeus, o que o leva o "cremador" a uma jornada familiar deteriorante aos olhos do espectador, mas que para o protagonista é tida como uma missão para o bem comum.
O personagem causa uma forte sensação de estranhamento, desde o começo. A habilidade de um grande diretor, com capacidade de manejar os recursos cinematográficos com maestria, desfamiliariza o que há de comum no protagonista ao combinar trilha sonora, movimentos de câmera repletos de desconforto e um ator que transmite com perfeição um ar de exotismo e de psicopatia, para produzir um filme com qualidades sensoriais como só o cinema pode fazê-lo.
Não me parece ser mera coincidência o país do filme ser o mesmo de Franz Kafka. O diretor parece ter encontrado a medida do brilhantismo do escritor em sua transposição para o cinema. Isso porque parte dos personagens que orbitam o dono do crematório parecem ter uma personalidade inanimada, sendo arrastados pelos acontecimentos, sem capacidade de agir sobre eles. A estrutura social pesa sobre os ombros dos personagens do escritor tcheco sem réplica, sem questionamentos, com uma passividade que expressa a passagem de um mundo em que tudo é familiar para um outro, o mundo moderno, profundamente impessoal e burocrático. É o que assistimos acontecer nesse filme de Juraz Herz.
Aqui, contudo, em vez da burocracia kafkiana, temos uma Europa assolada por um fenômeno político e social tão absurdo quanto o da obra de Kafka. O totalitarismo foi um fenômeno que não apenas contaminou as instituições, mas também o senso comunitário, mobilizando um contingente massivo de pessoas que aderiram e militaram voluntariamente em prol de um regime que perseguiu e assassinou adversários políticos e grupos étnicos, sustentando-se por um aparato de opressão e de violência de proporções inéditas na história humana. O resultado artístico desse filme é ser capaz de evocar as sensações de descompasso entre o mundo real e o mundo do protagonista, que se vê como portador de uma missão divina ao aderir voluntariamente ao nazismo.
Apesar de ser um filme muito pouco discutido, O Cremador tem um dos protagonistas mais exóticos da história do cinema, repleto de peculiaridades já descritas, como seu alijamento da realidade e sua jornada como portador de uma consciência mística e messiânica em direção ao nazismo. Além disso, o diretor, compatriota de Kafka, recria o conceito do escritor por meio da linguagem cinematográfica, replicando o absurdo em torno do ambiente totalitário e também, talentosamente, o aspecto subjetivo de parte da sociedade europeia dessa época.
O filme se passa na cidade de Joanópolis/SP e focaliza a vida de uma pequena família rural, composta por um casal, seu filho e um homem idoso (pai dela, de saúde precária). A cena inicial dá o tom do que virá. Em casa, a mãe, de aspecto exausto, mal reage ao filho e ignora os anseios do idoso que, acamado, não é mais capaz de comunicar-se. Não é preciso muito para perceber que a atriz dá vida a uma pessoa cuja rotina de obrigações tirou qualquer brilho de sua existência. Seu olhar de esgotamento e a ausência até mesmo de qualquer remota possibilidade de felicidade faz dela um alvo relativamente fácil pro que virá. A atriz Maeve Jinkings esteve em alguns dos melhores filmes nacionais lançados na última década no país, como Aquarius, O Som ao Redor e Era uma Vez Eu, Verônica e executa o papel de protagonista em Carvão com a qualidade que reafirma a sua relevância para o cinema brasileiro.
Na sequência da cena inicial, a diretora nos dá mais uma dose de boas expectativas para o desenrolar do filme. E aceitamos de bom grado. A visita de uma enfermeira do posto de saúde da cidade ao homem acamado nos traz uma personagem que, ela sozinha, já merecia um filme inteiro: Juracy, interpretada por Aline Marta Maia. A enfermeira faz lembrar uma versão feminina de Anton Chigurh, de Onde os fracos não têm vez (2007), nada menos que um dos mais fascinantes personagens da história do cinema. Com seu jeito sereno e sabedoria de quem parece dominar todos os meandros do submundo, todas as vezes em que Juracy aparece nos passa a impressão de que algo fora do senso comum vai acontecer. E é ela quem apresenta uma proposta de vida e morte como quem oferece um confeito a uma criança.
No enredo, um acordo macabro mediado por Juracy leva à casa dessa família do interior paulista um chefão do tráfico, que deve se refugiar alguns dias no local para assumir uma nova identidade e fugir da perseguição de que é vítima. Curiosamente, as cenas de menor tensão são as que envolvem o homem, dada a nítida ausência de propensão dele à violência, algo que aparece muito mais no marido da protagonista. Este, um homem que se afirma como um "chefe de família", está vivendo um tórrido romance com seu vizinho. O "chefão" rende alguns bons momentos de comédia em suas tiradas irônicas na casa. A necessidade que a família tem de manter em segredo o que passa no ambiente doméstico, como também seus dramas pessoais, sustentam o filme tanto como um bom drama como também como comédia. E isso é proporcionado especialmente pela qualidade do elenco, que entrega uma atuação de alto nível.
Carvão é um filme criativo, mais um para a ótima safra do cinema brasileiro, um dos mais produtivos e de maior qualidade hoje no mundo. Sustenta-se não só pelo roteiro, mas também pela ótima construção dos personagens. O manejo do filme que ora se sai muito bem como suspense, ora comédia, ora drama, demonstra o talento da diretora Carolina Markowicz, que certamente produziu uma obra que vale muito a pena ser vista e apreciada pelo público mais amplo, pois trata-se de um filme muito acessível e ricamente envolvente.
É impossível falar do cinema brasileiro contemporâneo sem destacar a relevância de Pernambuco nessa seara. Diretores como Kléber Mendonça Filho, Cláudio Assis e Marcelo Gomes têm produzido obras que reinventam a nossa percepção da vida nordestina, com figuras fortes, emblemáticas, que contribuem para povoar a nossa imaginação de cenários, de gentes e de uma visão regionalista que desmonta estereótipos e estimula uma percepção mais complexa da nossa vida social. Se falássemos só de Pernambuco para discutir o cinema nacional, já seria suficiente para avaliar positivamente o saldo recente do Brasil.
Fruto de um país multifacetado e atravessado por contradições regionais e sociais profundas, as nossas gentes e territórios continuam a ser uma fonte inesgotável a alimentar a criatividade artística. Nosso cinema geralmente se saiu bem ao dar visibilidade às questões sociais profundas, tornando-se uma fonte muito rica para conhecer a diversidade brasileira. Marte Um, filme cujo enredo se desenvolve na cidade de Contagem/MG e que estreou em 2022, conta uma história de quebra de paradigmas em que todos os principais personagens são negros.
O filme mais recente de Marcelo Gomes estreou no último mês de novembro e sua narrativa é protagonizada por uma mulher trans, trabalhadora agrícola no interior de Pernambuco, cujo grande sonho é se casar na igreja. É fácil simpatizar com Paloma, interpretada por Kika Sena. Ela tem sonhos e desejos como todas as pessoas, mas encontra obstáculos diferentes das demais pessoas para realizá-los. Por ser mulher trans, vê-se alvo de uma perseguição muito particularizada do seu supervisor no trabalho. Um simples momento de lazer, no clube local, pode se tornar sinônimo de aborrecimento em decorrência de vis preconceitos.
No sorriso de Paloma parece estar toda a alegoria de sua vida. É um sorriso que parece não se completar, se interrompe no meio do caminho, é um sorriso de quem duvida que a felicidade deva existir, mas que não abdica de lutar por ela. E essa luta é ainda mais árdua quando se trata de querer encontrar solidariedade do seu entorno. O padre da cidade, apesar de simpatizar com Paloma, diz que não pode casá-la. O noivo, que trabalha na construção civil, resiste, se preocupa com o que os amigos e a mãe pensarão.
Paloma só encontra solidariedade no bordel, é o único lugar em que é acolhida e respeitada, onde pode se sentir um ser humano de valor. E isso faz muita diferença, é o que compõe o seu cantinho de proteção num mundo que lhe é hostil e que a trata como pária. Talvez seja esse o principal resultado do filme: os valores tradicionais funcionam como uma barreira tão grande para tantos grupos sociais que o caminho para que encontrem espaço e afirmem suas identidades, desejos e valores perpassa necessariamente por transformar seus anseios em formas coletivas de solidariedade e expressão.
Nesse sentido, dá para se extrair uma perspectiva geral sobre a trajetória específica de Paloma. Outro filme brasileiro, de 2013, chamado Favela Gay, conseguiu transmitir essa mesma mensagem, mostrando a vivência de diferentes gerações de homossexuais e travestis nas favelas do Rio de Janeiro e como os preconceitos conseguiram moldar e limitar as experiências de mundo de tantas pessoas. Hoje, nas cidades maiores, as novas gerações conseguem encontrar ambientes mais solidários e fraternos - e isso não porque a sociedade evoluiu, mas porque coletivamente os grupos tornaram suas dores interiores em formas de luta e transformação política.
Numa região desértica do Japão, um solitário entomologista acaba cochilando e perdendo o horário de voltar para casa. O morador de um vilarejo próximo oferece a ele uma opção exótica para passar a noite, uma moradia em meio ao deserto de areia, acessível por uma escada de corda, por onde ele deve descer. O homem aceita e ao tentar ir embora no dia seguinte, a escada já não está acessível. Ele caiu numa armadilha e não tem opção a não ser ajudar a jovem viúva a coletar a areia que alimenta algum tipo de comércio do vilarejo e que impede que a casa seja soterrada. Suas tentativas de fuga são inócuas, a princípio, e ele vai se enredando em novos caminhos, nesse lugar, com o passar do tempo.
Dirigido por Hiroshi Teshigahara, A Mulher da Areia (1964) é um dos filmes japoneses mais originais que já assisti, feito em uma época de explosão criativa da indústria cinematográfica desse país. Teshigahara lança mão de pouquíssimos recursos cênicos, mas produz uma obra completa, com fortes marcas da cultura japonesa e também com recursos visuais e metafísicos que transcendem o enredo propriamente dito. Apesar do tempo que nos separa de seu lançamento, trata-se de um desses filmes cujo brilho se mantém intacto e que conserva uma maneira própria e sublime de explorar a subjetividade humana.
Os dois protagonistas funcionam bem. O entomologista é um homem decepcionado com a cidade de Tóquio, com as formalidades e burocracias da vida cotidiana. Ele pesquisa insetos porque busca reconhecimento social, quer seu nome associado a uma descoberta relevante e daí tira seu impulso à vida. A viúva também está em busca desse mesmo reconhecimento, mas de uma maneira mais simples que o pesquisador. Ela não quer sair do vilarejo: por mais precária que seja a vida ali, é naquele lugar que ela se sente útil e de algum modo reconhecida.
O homem empreende diversas formas de fuga. Seus esforços são em vão e ele vai ficando. O ponto alto desse contato entre o entomologista e a viúva é a paixão a que se entregam. De todo modo, é curioso observar como as coisas vão se desdobrando entre eles na casinha ameaçada pela areia. O homem se entendia e nesse tédio descobre maneiras novas de aproveitar seus conhecimentos e aí está a chave para uma ressignificação de sua própria existência.
A vida não tem sentido. Convive-se com isso de diversas maneiras e uma delas é não pensar, apenas aceitar o destino tal como ele veio embrulhado e seguindo em marcha automática desprezando as imensas dádivas que estão à disposição daqueles que, com muita sorte e algum talento, podem chegar a recantos mais inacessíveis da existência. É por esse caminho que Teshigahara nos leva, mas, por outro, também o de transformar nossas inquietações em alimento para povoar esse sentimento de enlevo construtivo.
77 anos nos separam do final da Segunda Guerra Mundial e ainda assim novos longas continuam a surgir tendo como pano de fundo esse momento determinante da história do planeta. É o período da vida humana sobre o qual mais se falou no cinema europeu, mas isso não é empecilho para que novas produções apareçam, seja com ferramentas audiovisuais modernas para retratar o conflito, seja para revivê-lo como ambientação de uma abordagem que não tem a ver exatamente com as altercações bélicas.
Na América Latina, nossa preferência temporal nas produções cinematográficas são as ditaduras militares, uma ferida não cicatrizada do nosso continente, que ainda se vê, lamentavelmente, às voltas com movimentos que pedem o retorno dos militares ao poder. Por isso vem bem a calhar o filme Argentina, 1985 (Santiago Mitre, 2022), estrelado por Ricardo Darín, rememorando o ano em que o país deu voz às dores e humilhações provocadas pelo seu regime autoritário.
O filme húngaro desta postagem, 1945, foi lançado em 2017. Dirigido por Ferenc Török, concentra todo o esquema narrativo num dia pós fim da Segunda Guerra Mundial, em uma vila no interior da Hungria, após a derrota do Eixo. Não há aqui nenhum movimento de exércitos, toda a batalha reside na consciência dos seus moradores, e a técnica narrativa vai nos entregando aos poucos o tamanho da culpa que se carrega no lugar: antes da guerra, os judeus prosperavam nessas terras e agora suas casas e comércio estão nas mãos de amigos e vizinhos, que se tornaram colaboradores do nazismo.
A chegada de dois judeus ortodoxos à vila, que atravessam a localidade com misteriosas caixas, tem efeito de uma implosão para os seus moradores, que acreditam que a dupla está de volta para cobrar os despojos da perseguição aos judeus, a mando dos antigos moradores. Isso divide a vila, colocando-a em brutal estado de ansiedade e mexendo com o destino das pessoas do lugar.
1945 é um filme de viés moral e sua melhor cena consiste no momento em que o dirigente da vila, ao descobrir por que os dois judeus estavam na localidade, tenta ser amigável com eles. O mais velho da dupla, um homem que parece carregar a verdade do mundo em seu semblante, lança um olhar ao seu interlocutor que seria suficiente para arrebatar o dirigente, caso nele houvesse alguma coisa a se chamar de alma.
O último filme húngaro sobre o qual escrevi, chamado O Quinto Selo (Zoltán Fabri, 1976), também se passa no contexto da guerra, e nele também se revelam questões muito profundas. Trata-se de uma grande contribuição que os europeus deram ao cinema, ao transformar os horrores da guerra em um processo crítico a respeito da nossa humanidade.
Aprende-se muito sobre a diversidade étnica e cultural, sobre os conflitos regionais, sociais, políticos e religiosos do mundo a partir do cinema. E o cinema contemporâneo tem sido uma arma muito eficiente para desconstruir diferentes clichês a respeito dos mais variados povos, especialmente quando se tratam de povos cujo imaginário só é mobilizado por meio de guerras ou conflitos de diferentes tipos. Ter acesso a uma subjetividade mais ampla e complexa é uma das formas mais intensas de se interessar de maneira autêntica pelas gentes e pelo mundo e bons filmes são capazes de retratar essa diversidade de forma muito comovente.
Timbuktu (Abderrahmane Sissako, 2014) é um filme que se passa no Mali, na África Ocidental. No enredo, a cidade de Timbuktu é invadida por extremistas do Estado Islâmico e a população passa a sofrer perseguições e ameaças da milícia armada que ocupa a cidade, sendo forçada a adotar costumes que pouco têm a ver com os hábitos anteriormente vivenciados na comunidade. Apenas pela força bruta os terroristas conseguem o que quer, mas mesmo sob o domínio das armas há imensa resistência de uma população que já conta com poucos recursos à disposição para dotar de sentido a própria vida.
Numa cena de plena beleza poética, meninos da comunidade, proibidos de jogar futebol, utilizam a criatividade para alimentar uma partida com uma bola que existe apenas na imaginação deles. Quando a milícia aparece, eles fingem que estão fazendo exercícios. Há limites para dobrar a natureza humana, que resiste mesmo sob o implacável domínio da violência.
Nesse sentido, Timbuktu apresenta uma comunidade que nada tem a ver com cenas televisivas de pessoas enfurecidas erguendo e balançando armas jurando vingança em nome de uma figura religiosa. São apaixonadas por futebol, por música (outra cena belíssima está ligada à música) e por uma vida melhor materialmente. Uma das coisas mais marcantes e expressivas desse filme são os rostos das pessoas, rostos que não mentem, que expressam muita dor, certa resignação e uma permanente contenção de suas vidas, suprimindo sua humanidade mais profunda. O rosto denuncia.
O último filme sobre o qual escrevi, apesar de passar na Hungria, poderia se passar em qualquer lugar do mundo ocidental, pois seu tema está bem ancorado nessa região do mundo. O fanatismo religioso e os conflitos derivados dele é um tema que ocupa parte importante da cinematografia contemporânea de partes da África e da Ásia, a exemplo de filmes como Papicha (2019), a Pedra de Paciência (2014) e E Agora, Aonde Vamos? (2011). Há uma coisa em comum nesses filmes: a resistência é sobretudo de gênero, emana das mulheres. Apesar de tudo, há esperança e ela é feminina.
O cinema pode despertar a imaginação de diferentes maneiras, não existe uma fórmula exata ou correta para fazê-lo. O cinema brasileiro é um dos mais hábeis do mundo na arte específica de lidar com o aspecto social, há imensa oportunidade para isso: a curiosidade aguçada pelo cotidiano apinhado de contradições e as idiossincrasias da vida social. Um dos filmes de maior apelo comercial e de impacto cultural já produzido no país, Tropa de Elite, se passa nas favelas cariocas, e o imaginário dos brasileiros acerca delas é permeado por imagens excêntricas - corroborado negativamente, nesse caso, pelo próprio filme.
Marte Um (Gabriel Martins, 2022) replica essa grande habilidade do cinema nacional e resolve falar para as multidões, num tipo de produção que se engaja, assume uma postura política diante dos turbilhões da vida nacional. Indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme internacional, o filme focaliza a vida de uma família negra e periférica de Contagem/MG, cujos membros estão vivenciando importantes decisões pessoais, e nessas decisões aparecem, como plano de fundo, enfrentamentos a questões que vêm dissolvendo a maneira como o Brasil historicamente se enxerga e de onde emanam nossos conflitos sociais mais contemporâneos.
Eunice, a irmã mais velha, é estudante de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e anseia por sair de casa; é a única maneira para expressar seus desejos, sua sexualidade, seus afetos, de uma maneira propriamente sua. Ela tem uma namorada, mas não se sente segura de contar para os pais e as duas fazem planos de alugar um apartamento. Uma boa cena do filme é quando ela leva a namorada em casa como uma mera amiga, mas em um momento de distração as duas trocam carinhos sob os olhares arregalados dos pais de Eunice, claramente despreparados para aquela situação. O irmão menor dela, Deivid, é quem tem a reação mais tranquila e essa é a forma do filme mostrar que há um fosso separando as gerações a respeito dessa questão, como se as novas gerações estivessem muito melhor paramentadas para aceitar, com naturalidade, a diversidade de sentimentos que a vida oferece e sempre ofereceu.
O irmão, bem mais novo que ela, é bom de bola. Mas seu sonho não é ser jogador de futebol, e sim astronauta, o que enseja outra possibilidade de conflito no interior dessa família, que no seu microcosmo está representando parcialmente o conflito de todo um país. Isso porque parte da cisão vivenciada por brasileiros e brasileiras reside na inconformidade de representativos segmentos com os espaços sociais que lhes foram historicamente determinados na sociedade brasileira. E também na rejeição do confinamento dos desejos. O menino expressa o aspecto econômico da questão. Sendo negro e periférico, o futebol seria seu caminho "natural" e uma carreira científica especializada um vislumbre impossível. Eunice expressa formas de desejo que antes eram vivenciadas com timidez e vergonha, mas que as novas gerações têm assumido com orgulho incômodo aos que não sabem ou que desaprenderam a amar, miseravelmente ressentidos.
Se no âmbito familiar tais questões são tão complicadas de resolver, quando as ligações pessoais saem de cena numa sociedade em que a segmentação dos espaços de convivência (econômicos e morais) é marcante, a empatia desbota, gerando incompreensões e hostilidades explicáveis por fatores perversos da subjetividade humana. Marte Um tem o mérito de mostrar essa segmentação e de, através do cinema, encurtar os espaços de incompreensão, "re-naturalizando" na sociedade brasileira a dimensão dos desejos, dos afetos e dos lugares das pessoas na vida produtiva e econômica. Não há nada a temer nessa dinâmica e não há força que a impeça de fluir.
Já escrevi sobre o cinema do diretor Eric Rohmer (1920-2010) numa análise do filme O Joelho de Claire (1970), obra que se passa no sudeste da França e que tem como uma de suas virtudes a cadência entre o mundo exterior e bucólico de Annecy e o mundo interior e contemplativo dos personagens. Em Amor à Tarde (1972), esse mestre da Nouvelle Vague nos encanta por meio da cidade de Paris e, em paralelo, por meio do seu novo protagonista, Frederic (Bernard Valey), cuja interioridade parece acompanhar a turbulência de uma das maiores cidades do planeta.
Casado com Helene (Françoise Verley), que está grávida à espera do segundo filho do casal, Frederic é um sujeito oprimido e angustiado com o estado do seu casamento. Rohmer utiliza como recurso para expressar essa angústia a narração em off, a técnica mais literária do cinema, nas cenas de Frederic num café e no trem, momentos em que ele, ostensivamente, aparece desejando ou imaginando casos com outras mulheres. Um dia, Chloe (Zouzou), uma amiga de seu tempo de solteiro, aparece no seu escritório e os dois passam a se encontrar com frequência. O desejo de Frederic é testado. Tão grande quanto esse sentimento é o seu moralismo burguês e então passamos a maior parte da narrativa contemplando esse duelo do desejo x moral.
Gosto de filmes com as características do cinema de Rohmer. Nele, em geral, há uma boa medida de humanidade combinada com o mais elevado domínio de direção cinematográfica. Seus personagens são confrontados por questões filosóficas e existenciais de caráter universal e, por isso, somos facilmente levados a assistir seus filmes colocando-nos no lugar dos seus personagens, julgando seus atos e reflexões. É uma humanidade idiossincrática, mas não irreal e muito menos talhada para expressar pobremente um tipo ideal. Por isso mesmo sua moral é posta em xeque pelos eventos vitais, sem que seja possível prever o resultado dos seus atos.
O cinema de tipo comercial, para atender a diferentes nichos de consumidores, sempre foi uma realidade e hoje se espraia com conteúdos ainda mais diversos com o propósito de alinhar-se à notável diversidade de espectadores pagantes. Rohmer é atemporal, está acima disso. Sobrevive como um cinema que fala da natureza humana com maior profundidade, mas sem se encerrar numa prescrição do que deveríamos ser. Particularmente, neste filme e em O Joelho de Claire ele nos fala com profundidade sobre a natureza do desejo, uma profundidade que se manifesta nos diálogos bem construídos e no desfecho elegante para os seus personagens.
Meu primeiro contato com o cinema do diretor húngaro Zoltán Fabri (1917-1994), Hangyaboly (1971) tem apenas dois votos na principal rede social de cinema do Brasil, o filmow; é, assim, um filme desconhecido do público brasileiro. Esse desconhecimento, no entanto, não se justifica perante a qualidade do filme e do seu tema. Hangyaboly se passa num convento húngaro no final do século XIX, onde um conflito está prestes a ganhar corpo: com a morte iminente da madre superiora, instala-se uma disputa entre dois grupos de religiosas do local, um progressista e outro conservador, para a eleição que acontecerá em breve e que escolherá a nova autoridade máxima do lugar. O filme é baseado no livro da autora Margit Kaffka (1880-1918), que o escreveu a partir das memórias dos seus anos em um convento na Hungria.
Além da temática política já descrita, atemporal no Ocidente - que desde o final do século XVIII se vê enredado nesse tipo de dicotomia -, outra questão aparece desbravada pelo filme, entrelaçada ao enredo político: a inata natureza sexual dos seres humanos. A freira do lado "progressista" que exerce um papel de articuladora e líder dos interesses mais abertamente reformadores do convento, tem uma paixão mal contida pela candidata que ela mesmo alçou à disputa pelo posto de futura madre. Ao situar essas disposições políticas e amorosas em um convento, onde tais questões teoricamente deveriam ser objeto de menor cisão, o filme, mesmo sem ter essa intenção, coloca em primeiro plano a força da natureza humana, imparável mesmo sob a tentativa de regência de instituições de controle muito poderosas como é o caso da Igreja Católica.
Além disso, Fabri antecipa, em um momento da disputa entre os diferentes grupos, uma arma do embate político que passou a ser usado de forma mais constante, no Ocidente, muitos anos depois do lançamento desse filme: a capacidade de deslinde de um conflito a partir do discurso moral. Em um momento-chave pela definição da candidatura e na arregimentação dos votos, a freira líder do nicho progressista tem uma fala num momento de encontro dos dois campos que é irrefutável, elencando aspectos religiosos para confrontar o movimento das freiras conservadoras e praticamente selando o provável triunfo na eleição.
Mais de 50 anos nos separam do lançamento de Hangyaboly, mas bons filmes envelhecem sem sentir o peso de sua idade. Esse é um deles.
O hábito de defrontar-se com grandes personagens, sejam eles literários ou oriundos do cinema, nos coloca em confronto com a nossa humanidade, com nossos valores e práticas existenciais. A qualidade de tais personagens vale pelas reflexões, pelas paixões, por uma humanidade que se aproxima da nossa, com a qual temos contato e que faz da experiência cinematográfica algo fortemente pessoal.
Fernando Robles, professor de letras argentino, é um desses personagens. Acompanhamos sua vida, aos 60 e tantos anos, quando ele está prestes a ser aposentado por decreto. "Não é peronista, não é radical, não é nada", diz o reitor da instituição, justificando a opção por sua exoneração da instituição de ensino. Morando em um dos melhores bairros de Buenos Aires, a Recoleta, e sem fonte de renda ou patrimônio que permita manter sua qualidade de vida atual, ele e a esposa precisam tomar uma decisão importante numa fase particularmente mais delicada da vida.
Em um caderno, ao mesmo tempo em que está lidando com esse imbróglio pessoal, Robles escreve algumas reflexões pessoais. Também mantém uma relação longa de amizade com o seu advogado, pouco mais novo. Em um jantar de casais, conversam sobre política e o desânimo com o futuro é nítido. "A guerra foi ganha pelos donos do mundo de tal forma que permitem que ainda exista a esquerda. Ninguém aposta mais nisso. Não existe mais ameaça de revolução, é ameaça de grafiteiros".
As melhores reflexões, no entanto, estão na 2ª metade do filme, pois essas sim, diferente da digressão sobre política, são definitivas. Em um momento de niilismo, reconhece que "só é possível manter a sanidade cumprindo sua rotina de acordo com as regras, até com as que não acredita, porque a lucidez nos faz a ver que a vida é tão banal que não pode ser vivida como tragédia". Difícil discordar disso.
Política, amor e existência são o fundamento do repertório discursivo do protagonista. Aqui a Argentina urbana e rural se cruzam para formar um filme comovente, que assume também um discurso sobre o continente a partir de suas crises e as conturbadas relações da sociedade civil com o poder político, das quais emanam ondas periódicas de entusiasmo e de pessimismo.
Não sou especialista em Cuba e a minha intenção ao comentar esse filme não é atualizar, para o ano de 2022, a maneira como os direitos dos homossexuais são levados em conta na ilha. Fresa y chocolate (1994) é tido um dos grandes filmes latino-americanos e acho que seria considerado bastante datado se o foco de análise fosse baseado exclusivamente na perspectiva dos direitos.
O que faz esse filme ser gigante e atemporal é o seu humanismo. Os dois personagens principais aparecem inicialmente com fortes tendências antagônicas; um é o universitário David, membro da juventude comunista, consciente e orgulhoso sobre o papel da revolução em sua trajetória pessoal. O outro, Diego, é um pouco mais velho, artista, homossexual, católico e, embora crítico dos Estados Unidos, revela sua decepção com o regime político do país por inviabilizar suas tentativas de expressar-se artisticamente fora da normatividade do sistema político.
O primeiro encontro entre eles os levam ao cenário dominante do filme, o prédio onde Diego mora. Diego, na verdade, arquiteta maneiras de fazer com que David retorne e em cada retorno a animosidade e os preconceitos deste vão esmorecendo. É nessa gradação que está o grande truque e nela a arte de um grande cineasta e atores alicerça o filme a uma posição superior na hierarquia cinematográfica. Isso porque a gradação é coerente e justificada e as emoções são sinceras. A alteridade entre eles se desenvolve com compreensão e afeto no tempo dos próprios encontros. O que comove e os ligam, definitivamente, são os diálogos humanistas, que desarmam de vez qualquer divisão.
A narrativa de Fresa y chocolate é otimista por um lado, à medida que propõe a capacidade de formação dos elos a partir de uma qualidade empática imanente a todos nós. Por outro, essa qualidade é muito difícil de por em prática, pois há uma barreira resultante de grandes narrativas que busca anular a complexidade do outro. Numa era de imensa superficialidade do processo comunicativo como a que vivemos, o filme prorroga a sua validade, ressignifica os encontros humanos e se torna indispensável.
"Achávamos que mudaríamos o mundo, mas foi o mundo que nos mudou"
Obra-prima de um dos maiores cineastas italianos, Ettore Scola, Nós que nos Amávamos Tantos (1974) conta a história de três amigos, Gianni, Antonio e Nicola, em Roma, após o término da Segunda Guerra Mundial. Os três estiveram na resistência civil ao lado dos Aliados e agora acreditam fazer parte de uma geração portadora da árdua missão de remodelar um mundo flagelado em pouco tempo pelo horror de duas guerras de proporções colossais.
O tema de Scola é ótimo e é atemporal. Em Sorte Cega (1987), de Krzysztof Kieslowski, um professor diz aos seus alunos, na Polônia ainda albergada no Pacto de Varsórvia: "Toda geração precisa de luz, precisa saber e acreditar que o mundo pode ser um lugar melhor. Esta necessidade, que é mais velha que Marx e mais nova que Marx é como uma droga. Durante esses 40 anos, eu vivi muitas coisas e vejo isso mais distante do que antes, assim eu não devia encorajá-los. Mas, acreditem em mim, a vida sem essa esperança, sem essa amargura, não valerá a pena ser vivida". Não há nada que defina melhor Nós que nos amávamos tanto do que essa fala do filme polonês.
Além do tema, o filme é bem feito, não é excessivamente artificioso em seu conteúdo, apesar da ambição de lidar com um anseio universal que permeia todas as gerações pelo menos desde a Revolução Francesa.
Uma segunda característica, também universal desse filme, está aí na epígrafe. O mundo é constituído de severa injustiça e hoje, mais do que nos anos 1970, é ainda mais carregado de individualismo e competitividade - e isso não é aleatório, é pensado e construído para ser assim. Já falei sobre isso no documentário do Território Suape, inclusive sobre as políticas públicas que ajudam a contrapor o âmago funcionalista do sistema.
O filme de Scola fala dessa crueldade e de como ela transforma as pessoas, mas não é desesperançoso, pois fala também dos valores que dão sentido à existência e que, não à toa, constituem o front contemporâneo mais eficiente em prol da mudança social.
Assim como O Julgamento de Deus, sobre o qual já escrevi, Diplomatie também se passa em 1944. Ambos retratam momentos pessoais excruciantes, o dia mais decisivo na vida dos seus personagens, de modo que o básico do básico é que os atores consigam refletir em seus gestos e falas a gravidade da ocasião e que toda a carga dramática seja transmitida sem faltas e sem excessos; sem isso é impossível realizar a contundente proposta de imersão sugerida pelos enredos. Em ambos os filmes essa execução é exímia.
No caso de Diplomatie, a história conta o encontro ocorrido no Hotel Maurice, em 25/08/1944, hotel que está a poucos metros de onde sucumbiu o Palácio das Tulherias (1564-1871), última residência oficial de Luís XVI, e próximo de onde o rei e a rainha, como também Robespierre e Danton - e outro milhar de franceses - foram guilhotinados. Na suíte que já foi residência de uma amante de Napoleão III, estão um diplomata sueco e um general alemão, governador da Paris sob ocupação nazista. O diplomata assume para si uma missão muito difícil, convencer o general a abandonar o plano de Hitler para a capital francesa, que é o de destruição total da cidade, deixando-a debaixo de água com explosões táticas em vários lugares de Paris.
O diplomata, para alcançar esse objetivo, vai recorrer a um verdadeiro arsenal de argumentos, apelando para a emoção e para a razão do general. Como o filme se passa todo em apenas uma locação, o desafio para o diretor é manter o ritmo de tensão durante pouco mais de uma hora de idas e vindas e instrumentalizando diferentes técnicas e argumentos para convencer um general aparentemente irredutível. As duas coisas funcionam bem, somos carregados para a atmosfera densa que envolve um momento chave da II Guerra Mundial e sentimos como a fluidez das argumentações vão desarmando paulatinamente a couraça emocional do general, permitindo uma abertura mais pessoal para as tratativas.
Mudanças bruscas no mundo moderno foram decididas não só no campo de batalha, mas em reuniões em salas fechadas. Diplomatie consegue replicar com excelência os desafios para a formação de acordos quando um dos lados parece irredutível.
"Antes ou depois, pouco importa. Há algo muito bonito na amizade que deveríamos encontrar no amor: Respeito à liberdade do outro. Não há essa ideia de posse".
Eric Rohmer (1920-2010) foi um dos grandes cineastas da história, dirigiu filmes em uma época de explosão criativa do cinema e imprimiu uma marca própria como diretor. Quando, vez por outra, aparece um filme marcado muito mais por diálogos do que por ação, rememoro o pioneirismo desse diretor à frente de obras magníficas como a desta postagem, Le genou de Claire (1970).
O enredo se desenvolve numa deslumbrante cidade alpina no sudeste da França, Annecy. Quase tudo acontece numa grande casa à beira do imenso lago que existe na região, um cenário acentuadamente bucólico em que a vida parece suspensa e que remete aos prazeres da contemplação interior.
É nesse estado mental de tranquilidade que Jerome, 37 anos, diplomata de férias na região, reencontra sua amiga, Aurora, uma escritora italiana que alugou um quarto nessa imensa propriedade que Jerome visita. A dona do imóvel tem duas filhas e o tempo da trama é praticamente dividido por igual com base no flerte que Jerome tem com cada uma delas, incentivado pela amiga mais como uma brincadeira lúdica entre eles do que por um desejo substancial.
Os diálogos em sua maioria são bem construídos. Existem filmes que deveriam ser vistos como parte de um processo de educação pessoal para a conexão profunda que as conversas podem produzir entre as pessoas (v. 303, Antes do Amanhecer, Meu Jantar com André). Rohmer estabelece um parâmetro de altíssimo nível, pois as conversações transcorrem, neste filme, sem atropelos, têm imensa carga de pessoalidade, alteridade e nenhum moralismo. São cenas muito agradáveis de assistir.
Apesar da aparência de filme despretensioso, Le genou de Claire é um filme que exala, de forma natural, sensações de liberdade e, de uma forma muito pura, de desejo. Há uma utopia sempre agradável de se reencontrar em Rohmer.
Quando escrevo/falo sobre um filme ou livro, espero atingir o objetivo de apresentar por que ele é interessante/relevante. Se não for minimamente interessante, não vale a pena escrever sobre ele. Apresentar o enredo me importa menos, a arte pode nos afetar de diversas maneiras, mesmo ao tratar de uma história que, aparentemente, não é promissora. É preciso, contudo, estar com a mente aberta para captar aquilo que é dito e sentido pelos personagens, abdicar um pouco do autointeresse para participar de uma situação nova e de motivações que, eventualmente, nada terão a ver com as nossas.
God on Trial (2008, Andy De Emmony) não padece de nenhum problema de apresentação, é um filme que desperta curiosidade imediata: prisioneiros judeus, entre os quais diversos intelectuais, encerrados num campo de concentração de Auschwitz, alguns dos quais estão a poucas horas de serem enviados para a câmara de gás, decidem promover o julgamento de Deus. Eles improvisam um tribunal dentro do alojamento em que estão confinados e iniciam os processos de acusação e de defesa, tendo como base a ideia de que Deus descumpriu a sua parte no acordo feito com os judeus.
A execução do filme é perfeita. Há dor, medo e ódio sinceros nos personagens, eles são autênticos em seus sentimentos. Acompanhamos as defesas e acusações não apenas com base nos argumentos, mas também a partir das emoções. Em alguns momentos, saímos mais convencidos de uma fala pela sensibilidade que dela se manifesta do que propriamente pela força do argumento. Isso é um efeito muito relevante que God on Trial provoca e que diz respeito também à nossa capacidade de, no dia a dia, sermos afetados pelas narrativas sociais que nos rondam de diversos modos.
O argumento também importa. Sozinhas, as emoções são limitadas. Têm baixo poder persuasivo. Por isso o exercício da liderança requer conhecer sobre o que se fala e acreditar no que se diz. Argumento e emoção aparecem com altíssimo nível de parte a parte do julgamento, fazendo desse filme uma obra-prima em manejo do discurso e das ideias.
A sentença, sem dúvida, resultou de qual das partes melhor soube comover e argumentar.
Dans la ville blanche (1983, Alain Tanner) fala de um marinheiro suíço que aporta em Lisboa e passa um período na cidade, sem qualquer objetivo definido. Ele se envolve com uma moça bem mais nova, que trabalha na pousada meio decaída onde se hospeda. Enquanto isso, se corresponde constantemente com a esposa na Suíça, através de carta e de vídeos que ele grava despretensiosamente em suas andanças solitárias pela cidade.
O filme ganha ares de poesia e elementos filosóficos a partir do imenso zelo na direção de arte. A fotografia e a melodia que compõem o limitado itinerário do protagonista em Lisboa se encaixam com perfeição, tudo tá devidamente calculado pra nos colocar lado a lado do marinheiro e, como resultado, sentimos a solidão poética do homem. Fica parecendo fácil manejar música, narrativa e cenário tamanha a qualidade do arranjo feito pelo diretor.
Sentimos também a liberdade e o desejo existencial do protagonista, o que nos remete a questionar de onde vêm pessoas assim, que conservam, apesar da passagem do tempo, essa qualidade de evocar a novidade nas pequenas coisas, que reparam nos detalhes e que preservam uma ingenuidade que, sem exceção, vê nas pessoas antes de tudo seu melhor lado. O personagem principal exala uma vitalidade apaixonada e pura.
É um filme de imensa interioridade, provocada pela maneira como a solidão e as atitudes do personagem são trabalhadas. Trata-se de um filme extremamente bem dirigido e que nos provoca, com imensa sensibilidade, a refletir sobre o que há de fugaz e profundo na existência.
A evolução do gênero documentário no país retrata com fidedignidade transformações importantíssimas na sociabilidade política dos brasileiros e seus efeitos na imaginação e iniciativa políticas. A uberização do trabalho (2019), por ex, nos confronta com uma realidade de precarização do trabalho e de direitos e o ambiente de intensa competição e favorecimento "por baixo dos panos" a motoristas acríticos e despolitizados. As regras do jogo são cruéis contra os que tentam contrariar o sistema.
No tradicional modelo fabril, temos o documentário Estou me guardando pra quando o carnaval chegar (2019) que mostra as adaptações desse sistema de produção a partir das facções, em Toritama/PE, cidade considerada a capital do jeans. A precarização tem efeitos na intimidade desses trabalhadores de maneira semelhante ao que ocorre na dos motoristas de uber, numa aceitação passiva das regras e, mais ainda, numa competição que impede a solidariedade e contribui para a reprodução de uma lógica sistêmica que acentua a exclusão e a concentração de renda.
Na contramão da fragilidade política da outrora combativa classe trabalhadora, o doc Território Suape (2020) mostra como a politização por meio de categorias identitárias e também de lutas urbanas decorrentes da elevação da consciência possibilitada pela expansão do acesso da periferia às universidades promove um alastramento da vida cívica. Perdemos um importante contingente laboral na vida política, por um lado, ganhamos, por outro, um novo tão relevante quanto aquele em declínio.
Neste doc, a expansão citadina da região em torno do Complexo de Suape é confrontada com discursos sociais contundentes, emanados da própria periferia e não por porta-vozes iluminados. Chocam a imensa disparidade e a naturalidade com que o poder público atende às demandas dos mais ricos. Mas a resistência é vívida.
O doc ajuda a perceber a origem primitiva do ódio de alguns setores à expansão da educação e à politização dos debaixo. É com políticas públicas inclusivas e de aumento da socialização por meio ensino superior público/IFs que grande contingente antes excluído vem descobrindo e mudando o modo de organizar e fazer política.
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A Pequena Loja da Rua Principal
4.4 43 Assista Agora"Você ficaria doente se usasse a saudação fascista, é isso? Você acha que seu braço iria entorpecer se o levantasse para cumprimentar?"
Mesmo cinéfilos de longa data podem se surpreender com diferentes enquadramentos, personagens e ambientes para retratar o contexto da II Guerra Mundial a partir de filmes que estão fora do mainstream. Alguns dos melhores filmes já produzidos na Europa se alimentam não diretamente dos conflitos armados, como fazem ainda hoje os estadunidenses, mas da vida das pessoas em suas existências cotidianas em meio à gravidade do seu tempo. Hollywood ganha nas bilheterias, mas perde e perde de muito na reconstrução da subjetividade e complexidade que envolve os conflitos.
A Pequena Loja da Rua Principal, filme de 1965, se passa em uma cidade provinciana da Checoslováquia, em 1942, quando o país estava sob o jugo dos nazistas. Nessa cidade, o processo de "arianização" está a todo vapor, e especificamente as últimas lojas comerciais pertencentes aos judeus, as menos valiosas, estão sendo transferidas para os não-judeus, em especial os colaboracionistas. O cunhado de Brtko, protagonista do filme, é um dos mais notórios e entusiastas colaboradores do regime de ocupação e empreende, logo no início do enredo, a transferência da loja de uma velha senhora judia (senhora Lautmann) a Brtko.
O filme lança mão de elementos cômicos, fazendo certa menção à arte de Charles Chaplin, para aliviar um pouco o peso que a própria temática carrega. Quando Brtko vai à loja da senhora Lautmann para arianização da loja, percebe que ela já não escuta bem e a coisa se torna um pouco ridícula; ela não entende o que ele diz e também não consegue ler o documento oficial que Brtko tem nas mãos. É graças à mediação de um checo, amigo dos judeus, que os três conseguem se entender e que Brtko nota que a loja, que lhe havia caído como graças, já fora, anteriormente, rapinada e que o presente é, como se diz, "de grego".
Brtko é um típico tolo, alguém que nos filmes aparece em funções que envolvem pouco talento e imaginação. Em casa, os ânimos pendem para lá e para cá à medida que Brtko oferece à mulher condições materiais melhores do que aquelas em que vivem. A esposa aparece em completo alijamento da realidade à sua volta, das perseguições e humilhações proferidas contra os judeus, interessada exclusivamente em seu próprio destino e em frugalidades de seu estado apartado.
A tolice de Brtko é, assim, acossada constantemente por essa situação de alienação no lar - onde ele não pode contar todos os eventos que compõem a sua aliança provisória com os judeus - como acossada também pela empatia e preocupação que vai assumindo em relação à senhora Lautmann, com quem nos identificamos em sua quase absoluta solidão. À medida que a perseguição aos judeus avança mais um passo, o estado mental de Brtko vai acompanhando esse antagonismo, colocando-o diante da escolha mais difícil de sua vida.
A cena final é magistral, uma tenebrosa tentativa de equilíbrio de Brtko, que parecia caminhar resolutamente para uma saída honrosa e heróica, de tolo a herói, mas que é assombrado pelas vozes que ecoam do lado de fora da loja, na praça, com o oficial bradando os nomes dos judeus que devem se juntar para a partida do trem. Sua dúvida entre proteger a senhora Lautmann e arriscar a própria pele como "amigo dos judeus" ou de jogá-la aos lobos é construída com uma imensa carga de tensão, de modo que partilhamos de suas dúvidas morais naquele pequeno momento em que anos da vida são decididos em poucos segundos.
A maior parte da originalidade do filme se situa nesse momento final, de decisão moral do protagonista. Mas sua conversão, embora seja parcialmente em função das rendas que extrai dos judeus, também tem a ver com aspectos menos visíveis e diretos, que aparecem também em nosso enredamento emocional com o filme, a despeito do carinho que vamos cultivando pela senhora Lautmann ou pelo senhor Kuchar, que embora não seja judeu detém um humanismo que o coloca do lado justo das trincheiras.
Edifício Master
4.3 372 Assista Agora"A realidade da vida é o funeral das ilusões"
Sem um contexto de guerra, de crise, sem qualquer ambientação atípica, talvez Edifício Master seja o melhor filme-documentário já produzido a respeito de como é duro e implacável existir no mundo. Sem dizer isso ostensivamente no filme, Eduardo Coutinho o diz por meio de sua mágica: a vasta solidão estética das moradias e daquilo que os moradores (não) falam explicitamente. Trata-se de um profundo contraste em relação ao próprio lugar escolhido pelo diretor: o edifício Master, um prédio de 12 andares, com nada menos que 23 apartamentos por andar, localizado no bairro de Copacabana, um dos mais populosos do país.
Nesse edifício, Eduardo Coutinho entrevista 37 pessoas. Elas se abrem diante das câmeras, expõem suas emoções e se oferecem ao ritual de um dos maiores documentaristas do mundo. Elas ficam pouco tempo diante de nós, mas o suficiente para deixar - ao menos a maioria delas - uma marca singular. É o que cada uma delas procura mesmo expressar, suas singularidades. Quando o documentário termina, queremos saber mais sobre elas, agora que estamos 21 anos distantes de suas vidas de outrora. E assim, sem que o espectador perceba, lhe foi introjetado um pouquinho mais de alteridade, uma qualidade essencial para existir no mundo.
Como Coutinho nos enlaça tanto nesse documentário? Ao retratar essas pessoas, o diretor está falando de nós mesmos. A mistura que ele entrega de medos, desejos, fobias sociais, problemas conjugais e afetivos, violência urbana, solidão, sonhos, relações de classe, frustrações, tudo isso diz respeito às nossas vidas. Vê-los é como contemplar a morte do romantismo, das grandes paixões e ideias. Não há, em nenhum dos entrevistados, solo fértil para sonhar. A vida é crua no edifício Master e ninguém leva a sério o síndico aforista que aparece no começo do filme, mas quando ele diz que "a realidade da vida é o funeral das ilusões" está mesmo nos preparando para o que vem a seguir: uma torrente de sensações que, ao fim e ao cabo, tem tudo a ver com provérbio.
É difícil dizer quem é o mais solitário dos moradores, mas o homem que canta My Way, recordando-se dos seus dias áureos de quando trabalhava nos Estados Unidos, onde ainda moram seus três filhos, é um forte concorrente. Ele chora e imaginamos a falta que faz a esse homem o longínquo mundo dos idos de 1960, 1970. Pensamos no quanto há de recordações de sua ex-esposa, falecida há pouco tempo, a sua história de superação sozinho em outro país; coisas que só fazem sentido para ele e para mais ninguém, mas que se tornam menos importante por isso? O truque do documentário é notarmos o quanto isso é importante, mas também revela que só importa a nós mesmos: a vida é muito solitária não somente no sentido objetivo, dos móveis, da estética do lugar, da quantidade de pessoas que residem no espaço, mas num ambiente ainda mais amplo, o da mente, pois é impossível acessar o processo emocional do outro de forma consistente - Edifício Master é um breve relampejo de contato.
O documentário é de uma falsa simplicidade. O mundo pode ser acessado nesse documentário, ao menos no que diz respeito ao que mais nos importa ou deveria nos importar. Ele nos comove, eleva nossa capacidade emocional e é de um realismo desafiador. Essa busca de Coutinho por verdades que não estão aparentes e que são captadas magistralmente pelo diretor é o que fez dele um dos nossos maiores cineastas.
Candelaria
4.1 38Candelaria e Victor Hugo, casal de cubanos, levam uma vida de sobreviventes. Na década de 1990, período de grave crise econômica em Cuba, os dois, idosos, trabalham para sustentar-se do jeito que dá, sob imensas dificuldades. No prédio em que moram, o racionamento de luz constante e a escassez de refeições fazem de suas vidas uma batalha cotidiana, inclusive à margem da legalidade: Victor Hugo desvia parte dos charutos da fábrica onde trabalha para vender no mercado paralelo e complementar a renda. Numa das primeiras cenas, o casal está deitado, prestes a dormir, e Candelaria observa o lustre no teto, adorno de tempos muito antigos e já sem qualquer função, e sugere, bem humorada, uma história que sairia no Granma (jornal oficial) sobre um lustre inútil que cai do teto matando dois idosos. As coisas parecem mortas por fora, mas pulsam por dentro.
A vida do casal está prestes a mudar. No hotel em que trabalha, Candelaria, cuja função é separar lençóis e roupas sujas na lavanderia, se depara com uma câmera filmadora que é jogada por engano, pelo duto do hotel, por uma das funcionárias da limpeza. Ela leva o objeto para a casa na esperança de fazer algum dinheiro com ele, mas Victor Hugo não quer que ela se envolva em qualquer ilegalidade, por isso lhe diz para devolver a câmera. O objeto logo perde a função comercial e ganha função afetiva, quando Victor Hugo, à noite, resolve testar o equipamento e grava Candelaria se preparando para dormir. Isso desperta nele emoções que pareciam adormecidas e nos faz lembrar uma criança descobrindo um brinquedo novo e encantador.
Candelaria passa a se entregar a esse jogo junto com o marido. Ela se filma para que ele a assista. Ele se empolga numa manhã e tenta beijá-la na praça em uma bela cena cômica - ela rejeita o gesto abruptamente pois há muito tempo que ele não a beija. Há um voyeurismo tardio que Victor Hugo descobre nessa conexão com a câmera, pois os vídeos parecem revelar a ele algo que sem o apoio do aparelho não lhe era visível aos olhos. Vemos o despertar de algo mágico presente nos enquadramentos, na encenação, na naturalidade com que esses corpos se desnudam e se revelam em uma beleza que diz respeito não exclusivamente ao aspecto físico, mas na magia de uma força primitiva que imaginavam não existir mais.
Acessamos a crise econômica do país especialmente através da rádio oficial, é por ele que o casal se informa sobre as dificuldades de Cuba. Misturada à atmosfera melancólica e sem vida da residência do casal, a cena gera uma caótica recordação do ambiente orwelliano de 1984, com a teletela anunciando os sucessos do regime político na economia. Mas não vejo o filme como uma crítica ao governo de Cuba. Essa tensa convivência com o embargo econômico, e sua trajetória como minoritário ponto de resistência à lógica da ordem global, acabam fazendo parte necessariamente de plano de fundo de qualquer filme que trate minimamente de aspectos sociais do país.
A redescoberta do desejo rende a melhor cena do filme, uma combinação de vida e de tristeza ao mesmo tempo, pois as coisas andam mais juntas do que a maioria das pessoas gostaria de admitir. Victor Hugo vendeu um relógio antigo e caro por uma mixaria. Tudo isso para proporcionar uma noite mais íntima com Candelaria. Nessa noite, a mesa é farta, eles riem, se divertem e, pouco antes de fazerem amor, trocando carícias, Candelaria sente falta do relógio e critica Victor Hugo por vendê-lo. Ele responde com muita ternura: "o que fazemos guardando coisas quando podemos morrer amanhã?" e então um estalo desperta em Candelaria todo o esforço que o homem teve e as renúncias para proporcionar a ambos um momento que transcende qualquer noção objetivada de valor.
Meu Jantar com André
4.1 771981. Dois amigos, homens de meia idade, se reúnem para jantar em Nova York: Wallace Shawm e André Gregory. Nos próximos cem minutos eles protagonizarão um dos encontros mais emblemáticos da história do cinema, apesar da sua completa ausência de presunção. O filme se desenvolve em praticamente uma única locação, um restaurante na região central de Manhattan, e Wallace e André nos transportam, por meio da imaginação, para florestas e desertos, para experiências místicas de uma existência que se alarga por redescobertas que são, de fato, extraordinárias.
Meu Jantar com André é uma obra-prima de homenagem ao diálogo. Os dois personagens falam, escutam, cada qual no seu tempo. A conversa é humana, pessoal, André se expõe sem medo, Wallace é um bom interlocutor e desenvolve convincentemente seus argumentos, ambos são interessantes e revelam, em suas falas, algo de fundamental na existência humana: uma busca sincera pelas sensações que emanam da vida, sejam elas resultados dos pequenos hábitos ou dos momentos raros e inesquecíveis.
Mais especificamente, eles veem essas coisas de maneira oposta. Insatisfeito com a vida em Nova York, André foi em busca de regiões menos opulentas e de vivências mais simples e conectadas com a natureza primitiva para escapar da asfixia da cidade grande. Sua opinião é de que o grande mundo urbano foi tomado por um estado onírico em que as pessoas não veem umas às outras, as relações são superficiais e a comodidade do consumo nos impede de ver as coisas como são. Wallace não discorda, mas acredita que a vida já é dura o suficiente e que são as comodidades que tornam a existência possível.
É provável que a diferença de renda dos personagens seja o verdadeiro divisor de águas entre eles. A esposa de Wallace, como ficamos sabendo no início, começou a trabalhar fora para complementar a renda. Ele se desloca para o restaurante em um metrô caindo aos pedaços. André, por sua vez, é rico e é quem paga a conta do restaurante ao final do encontro. Para Wallace, o cobertor elétrico, à noite, na hora de dormir, é uma fuga dos sofrimentos e seu contentamento está no café quentinho com bolo e jornal pela manhã.
A cena final é linda e torna insuspeitas as ideias de Wallace. No táxi, indo para casa, ele observa e ressignifica os lugares de sua infância. A conversa com André o marcou como um daqueles grandes acontecimentos idílicos. A resposta da sua sensibilidade ao jantar diz muito sobre o que significa estar aberto a reagir a um outro ser humano. Livre de qualquer julgamento ou concepção arbitrária e dogmática da vida, o encontro com André teve nele o efeito poético, de uma beleza delicada e inesquecível.
O filme é uma homenagem ao diálogo em que pontos de vista divergentes são expostos sem que isso polarize os dois protagonistas. É um filme que ajuda a educar nossa paciência e atenção como espectadores pois o filme consiste de dois personagens que conversam durante mais de cem minutos. Produz referências universais para o significado de conversar. Trata-se de um filme humanista, em que parte das incertezas de existir são compartilhadas por meio de passagens brilhantes; nesse sentido, produz reflexões duradouras e pessoais sobre a vida e seu significado mais profundo.
O Cremador
4.2 51 Assista AgoraNa Tchecoslováquia, à mercê de uma invasão das tropas alemãs nazistas, um dono de crematório leva uma rotina muito comum: toca seu negócio, compra quadros de gosto duvidoso para casa e tem encontros sexuais no bordel da cidade longe das vistas da esposa. Apesar do espectro totalitário rondando, politicamente não há nada que o desabone, a priori: seu médico é judeu, assim como seus funcionários, cujos nomes são os de grandes músicos como Strauss e Dvorak. O protagonista, contudo, é convencido por um amigo de que tem sangue alemão e de que seus filhos e esposa têm hábitos e características de judeus, o que o leva o "cremador" a uma jornada familiar deteriorante aos olhos do espectador, mas que para o protagonista é tida como uma missão para o bem comum.
O personagem causa uma forte sensação de estranhamento, desde o começo. A habilidade de um grande diretor, com capacidade de manejar os recursos cinematográficos com maestria, desfamiliariza o que há de comum no protagonista ao combinar trilha sonora, movimentos de câmera repletos de desconforto e um ator que transmite com perfeição um ar de exotismo e de psicopatia, para produzir um filme com qualidades sensoriais como só o cinema pode fazê-lo.
Não me parece ser mera coincidência o país do filme ser o mesmo de Franz Kafka. O diretor parece ter encontrado a medida do brilhantismo do escritor em sua transposição para o cinema. Isso porque parte dos personagens que orbitam o dono do crematório parecem ter uma personalidade inanimada, sendo arrastados pelos acontecimentos, sem capacidade de agir sobre eles. A estrutura social pesa sobre os ombros dos personagens do escritor tcheco sem réplica, sem questionamentos, com uma passividade que expressa a passagem de um mundo em que tudo é familiar para um outro, o mundo moderno, profundamente impessoal e burocrático. É o que assistimos acontecer nesse filme de Juraz Herz.
Aqui, contudo, em vez da burocracia kafkiana, temos uma Europa assolada por um fenômeno político e social tão absurdo quanto o da obra de Kafka. O totalitarismo foi um fenômeno que não apenas contaminou as instituições, mas também o senso comunitário, mobilizando um contingente massivo de pessoas que aderiram e militaram voluntariamente em prol de um regime que perseguiu e assassinou adversários políticos e grupos étnicos, sustentando-se por um aparato de opressão e de violência de proporções inéditas na história humana. O resultado artístico desse filme é ser capaz de evocar as sensações de descompasso entre o mundo real e o mundo do protagonista, que se vê como portador de uma missão divina ao aderir voluntariamente ao nazismo.
Apesar de ser um filme muito pouco discutido, O Cremador tem um dos protagonistas mais exóticos da história do cinema, repleto de peculiaridades já descritas, como seu alijamento da realidade e sua jornada como portador de uma consciência mística e messiânica em direção ao nazismo. Além disso, o diretor, compatriota de Kafka, recria o conceito do escritor por meio da linguagem cinematográfica, replicando o absurdo em torno do ambiente totalitário e também, talentosamente, o aspecto subjetivo de parte da sociedade europeia dessa época.
Carvão
3.9 91 Assista AgoraO filme se passa na cidade de Joanópolis/SP e focaliza a vida de uma pequena família rural, composta por um casal, seu filho e um homem idoso (pai dela, de saúde precária). A cena inicial dá o tom do que virá. Em casa, a mãe, de aspecto exausto, mal reage ao filho e ignora os anseios do idoso que, acamado, não é mais capaz de comunicar-se. Não é preciso muito para perceber que a atriz dá vida a uma pessoa cuja rotina de obrigações tirou qualquer brilho de sua existência. Seu olhar de esgotamento e a ausência até mesmo de qualquer remota possibilidade de felicidade faz dela um alvo relativamente fácil pro que virá. A atriz Maeve Jinkings esteve em alguns dos melhores filmes nacionais lançados na última década no país, como Aquarius, O Som ao Redor e Era uma Vez Eu, Verônica e executa o papel de protagonista em Carvão com a qualidade que reafirma a sua relevância para o cinema brasileiro.
Na sequência da cena inicial, a diretora nos dá mais uma dose de boas expectativas para o desenrolar do filme. E aceitamos de bom grado. A visita de uma enfermeira do posto de saúde da cidade ao homem acamado nos traz uma personagem que, ela sozinha, já merecia um filme inteiro: Juracy, interpretada por Aline Marta Maia. A enfermeira faz lembrar uma versão feminina de Anton Chigurh, de Onde os fracos não têm vez (2007), nada menos que um dos mais fascinantes personagens da história do cinema. Com seu jeito sereno e sabedoria de quem parece dominar todos os meandros do submundo, todas as vezes em que Juracy aparece nos passa a impressão de que algo fora do senso comum vai acontecer. E é ela quem apresenta uma proposta de vida e morte como quem oferece um confeito a uma criança.
No enredo, um acordo macabro mediado por Juracy leva à casa dessa família do interior paulista um chefão do tráfico, que deve se refugiar alguns dias no local para assumir uma nova identidade e fugir da perseguição de que é vítima. Curiosamente, as cenas de menor tensão são as que envolvem o homem, dada a nítida ausência de propensão dele à violência, algo que aparece muito mais no marido da protagonista. Este, um homem que se afirma como um "chefe de família", está vivendo um tórrido romance com seu vizinho. O "chefão" rende alguns bons momentos de comédia em suas tiradas irônicas na casa. A necessidade que a família tem de manter em segredo o que passa no ambiente doméstico, como também seus dramas pessoais, sustentam o filme tanto como um bom drama como também como comédia. E isso é proporcionado especialmente pela qualidade do elenco, que entrega uma atuação de alto nível.
Carvão é um filme criativo, mais um para a ótima safra do cinema brasileiro, um dos mais produtivos e de maior qualidade hoje no mundo. Sustenta-se não só pelo roteiro, mas também pela ótima construção dos personagens. O manejo do filme que ora se sai muito bem como suspense, ora comédia, ora drama, demonstra o talento da diretora Carolina Markowicz, que certamente produziu uma obra que vale muito a pena ser vista e apreciada pelo público mais amplo, pois trata-se de um filme muito acessível e ricamente envolvente.
Paloma
3.9 59É impossível falar do cinema brasileiro contemporâneo sem destacar a relevância de Pernambuco nessa seara. Diretores como Kléber Mendonça Filho, Cláudio Assis e Marcelo Gomes têm produzido obras que reinventam a nossa percepção da vida nordestina, com figuras fortes, emblemáticas, que contribuem para povoar a nossa imaginação de cenários, de gentes e de uma visão regionalista que desmonta estereótipos e estimula uma percepção mais complexa da nossa vida social. Se falássemos só de Pernambuco para discutir o cinema nacional, já seria suficiente para avaliar positivamente o saldo recente do Brasil.
Fruto de um país multifacetado e atravessado por contradições regionais e sociais profundas, as nossas gentes e territórios continuam a ser uma fonte inesgotável a alimentar a criatividade artística. Nosso cinema geralmente se saiu bem ao dar visibilidade às questões sociais profundas, tornando-se uma fonte muito rica para conhecer a diversidade brasileira. Marte Um, filme cujo enredo se desenvolve na cidade de Contagem/MG e que estreou em 2022, conta uma história de quebra de paradigmas em que todos os principais personagens são negros.
O filme mais recente de Marcelo Gomes estreou no último mês de novembro e sua narrativa é protagonizada por uma mulher trans, trabalhadora agrícola no interior de Pernambuco, cujo grande sonho é se casar na igreja. É fácil simpatizar com Paloma, interpretada por Kika Sena. Ela tem sonhos e desejos como todas as pessoas, mas encontra obstáculos diferentes das demais pessoas para realizá-los. Por ser mulher trans, vê-se alvo de uma perseguição muito particularizada do seu supervisor no trabalho. Um simples momento de lazer, no clube local, pode se tornar sinônimo de aborrecimento em decorrência de vis preconceitos.
No sorriso de Paloma parece estar toda a alegoria de sua vida. É um sorriso que parece não se completar, se interrompe no meio do caminho, é um sorriso de quem duvida que a felicidade deva existir, mas que não abdica de lutar por ela. E essa luta é ainda mais árdua quando se trata de querer encontrar solidariedade do seu entorno. O padre da cidade, apesar de simpatizar com Paloma, diz que não pode casá-la. O noivo, que trabalha na construção civil, resiste, se preocupa com o que os amigos e a mãe pensarão.
Paloma só encontra solidariedade no bordel, é o único lugar em que é acolhida e respeitada, onde pode se sentir um ser humano de valor. E isso faz muita diferença, é o que compõe o seu cantinho de proteção num mundo que lhe é hostil e que a trata como pária. Talvez seja esse o principal resultado do filme: os valores tradicionais funcionam como uma barreira tão grande para tantos grupos sociais que o caminho para que encontrem espaço e afirmem suas identidades, desejos e valores perpassa necessariamente por transformar seus anseios em formas coletivas de solidariedade e expressão.
Nesse sentido, dá para se extrair uma perspectiva geral sobre a trajetória específica de Paloma. Outro filme brasileiro, de 2013, chamado Favela Gay, conseguiu transmitir essa mesma mensagem, mostrando a vivência de diferentes gerações de homossexuais e travestis nas favelas do Rio de Janeiro e como os preconceitos conseguiram moldar e limitar as experiências de mundo de tantas pessoas. Hoje, nas cidades maiores, as novas gerações conseguem encontrar ambientes mais solidários e fraternos - e isso não porque a sociedade evoluiu, mas porque coletivamente os grupos tornaram suas dores interiores em formas de luta e transformação política.
Ig: @viagem_ao_fim_da_noite
A Mulher da Areia
4.5 96Numa região desértica do Japão, um solitário entomologista acaba cochilando e perdendo o horário de voltar para casa. O morador de um vilarejo próximo oferece a ele uma opção exótica para passar a noite, uma moradia em meio ao deserto de areia, acessível por uma escada de corda, por onde ele deve descer. O homem aceita e ao tentar ir embora no dia seguinte, a escada já não está acessível. Ele caiu numa armadilha e não tem opção a não ser ajudar a jovem viúva a coletar a areia que alimenta algum tipo de comércio do vilarejo e que impede que a casa seja soterrada. Suas tentativas de fuga são inócuas, a princípio, e ele vai se enredando em novos caminhos, nesse lugar, com o passar do tempo.
Dirigido por Hiroshi Teshigahara, A Mulher da Areia (1964) é um dos filmes japoneses mais originais que já assisti, feito em uma época de explosão criativa da indústria cinematográfica desse país. Teshigahara lança mão de pouquíssimos recursos cênicos, mas produz uma obra completa, com fortes marcas da cultura japonesa e também com recursos visuais e metafísicos que transcendem o enredo propriamente dito. Apesar do tempo que nos separa de seu lançamento, trata-se de um desses filmes cujo brilho se mantém intacto e que conserva uma maneira própria e sublime de explorar a subjetividade humana.
Os dois protagonistas funcionam bem. O entomologista é um homem decepcionado com a cidade de Tóquio, com as formalidades e burocracias da vida cotidiana. Ele pesquisa insetos porque busca reconhecimento social, quer seu nome associado a uma descoberta relevante e daí tira seu impulso à vida. A viúva também está em busca desse mesmo reconhecimento, mas de uma maneira mais simples que o pesquisador. Ela não quer sair do vilarejo: por mais precária que seja a vida ali, é naquele lugar que ela se sente útil e de algum modo reconhecida.
O homem empreende diversas formas de fuga. Seus esforços são em vão e ele vai ficando. O ponto alto desse contato entre o entomologista e a viúva é a paixão a que se entregam. De todo modo, é curioso observar como as coisas vão se desdobrando entre eles na casinha ameaçada pela areia. O homem se entendia e nesse tédio descobre maneiras novas de aproveitar seus conhecimentos e aí está a chave para uma ressignificação de sua própria existência.
A vida não tem sentido. Convive-se com isso de diversas maneiras e uma delas é não pensar, apenas aceitar o destino tal como ele veio embrulhado e seguindo em marcha automática desprezando as imensas dádivas que estão à disposição daqueles que, com muita sorte e algum talento, podem chegar a recantos mais inacessíveis da existência. É por esse caminho que Teshigahara nos leva, mas, por outro, também o de transformar nossas inquietações em alimento para povoar esse sentimento de enlevo construtivo.
1945
3.6 28 Assista Agora77 anos nos separam do final da Segunda Guerra Mundial e ainda assim novos longas continuam a surgir tendo como pano de fundo esse momento determinante da história do planeta. É o período da vida humana sobre o qual mais se falou no cinema europeu, mas isso não é empecilho para que novas produções apareçam, seja com ferramentas audiovisuais modernas para retratar o conflito, seja para revivê-lo como ambientação de uma abordagem que não tem a ver exatamente com as altercações bélicas.
Na América Latina, nossa preferência temporal nas produções cinematográficas são as ditaduras militares, uma ferida não cicatrizada do nosso continente, que ainda se vê, lamentavelmente, às voltas com movimentos que pedem o retorno dos militares ao poder. Por isso vem bem a calhar o filme Argentina, 1985 (Santiago Mitre, 2022), estrelado por Ricardo Darín, rememorando o ano em que o país deu voz às dores e humilhações provocadas pelo seu regime autoritário.
O filme húngaro desta postagem, 1945, foi lançado em 2017. Dirigido por Ferenc Török, concentra todo o esquema narrativo num dia pós fim da Segunda Guerra Mundial, em uma vila no interior da Hungria, após a derrota do Eixo. Não há aqui nenhum movimento de exércitos, toda a batalha reside na consciência dos seus moradores, e a técnica narrativa vai nos entregando aos poucos o tamanho da culpa que se carrega no lugar: antes da guerra, os judeus prosperavam nessas terras e agora suas casas e comércio estão nas mãos de amigos e vizinhos, que se tornaram colaboradores do nazismo.
A chegada de dois judeus ortodoxos à vila, que atravessam a localidade com misteriosas caixas, tem efeito de uma implosão para os seus moradores, que acreditam que a dupla está de volta para cobrar os despojos da perseguição aos judeus, a mando dos antigos moradores. Isso divide a vila, colocando-a em brutal estado de ansiedade e mexendo com o destino das pessoas do lugar.
1945 é um filme de viés moral e sua melhor cena consiste no momento em que o dirigente da vila, ao descobrir por que os dois judeus estavam na localidade, tenta ser amigável com eles. O mais velho da dupla, um homem que parece carregar a verdade do mundo em seu semblante, lança um olhar ao seu interlocutor que seria suficiente para arrebatar o dirigente, caso nele houvesse alguma coisa a se chamar de alma.
O último filme húngaro sobre o qual escrevi, chamado O Quinto Selo (Zoltán Fabri, 1976), também se passa no contexto da guerra, e nele também se revelam questões muito profundas. Trata-se de uma grande contribuição que os europeus deram ao cinema, ao transformar os horrores da guerra em um processo crítico a respeito da nossa humanidade.
Timbuktu
3.8 134 Assista AgoraAprende-se muito sobre a diversidade étnica e cultural, sobre os conflitos regionais, sociais, políticos e religiosos do mundo a partir do cinema. E o cinema contemporâneo tem sido uma arma muito eficiente para desconstruir diferentes clichês a respeito dos mais variados povos, especialmente quando se tratam de povos cujo imaginário só é mobilizado por meio de guerras ou conflitos de diferentes tipos. Ter acesso a uma subjetividade mais ampla e complexa é uma das formas mais intensas de se interessar de maneira autêntica pelas gentes e pelo mundo e bons filmes são capazes de retratar essa diversidade de forma muito comovente.
Timbuktu (Abderrahmane Sissako, 2014) é um filme que se passa no Mali, na África Ocidental. No enredo, a cidade de Timbuktu é invadida por extremistas do Estado Islâmico e a população passa a sofrer perseguições e ameaças da milícia armada que ocupa a cidade, sendo forçada a adotar costumes que pouco têm a ver com os hábitos anteriormente vivenciados na comunidade. Apenas pela força bruta os terroristas conseguem o que quer, mas mesmo sob o domínio das armas há imensa resistência de uma população que já conta com poucos recursos à disposição para dotar de sentido a própria vida.
Numa cena de plena beleza poética, meninos da comunidade, proibidos de jogar futebol, utilizam a criatividade para alimentar uma partida com uma bola que existe apenas na imaginação deles. Quando a milícia aparece, eles fingem que estão fazendo exercícios. Há limites para dobrar a natureza humana, que resiste mesmo sob o implacável domínio da violência.
Nesse sentido, Timbuktu apresenta uma comunidade que nada tem a ver com cenas televisivas de pessoas enfurecidas erguendo e balançando armas jurando vingança em nome de uma figura religiosa. São apaixonadas por futebol, por música (outra cena belíssima está ligada à música) e por uma vida melhor materialmente. Uma das coisas mais marcantes e expressivas desse filme são os rostos das pessoas, rostos que não mentem, que expressam muita dor, certa resignação e uma permanente contenção de suas vidas, suprimindo sua humanidade mais profunda. O rosto denuncia.
O último filme sobre o qual escrevi, apesar de passar na Hungria, poderia se passar em qualquer lugar do mundo ocidental, pois seu tema está bem ancorado nessa região do mundo. O fanatismo religioso e os conflitos derivados dele é um tema que ocupa parte importante da cinematografia contemporânea de partes da África e da Ásia, a exemplo de filmes como Papicha (2019), a Pedra de Paciência (2014) e E Agora, Aonde Vamos? (2011). Há uma coisa em comum nesses filmes: a resistência é sobretudo de gênero, emana das mulheres. Apesar de tudo, há esperança e ela é feminina.
Marte Um
4.1 302 Assista AgoraO cinema pode despertar a imaginação de diferentes maneiras, não existe uma fórmula exata ou correta para fazê-lo. O cinema brasileiro é um dos mais hábeis do mundo na arte específica de lidar com o aspecto social, há imensa oportunidade para isso: a curiosidade aguçada pelo cotidiano apinhado de contradições e as idiossincrasias da vida social. Um dos filmes de maior apelo comercial e de impacto cultural já produzido no país, Tropa de Elite, se passa nas favelas cariocas, e o imaginário dos brasileiros acerca delas é permeado por imagens excêntricas - corroborado negativamente, nesse caso, pelo próprio filme.
Marte Um (Gabriel Martins, 2022) replica essa grande habilidade do cinema nacional e resolve falar para as multidões, num tipo de produção que se engaja, assume uma postura política diante dos turbilhões da vida nacional. Indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme internacional, o filme focaliza a vida de uma família negra e periférica de Contagem/MG, cujos membros estão vivenciando importantes decisões pessoais, e nessas decisões aparecem, como plano de fundo, enfrentamentos a questões que vêm dissolvendo a maneira como o Brasil historicamente se enxerga e de onde emanam nossos conflitos sociais mais contemporâneos.
Eunice, a irmã mais velha, é estudante de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e anseia por sair de casa; é a única maneira para expressar seus desejos, sua sexualidade, seus afetos, de uma maneira propriamente sua. Ela tem uma namorada, mas não se sente segura de contar para os pais e as duas fazem planos de alugar um apartamento. Uma boa cena do filme é quando ela leva a namorada em casa como uma mera amiga, mas em um momento de distração as duas trocam carinhos sob os olhares arregalados dos pais de Eunice, claramente despreparados para aquela situação. O irmão menor dela, Deivid, é quem tem a reação mais tranquila e essa é a forma do filme mostrar que há um fosso separando as gerações a respeito dessa questão, como se as novas gerações estivessem muito melhor paramentadas para aceitar, com naturalidade, a diversidade de sentimentos que a vida oferece e sempre ofereceu.
O irmão, bem mais novo que ela, é bom de bola. Mas seu sonho não é ser jogador de futebol, e sim astronauta, o que enseja outra possibilidade de conflito no interior dessa família, que no seu microcosmo está representando parcialmente o conflito de todo um país. Isso porque parte da cisão vivenciada por brasileiros e brasileiras reside na inconformidade de representativos segmentos com os espaços sociais que lhes foram historicamente determinados na sociedade brasileira. E também na rejeição do confinamento dos desejos. O menino expressa o aspecto econômico da questão. Sendo negro e periférico, o futebol seria seu caminho "natural" e uma carreira científica especializada um vislumbre impossível. Eunice expressa formas de desejo que antes eram vivenciadas com timidez e vergonha, mas que as novas gerações têm assumido com orgulho incômodo aos que não sabem ou que desaprenderam a amar, miseravelmente ressentidos.
Se no âmbito familiar tais questões são tão complicadas de resolver, quando as ligações pessoais saem de cena numa sociedade em que a segmentação dos espaços de convivência (econômicos e morais) é marcante, a empatia desbota, gerando incompreensões e hostilidades explicáveis por fatores perversos da subjetividade humana. Marte Um tem o mérito de mostrar essa segmentação e de, através do cinema, encurtar os espaços de incompreensão, "re-naturalizando" na sociedade brasileira a dimensão dos desejos, dos afetos e dos lugares das pessoas na vida produtiva e econômica. Não há nada a temer nessa dinâmica e não há força que a impeça de fluir.
Amor à Tarde
4.1 41 Assista AgoraJá escrevi sobre o cinema do diretor Eric Rohmer (1920-2010) numa análise do filme O Joelho de Claire (1970), obra que se passa no sudeste da França e que tem como uma de suas virtudes a cadência entre o mundo exterior e bucólico de Annecy e o mundo interior e contemplativo dos personagens. Em Amor à Tarde (1972), esse mestre da Nouvelle Vague nos encanta por meio da cidade de Paris e, em paralelo, por meio do seu novo protagonista, Frederic (Bernard Valey), cuja interioridade parece acompanhar a turbulência de uma das maiores cidades do planeta.
Casado com Helene (Françoise Verley), que está grávida à espera do segundo filho do casal, Frederic é um sujeito oprimido e angustiado com o estado do seu casamento. Rohmer utiliza como recurso para expressar essa angústia a narração em off, a técnica mais literária do cinema, nas cenas de Frederic num café e no trem, momentos em que ele, ostensivamente, aparece desejando ou imaginando casos com outras mulheres. Um dia, Chloe (Zouzou), uma amiga de seu tempo de solteiro, aparece no seu escritório e os dois passam a se encontrar com frequência. O desejo de Frederic é testado. Tão grande quanto esse sentimento é o seu moralismo burguês e então passamos a maior parte da narrativa contemplando esse duelo do desejo x moral.
Gosto de filmes com as características do cinema de Rohmer. Nele, em geral, há uma boa medida de humanidade combinada com o mais elevado domínio de direção cinematográfica. Seus personagens são confrontados por questões filosóficas e existenciais de caráter universal e, por isso, somos facilmente levados a assistir seus filmes colocando-nos no lugar dos seus personagens, julgando seus atos e reflexões. É uma humanidade idiossincrática, mas não irreal e muito menos talhada para expressar pobremente um tipo ideal. Por isso mesmo sua moral é posta em xeque pelos eventos vitais, sem que seja possível prever o resultado dos seus atos.
O cinema de tipo comercial, para atender a diferentes nichos de consumidores, sempre foi uma realidade e hoje se espraia com conteúdos ainda mais diversos com o propósito de alinhar-se à notável diversidade de espectadores pagantes. Rohmer é atemporal, está acima disso. Sobrevive como um cinema que fala da natureza humana com maior profundidade, mas sem se encerrar numa prescrição do que deveríamos ser. Particularmente, neste filme e em O Joelho de Claire ele nos fala com profundidade sobre a natureza do desejo, uma profundidade que se manifesta nos diálogos bem construídos e no desfecho elegante para os seus personagens.
Hangyaboly
3.1 2Meu primeiro contato com o cinema do diretor húngaro Zoltán Fabri (1917-1994), Hangyaboly (1971) tem apenas dois votos na principal rede social de cinema do Brasil, o filmow; é, assim, um filme desconhecido do público brasileiro. Esse desconhecimento, no entanto, não se justifica perante a qualidade do filme e do seu tema. Hangyaboly se passa num convento húngaro no final do século XIX, onde um conflito está prestes a ganhar corpo: com a morte iminente da madre superiora, instala-se uma disputa entre dois grupos de religiosas do local, um progressista e outro conservador, para a eleição que acontecerá em breve e que escolherá a nova autoridade máxima do lugar. O filme é baseado no livro da autora Margit Kaffka (1880-1918), que o escreveu a partir das memórias dos seus anos em um convento na Hungria.
Além da temática política já descrita, atemporal no Ocidente - que desde o final do século XVIII se vê enredado nesse tipo de dicotomia -, outra questão aparece desbravada pelo filme, entrelaçada ao enredo político: a inata natureza sexual dos seres humanos. A freira do lado "progressista" que exerce um papel de articuladora e líder dos interesses mais abertamente reformadores do convento, tem uma paixão mal contida pela candidata que ela mesmo alçou à disputa pelo posto de futura madre. Ao situar essas disposições políticas e amorosas em um convento, onde tais questões teoricamente deveriam ser objeto de menor cisão, o filme, mesmo sem ter essa intenção, coloca em primeiro plano a força da natureza humana, imparável mesmo sob a tentativa de regência de instituições de controle muito poderosas como é o caso da Igreja Católica.
Além disso, Fabri antecipa, em um momento da disputa entre os diferentes grupos, uma arma do embate político que passou a ser usado de forma mais constante, no Ocidente, muitos anos depois do lançamento desse filme: a capacidade de deslinde de um conflito a partir do discurso moral. Em um momento-chave pela definição da candidatura e na arregimentação dos votos, a freira líder do nicho progressista tem uma fala num momento de encontro dos dois campos que é irrefutável, elencando aspectos religiosos para confrontar o movimento das freiras conservadoras e praticamente selando o provável triunfo na eleição.
Mais de 50 anos nos separam do lançamento de Hangyaboly, mas bons filmes envelhecem sem sentir o peso de sua idade. Esse é um deles.
Lugares Comuns
4.0 36O hábito de defrontar-se com grandes personagens, sejam eles literários ou oriundos do cinema, nos coloca em confronto com a nossa humanidade, com nossos valores e práticas existenciais. A qualidade de tais personagens vale pelas reflexões, pelas paixões, por uma humanidade que se aproxima da nossa, com a qual temos contato e que faz da experiência cinematográfica algo fortemente pessoal.
Fernando Robles, professor de letras argentino, é um desses personagens. Acompanhamos sua vida, aos 60 e tantos anos, quando ele está prestes a ser aposentado por decreto. "Não é peronista, não é radical, não é nada", diz o reitor da instituição, justificando a opção por sua exoneração da instituição de ensino. Morando em um dos melhores bairros de Buenos Aires, a Recoleta, e sem fonte de renda ou patrimônio que permita manter sua qualidade de vida atual, ele e a esposa precisam tomar uma decisão importante numa fase particularmente mais delicada da vida.
Em um caderno, ao mesmo tempo em que está lidando com esse imbróglio pessoal, Robles escreve algumas reflexões pessoais. Também mantém uma relação longa de amizade com o seu advogado, pouco mais novo. Em um jantar de casais, conversam sobre política e o desânimo com o futuro é nítido. "A guerra foi ganha pelos donos do mundo de tal forma que permitem que ainda exista a esquerda. Ninguém aposta mais nisso. Não existe mais ameaça de revolução, é ameaça de grafiteiros".
As melhores reflexões, no entanto, estão na 2ª metade do filme, pois essas sim, diferente da digressão sobre política, são definitivas. Em um momento de niilismo, reconhece que "só é possível manter a sanidade cumprindo sua rotina de acordo com as regras, até com as que não acredita, porque a lucidez nos faz a ver que a vida é tão banal que não pode ser vivida como tragédia". Difícil discordar disso.
Política, amor e existência são o fundamento do repertório discursivo do protagonista. Aqui a Argentina urbana e rural se cruzam para formar um filme comovente, que assume também um discurso sobre o continente a partir de suas crises e as conturbadas relações da sociedade civil com o poder político, das quais emanam ondas periódicas de entusiasmo e de pessimismo.
Morango e Chocolate
4.0 70Não sou especialista em Cuba e a minha intenção ao comentar esse filme não é atualizar, para o ano de 2022, a maneira como os direitos dos homossexuais são levados em conta na ilha. Fresa y chocolate (1994) é tido um dos grandes filmes latino-americanos e acho que seria considerado bastante datado se o foco de análise fosse baseado exclusivamente na perspectiva dos direitos.
O que faz esse filme ser gigante e atemporal é o seu humanismo. Os dois personagens principais aparecem inicialmente com fortes tendências antagônicas; um é o universitário David, membro da juventude comunista, consciente e orgulhoso sobre o papel da revolução em sua trajetória pessoal. O outro, Diego, é um pouco mais velho, artista, homossexual, católico e, embora crítico dos Estados Unidos, revela sua decepção com o regime político do país por inviabilizar suas tentativas de expressar-se artisticamente fora da normatividade do sistema político.
O primeiro encontro entre eles os levam ao cenário dominante do filme, o prédio onde Diego mora. Diego, na verdade, arquiteta maneiras de fazer com que David retorne e em cada retorno a animosidade e os preconceitos deste vão esmorecendo. É nessa gradação que está o grande truque e nela a arte de um grande cineasta e atores alicerça o filme a uma posição superior na hierarquia cinematográfica. Isso porque a gradação é coerente e justificada e as emoções são sinceras. A alteridade entre eles se desenvolve com compreensão e afeto no tempo dos próprios encontros. O que comove e os ligam, definitivamente, são os diálogos humanistas, que desarmam de vez qualquer divisão.
A narrativa de Fresa y chocolate é otimista por um lado, à medida que propõe a capacidade de formação dos elos a partir de uma qualidade empática imanente a todos nós. Por outro, essa qualidade é muito difícil de por em prática, pois há uma barreira resultante de grandes narrativas que busca anular a complexidade do outro. Numa era de imensa superficialidade do processo comunicativo como a que vivemos, o filme prorroga a sua validade, ressignifica os encontros humanos e se torna indispensável.
Nós que nos Amávamos Tanto
4.4 79"Achávamos que mudaríamos o mundo, mas foi o mundo que nos mudou"
Obra-prima de um dos maiores cineastas italianos, Ettore Scola, Nós que nos Amávamos Tantos (1974) conta a história de três amigos, Gianni, Antonio e Nicola, em Roma, após o término da Segunda Guerra Mundial. Os três estiveram na resistência civil ao lado dos Aliados e agora acreditam fazer parte de uma geração portadora da árdua missão de remodelar um mundo flagelado em pouco tempo pelo horror de duas guerras de proporções colossais.
O tema de Scola é ótimo e é atemporal. Em Sorte Cega (1987), de Krzysztof Kieslowski, um professor diz aos seus alunos, na Polônia ainda albergada no Pacto de Varsórvia: "Toda geração precisa de luz, precisa saber e acreditar que o mundo pode ser um lugar melhor. Esta necessidade, que é mais velha que Marx e mais nova que Marx é como uma droga. Durante esses 40 anos, eu vivi muitas coisas e vejo isso mais distante do que antes, assim eu não devia encorajá-los. Mas, acreditem em mim, a vida sem essa esperança, sem essa amargura, não valerá a pena ser vivida". Não há nada que defina melhor Nós que nos amávamos tanto do que essa fala do filme polonês.
Além do tema, o filme é bem feito, não é excessivamente artificioso em seu conteúdo, apesar da ambição de lidar com um anseio universal que permeia todas as gerações pelo menos desde a Revolução Francesa.
Uma segunda característica, também universal desse filme, está aí na epígrafe. O mundo é constituído de severa injustiça e hoje, mais do que nos anos 1970, é ainda mais carregado de individualismo e competitividade - e isso não é aleatório, é pensado e construído para ser assim. Já falei sobre isso no documentário do Território Suape, inclusive sobre as políticas públicas que ajudam a contrapor o âmago funcionalista do sistema.
O filme de Scola fala dessa crueldade e de como ela transforma as pessoas, mas não é desesperançoso, pois fala também dos valores que dão sentido à existência e que, não à toa, constituem o front contemporâneo mais eficiente em prol da mudança social.
Diplomacia
3.7 22 Assista AgoraAssim como O Julgamento de Deus, sobre o qual já escrevi, Diplomatie também se passa em 1944. Ambos retratam momentos pessoais excruciantes, o dia mais decisivo na vida dos seus personagens, de modo que o básico do básico é que os atores consigam refletir em seus gestos e falas a gravidade da ocasião e que toda a carga dramática seja transmitida sem faltas e sem excessos; sem isso é impossível realizar a contundente proposta de imersão sugerida pelos enredos. Em ambos os filmes essa execução é exímia.
No caso de Diplomatie, a história conta o encontro ocorrido no Hotel Maurice, em 25/08/1944, hotel que está a poucos metros de onde sucumbiu o Palácio das Tulherias (1564-1871), última residência oficial de Luís XVI, e próximo de onde o rei e a rainha, como também Robespierre e Danton - e outro milhar de franceses - foram guilhotinados. Na suíte que já foi residência de uma amante de Napoleão III, estão um diplomata sueco e um general alemão, governador da Paris sob ocupação nazista. O diplomata assume para si uma missão muito difícil, convencer o general a abandonar o plano de Hitler para a capital francesa, que é o de destruição total da cidade, deixando-a debaixo de água com explosões táticas em vários lugares de Paris.
O diplomata, para alcançar esse objetivo, vai recorrer a um verdadeiro arsenal de argumentos, apelando para a emoção e para a razão do general. Como o filme se passa todo em apenas uma locação, o desafio para o diretor é manter o ritmo de tensão durante pouco mais de uma hora de idas e vindas e instrumentalizando diferentes técnicas e argumentos para convencer um general aparentemente irredutível. As duas coisas funcionam bem, somos carregados para a atmosfera densa que envolve um momento chave da II Guerra Mundial e sentimos como a fluidez das argumentações vão desarmando paulatinamente a couraça emocional do general, permitindo uma abertura mais pessoal para as tratativas.
Mudanças bruscas no mundo moderno foram decididas não só no campo de batalha, mas em reuniões em salas fechadas. Diplomatie consegue replicar com excelência os desafios para a formação de acordos quando um dos lados parece irredutível.
O Joelho de Claire
3.9 77 Assista Agora"Antes ou depois, pouco importa. Há algo muito bonito na amizade que deveríamos encontrar no amor: Respeito à liberdade do outro. Não há essa ideia de posse".
Eric Rohmer (1920-2010) foi um dos grandes cineastas da história, dirigiu filmes em uma época de explosão criativa do cinema e imprimiu uma marca própria como diretor. Quando, vez por outra, aparece um filme marcado muito mais por diálogos do que por ação, rememoro o pioneirismo desse diretor à frente de obras magníficas como a desta postagem, Le genou de Claire (1970).
O enredo se desenvolve numa deslumbrante cidade alpina no sudeste da França, Annecy. Quase tudo acontece numa grande casa à beira do imenso lago que existe na região, um cenário acentuadamente bucólico em que a vida parece suspensa e que remete aos prazeres da contemplação interior.
É nesse estado mental de tranquilidade que Jerome, 37 anos, diplomata de férias na região, reencontra sua amiga, Aurora, uma escritora italiana que alugou um quarto nessa imensa propriedade que Jerome visita. A dona do imóvel tem duas filhas e o tempo da trama é praticamente dividido por igual com base no flerte que Jerome tem com cada uma delas, incentivado pela amiga mais como uma brincadeira lúdica entre eles do que por um desejo substancial.
Os diálogos em sua maioria são bem construídos. Existem filmes que deveriam ser vistos como parte de um processo de educação pessoal para a conexão profunda que as conversas podem produzir entre as pessoas (v. 303, Antes do Amanhecer, Meu Jantar com André). Rohmer estabelece um parâmetro de altíssimo nível, pois as conversações transcorrem, neste filme, sem atropelos, têm imensa carga de pessoalidade, alteridade e nenhum moralismo. São cenas muito agradáveis de assistir.
Apesar da aparência de filme despretensioso, Le genou de Claire é um filme que exala, de forma natural, sensações de liberdade e, de uma forma muito pura, de desejo. Há uma utopia sempre agradável de se reencontrar em Rohmer.
O Julgamento de Deus
4.2 55Quando escrevo/falo sobre um filme ou livro, espero atingir o objetivo de apresentar por que ele é interessante/relevante. Se não for minimamente interessante, não vale a pena escrever sobre ele. Apresentar o enredo me importa menos, a arte pode nos afetar de diversas maneiras, mesmo ao tratar de uma história que, aparentemente, não é promissora. É preciso, contudo, estar com a mente aberta para captar aquilo que é dito e sentido pelos personagens, abdicar um pouco do autointeresse para participar de uma situação nova e de motivações que, eventualmente, nada terão a ver com as nossas.
God on Trial (2008, Andy De Emmony) não padece de nenhum problema de apresentação, é um filme que desperta curiosidade imediata: prisioneiros judeus, entre os quais diversos intelectuais, encerrados num campo de concentração de Auschwitz, alguns dos quais estão a poucas horas de serem enviados para a câmara de gás, decidem promover o julgamento de Deus. Eles improvisam um tribunal dentro do alojamento em que estão confinados e iniciam os processos de acusação e de defesa, tendo como base a ideia de que Deus descumpriu a sua parte no acordo feito com os judeus.
A execução do filme é perfeita. Há dor, medo e ódio sinceros nos personagens, eles são autênticos em seus sentimentos. Acompanhamos as defesas e acusações não apenas com base nos argumentos, mas também a partir das emoções. Em alguns momentos, saímos mais convencidos de uma fala pela sensibilidade que dela se manifesta do que propriamente pela força do argumento. Isso é um efeito muito relevante que God on Trial provoca e que diz respeito também à nossa capacidade de, no dia a dia, sermos afetados pelas narrativas sociais que nos rondam de diversos modos.
O argumento também importa. Sozinhas, as emoções são limitadas. Têm baixo poder persuasivo. Por isso o exercício da liderança requer conhecer sobre o que se fala e acreditar no que se diz. Argumento e emoção aparecem com altíssimo nível de parte a parte do julgamento, fazendo desse filme uma obra-prima em manejo do discurso e das ideias.
A sentença, sem dúvida, resultou de qual das partes melhor soube comover e argumentar.
A Cidade Branca
4.0 12"O único país que eu realmente amo é o mar"
Dans la ville blanche (1983, Alain Tanner) fala de um marinheiro suíço que aporta em Lisboa e passa um período na cidade, sem qualquer objetivo definido. Ele se envolve com uma moça bem mais nova, que trabalha na pousada meio decaída onde se hospeda. Enquanto isso, se corresponde constantemente com a esposa na Suíça, através de carta e de vídeos que ele grava despretensiosamente em suas andanças solitárias pela cidade.
O filme ganha ares de poesia e elementos filosóficos a partir do imenso zelo na direção de arte. A fotografia e a melodia que compõem o limitado itinerário do protagonista em Lisboa se encaixam com perfeição, tudo tá devidamente calculado pra nos colocar lado a lado do marinheiro e, como resultado, sentimos a solidão poética do homem. Fica parecendo fácil manejar música, narrativa e cenário tamanha a qualidade do arranjo feito pelo diretor.
Sentimos também a liberdade e o desejo existencial do protagonista, o que nos remete a questionar de onde vêm pessoas assim, que conservam, apesar da passagem do tempo, essa qualidade de evocar a novidade nas pequenas coisas, que reparam nos detalhes e que preservam uma ingenuidade que, sem exceção, vê nas pessoas antes de tudo seu melhor lado. O personagem principal exala uma vitalidade apaixonada e pura.
É um filme de imensa interioridade, provocada pela maneira como a solidão e as atitudes do personagem são trabalhadas. Trata-se de um filme extremamente bem dirigido e que nos provoca, com imensa sensibilidade, a refletir sobre o que há de fugaz e profundo na existência.
Território Suape
3.8 1A evolução do gênero documentário no país retrata com fidedignidade transformações importantíssimas na sociabilidade política dos brasileiros e seus efeitos na imaginação e iniciativa políticas. A uberização do trabalho (2019), por ex, nos confronta com uma realidade de precarização do trabalho e de direitos e o ambiente de intensa competição e favorecimento "por baixo dos panos" a motoristas acríticos e despolitizados. As regras do jogo são cruéis contra os que tentam contrariar o sistema.
No tradicional modelo fabril, temos o documentário Estou me guardando pra quando o carnaval chegar (2019) que mostra as adaptações desse sistema de produção a partir das facções, em Toritama/PE, cidade considerada a capital do jeans. A precarização tem efeitos na intimidade desses trabalhadores de maneira semelhante ao que ocorre na dos motoristas de uber, numa aceitação passiva das regras e, mais ainda, numa competição que impede a solidariedade e contribui para a reprodução de uma lógica sistêmica que acentua a exclusão e a concentração de renda.
Na contramão da fragilidade política da outrora combativa classe trabalhadora, o doc Território Suape (2020) mostra como a politização por meio de categorias identitárias e também de lutas urbanas decorrentes da elevação da consciência possibilitada pela expansão do acesso da periferia às universidades promove um alastramento da vida cívica. Perdemos um importante contingente laboral na vida política, por um lado, ganhamos, por outro, um novo tão relevante quanto aquele em declínio.
Neste doc, a expansão citadina da região em torno do Complexo de Suape é confrontada com discursos sociais contundentes, emanados da própria periferia e não por porta-vozes iluminados. Chocam a imensa disparidade e a naturalidade com que o poder público atende às demandas dos mais ricos. Mas a resistência é vívida.
O doc ajuda a perceber a origem primitiva do ódio de alguns setores à expansão da educação e à politização dos debaixo. É com políticas públicas inclusivas e de aumento da socialização por meio ensino superior público/IFs que grande contingente antes excluído vem descobrindo e mudando o modo de organizar e fazer política.