Há uma longa história que envolve a família Mann em torno da obra monumental de Goethe. O filme, inspirado no livro de Klaus Mann (filho do grande Thomas Mann) de 1936, pouco depois da ascensão nazista (e que traça muito bem o sentimento de otimismo com a "força renovadora" do nacional-socialismo, assim como a cegueira de parte da intelectualidade liberal alemã, que desconsiderou a força do movimento), contrói-se em torno de Hendrik (ou Heinz, o nome rejeitado) Höfgen, inspirado no grande ator Gustaf Grüdgens. Para quem não liga o nome à pessoa, Grüdgens está na famosa obra do Fritz Lang, "M, o vampiro de Dusseldorf" (1931), é o "líder" dos criminosos e faz as vezes de chefe de tribunal.
Grüdgens casou-se com Érika Mann (Barbara Bruckner nas obras ficcionais), filha de Thomas Mann. Cunhado, pois, do autor do livro, que se debruça sobre esta personagem tão próxima. É sobre Grüdgens que recai o pacto diabólico na tradição fáustica (a cena do aperto de mão com o primeiro ministro é fundamental, "manchei-me com algo que jamais poderei limpar", diz o personagem do livro). Curioso ter interpretado justamente Mefistófeles na juventude, e entrado temporariamente para a família cujo patriarca futuramente escreveria sobre a experiência totalitária alemã a partir da releitura de Goethe, "Doutor Fausto" (1947).
Goethe, que nos dizeres de Thomas Mann percorre três mil anos da história humana, permanece como uma chave para se pensar nas experiências totalitárias recentes. Mas para além do pacto, há o impossível, o irrealizável, o que não pode ser alcançado. Esta é a força da figura do Fausto.
Sobre a "adaptação" de Szabó, recomendo a leitura do livro. Há algumas menções, bruscos cortes que funcionam bem somados à leitura da obra (além de ausências importantes, como a de Theophil Marder, por exemplo, intelectual que se apresenta como a "consciência crítica alemã"). A personagem de Juliette Martens é fascinante no livro, há todo um jogo erótico de violência e subjugação entre ela e Höfgen, algo suavizado no filme.
O Kaji, ao menos nesse primeiro filme, não chega a se opor à situação colonial, o estudo que ele faz, apresentado logo no início e que abre para o desafio de "provar na prática o que ele afirma em teoria", não é uma obra anti-colonial, ao contrário, é um material que defende reformas no sistema trabalhista com vistas a atingir um aumento na produção. "Sem essa contradição não haveria sobre o que escrever", sem essa menção pragmática de aumento dos lucros o estudo não possuiria crédito algum na administração, e a "questão chinesa" continuaria a equiparar homens a minerais, explorados e destruídos.
O Kaji então, nas tentativas de se aproximar dos prisioneiros, a todo momento fala dessa necessidade de confiar na palavra, acreditar no compromisso de que mudança nas relações trabalhistas acontecerão em breve, e isso em meio às execuções sumárias, aos espancamentos, às traições que os chineses a todo momento sofrem. Se ressente da desconfiança, inclusive chegando a mencionar que não era culpa dele ter nascido japonês. O crime não é esse, a responsabilidade está em assumir uma posição ambígua num sistema de reprodução de violência, de falar que os lucros virão, que a meta de 20% será alcançada abandonando o chicote, que o colonialismo pode ser sustentado - e isso em meio a complexas relações de subordinação que envolvem tipos diferenciados de trabalhadores, etnias (coreanos também não possuem lugar seguro nessa tormenta), prostitutas chinesas, corrupção dentro do corpo administrativo.
Como manter a coerência, ou melhor, como sustentar uma situação que está prestes a ruir? No momento em que os prisioneiros de guerra levantam as mãos e marcham ao grito de "assassinos!" o sinal de alerta é ligado. As fugas, as conversas segredadas, os conflitos de interesse, a manipulação de informações reportadas à sede administrativa e à polícia secreta, a iminência da derrota japonesa na guerra: a instabilidade colonial é gritante. Como defender reformas que não contradigam o imperialismo, diante dessa multidão de acontecimentos? "Ou a teoria estava errada ou não foi aplicada corretamente". Vamos ver como os pés do Kaji tocarão o chão.
Ela fala que não houve qualquer vaidade nas suas motivações, que tudo era vingança aos Ichimonji, mas não entendi como a cabeça de Sue faz parte do plano. A menina já era vítima do Hidetora, teve os pais assassinados, o irmão perdeu a visão. Como sua morte vinga o sangue do clã?
A cena em que sua esposa tida como morta no terremoto reaparece e, numa madrugada, entra sorrateira na casa de Sahachi para explicar-lhe sua atitude é interessante para pensar na ideia de "on", uma série de dívidas ou débitos que se carrega durante a vida. A jovem Onaka estava prometida a um rapaz que havia ajudado sua família. A família, grata pela ajuda, entrou em débito com o rapaz, e uma forma de quitar esta dívida foi sugerido à filha que aceitasse a mão do rapaz. Onaka não concordou e, mesmo ciente do débito, pensou que poderia pagá-lo de outra forma que não o casamento, preferindo ficar com Sahachi, que a muito custo conseguiu convencê-la a casar-se com ele. Ela enganou-se, logo descobriu que não havia uma forma alternativa de pagar o "on" contraído senão a determinada pelos pais, que puniram-na diante da recusa.
O terremoto é o fim do curto período feliz ao lado de Sahachi. O medo de ser castigada pela desobediência se materializou com a tragédia. Onaka havia morrido para Sahachi, morreu para pagar sua dívida para com ele. E Sahachi, devedor de uma dívida contraída desse infeliz desfecho, encontra na ajuda aos vizinhos uma forma de tentar saldar tal débito, inclusive ao marido e filho de Osaka, que não conhecia mas imaginava a dor.
P.S.: a cena das cozinheiras gritando no poço é das mais tocantes que já vi.
Sinceramente? Uma versão sensacionalista de "Napëpë" (filme da Nadja Marin, que quase 10 anos antes deste, produziu um média-metragem sobre o mesmo tema, a luta dos Yanomami para que o sangue deles retirados na década de 60 por pesquisadores norte-americanos fosse devolvido à tribo, assim como registros fotográficos ou de quaisquer espécies sobre os índios, pois não deve haver vestígios dos mortos, o funeral Yanonami implica na destruição de tudo o que se relaciona à figura do morto). “Mesmo tema”, pois o Padilha se atém ao cheiro da polêmica, chega a mostrar registros da campanha de vacinação dos índios, mas no momento em que introduz a figura do Napoleon Chagnon (persona non grata para indígenas sul-americanos e antropólogos indigenistas), vemos grandes cenas desnecessárias nas acusações trocadas entre dois sujeitos que se odeiam: o próprio Chagnon e Kenneth Good, que não são flor que se cheire.
"Segredos dos antropólogos"? Essa piada é a mais previsível, não sei se o Padilha pescou do último livro do Chagnon, "Noble Savages: My Life Among Two Dangerous Tribes – The Yanomamö and the Anthropologists" (2013), ou se foi o contrário, mas o documentário aponta claramente para essa máxima, parece se vangloriar de abrir um baú proibido, uma caixa-preta cheia de mistérios e horrores. Lembro, no entanto, que a antropologia se alimenta da autocrítica, tem conhecimento de suas origens coloniais, de suas violências epistêmicas, isto não é e nunca foi tabu, serve justamente de combustível para volumes e mais volumes, artigos e mais artigos.
As acusações de pedofilia por parte do Lizot são sérias e execráveis, mas chega a ser ridícula a tentativa de implicar o nome de Claude Lévi-Strauss nessa história, pelo fato do Lizot ter sido seu assistente. Por fim, uma cena terrível: alguém abre um sorriso ao relatar um ato de bondade, entregar aos índios um machado de ferro [ou algo do tipo], otimizando, assim, as atividades nativas. Recordo de um famoso escrito de Lévi-Strauss, “As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico e social”, em que o autor comenta o cuidado que se deve ter diante de tal interferência, de como a adoção de certas técnicas acarretou no enfraquecimento de um tipo de organização social, pois o aço, ou o ferro, diz ele, viaja mais depressa que os homens. Esse cuidado não parece ter estado na mente de alguns espíritos coloniais.
Muito forte a presença do Ford nas cenas de perseguições, nos pulos sobre os cavalos, nos amplos cenários, diria até no tom otimista do filme - nem sempre presente nas obras clássicas japonesas. Outro ponto que cabe destacar é a mudança no grupo que tenta atravessar as fronteiras, e como isso muitas vezes confunde os perseguidores: "se virem três homens e uma menina, em três cavalos, nos avisem", e o grupo vai se modificando e escapando das incursões, seja no uso de carroças, na própria constituição dos membros, "três homens, duas mulheres", "dois homens, uma menina", e por aí vai.
Algo que noto no trabalho documental do Herzog é a busca de um "punctum", trazendo a terminologia do Barthes, de um momento decisivo de inflexão do diálogo. No começo do documentário ele faz isso com o pastor, pergunta sobre o encontro dele com um casal de esquilos numa estrada. O reverendo, a partir dessa lembrança, começa a refletir sobre a "emergência da vida", título de um dos capítulos finais. Em "A caverna dos sonhos esquecidos" ele tenta essa interação intensa quando pergunta para um dos pesquisadores sobre os sonhos que ele tinha, se ele sonhava com os desenhos da caverna. Agora, nesse, apenas o depoimento inicial apresentou essa empatia. Em alguns momentos o máximo que o Herzog conseguiu foi um "yes, sir", ou o silêncio. Claro, são lembranças dolorosas. E em mais de um momento o Herzog estava "deslocado" para com as falas. Perguntava algo já dito e chegou a colocar uma entrevistada na parede: "isso que vocês fizeram parece um contrabando inverso". Enfim, Herzog é meu herói, mas este não é o seu trabalho que mais admiro.
Não apenas a ausência da câmera é sentida, mas a do tradicional espectador, o que recebe silenciosamente as imagens projetadas na tela aprovando-as ou recusando-as, palmas e vaias, paródias e textos. Mais interessante que falar da natureza do espectador, e aqui distanciando-se (necessariamente, é bom lembrar) de Edgar Morin, é inquietar-se com a dinamicidade da imagem (um pleonasmo). Nada impede que a obra seja afetada pela reação do público, que a imagem projetada seja devolvida criticamente por quem a consome. Que tipo de espectador permanece? E que tipo de performance é idealizada e em que sua prática interfere? As sketches apronfudam essa interferência no real. O ator, que é um banqueiro, mata a si mesmo; a atriz, que interpreta a aeromoça suicida, pula ela própria do prédio, realiza seu último ato. "La beauté du geste".
Como nós reagimos a essas imagens? O posicionamento de quem assiste é questionado. Câmeras e espectadores continuam ausentes.
O isolamento aqui é linguístico, e, a partir daí, cosmológico. Existe uma pedagogia empenhada na ressignificação de uma visão de mundo, as "palavras do dia" (o mar é um objeto, um zumbi uma flor). Tal isolamento se assemelha a um experimento: que reação teremos diante de tal situação? "O cão é como uma argila", mas o humano também é maleável, também responde a estímulos, comporta-se de tal forma diante de uma condição dada. O que não significa (aí o ponto alto da obra) que suas respostas sejam sempre positivas: mesmo não questionando a cosmologia na qual se inserem, as personagens fogem ao controle e agem de forma compreensível dentro de tal visão de mundo: se a queda do canino representa a minha emancipação, eu farei com que o canino caia, apressarei o processo. Não há uma negação dessa verdade, o que não quer dizer que as pessoas não possuam agência, ou seja, a capacidade de responder, não possam atuar.
A agência torna-se possível nos casos de situações "opressivas" (um qualificativo difícil de ser atribuído por espectadores [literalmente espectadores] distantes). Podemos falar dos condicionamentos (ou seja, das situações "opressivas") mas também podemos lembrar das respostas (das interpretações).
O filme é utópico. Nos mostra algo que não nos é possível observar. Como nasce uma mitologia? Como o mito é criado? [No filme localizamos um ser imaginário, individualizamos a construção coletiva do mito na figura do "grande mentiroso", o pai]. Nós encontramos termos que se referem a outros signos: o mar é uma cadeira, um zumbi é uma flor. E temos explicações encadeadas por uma linha narrativa: "uma criatura feroz (um gato) atacou o irmão de vocês e o matou. O gato come carne, corta, devora". O mito é uma narrativa que serve para explicar o presente, um ensinamento, uma "grade", como disse Lévi-Strauss. O ensinamento deste mito é justamente "não saiam de casa, só saiam de casa no carro, só dirijam um carro quando outro canino nascer".
O filme é um experimento com a narrativa, com os enquadramentos fixos (que não se adaptam aos movimentos ou preenchimento confortável da tela, que cortam os corpos, demoram nos silêncios, observam os constrangimentos). Experimento como obra e experimento dentro da obra, com as respostas dadas diante de tal modelo explicativo do mundo.
O autoritarismo é sempre passível de condenação, assim como as respostas dadas a ele são possíveis de serem observadas nos gestos e falas das pessoas.
Mephisto
3.9 55 Assista AgoraHá uma longa história que envolve a família Mann em torno da obra monumental de Goethe. O filme, inspirado no livro de Klaus Mann (filho do grande Thomas Mann) de 1936, pouco depois da ascensão nazista (e que traça muito bem o sentimento de otimismo com a "força renovadora" do nacional-socialismo, assim como a cegueira de parte da intelectualidade liberal alemã, que desconsiderou a força do movimento), contrói-se em torno de Hendrik (ou Heinz, o nome rejeitado) Höfgen, inspirado no grande ator Gustaf Grüdgens. Para quem não liga o nome à pessoa, Grüdgens está na famosa obra do Fritz Lang, "M, o vampiro de Dusseldorf" (1931), é o "líder" dos criminosos e faz as vezes de chefe de tribunal.
Grüdgens casou-se com Érika Mann (Barbara Bruckner nas obras ficcionais), filha de Thomas Mann. Cunhado, pois, do autor do livro, que se debruça sobre esta personagem tão próxima. É sobre Grüdgens que recai o pacto diabólico na tradição fáustica (a cena do aperto de mão com o primeiro ministro é fundamental, "manchei-me com algo que jamais poderei limpar", diz o personagem do livro). Curioso ter interpretado justamente Mefistófeles na juventude, e entrado temporariamente para a família cujo patriarca futuramente escreveria sobre a experiência totalitária alemã a partir da releitura de Goethe, "Doutor Fausto" (1947).
Goethe, que nos dizeres de Thomas Mann percorre três mil anos da história humana, permanece como uma chave para se pensar nas experiências totalitárias recentes. Mas para além do pacto, há o impossível, o irrealizável, o que não pode ser alcançado. Esta é a força da figura do Fausto.
Sobre a "adaptação" de Szabó, recomendo a leitura do livro. Há algumas menções, bruscos cortes que funcionam bem somados à leitura da obra (além de ausências importantes, como a de Theophil Marder, por exemplo, intelectual que se apresenta como a "consciência crítica alemã"). A personagem de Juliette Martens é fascinante no livro, há todo um jogo erótico de violência e subjugação entre ela e Höfgen, algo suavizado no filme.
Guerra e Humanidade I - Não Há Amor Maior
4.5 17O Kaji, ao menos nesse primeiro filme, não chega a se opor à situação colonial, o estudo que ele faz, apresentado logo no início e que abre para o desafio de "provar na prática o que ele afirma em teoria", não é uma obra anti-colonial, ao contrário, é um material que defende reformas no sistema trabalhista com vistas a atingir um aumento na produção. "Sem essa contradição não haveria sobre o que escrever", sem essa menção pragmática de aumento dos lucros o estudo não possuiria crédito algum na administração, e a "questão chinesa" continuaria a equiparar homens a minerais, explorados e destruídos.
O Kaji então, nas tentativas de se aproximar dos prisioneiros, a todo momento fala dessa necessidade de confiar na palavra, acreditar no compromisso de que mudança nas relações trabalhistas acontecerão em breve, e isso em meio às execuções sumárias, aos espancamentos, às traições que os chineses a todo momento sofrem. Se ressente da desconfiança, inclusive chegando a mencionar que não era culpa dele ter nascido japonês. O crime não é esse, a responsabilidade está em assumir uma posição ambígua num sistema de reprodução de violência, de falar que os lucros virão, que a meta de 20% será alcançada abandonando o chicote, que o colonialismo pode ser sustentado - e isso em meio a complexas relações de subordinação que envolvem tipos diferenciados de trabalhadores, etnias (coreanos também não possuem lugar seguro nessa tormenta), prostitutas chinesas, corrupção dentro do corpo administrativo.
Como manter a coerência, ou melhor, como sustentar uma situação que está prestes a ruir? No momento em que os prisioneiros de guerra levantam as mãos e marcham ao grito de "assassinos!" o sinal de alerta é ligado. As fugas, as conversas segredadas, os conflitos de interesse, a manipulação de informações reportadas à sede administrativa e à polícia secreta, a iminência da derrota japonesa na guerra: a instabilidade colonial é gritante. Como defender reformas que não contradigam o imperialismo, diante dessa multidão de acontecimentos? "Ou a teoria estava errada ou não foi aplicada corretamente". Vamos ver como os pés do Kaji tocarão o chão.
Ran
4.5 262 Assista AgoraUma dúvida sobre a Kaede:
Ela fala que não houve qualquer vaidade nas suas motivações, que tudo era vingança aos Ichimonji, mas não entendi como a cabeça de Sue faz parte do plano. A menina já era vítima do Hidetora, teve os pais assassinados, o irmão perdeu a visão. Como sua morte vinga o sangue do clã?
O Barba Ruiva
4.4 25Uma nota sobre a história de Sahachi:
A cena em que sua esposa tida como morta no terremoto reaparece e, numa madrugada, entra sorrateira na casa de Sahachi para explicar-lhe sua atitude é interessante para pensar na ideia de "on", uma série de dívidas ou débitos que se carrega durante a vida. A jovem Onaka estava prometida a um rapaz que havia ajudado sua família. A família, grata pela ajuda, entrou em débito com o rapaz, e uma forma de quitar esta dívida foi sugerido à filha que aceitasse a mão do rapaz. Onaka não concordou e, mesmo ciente do débito, pensou que poderia pagá-lo de outra forma que não o casamento, preferindo ficar com Sahachi, que a muito custo conseguiu convencê-la a casar-se com ele. Ela enganou-se, logo descobriu que não havia uma forma alternativa de pagar o "on" contraído senão a determinada pelos pais, que puniram-na diante da recusa.
O terremoto é o fim do curto período feliz ao lado de Sahachi. O medo de ser castigada pela desobediência se materializou com a tragédia. Onaka havia morrido para Sahachi, morreu para pagar sua dívida para com ele. E Sahachi, devedor de uma dívida contraída desse infeliz desfecho, encontra na ajuda aos vizinhos uma forma de tentar saldar tal débito, inclusive ao marido e filho de Osaka, que não conhecia mas imaginava a dor.
P.S.: a cena das cozinheiras gritando no poço é das mais tocantes que já vi.
Segredos da Tribo
3.8 25Sinceramente? Uma versão sensacionalista de "Napëpë" (filme da Nadja Marin, que quase 10 anos antes deste, produziu um média-metragem sobre o mesmo tema, a luta dos Yanomami para que o sangue deles retirados na década de 60 por pesquisadores norte-americanos fosse devolvido à tribo, assim como registros fotográficos ou de quaisquer espécies sobre os índios, pois não deve haver vestígios dos mortos, o funeral Yanonami implica na destruição de tudo o que se relaciona à figura do morto). “Mesmo tema”, pois o Padilha se atém ao cheiro da polêmica, chega a mostrar registros da campanha de vacinação dos índios, mas no momento em que introduz a figura do Napoleon Chagnon (persona non grata para indígenas sul-americanos e antropólogos indigenistas), vemos grandes cenas desnecessárias nas acusações trocadas entre dois sujeitos que se odeiam: o próprio Chagnon e Kenneth Good, que não são flor que se cheire.
"Segredos dos antropólogos"? Essa piada é a mais previsível, não sei se o Padilha pescou do último livro do Chagnon, "Noble Savages: My Life Among Two Dangerous Tribes – The Yanomamö and the Anthropologists" (2013), ou se foi o contrário, mas o documentário aponta claramente para essa máxima, parece se vangloriar de abrir um baú proibido, uma caixa-preta cheia de mistérios e horrores. Lembro, no entanto, que a antropologia se alimenta da autocrítica, tem conhecimento de suas origens coloniais, de suas violências epistêmicas, isto não é e nunca foi tabu, serve justamente de combustível para volumes e mais volumes, artigos e mais artigos.
As acusações de pedofilia por parte do Lizot são sérias e execráveis, mas chega a ser ridícula a tentativa de implicar o nome de Claude Lévi-Strauss nessa história, pelo fato do Lizot ter sido seu assistente. Por fim, uma cena terrível: alguém abre um sorriso ao relatar um ato de bondade, entregar aos índios um machado de ferro [ou algo do tipo], otimizando, assim, as atividades nativas. Recordo de um famoso escrito de Lévi-Strauss, “As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico e social”, em que o autor comenta o cuidado que se deve ter diante de tal interferência, de como a adoção de certas técnicas acarretou no enfraquecimento de um tipo de organização social, pois o aço, ou o ferro, diz ele, viaja mais depressa que os homens. Esse cuidado não parece ter estado na mente de alguns espíritos coloniais.
A Fortaleza Escondida
4.2 54Muito forte a presença do Ford nas cenas de perseguições, nos pulos sobre os cavalos, nos amplos cenários, diria até no tom otimista do filme - nem sempre presente nas obras clássicas japonesas. Outro ponto que cabe destacar é a mudança no grupo que tenta atravessar as fronteiras, e como isso muitas vezes confunde os perseguidores: "se virem três homens e uma menina, em três cavalos, nos avisem", e o grupo vai se modificando e escapando das incursões, seja no uso de carroças, na própria constituição dos membros, "três homens, duas mulheres", "dois homens, uma menina", e por aí vai.
A Vingança dos 47 Ronin
4.2 11 Assista AgoraAlguma alma caridosa sabe onde posso encontrar este filme?
Ao Abismo: Um Conto de Morte, um Conto de Vida
3.9 38Algo que noto no trabalho documental do Herzog é a busca de um "punctum", trazendo a terminologia do Barthes, de um momento decisivo de inflexão do diálogo. No começo do documentário ele faz isso com o pastor, pergunta sobre o encontro dele com um casal de esquilos numa estrada. O reverendo, a partir dessa lembrança, começa a refletir sobre a "emergência da vida", título de um dos capítulos finais. Em "A caverna dos sonhos esquecidos" ele tenta essa interação intensa quando pergunta para um dos pesquisadores sobre os sonhos que ele tinha, se ele sonhava com os desenhos da caverna. Agora, nesse, apenas o depoimento inicial apresentou essa empatia. Em alguns momentos o máximo que o Herzog conseguiu foi um "yes, sir", ou o silêncio. Claro, são lembranças dolorosas. E em mais de um momento o Herzog estava "deslocado" para com as falas. Perguntava algo já dito e chegou a colocar uma entrevistada na parede: "isso que vocês fizeram parece um contrabando inverso". Enfim, Herzog é meu herói, mas este não é o seu trabalho que mais admiro.
Holy Motors
3.9 652 Assista AgoraNão apenas a ausência da câmera é sentida, mas a do tradicional espectador, o que recebe silenciosamente as imagens projetadas na tela aprovando-as ou recusando-as, palmas e vaias, paródias e textos. Mais interessante que falar da natureza do espectador, e aqui distanciando-se (necessariamente, é bom lembrar) de Edgar Morin, é inquietar-se com a dinamicidade da imagem (um pleonasmo). Nada impede que a obra seja afetada pela reação do público, que a imagem projetada seja devolvida criticamente por quem a consome. Que tipo de espectador permanece? E que tipo de performance é idealizada e em que sua prática interfere? As sketches apronfudam essa interferência no real. O ator, que é um banqueiro, mata a si mesmo; a atriz, que interpreta a aeromoça suicida, pula ela própria do prédio, realiza seu último ato. "La beauté du geste".
Como nós reagimos a essas imagens? O posicionamento de quem assiste é questionado. Câmeras e espectadores continuam ausentes.
Dente Canino
3.8 1,2KO isolamento aqui é linguístico, e, a partir daí, cosmológico. Existe uma pedagogia empenhada na ressignificação de uma visão de mundo, as "palavras do dia" (o mar é um objeto, um zumbi uma flor). Tal isolamento se assemelha a um experimento: que reação teremos diante de tal situação? "O cão é como uma argila", mas o humano também é maleável, também responde a estímulos, comporta-se de tal forma diante de uma condição dada. O que não significa (aí o ponto alto da obra) que suas respostas sejam sempre positivas: mesmo não questionando a cosmologia na qual se inserem, as personagens fogem ao controle e agem de forma compreensível dentro de tal visão de mundo: se a queda do canino representa a minha emancipação, eu farei com que o canino caia, apressarei o processo. Não há uma negação dessa verdade, o que não quer dizer que as pessoas não possuam agência, ou seja, a capacidade de responder, não possam atuar.
A agência torna-se possível nos casos de situações "opressivas" (um qualificativo difícil de ser atribuído por espectadores [literalmente espectadores] distantes). Podemos falar dos condicionamentos (ou seja, das situações "opressivas") mas também podemos lembrar das respostas (das interpretações).
O filme é utópico. Nos mostra algo que não nos é possível observar. Como nasce uma mitologia? Como o mito é criado? [No filme localizamos um ser imaginário, individualizamos a construção coletiva do mito na figura do "grande mentiroso", o pai]. Nós encontramos termos que se referem a outros signos: o mar é uma cadeira, um zumbi é uma flor. E temos explicações encadeadas por uma linha narrativa: "uma criatura feroz (um gato) atacou o irmão de vocês e o matou. O gato come carne, corta, devora". O mito é uma narrativa que serve para explicar o presente, um ensinamento, uma "grade", como disse Lévi-Strauss. O ensinamento deste mito é justamente "não saiam de casa, só saiam de casa no carro, só dirijam um carro quando outro canino nascer".
O filme é um experimento com a narrativa, com os enquadramentos fixos (que não se adaptam aos movimentos ou preenchimento confortável da tela, que cortam os corpos, demoram nos silêncios, observam os constrangimentos). Experimento como obra e experimento dentro da obra, com as respostas dadas diante de tal modelo explicativo do mundo.
O autoritarismo é sempre passível de condenação, assim como as respostas dadas a ele são possíveis de serem observadas nos gestos e falas das pessoas.