Saulo é eu e cada jovem que sofreu mudanças severas com os discursos militantes mais explícitos veiculados nas redes sociais ou atingido fortemente pelas políticas de repressão também explícitas dos últimos anos. Saulo conversa com o "eu" juvenil de cada moleque adulto e representa muito bem a não obediência perante às situações.
É um filme que junta todo o sentimento de revolta que a juventude - principalmente negra - teve e está tendo numa só história; e isso é muito particular dessa juventude representada no filme, protagonizada por um jovem negro em meio aos movimentos secundaristas.
Como outras críticas já comentaram, Déo Cardoso se apropria dos estereótipos juvenis para montar sua história. São cenas com discursos prontos, mas que possuem uma unidade muito bem definida a fim de dispor os diferentes. É a zueira na sala sendo alavanca pelo racismo, o desrespeito com os professores, o interesse do aluno pela luta dos Panteras Negras, a aliança dos amigos...tudo isso é colocado até de maneira explícita pelos diálogos - de início me incomodou, mas logo depois o filme foi se encaixando, pois tudo ali fazia parte da unidade da obra.
A cena em que toca a música do Emicida, por exemplo, cai numa fabulação do futuro extremamente interessante. Tá tudo ali e não precisa ser mais escancarado e pode ser daquele jeito ali mesmo, é essa a intenção e pronto.
É muito interessante também como filme situa muito bem as forças e como ele engrandece cada uma através da imagem. A força dos alunos e a falsa grandeza da instituição.
O próprio espaço da escola também dá uma noção de sufocamento, aprisionamento e isso é extremamente bem trabalhado pela luz e sombra do filme - energizado pela queda de força proposital da história. Como ele vai lendo e estudando dentro daquele cubículo, sem nenhum suprimento recebendo um tratamento desumano, alvo de líder de rebelião. E isso vai também desde os refeitórios, cujo corte lembra também uma prisão.
E se pegar a história em si - menino fica preso na escola fugindo do bandido que matou seu irmão e usa o espaço como reinvindicação de demandas estudantis - nem sequer chama tanta atenção, mas o principal é como ele sai desse pequeno espaço para atingir camadas extra campo na mesma imagem, sintetizado na última meia hora do filme, onde o suspense vai crescendo e o imprevisível toma conta.
A única arma ali, desde o primeiro momento em que o Saulo leva um pescotapa e é filmado pelos moleques, até ele usar o mesmo artefato para denunciar o desacato do porteiro e da escola e no fim, as imagens reais de tantos estudantes recebendo ataques brutais da polícia filmadas pelos mesmos, tão real quanto a ficção.
A dedicação à Zózimo então juntamente com a cena final da "prisão do Saulo" é a ponta do soco no estômago. Surge com Alma no Olho, dito fundador do cinema negro brasileiro, com suas específicas reinvindicações e tratos com a linguagem, versando desde a abolição da escravatura até a falsa libertação do povo negro; e chegamos em 2020 com Déo Cardoso, realizador negro tão diferente de Zózimo, mas que consegue até mesmo captar rastros daquele discurso através de uma história da juventude que mesmo seguindo passos "corretos" e lutando pelo que é seu de direito, recebe pancadas e pontapés do Estado, não muito diferente como era na época de Zózimo.
Registro essencial poderoso do cinema brasileiro em 2020.
Takashi Miike abusa da invenção de gênero que o cinema permite para trazer um certo niilismo cômico e banal. Não tem regras, não tem obediência ou sequer uma sequência correta a seguir quando todos os hóspedes de uma pensão de fim de mundo se matam depois que chegam no local. "É a vida", como ensina o avô. E a testemunha mais inocente de todas nos conta a história, do verão maluco da família Katakuri.
A única regra a ser seguida é do sorriso no rosto à qualquer custo. O lugar que mora esse sorriso são nas músicas, nos sonhos e nas pequenas chegadas dos clientes. É tudo tão bizarro e tão bobo, que resta sorrir para aguentar aquele espaço. The Happines se concentra nessa barreira da vida feliz em meio a corpos mortos enterrados no quintal, onde a família vai ganhando o pouco que resta com eles. Tentando enganar quem vem, sem saber o que lhe espera. Takashi Miike não está interessado nem sequer em dar um fim para essa maluquice ou uma explicação, ele quer apenas mostrar e eu acho isso a cereja do bolo.
Gosto muito dos 40 minutos finais. Não lembro de um filme que conseguiu mudar tanto assim na abordagem temática de uma maneira tão boa quanto esse. Vai do musical, da ação, da cena policial, da comédia, para o drama. É a unidade sem unidade que se completa pela verossimilhança desregrada daquele mundo. São as poses desengonçadas em cima dos corpos, o choro forçado, o musical naipe Dancing in the Dark, as gritarias...Dão um tom bastante cômico e surreal para o filme sem nunca sair daquele espaço bizarro e perfeito dos Katakuris.
O trabalho com stop motion tem o seu lugar, mas até fica esquecido em meio à tanta coisa acontecendo. E todas as aparições dos monstrinhos ou da quebra para a animação dos atores são sensacionais. É estranho porque são eles os responsáveis por dar vida aos cenários impossíveis, mas é durante todo o filme que o impossível reina e faz seu lugar.
Meu primeiro Takashi Miike e eu me diverti bastante.
A Noite Amarela é um filme jovem, e para usar o linguajar jovem, ele me engatilhou. Todo esse rito de despedida, reunião entre amigos de madrugada e conversas paralelas foi bastante relatável comigo. Lembro de vários momentos semelhantes com amigos e que hoje não é mais possível ter por conta do distanciamento social. Ouso dizer que teve a representação mais fiel dos filmes que já vi nesses últimos anos (Fim de Festa, Piedade tentaram e não foram muito bem)
Os diálogos ditos paralelos nos apresentam os personagens e nos fazem sentir parte daquela turma. E, usando dos seus próprios códigos, o celular por exemplo, o filme traz os melhores momentos entre eles, na visão deles. São piadinhas, insinuações e brincadeiras que deixam a camada da juventude divertida e sintoniza esse aspecto bobo que toma conta de qualquer reunião e que é intensificado pelo fato de estarem se reunindo pela última vez. O fim do colégio, o fim de suas vidas, a separação entre eles...Num lugar remoto e longe de tudo. "O mundo pode estar acabando agora e nós somos os únicos habitantes da terra." Acho até essa uma das frases mais assustadoras, talvez. E é doido também essa preocupação na mente deles que acaba significando uma troca sobre sonhos e percepções.
Até a metade do filme, a narrativa estava meio engessada. Admito que não consegui entender alguns diálogos, mas peguei por cima. Mas um bom ponto é o uso desses diálogos sobrepostos. É a besteira em cima da tensão da personagem entrando nesse portal. É dois mundos sendo divididos.
Gostei bastante também de como o filme usa a imagem à favor dos adolescentes. São três coisas muito massas: o book de fotos rememorando os tempos, o sonho que na verdade era realidade (uma quebra que até demora para se firmar, mas eu gosto por se regrar dentro de um mundinho próprio deles, sem forçar discursos de fora, é só mais uma história marcante na vida deles) e a pequena gravação que eles fazem depois que se encontram. A fala da Mônica é inserida propositalmente, é claro, mas toda sua carga é transformada com o que já sabemos: eles perdidos na Ilha.
E eu não sei até que ponto gostei exatamente das pegadas sobrenaturais com eles perdidos. Eu gosto bem mais das misturas experimentais que o filme insere e isso dentro da jornada da Karina com a Mônica. O bom mesmo é que todos os elementos sobrenaturais estão ali, e até mesmo científicos, mas eles não tem destaque na obra. É mais a perdição deles na Ilha e todas as alucinações que vem em conjunto. São seus assuntos banais em meio a uma ligação sinistra daquele mundo.
No fim, o que vai importar para cada um deles são as histórias que vão contar daquele dia, que nem fizeram na roda de fogueira.
A exibição dos corpos em prol da carnificina. O lema de Texas Chain Saw é posto em tela desde o seu início, o corpo putrefato ao Sol e logo em seguida o lance do cadeirante caindo frente à câmera. Frágeis perante o espaço. Reféns de todas as situações, até a morte. Fugindo para o texto, a conversa paralela sobre a fazenda do pai/avô de uns amigos vira o terror dos ouvintes e a descrição da matança é agraciada pelo passageiro maníaco. É nessa linha que segue a sinistra história de aventura que vai levar os amigos ao inferno.
O Massacre da Serra Elétrica usa o quê não é mostrado em tela para provocar o terror da sensação de estar sendo dilacerado para virar carne humana. Os gritos da Sally se misturam e viram e gritos animalescos. O zoom deixa a gente tonto. E a fincada tão espontânea é a chave de ouro, bem na metade, para rememorar o que o Franklin diz no começo. As marteladas e todo o processo. A trilha de Hooper também contribui para essa sensação, junto dos gritos. A ideia mesmo é de um espaço sem fuga e com total controle do corpo, do animal; que já não é mais tratado como humano e sim uma presa a ser morta e dilacerada.
Acho muito interessante também o uso da profundidade de campo. Nenhum pouco à toa, é com ela que temos dimensão do perigo e a pequena casa se torna um grande inferno. Toda a encenação é calculada nesse sentido, demonstrando o desespero do grupo e o fato de estarem sozinhos no fim de mundo, sem ninguém para ajudar.
Os 40 minutos finais são surreais e fazem jus ao resto da obra. Apresenta todo o contexto, os personagens e com uma constante sensação de perigo. O Leatherface aparece e já faz suas vítimas de forma rápida e quando sobra apenas um, é maravilhoso. Aí o descontrole e o caos vira regra e a gente tá amarrado do lado da Sally vendo tudo, com seus olhos.
Dito isso, O Massacre da Serra Elétrica é sim uma obra prima, curta, direta e sucinta que une muito bem o desconforto dos sons, dos espaços e da imagem para apresentar uma narrativa de "quem vai sobreviver" ou "grupo de amigos cai numa armadilha canibal", mas que entrega muito bem uma ideia do contraste das relações humanas-animais invertidas.
Já vi muita gente comentar em grupos que certos filmes deixam uma dor física após o término da sessão. Nunca dei muita atenção para isso, mas também nunca desacreditei. Porém, admito que a ressaca foi pesada depois de assistir Cartas de um Homem Morto.
É um filme que te faz sentir todo impacto causado naquele espaço e na apatia da fala de cada personagem de uma maneira direta por conta da imagem, mas sutil por não se importar em contextualizar objetivamente as origens da guerra. O aspecto quase monocromático ou de desmanche das cores une muito bem essa sensação de fim de mundo, pós-apocalíptico, fim da humanidade. É como as cinzas das ruínas tomando espaço da própria tela, o que deixa o longa "sujo", como tivéssemos entrando dentro daquele mundo.
O dilema do que restou, da perca de fé e o resgate da humanidade é colocado pelos coadjuvantes e a esperança é justamente no cientista que parece ter uma certo envolvimento nas origens da guerra. A cena em que ele lembra o sonho e a memória do parceiro se suicidando ou aquela que ele conta suas hipóteses otimistas para os parceiros diz muito sobre sua persistência em meio ao caos.
Se as cartas e a conexão com seu filho é o que lhe mantém vivo, são as crianças que vão lhe botar o último sorriso e sepultá-lo como deve ser. São nas crianças o principal impacto causado pela guerra. A consequência é a falta de fala, a seriedade, o trauma e também a união. Tiram dessa fase o sorriso e colocam nas costas da última geração a resistência e a busca por alimentos e um brinde. É essa linha de contrastes e ações um ponto muito interessante do filme e que entrega uma cena de destruir corações, com um ar até bíblico, relacionado a um salvador ou "O último homem".
Gosto muito do trabalho que o filme tem em montar a memória. Serve muito bem ao impacto do resgate da fé na humanidade no discurso ante póstumo da mesa do jantar ao breve contexto histórico ouvido no rádio até aos cortes rápidos da bomba e a trilha sonora clássica intercalando a memória do professor. É justamente nesse ponto o auge de Dead Man's Letter em sintetizar uma imagem política de destruição do mundo, com as ideias dos que restaram nessa fictícia Rússia de um ano fictício, ou um futuro próximo.
Serve muito bem como contraste ou ligação com A Negra De de Ousmane Sembène, na medida que o último trata da chegada em Paris e a quebra do sonho e Touki Bouki se concentra no road movie de esperança, desejos e ilusão com a terra prometida da França.
Na trama, Mory e sua companheira, Anta, partem do bairro em que vivem no Senegal em busca de uma nova vida em Paris. No entanto, os dois nunca chegam no país (ao menos o filme não mostra). Acompanhamos de forma muito dinâmica os obstáculos que eles passam, entre os roubos e artimanhas. Ainda que o final seja trágico e separe bem os dois personagens, Diop concentra sua narrativa na estrada e na mente dos viajantes, busca retratar como a dupla enxerga suas possibilidades e os outros ao seu redor.
Dito isso, o longa separa muito bem o cenário triste que vivem para as belezas que estão por vir. Diop faz isso através de uma experimentação através de som e imagem, brincando com a memória e o próprio tempo do filme. Em poucos minutos, ele transmite muito bem o que significa sair do lugar que vivemos para todos os envolvidos: aqueles que ficam e que saem.
O registro é feito através da música, com os cantos e danças dos moradores ou a clássica erudita e chiclete "Paris", as pessoas, dividindo entre o trabalho braçal, o lazer e os carros. Claro, nada disso é mostrado como Paris, mas sim a trajetória que vai construindo o seu sonho.
Muito bonito é, por exemplo, a cena do roubo das roupas e passeata do carro. Diop relembra a gente muitos momentos e resinifica as imagens, ao mesmo tempo que ilustra o sonho e o contraste de posições. É também nessa mesma ideia que as cenas no matadouro e os bois andando ganham outro significado na sua imagem final, alimentando a trajetória de Mory de volta à sua terra natal. Podemos até imaginar aí, uma linha contínua com o filme A Negra De, com o navio levando a personagem do filme de Ousmane.
Outro ponto que acho bastante significativo é o espaço construído, bem rapidamente, de opressão dentro do navio. De primeira, os papos intelectuais diminuem e reforçam o pensamento colonialista, após a fuga de Mory, (admito, achei abrupta de primeira, não sei se compreendi bem se era para fugir de ser pego), Anta fica sozinha e pensativa, aguardando um destino que sabemos que será trágico.
Todos os Mortos trabalha em dois períodos a fim traçar uma herança histórico-religiosa da memória da escravidão na cidade de São Paulo, se concentrando em duas famílias, Nascimento; que cuidou por anos da família Soares, com propriedades e fazendas. Ana, da família Soares, começa a agir estranho, lembrando de momentos do passado de seus escravos, de momentos de reza que ela jura, salvaram a vida de um chicoteado.
É da percepção errônea da cultura das religiões africanas que a irmã de Ana traz Iná, uma escrava do interior (?) a fim de cuidar de sua mãe e acabar com as "maluquices" de sua irmã. A partir daí, Iná reluta, mas enfrenta e apresenta a canção original da sua reza, sem misturas e farsas.
Nisso, a ligação da família começa. A narrativa traça um conflito paternal nas duas famílias e acho esse um ponto muito certeiro no filme. Coloca um reencontro filmado de uma forma belíssima, e a encenação teatral padrão torna raivosa quando temo o encontro da família rica. Os comentários do filme são muito claros. Intolerâncias religiosa que transpassam nossa história e a memória nunca é perdida. Os mortos estão vivos e respiram em cada filho de Iná perdido.
A colocação fantástica do filme se insere no elemento de terror de Ana, sua maluquice é na verdade um incômodo racista (incorporado até por sua mãe, na dependência de Serafina). Ambas não superam a convivência sem os escravos, e na mente de Ana, eles ainda estão com ela, enterrados e vigilantes.
Ainda que a Cibele afirme o tema como um tabu, indicando um tratamento diferenciado com o tema do suicídio, sua forma acaba entregando uma cartilha, um comercial do Ministério de Saúde (analogia emprestada pelo Matheus Fiore), ao se apoiar em diálogos expositivos, explicativos que cansam e irritam o filme.
É, portanto, quando a relação entre as duas principais acontece que o filme começa e brilha. Nesse sentido, vira um filme de ator, mas que funciona muito bem na lógica proposta. Confesso que me irritei com a posição mais professoral da psicóloga do que terapêutica com a Helena, explicando os sintomas, ainda que presa numa lógica de aluna, quando passado para a ação, perde o sentido do tratamento em si e confunde o público.
Gosto também das experiências dos sonhos, alucinações e o jogo de cena no final, mas senti que mesmo assim o filme se preocupou em resolver suas personagens no final. Não é como se não entendessemos pelo que passa na cabeça das pacientes, mas a maneira muito mais didática e padronizada de transmitir esses sentimentos enfraquece a encenação.
Tem até uma divisão muito clara nesses dois espaços da faculdade com a do AT. E, o que irrita, é que um parece mais solto para as duas personagens enquanto o outro a protagonista se sente sufocada, por uma professora que explica o filme - e daí o filme se concentra apenas nesses momentos do corpo docente - e alunos saídos de uma esquete do Porta dos Fundos.
São cenas que parecem recortada de clipe para cumprir os passos da jornada do filme, sem ter aquela noção de importância maior em ligar o todo.
Destaque para a Joyce, que mais me importei do que as outras.
Outro erro meu aqui, ou do filme: não peguei muito bem a relação familiar da protagonista. No começo ela explica em off, sua situação, mas me perdi ali.
Ma vie en Rose explora muito bem os aspectos fantasiosos da infância junto do questionamento da própria criança em relação à sua sexualidade. Chega num ponto em que é quase um drama infantil por trazer uma inocência do gênero junto da intensidade que é o conflito de valores.
Ao longo do filme, o diretor filma a vizinhança reagindo aos acontecimentos causados pelas "brincadeiras" de Ludovic e vai desenvolvendo o preconceito de cada personagem. Em certa medida, é nada sutil como ele demonstra os ataques conservadores da família, escola e vizinhos, até mesmo a própria descoberta de Ludovic é jogada na cara. Tem umas cenas muito boas com as da dança, a chegada do Ludovic na festa e a imaginação fértil da criança ganhando terreno. Tudo precedido de uma trilha dócil ou um ar meio atrapalhada que logo fica sério com a reação dos adultos.
Acho que cumpre muito bem o seu papel e segue um ritmo bem interessante sem nunca descambar para um lado agressivo e mesmo assim emocionar e impactar com as situações. As cenas mais dramáticas fica por conta das crianças, no vestuário, dentro do quarto, dentro da escola. Mas aí na mesa de cozinha, quem decide a própria sexualidade do garoto, nunca é ele mesmo.
A mongolada da A24, quando viram Midsommar e Hereditário vibraram em cima, mas deveria ver esse aqui
Gosto bastante que o Kiyoshi Kurosawa apresenta os traços fantasmagóricos da narrativa logo de primeira e depois investiga os efeitos pelo mundo. Ele não perde o fio dessa falta de conexão que persegue os personagens e dá cabo de unir duas histórias na segunda metade para concluir o destino dos protagonistas e unir com a contação da primeira cena.
Pulse causa um leve arrepio nas cenas, mas é justamente na sustenação da imagem do fantasma que ele causa o medo e as reflexões no espectador. A sensação de ficarmos presos para sempre na tela tentando nos comunicar, próximos uns dos outros, mas cada vez mais distante. É um debate que só aumentou com o passar dos anos. Se por um lado o aspecto técnico é ultrapassado e os chiados da internet discada - e apenas isso e nossa relação prematura com o ciber espaço permite o filme de existir - soam datados, seus diálogos só vão ser mais presentes ainda mais com o tempo. Lembro bastante do anime Serial Experiments Lain, ainda que faz um tempo que eu tenha assistido, e também de perfis do facebook de pessoas que já morreram - os verdadeiros fantasmas da internet.
Voltando para o filme, é muito bom ver essa diferente relação lado a lado da percepção com o digital tanto quanto ingênua, prematura e medrosa, de uma época que a internet estava chegando; sendo transformado em narrativa de solidão, amizade e desespero.
Kawashima entra nesse mundo guiado pelo ceticismo, pela descoberta da internet em busca de um conhecimento, ainda que ele figure um medo de tudo aquilo, é ele que guia toda a história, centrado num ambiente aparentemente evoluído que é a faculdade onde o campo científico divide espaço com a lenda dos fantasmas. Lá que ele flerta, recebe ajuda e é obrigado a pensar sobre essa relação distante que os seres humanos estão vivendo.
Enquanto no outro espectro, Michi vivencia a situação na pele, vendo cada um dos seus amigos desaparecem e negarem contato. A marca deixada na terra é o último sinal de diálogo, como uma garrafa no mar sendo encontrada depois de anos, o último log deles na terra. Em cada cenário, Kurosawa avança no impacto da descoberta, ficando cada vez mais denso a passagem de mundos para dar direto no segundo ato, onde todas as almas desaparecem e resta apenas nossos protagonistas. Aqui talvez o filme se distancia do terror do primeiro ato, mas é justamente por vermos duas pessoas se dependerem cada vez uma da outra, sem nem se conhecerem direito, em busca de outro sinal, que o início se justifica.
No fim, acho que Pulse traça muito bem uma jornada de desespero em face da cibercultura para levar no combate do mundo real, uma caminhada livre e sem medos mas que se mostra possível somente com a destruição do outro.
Vale uma second view porque assisti com legendas em inglês, algumas vezes me perdi, mas peguei tudo de importante no geral.
Cops vs. Thugs te coloca para o meio da ação, sem respiros e com quebras na conversas, você se sente ali perto dos tiras e dos ladrões.
Fukasaku consegue traçar uma linha bem definida do sistema que os personagens estão inseridos. Se não tem o maniqueísmo, tem a intenção do bom e do mal, nos discursos falhos dos policiais. Já os mafiosos, os "thugs", não usam trajes chiques ou são mostrados na mais sádica pose. Os mafiosos aqui são desajeitados, alguns beiram a ação do humor nas cenas. Fica a cargo da influência policial mostrar seu poder. Eles são posudos e enaltecem o dinheiro fácil, a influência política e o da conquista galanteadora forçada, mas o diretor consegue estilizar de uma forma até cômicas e melancólica as situações que são colocadas. Ainda mais pela trilha sonora clássica, ausência de um som de ação, é mais um ritmo de fuga, batalha de rua e aquele jazz clássico bem rápido.
Cops vs. Thugs coloca muito bem as duas forças, policial e mafiosa, em polos distintos, mas lado a lado. É como se um alimentasse o outro, pelo suborno e pela influência. É a prisão de um inocente para fazer bom trabalho e boa visão na imprensa, é a livre deixa de um amigo criminoso para que as ruas continuem sem sangue, mas se as mesmas ficam pingando sangue, a polícia é forçada a agir.
Fukasaku ainda insere muito bem todos os contextos políticos. Na atualidade, a força é corrupta, e a vontade de carregar as armas vem não de uma intenção de defesa, mas de uma simples amostra de poder bélico negado após o fim da guerra. A delegacia imagina seus inimigos não os mafiosos, mas os comunistas, ainda na sensação de medo do fim da guerra, e do inimigo obscuro. E tem ainda o fato dos mesmos bondosos do lado da lei, se corromporem no adultério e no alcoolismo.
É sensacional a câmera de Fukasaku, o diretor busca contar a história através de um passado dos jornais, nos prints iniciais da tela e depois vai em frente de buscar a brutalidade dos pequenos espaços. Os tiroteios e a porradaria são confusos, mas todas as decisões mais influentes saem de uns pequenos e calmos lugares. Ele corta dos socos fragéis do interrogatório policial, direto para a reunião da gangue, humilhando e escolhendo o próximo a ser preso. Dois espaços de homens reunidos, um respeitando o distintivo, outros não.
Tudo muito bagunçado, tudo muito gritante, violência que desfoca, e tudo muito parado de longe. Cenas de multidão mudam completamente o movimento, você vê ali o Ken curvado enquanto os homens atacam descontroladamente.
A persona do Kuno é muito bem desenhada para sentirmos sua influência e queda, é um arco bem clássico, mas que toma uma potência no clímax final, onde ele se curva perante seu distintivo e projeta sua influência, mas no final, acaba se ferrando. Fudida aquela metade do filme: Kuno bêbado ajudado pelo Ken, polícia mata um inocente e inicia uma guerra. Aquela montagem já diz muito sobre o filme inteiro.
Um excelente trabalho na profusão de clipes alinhado com a narrativa do ensaio. Se o adjetivo filme clipe é usado para quando um filme se sai bem apenas no nível visual, aqui ele subverte, mas também se apropria, acredito que faz um sentido em algumas cenas. Visto que é um quase compilado de gravações de danças, documentário dos ensaios e discussões sobre o enredo.
Cavalo, então, é mais do que apenas a imagem, dança e o som agindo. É a história da ancestralidade se manifestando nos corpos e nas relações, nos nossos significados, no sentido de ser. Os diretores pegam o sentido da história para os personagens e dão para que eles resinifiquem com os corpos. Cada um da sua maneira, representa através da dança, rima ou performance, seu ato de resistência.
Não consegui ficar parado vendo o filme. Não digo que fiquei dançando ou batucando. Mas teve momentos que fiquei mexendo o corpo sentado. Outros que o pleno registro da adoração me fez ficar quieto e apreciar. Curto que o diretor não hesita em simplesmente deixar a câmera registar, a montagem é paralela em cenas bem importantes, como o ensaio de Eva e a dança na chuva. Tem momentos ali que são pura emoção e êxtase dos corpos, lindo demais.
Enfim, se sustenta bem na compilação, não é somente imagens bonitas, e consegue mesclar todos os discursos, performáticos, documentários em momentos claros do longa.
Preciso voltar nesse filme daqui a um tempo. Assistir mais do Bressane e assistir esse com mais firmeza.
Ademais, Sedução da Carne é curioso no sentido de estabelecer dois registros. Um da natureza, documental, câmera na mão, sustentado na história. Após o corte da montagem, vem outra cena, que sucede em performances de monólogos teatrais dirigidos a um papagaio e vigiados por um pedaço de carne. Consigo enxergar um divã poderoso de confissão e memória. Gosto também como Bressane não tem vergonha da sua câmera, não esconde a linha nem o palco. Então, se a história em si recebe um trato experimental, a forma é direta no sentido de evidenciar do que está falando. A união disso com o fundo em branco e a obsessão das falas da moça me encantaram demais.
E eu realmente gostei de tudo que ele simboliza, da força da atriz e das experimentações visuais com a carne.
Não tiro nada do que eu disse, mas eu realmente preciso ler mais e assistir mais sobre Bressane, e voltar nesse aqui com mais firmeza.
Escrevi sobre esse curta documentário para o Plano Aberto, na cobertura do Festival Ecrã 2020. www*planoaberto*com*br*critica/assistindo-a-dor-dos-outros
Sertânia é um filme de tristezas. Me pego pensando nisso ao lembrar da cena da menina surda e o drama de Antão ao contar a tristeza de Jesuíno.
O sargento que ilustra a réplica da Santa Ceia enquanto seus homens contam as lendas por trás da sua vida. Mas é Jesuíno, o inabalável e destemido que se emociona com o mais cruel destino que Deus poderia dar na vida de alguém. Como não ver toda a seca do sertão e o desalento de quem está passando fome? Como não falar e protestar por água nas terras do nordeste? E tudo que entristece.
Como se revoltar e batalhar contra os macacos que Jesuíno jura a morte como o bom cangaço que é? Nas memórias de Antão, ele lembra toda sua trajetória. E o mais interessante é como nosso herói nunca mudou seus ideias em toda sua vida. Se ele largou o governo para lutar contra a República, ele larga a bandidagem para proteger os inocentes. Ainda assim é um home que parece sempre em busca de algo e que nem a morte vai deixar ele não encontrar esse algo.
Interrompe cada ciclo para reconfigurar sua história, através dos cortes de Sarno na montagem, consegue muito bem trazer esse aspecto da memória do flashback alinhada com o desespero do quase-morte. A câmera se mistura com o inchaço da terra, com o céu escuro e cinzento, esse branco e escuro que ilumina e quase deixa a gente cego, um preto e branco que rememora o tempo do Cinema Novo; mas não por esse anacronismo, mas por combinar perfeitamente toda a estética abandonada do sertão, pois não precisamos das cores para sentir a violência ou a tristeza que se passa ali. Acho que nesse sentido, combina muito bem com a questão de ser o flashback delirante, tudo ali dá a impressão de um conto sendo contado por alguém que viveu a situação. Histórias antigas que se repetem, virando filme na nossa frente.
O experimental se dá aqui pela trilha vibrante, a montagem da memória, esse delírio que não altera, mas que transmite o sufoco e a ideia de reconstrução de personagem, para que conheçamos quem estamos morrendo, ter a simpatia através da sua própria vida. Me impressionou bastante pelo fato de exprimir toda a potência cinematográfica que a gente poderia ter somente hoje, e unir com uma história tão antiga quanto o próprio sertão. Meio que traz uma jornada do herói nordestina, corrompida pelo que trai o sertão.
me empresto aqui com a opinião de alguns colegas que resume bem: a filmagem de Sarno nunca chama atenção diretamente para o próprio filme, é uma coisa única dali, que te carrega o tempo no espaço, no chão, na trama, é foda!
Nem mesmo quando o filme se quebra ele se perde. É totalmente explícito as intervenções do diretor, da produção, dos figurantes. Mas acho que encaixou perfeitamente com todo o momento. Ao invés de mostrar que sabe, a câmera não deixa de se mover mesmo com a presença do equipamento e as falas soltas justificam a presença da quebra da quarta parede.
É muito foda também como a montagem não deixa de atacar o real inimigo dali. Entre a rachadura do Sertão, entra o modernismo e a linha de trabalho. Atirar em quem? Quem é o culpado? O futuro está aonde? São cenas de um mesmo mundo que se dividem. E quando o Geraldo coloca logo depois das ordens do capitão, aquilo gera um significado tão grande na gente que o impacto é fudido.
Potência única a cena do saqueamento. Você entende ali toda a raiva que desencadeia no Antão, e seu impasse com o Sargento, seu destino predestinado. É uma coisa totalmente bagunçada, mas que o diretor controla perfeitamente. Emula um grito teatral de socorro, de ajuda, o clamor de salvação. Enfim, a tristeza encarnada no fundo do coração de Antão.
Acho que também traz uma diversão repentina em certas ações. Você vê ali a perdição dos governantes, a pose do Antonio Conselheiro, as danças. É bem doido os caras dançando para não ir no inferno e logo quem fica distante? Antão, que depois de ir para o inferno, ver seu pai morrer, volta, é morto e o filme acaba como? Numa dança junina celebrando o Brasil, que apesar de todos os seus problemas, segue brasileiro!
Papéis sociais corrompidos e disputas internas preenchem Rebel Without a Case. Desde os jovens até os adultos, estão em conflito com aquilo que querem demonstrar para a sociedade, e isso gera a confusão de tudo.
O plano inicial é muito lindo, Jimmy bebâdo, deitado frente à câmara agarrando um símbolo de inocência. Logo em seguida, vai para delegacia e conhecemos os três personagens e o fundo de suas histórias. Tem até um certo ar de elegância por exibir vestes limpas e gestos tolos em um cenário de podridão e abandono, mas sustentados na falsa ideia de boa família. Judy não tem a atenção do pai e desabafa ali, assim como Jimmy descontente com a atitude de seu pai e Platão (um pensador com a arma na mão) está abandonado nas mãos da empregada. O trio à todo momento vai portar um personagem pela honra, seja ela feminina, a do macho ou a do garoto que quer apenas alguns amigos. Irônico é a salvação vir logo do juizado de menores e tem até um certo aspecto de proteção nesse sentido, com a polícia ordenando e comandando o clímax.
Gosto que esses jovens tentam agir como adultos fora de casa, e dentro dela que a inocência sai do corpo e se agarram nos pais. Mas na casa abandonada, o senso de família infantil aparece, tentando imitar um casal feliz.
E todos os plots de ação acontecem dentro do planetário. Por fim, acho que todo o longa entrega uma tensão bastante assustadora no sentido de tratar os jovens de maneira madura num momento de escolhas mortais. As cenas possuem um ritmo de real perigo, ainda que os personagens achem que estão apenas brincando, sentimentos medo e apreensão por suas vidas. É o valentão voltando da jaula.
Marlon Riggs define o indefinível numa América traçada por diferentes cores, gestos, valores e culturas numa mesma comunidade. É através dos conflitos da própria raça que ele busca as respostas para as questões que uniram o povo por uma luta em comum. Marlon se coloca dentro do documentário já em uma posição de afeto e intervenção, parte o trabalho é de sua equipe para registro do seu espírito vivo, a outra é o próprio entrevistando e filmando. Pode-se interpretar todas aquelas falas e diálogos como as lembranças e memórias que o Marlon teve na cama antes de morrer, suas reflexões e pensamentos sobre o que divide e une a gente como comunidade.
Gosto que os relatos trazem memórias e lembranças de um tempo árduo e triste, contam sobre disputas, conflitos, masculinidade, suas origens, machismo, repressão. Tentam explicar como que cada valor define e se coloca no homem negro, como ele chega a ser um ser humano através da vivência de fatores negados durante mais de cem anos. Mas mais do que isso, os relatos são cotidianos e demonstram certa compaixão em transmitir o verdadeiro diálogo, uma certeza que antes e depois os entrevistados colocaram um sorriso no rosto somente pela sensação de fazer parte daquilo, muito maior que eles.
A narrativa vai e volta, através de uma edição metafórica pelas performances de dança, poesia, transição de planos e recortes fotográficos cuja única divisão se dá pelos diálogos. Uma entrada que vai sem parar numa história que sai do individuo de modo a definir o coletivo. O mais interessante é como cada um ali responde sobre um assunto através de uma perspectiva para a comunidade negra, o corte entre diferentes noções já cria um discurso tanto de descontrole das narrativas na medida que rompe com o usual, e por outro lado como definidor de uma divisão plural de um mesmo povo. É a história pelos mais diversos personagens.
Cabe também a própria indefinição no retrato dos entrevistados, diversos, seja na cor, orientação sexual ou gênero. O ponto da África dentro da América é o mais forte, em 10 minutos uma diversidade de opiniões, com um registro ímpar de uma pequena comunidade a recriar a vivência.
O título te chama pela definição e a forma sustenta pela indefinição.
É caos por todo lado, é documentação da liberdade utópica e reacionária do verdadeiro estilo de vida americano que as almas mais podres desejam alcançar. Velho e degradante, no visual e na aparência, Trash Humpers pinga o nojo da situação por onde passa, é difícil de enxergar um propósito além da liberdade doentia de viver e destruir. Mas não é uma destruição do mundo nem sequer pegadinhas como o Jackass faz, é uma tiração de sarro da própria vida e de um mundo desconhecido, assim como dos materiais envolvidos, já conhecidos e usados por essas velhas criaturas. Os personagens de fora do espectro da máscara tem umas aparições tão marcantes, mas que dividem a degradação ao lado dos velhos. É um racista que se diverte com suas piadas, um mendigo que vive cantando - e o que não seria a trupe se não os próprios esquecidos da cidade?
Em um dado momento, uma das personagens compara a vida deles com a dos outros morando em suas casas. Sugere um conflito de conquistas, como se o que eles alcançaram é o verdadeiro fim daqueles que vivem para trabalhar.
No fim, Trash Humper é uma coleção divertida, assustadora e caótica da vida de criaturas americanas num território desconhecido. E também é tudo aquilo em cima.
Filmes para rever sempre.
off: fico absurdamente com a review do Maicon - "they're just vibing" adiciono - they're TRULY vibing
New Rose Hotel possui um aspecto muito interessante de memória. As gravações de vigilância à todo momento dão um toque de registro de todos os acontecimentos que a dupla persegue, ao mesmo tempo a encenação dos diálogos traz uma noção não do aqui e agora, mas de uma lembrança passada. Tudo entra em conflito nos minutos finais, se confundindo cada vez mais dentro da cabeça do personagem do Willem Dafoe. As transições quase se esvaicendo na tela dão essa impressão também, de algo que está para trás, um passado que não dá para recuperar, mas acontecendo ali no presente. O Fox é velho, mas persiste em continuar no trabalho, e quer curtir a vida como um jovem, com toda sua influência e poder, ele não aceita sua derrota e assim se joga do pedestal quando é perseguido. Se importa com dinheiro e não com vidas humanas, ainda que trate de algo envolvendo a ciência que nunca é muito bem explicado.
Ainda mais pela missão que eles estão realizado, tem um certo distanciamento, onde nunca dividem os mesmos espaços das conquistas, sempre indicando um certo fiasco e desaparecimento. É bastante curiosa a cena em que eles fazem a transação com aquele grupo de empresários, tão fácil e rápida.
E palmas para a fudida trilha sonora do filme, vibe video game total.
Ferrara parte do trauma, paranóia e medo para raiva e obsessão. A falta de fala da personagem entrega feições absurdas, do desespero ao controle. A estilização do Ferrara me lembrou bastante Vestida para Matar do De Palma, nessa questão da perseguição, dos próximos assassinatos; mas ao mesmo tempo tem uma crueza no ato muito particular da própria raiva da protagonista, do próprio desejo em tirar a vida dos alvos. A sequência inicial dos estupros é desconfortante, mas a composição, tanto em questão sonora quanto de montagem, provoca todas as piores sensações em tela, na medida em que trabalha o "enquanto" do ataque e o ato, a ida ao mercado e o roubo, o beco e o desespero.
São duas cenas importantíssimas que estabelecem os motivos e traumatizam Thana, guiando sua jornada durante o filme. Acho que o filme não coloca o ato como o responsável por mudar a personagem, de forma boba e gratuita. Ao mostrar as ruas com os caras perseguindo e assediando, enxergar que a potência da voz das suas amigas os afastam, ela se vê sem recursos, até que sofre o ataque, se safa e reconhece ali a sua força. Após, tem um misto de preocupação e controle, onde ela vai aprendendo e despistando.
Com a atuação excelente da protagonista, o som estilizado ao máximo, estridente, sinistro, indicando pistas e trabalhando muito bem os sentidos da própria protagonista; transmitindo seus pensamentos, quase até como se falassem por ela, Ms. 45 entrega um pequeno conto de uma jornada de vingança poderosa e destruidora.
Feminismo radical no seu extremo. E o final mostra muito bem isso. A despedida para com a "irmã", enquanto o cachorro volta e a dona do condomínio a ataca - ironicamente a chama de bruxa, e ela vestida de freira.
Ainda que a influência de Batalha Real permaneça viva nos games e nas produções do gênero em séries e no cinema, a criação de Kinji Fukasaku permanece única 20 anos depois por saber brincar com o lugar comum sem cair numa paródia de horror exagerada, situada em um melodrama juvenil político. O filme se consagrou como uma das maiores bilheterias japonesas de todos os tempos, e chegou até a ser confiscado e proibido em 2013 na Alemanha, reconhecido como um perigo para os adolescentes. Se a influência consagra Hollywood e o capital, a distopia política assusta e diz mais sobre o Estado que vivemos do que a própria ficção.
Parece um filme do Monty Phython sem muita experimentação.
Tem uma sátira muito boa dos bons constumes religiosos, do quanto o sexo deveria ser sagrado e aqui é tratado de forma banal. Ainda o pecado, a pior coisa para o cristão, é temido numa cena e noutra é normalizado. Ele não divide as histórias e a gente vai sabendo o foco no decorrer dos personagens. Aí o que amplifica é os pequenos clímax e as filmagens externas dos grandes espaços, engana muito bem em nos fazer acreditar naquele recorte de tempo e espaço.
Gosto da simplicidade em meio ao grotesco que ele tira o riso. Pequenas fábulas adultas de perversão religiosa.
É um tocante retrato de uma figura desconhecida, mas cujo tamanho político é enorme para um grupo de pessoas marginalizadas, e mais especificamente, as residentes da casa que ela abriga. A opção pelo documentário observacional entrega uma trajetória, uma jornada que vai desde o impeachment da ex-presidente Dilma até a eleição de Jair Bolsonaro, sem focar nos atos políticos, o trabalho se encarrega de registar as passagens de vida e luta da personagem. Cotidiano se mistura com a potência da militância dentro da sua vida, a relação conjugal e a luta pela ocupação da Casa-Nem. O audiovisual aqui se encarrega principalmente de potencializar as emoções, articula a trilha sonora triste com um momento de impacto e destruição para Indianara e as pessoas ao seu redor, assim como o próprio país. Um olho onipresente que mesmo um pouco distante dos personagens, quase como um extenso tele-documentário, captura as mais diversas expressões dos personagens. Sarais, festas, casamento e protestos. Consegue transmitir muito bem todos os lados de Indianara e recorta nessa jornada os fenômenos políticos brasileiros e como eles atingiram a camada dessa população. Não somente isso, mas como eles vivem e lutam por seus direitos. Acho que longe de querer explicar ou engrandecer a figura de Indianara, se sucede como um baita registro histórico. Gosto que ele faz a gente se acostumar com o terreno que Indianara abriga, reside e se envolve e logo depois a porrada que ela toma do sistema, as duras que ela enfrenta.
Summer of Sam parece muito com um filme de aparências. Do The Righ Thing para os ítalo-americanos.
O retrato ítalo-americano de Spike Lee parece dizer que cada núcleo esconde algo, sobre uma facha do macho, do durão, responsável, protetor e conservador. Traficante que quer acabar com o crime, punk stripper que não aceita ser chamado de gay, marido que trai casualmente - e todos aceitam. O Filho de Sam desperta a ira naquela região que finge ser pacífica, provoca medo nos semelhantes, algo que eles dificilmente fazem, sempre intimidando os estrangeiros e negros. A aparição de Lee como personagem dá um tom cômico, mas certeiro para a trama. Quase um amador na câmera, ele tenta tirar o real do povo e jogar na tela de alguma forma. O final é estarrecedor e é um ponto chave do filme, unindo tramas e sub conscientes distantes. O real inimigo versus quem queremos que morra. O verdadeiro Filho de Sam que se acha o salvador da pátria.
É o filme mais cru e sexual de Lee, perversão e santidade andam lado a lado, personalidades distintas e em conflito. Tem o melhor uso da câmera na grua, hipnotizante e completamente imerso no personagem, caindo na droga e na sua própria busca por si. A fotografia estourada de Sam cai muito bem com a divisão de cenários. Por fim, acho que o filme se sucede muito bem nessa divisão de mundo e aparências.
Cabeça de Nêgo
3.9 37Saulo é eu e cada jovem que sofreu mudanças severas com os discursos militantes mais explícitos veiculados nas redes sociais ou atingido fortemente pelas políticas de repressão também explícitas dos últimos anos. Saulo conversa com o "eu" juvenil de cada moleque adulto e representa muito bem a não obediência perante às situações.
É um filme que junta todo o sentimento de revolta que a juventude - principalmente negra - teve e está tendo numa só história; e isso é muito particular dessa juventude representada no filme, protagonizada por um jovem negro em meio aos movimentos secundaristas.
Como outras críticas já comentaram, Déo Cardoso se apropria dos estereótipos juvenis para montar sua história. São cenas com discursos prontos, mas que possuem uma unidade muito bem definida a fim de dispor os diferentes. É a zueira na sala sendo alavanca pelo racismo, o desrespeito com os professores, o interesse do aluno pela luta dos Panteras Negras, a aliança dos amigos...tudo isso é colocado até de maneira explícita pelos diálogos - de início me incomodou, mas logo depois o filme foi se encaixando, pois tudo ali fazia parte da unidade da obra.
A cena em que toca a música do Emicida, por exemplo, cai numa fabulação do futuro extremamente interessante. Tá tudo ali e não precisa ser mais escancarado e pode ser daquele jeito ali mesmo, é essa a intenção e pronto.
É muito interessante também como filme situa muito bem as forças e como ele engrandece cada uma através da imagem. A força dos alunos e a falsa grandeza da instituição.
O próprio espaço da escola também dá uma noção de sufocamento, aprisionamento e isso é extremamente bem trabalhado pela luz e sombra do filme - energizado pela queda de força proposital da história. Como ele vai lendo e estudando dentro daquele cubículo, sem nenhum suprimento recebendo um tratamento desumano, alvo de líder de rebelião. E isso vai também desde os refeitórios, cujo corte lembra também uma prisão.
E se pegar a história em si - menino fica preso na escola fugindo do bandido que matou seu irmão e usa o espaço como reinvindicação de demandas estudantis - nem sequer chama tanta atenção, mas o principal é como ele sai desse pequeno espaço para atingir camadas extra campo na mesma imagem, sintetizado na última meia hora do filme, onde o suspense vai crescendo e o imprevisível toma conta.
A única arma ali, desde o primeiro momento em que o Saulo leva um pescotapa e é filmado pelos moleques, até ele usar o mesmo artefato para denunciar o desacato do porteiro e da escola e no fim, as imagens reais de tantos estudantes recebendo ataques brutais da polícia filmadas pelos mesmos, tão real quanto a ficção.
A dedicação à Zózimo então juntamente com a cena final da "prisão do Saulo" é a ponta do soco no estômago. Surge com Alma no Olho, dito fundador do cinema negro brasileiro, com suas específicas reinvindicações e tratos com a linguagem, versando desde a abolição da escravatura até a falsa libertação do povo negro; e chegamos em 2020 com Déo Cardoso, realizador negro tão diferente de Zózimo, mas que consegue até mesmo captar rastros daquele discurso através de uma história da juventude que mesmo seguindo passos "corretos" e lutando pelo que é seu de direito, recebe pancadas e pontapés do Estado, não muito diferente como era na época de Zózimo.
Registro essencial poderoso do cinema brasileiro em 2020.
A Felicidade dos Katakuris
3.5 25Takashi Miike abusa da invenção de gênero que o cinema permite para trazer um certo niilismo cômico e banal. Não tem regras, não tem obediência ou sequer uma sequência correta a seguir quando todos os hóspedes de uma pensão de fim de mundo se matam depois que chegam no local. "É a vida", como ensina o avô. E a testemunha mais inocente de todas nos conta a história, do verão maluco da família Katakuri.
A única regra a ser seguida é do sorriso no rosto à qualquer custo. O lugar que mora esse sorriso são nas músicas, nos sonhos e nas pequenas chegadas dos clientes. É tudo tão bizarro e tão bobo, que resta sorrir para aguentar aquele espaço. The Happines se concentra nessa barreira da vida feliz em meio a corpos mortos enterrados no quintal, onde a família vai ganhando o pouco que resta com eles. Tentando enganar quem vem, sem saber o que lhe espera. Takashi Miike não está interessado nem sequer em dar um fim para essa maluquice ou uma explicação, ele quer apenas mostrar e eu acho isso a cereja do bolo.
Gosto muito dos 40 minutos finais. Não lembro de um filme que conseguiu mudar tanto assim na abordagem temática de uma maneira tão boa quanto esse. Vai do musical, da ação, da cena policial, da comédia, para o drama. É a unidade sem unidade que se completa pela verossimilhança desregrada daquele mundo. São as poses desengonçadas em cima dos corpos, o choro forçado, o musical naipe Dancing in the Dark, as gritarias...Dão um tom bastante cômico e surreal para o filme sem nunca sair daquele espaço bizarro e perfeito dos Katakuris.
O trabalho com stop motion tem o seu lugar, mas até fica esquecido em meio à tanta coisa acontecendo. E todas as aparições dos monstrinhos ou da quebra para a animação dos atores são sensacionais. É estranho porque são eles os responsáveis por dar vida aos cenários impossíveis, mas é durante todo o filme que o impossível reina e faz seu lugar.
Meu primeiro Takashi Miike e eu me diverti bastante.
A Noite Amarela
2.7 51A Noite Amarela é um filme jovem, e para usar o linguajar jovem, ele me engatilhou. Todo esse rito de despedida, reunião entre amigos de madrugada e conversas paralelas foi bastante relatável comigo. Lembro de vários momentos semelhantes com amigos e que hoje não é mais possível ter por conta do distanciamento social. Ouso dizer que teve a representação mais fiel dos filmes que já vi nesses últimos anos (Fim de Festa, Piedade tentaram e não foram muito bem)
Os diálogos ditos paralelos nos apresentam os personagens e nos fazem sentir parte daquela turma. E, usando dos seus próprios códigos, o celular por exemplo, o filme traz os melhores momentos entre eles, na visão deles. São piadinhas, insinuações e brincadeiras que deixam a camada da juventude divertida e sintoniza esse aspecto bobo que toma conta de qualquer reunião e que é intensificado pelo fato de estarem se reunindo pela última vez. O fim do colégio, o fim de suas vidas, a separação entre eles...Num lugar remoto e longe de tudo. "O mundo pode estar acabando agora e nós somos os únicos habitantes da terra." Acho até essa uma das frases mais assustadoras, talvez. E é doido também essa preocupação na mente deles que acaba significando uma troca sobre sonhos e percepções.
Até a metade do filme, a narrativa estava meio engessada. Admito que não consegui entender alguns diálogos, mas peguei por cima. Mas um bom ponto é o uso desses diálogos sobrepostos. É a besteira em cima da tensão da personagem entrando nesse portal. É dois mundos sendo divididos.
Gostei bastante também de como o filme usa a imagem à favor dos adolescentes. São três coisas muito massas: o book de fotos rememorando os tempos, o sonho que na verdade era realidade (uma quebra que até demora para se firmar, mas eu gosto por se regrar dentro de um mundinho próprio deles, sem forçar discursos de fora, é só mais uma história marcante na vida deles) e a pequena gravação que eles fazem depois que se encontram. A fala da Mônica é inserida propositalmente, é claro, mas toda sua carga é transformada com o que já sabemos: eles perdidos na Ilha.
E eu não sei até que ponto gostei exatamente das pegadas sobrenaturais com eles perdidos. Eu gosto bem mais das misturas experimentais que o filme insere e isso dentro da jornada da Karina com a Mônica. O bom mesmo é que todos os elementos sobrenaturais estão ali, e até mesmo científicos, mas eles não tem destaque na obra. É mais a perdição deles na Ilha e todas as alucinações que vem em conjunto. São seus assuntos banais em meio a uma ligação sinistra daquele mundo.
No fim, o que vai importar para cada um deles são as histórias que vão contar daquele dia, que nem fizeram na roda de fogueira.
O Massacre da Serra Elétrica
3.7 1,0K Assista AgoraA exibição dos corpos em prol da carnificina. O lema de Texas Chain Saw é posto em tela desde o seu início, o corpo putrefato ao Sol e logo em seguida o lance do cadeirante caindo frente à câmera. Frágeis perante o espaço. Reféns de todas as situações, até a morte. Fugindo para o texto, a conversa paralela sobre a fazenda do pai/avô de uns amigos vira o terror dos ouvintes e a descrição da matança é agraciada pelo passageiro maníaco. É nessa linha que segue a sinistra história de aventura que vai levar os amigos ao inferno.
O Massacre da Serra Elétrica usa o quê não é mostrado em tela para provocar o terror da sensação de estar sendo dilacerado para virar carne humana. Os gritos da Sally se misturam e viram e gritos animalescos. O zoom deixa a gente tonto. E a fincada tão espontânea é a chave de ouro, bem na metade, para rememorar o que o Franklin diz no começo. As marteladas e todo o processo. A trilha de Hooper também contribui para essa sensação, junto dos gritos. A ideia mesmo é de um espaço sem fuga e com total controle do corpo, do animal; que já não é mais tratado como humano e sim uma presa a ser morta e dilacerada.
Acho muito interessante também o uso da profundidade de campo. Nenhum pouco à toa, é com ela que temos dimensão do perigo e a pequena casa se torna um grande inferno. Toda a encenação é calculada nesse sentido, demonstrando o desespero do grupo e o fato de estarem sozinhos no fim de mundo, sem ninguém para ajudar.
Os 40 minutos finais são surreais e fazem jus ao resto da obra. Apresenta todo o contexto, os personagens e com uma constante sensação de perigo. O Leatherface aparece e já faz suas vítimas de forma rápida e quando sobra apenas um, é maravilhoso. Aí o descontrole e o caos vira regra e a gente tá amarrado do lado da Sally vendo tudo, com seus olhos.
Dito isso, O Massacre da Serra Elétrica é sim uma obra prima, curta, direta e sucinta que une muito bem o desconforto dos sons, dos espaços e da imagem para apresentar uma narrativa de "quem vai sobreviver" ou "grupo de amigos cai numa armadilha canibal", mas que entrega muito bem uma ideia do contraste das relações humanas-animais invertidas.
Cartas de um Homem Morto
4.1 38Já vi muita gente comentar em grupos que certos filmes deixam uma dor física após o término da sessão. Nunca dei muita atenção para isso, mas também nunca desacreditei. Porém, admito que a ressaca foi pesada depois de assistir Cartas de um Homem Morto.
É um filme que te faz sentir todo impacto causado naquele espaço e na apatia da fala de cada personagem de uma maneira direta por conta da imagem, mas sutil por não se importar em contextualizar objetivamente as origens da guerra. O aspecto quase monocromático ou de desmanche das cores une muito bem essa sensação de fim de mundo, pós-apocalíptico, fim da humanidade. É como as cinzas das ruínas tomando espaço da própria tela, o que deixa o longa "sujo", como tivéssemos entrando dentro daquele mundo.
O dilema do que restou, da perca de fé e o resgate da humanidade é colocado pelos coadjuvantes e a esperança é justamente no cientista que parece ter uma certo envolvimento nas origens da guerra. A cena em que ele lembra o sonho e a memória do parceiro se suicidando ou aquela que ele conta suas hipóteses otimistas para os parceiros diz muito sobre sua persistência em meio ao caos.
Se as cartas e a conexão com seu filho é o que lhe mantém vivo, são as crianças que vão lhe botar o último sorriso e sepultá-lo como deve ser. São nas crianças o principal impacto causado pela guerra. A consequência é a falta de fala, a seriedade, o trauma e também a união. Tiram dessa fase o sorriso e colocam nas costas da última geração a resistência e a busca por alimentos e um brinde. É essa linha de contrastes e ações um ponto muito interessante do filme e que entrega uma cena de destruir corações, com um ar até bíblico, relacionado a um salvador ou "O último homem".
Gosto muito do trabalho que o filme tem em montar a memória. Serve muito bem ao impacto do resgate da fé na humanidade no discurso ante póstumo da mesa do jantar ao breve contexto histórico ouvido no rádio até aos cortes rápidos da bomba e a trilha sonora clássica intercalando a memória do professor. É justamente nesse ponto o auge de Dead Man's Letter em sintetizar uma imagem política de destruição do mundo, com as ideias dos que restaram nessa fictícia Rússia de um ano fictício, ou um futuro próximo.
A Viagem da Hiena
4.0 23Serve muito bem como contraste ou ligação com A Negra De de Ousmane Sembène, na medida que o último trata da chegada em Paris e a quebra do sonho e Touki Bouki se concentra no road movie de esperança, desejos e ilusão com a terra prometida da França.
Na trama, Mory e sua companheira, Anta, partem do bairro em que vivem no Senegal em busca de uma nova vida em Paris. No entanto, os dois nunca chegam no país (ao menos o filme não mostra). Acompanhamos de forma muito dinâmica os obstáculos que eles passam, entre os roubos e artimanhas. Ainda que o final seja trágico e separe bem os dois personagens, Diop concentra sua narrativa na estrada e na mente dos viajantes, busca retratar como a dupla enxerga suas possibilidades e os outros ao seu redor.
Dito isso, o longa separa muito bem o cenário triste que vivem para as belezas que estão por vir. Diop faz isso através de uma experimentação através de som e imagem, brincando com a memória e o próprio tempo do filme. Em poucos minutos, ele transmite muito bem o que significa sair do lugar que vivemos para todos os envolvidos: aqueles que ficam e que saem.
O registro é feito através da música, com os cantos e danças dos moradores ou a clássica erudita e chiclete "Paris", as pessoas, dividindo entre o trabalho braçal, o lazer e os carros. Claro, nada disso é mostrado como Paris, mas sim a trajetória que vai construindo o seu sonho.
Muito bonito é, por exemplo, a cena do roubo das roupas e passeata do carro. Diop relembra a gente muitos momentos e resinifica as imagens, ao mesmo tempo que ilustra o sonho e o contraste de posições. É também nessa mesma ideia que as cenas no matadouro e os bois andando ganham outro significado na sua imagem final, alimentando a trajetória de Mory de volta à sua terra natal. Podemos até imaginar aí, uma linha contínua com o filme A Negra De, com o navio levando a personagem do filme de Ousmane.
Outro ponto que acho bastante significativo é o espaço construído, bem rapidamente, de opressão dentro do navio. De primeira, os papos intelectuais diminuem e reforçam o pensamento colonialista, após a fuga de Mory, (admito, achei abrupta de primeira, não sei se compreendi bem se era para fugir de ser pego), Anta fica sozinha e pensativa, aguardando um destino que sabemos que será trágico.
Todos os Mortos
3.1 29 Assista AgoraTodos os Mortos trabalha em dois períodos a fim traçar uma herança histórico-religiosa da memória da escravidão na cidade de São Paulo, se concentrando em duas famílias, Nascimento; que cuidou por anos da família Soares, com propriedades e fazendas. Ana, da família Soares, começa a agir estranho, lembrando de momentos do passado de seus escravos, de momentos de reza que ela jura, salvaram a vida de um chicoteado.
É da percepção errônea da cultura das religiões africanas que a irmã de Ana traz Iná, uma escrava do interior (?) a fim de cuidar de sua mãe e acabar com as "maluquices" de sua irmã. A partir daí, Iná reluta, mas enfrenta e apresenta a canção original da sua reza, sem misturas e farsas.
Nisso, a ligação da família começa. A narrativa traça um conflito paternal nas duas famílias e acho esse um ponto muito certeiro no filme. Coloca um reencontro filmado de uma forma belíssima, e a encenação teatral padrão torna raivosa quando temo o encontro da família rica. Os comentários do filme são muito claros. Intolerâncias religiosa que transpassam nossa história e a memória nunca é perdida. Os mortos estão vivos e respiram em cada filho de Iná perdido.
A colocação fantástica do filme se insere no elemento de terror de Ana, sua maluquice é na verdade um incômodo racista (incorporado até por sua mãe, na dependência de Serafina). Ambas não superam a convivência sem os escravos, e na mente de Ana, eles ainda estão com ela, enterrados e vigilantes.
Por Que Você Não Chora?
3.3 33 Assista AgoraAinda que a Cibele afirme o tema como um tabu, indicando um tratamento diferenciado com o tema do suicídio, sua forma acaba entregando uma cartilha, um comercial do Ministério de Saúde (analogia emprestada pelo Matheus Fiore), ao se apoiar em diálogos expositivos, explicativos que cansam e irritam o filme.
É, portanto, quando a relação entre as duas principais acontece que o filme começa e brilha. Nesse sentido, vira um filme de ator, mas que funciona muito bem na lógica proposta. Confesso que me irritei com a posição mais professoral da psicóloga do que terapêutica com a Helena, explicando os sintomas, ainda que presa numa lógica de aluna, quando passado para a ação, perde o sentido do tratamento em si e confunde o público.
Gosto também das experiências dos sonhos, alucinações e o jogo de cena no final, mas senti que mesmo assim o filme se preocupou em resolver suas personagens no final. Não é como se não entendessemos pelo que passa na cabeça das pacientes, mas a maneira muito mais didática e padronizada de transmitir esses sentimentos enfraquece a encenação.
Tem até uma divisão muito clara nesses dois espaços da faculdade com a do AT. E, o que irrita, é que um parece mais solto para as duas personagens enquanto o outro a protagonista se sente sufocada, por uma professora que explica o filme - e daí o filme se concentra apenas nesses momentos do corpo docente - e alunos saídos de uma esquete do Porta dos Fundos.
São cenas que parecem recortada de clipe para cumprir os passos da jornada do filme, sem ter aquela noção de importância maior em ligar o todo.
Destaque para a Joyce, que mais me importei do que as outras.
Outro erro meu aqui, ou do filme: não peguei muito bem a relação familiar da protagonista. No começo ela explica em off, sua situação, mas me perdi ali.
Minha Vida em Cor-de-Rosa
4.3 394 Assista AgoraMa vie en Rose explora muito bem os aspectos fantasiosos da infância junto do questionamento da própria criança em relação à sua sexualidade. Chega num ponto em que é quase um drama infantil por trazer uma inocência do gênero junto da intensidade que é o conflito de valores.
Ao longo do filme, o diretor filma a vizinhança reagindo aos acontecimentos causados pelas "brincadeiras" de Ludovic e vai desenvolvendo o preconceito de cada personagem. Em certa medida, é nada sutil como ele demonstra os ataques conservadores da família, escola e vizinhos, até mesmo a própria descoberta de Ludovic é jogada na cara. Tem umas cenas muito boas com as da dança, a chegada do Ludovic na festa e a imaginação fértil da criança ganhando terreno. Tudo precedido de uma trilha dócil ou um ar meio atrapalhada que logo fica sério com a reação dos adultos.
Acho que cumpre muito bem o seu papel e segue um ritmo bem interessante sem nunca descambar para um lado agressivo e mesmo assim emocionar e impactar com as situações. As cenas mais dramáticas fica por conta das crianças, no vestuário, dentro do quarto, dentro da escola. Mas aí na mesa de cozinha, quem decide a própria sexualidade do garoto, nunca é ele mesmo.
Kairo
3.4 163A mongolada da A24, quando viram Midsommar e Hereditário vibraram em cima, mas deveria ver esse aqui
Gosto bastante que o Kiyoshi Kurosawa apresenta os traços fantasmagóricos da narrativa logo de primeira e depois investiga os efeitos pelo mundo. Ele não perde o fio dessa falta de conexão que persegue os personagens e dá cabo de unir duas histórias na segunda metade para concluir o destino dos protagonistas e unir com a contação da primeira cena.
Pulse causa um leve arrepio nas cenas, mas é justamente na sustenação da imagem do fantasma que ele causa o medo e as reflexões no espectador. A sensação de ficarmos presos para sempre na tela tentando nos comunicar, próximos uns dos outros, mas cada vez mais distante. É um debate que só aumentou com o passar dos anos. Se por um lado o aspecto técnico é ultrapassado e os chiados da internet discada - e apenas isso e nossa relação prematura com o ciber espaço permite o filme de existir - soam datados, seus diálogos só vão ser mais presentes ainda mais com o tempo. Lembro bastante do anime Serial Experiments Lain, ainda que faz um tempo que eu tenha assistido, e também de perfis do facebook de pessoas que já morreram - os verdadeiros fantasmas da internet.
Voltando para o filme, é muito bom ver essa diferente relação lado a lado da percepção com o digital tanto quanto ingênua, prematura e medrosa, de uma época que a internet estava chegando; sendo transformado em narrativa de solidão, amizade e desespero.
Kawashima entra nesse mundo guiado pelo ceticismo, pela descoberta da internet em busca de um conhecimento, ainda que ele figure um medo de tudo aquilo, é ele que guia toda a história, centrado num ambiente aparentemente evoluído que é a faculdade onde o campo científico divide espaço com a lenda dos fantasmas. Lá que ele flerta, recebe ajuda e é obrigado a pensar sobre essa relação distante que os seres humanos estão vivendo.
Enquanto no outro espectro, Michi vivencia a situação na pele, vendo cada um dos seus amigos desaparecem e negarem contato. A marca deixada na terra é o último sinal de diálogo, como uma garrafa no mar sendo encontrada depois de anos, o último log deles na terra. Em cada cenário, Kurosawa avança no impacto da descoberta, ficando cada vez mais denso a passagem de mundos para dar direto no segundo ato, onde todas as almas desaparecem e resta apenas nossos protagonistas. Aqui talvez o filme se distancia do terror do primeiro ato, mas é justamente por vermos duas pessoas se dependerem cada vez uma da outra, sem nem se conhecerem direito, em busca de outro sinal, que o início se justifica.
No fim, acho que Pulse traça muito bem uma jornada de desespero em face da cibercultura para levar no combate do mundo real, uma caminhada livre e sem medos mas que se mostra possível somente com a destruição do outro.
Policiais vs. Bandidos
3.8 4Vale uma second view porque assisti com legendas em inglês, algumas vezes me perdi, mas peguei tudo de importante no geral.
Cops vs. Thugs te coloca para o meio da ação, sem respiros e com quebras na conversas, você se sente ali perto dos tiras e dos ladrões.
Fukasaku consegue traçar uma linha bem definida do sistema que os personagens estão inseridos. Se não tem o maniqueísmo, tem a intenção do bom e do mal, nos discursos falhos dos policiais. Já os mafiosos, os "thugs", não usam trajes chiques ou são mostrados na mais sádica pose. Os mafiosos aqui são desajeitados, alguns beiram a ação do humor nas cenas. Fica a cargo da influência policial mostrar seu poder. Eles são posudos e enaltecem o dinheiro fácil, a influência política e o da conquista galanteadora forçada, mas o diretor consegue estilizar de uma forma até cômicas e melancólica as situações que são colocadas. Ainda mais pela trilha sonora clássica, ausência de um som de ação, é mais um ritmo de fuga, batalha de rua e aquele jazz clássico bem rápido.
Cops vs. Thugs coloca muito bem as duas forças, policial e mafiosa, em polos distintos, mas lado a lado. É como se um alimentasse o outro, pelo suborno e pela influência. É a prisão de um inocente para fazer bom trabalho e boa visão na imprensa, é a livre deixa de um amigo criminoso para que as ruas continuem sem sangue, mas se as mesmas ficam pingando sangue, a polícia é forçada a agir.
Fukasaku ainda insere muito bem todos os contextos políticos. Na atualidade, a força é corrupta, e a vontade de carregar as armas vem não de uma intenção de defesa, mas de uma simples amostra de poder bélico negado após o fim da guerra. A delegacia imagina seus inimigos não os mafiosos, mas os comunistas, ainda na sensação de medo do fim da guerra, e do inimigo obscuro. E tem ainda o fato dos mesmos bondosos do lado da lei, se corromporem no adultério e no alcoolismo.
É sensacional a câmera de Fukasaku, o diretor busca contar a história através de um passado dos jornais, nos prints iniciais da tela e depois vai em frente de buscar a brutalidade dos pequenos espaços. Os tiroteios e a porradaria são confusos, mas todas as decisões mais influentes saem de uns pequenos e calmos lugares. Ele corta dos socos fragéis do interrogatório policial, direto para a reunião da gangue, humilhando e escolhendo o próximo a ser preso. Dois espaços de homens reunidos, um respeitando o distintivo, outros não.
Tudo muito bagunçado, tudo muito gritante, violência que desfoca, e tudo muito parado de longe. Cenas de multidão mudam completamente o movimento, você vê ali o Ken curvado enquanto os homens atacam descontroladamente.
A persona do Kuno é muito bem desenhada para sentirmos sua influência e queda, é um arco bem clássico, mas que toma uma potência no clímax final, onde ele se curva perante seu distintivo e projeta sua influência, mas no final, acaba se ferrando. Fudida aquela metade do filme: Kuno bêbado ajudado pelo Ken, polícia mata um inocente e inicia uma guerra. Aquela montagem já diz muito sobre o filme inteiro.
Cavalo
3.8 7Um excelente trabalho na profusão de clipes alinhado com a narrativa do ensaio. Se o adjetivo filme clipe é usado para quando um filme se sai bem apenas no nível visual, aqui ele subverte, mas também se apropria, acredito que faz um sentido em algumas cenas. Visto que é um quase compilado de gravações de danças, documentário dos ensaios e discussões sobre o enredo.
Cavalo, então, é mais do que apenas a imagem, dança e o som agindo. É a história da ancestralidade se manifestando nos corpos e nas relações, nos nossos significados, no sentido de ser. Os diretores pegam o sentido da história para os personagens e dão para que eles resinifiquem com os corpos. Cada um da sua maneira, representa através da dança, rima ou performance, seu ato de resistência.
Não consegui ficar parado vendo o filme. Não digo que fiquei dançando ou batucando. Mas teve momentos que fiquei mexendo o corpo sentado. Outros que o pleno registro da adoração me fez ficar quieto e apreciar. Curto que o diretor não hesita em simplesmente deixar a câmera registar, a montagem é paralela em cenas bem importantes, como o ensaio de Eva e a dança na chuva. Tem momentos ali que são pura emoção e êxtase dos corpos, lindo demais.
Enfim, se sustenta bem na compilação, não é somente imagens bonitas, e consegue mesclar todos os discursos, performáticos, documentários em momentos claros do longa.
Sedução da Carne
3.0 8Preciso voltar nesse filme daqui a um tempo. Assistir mais do Bressane e assistir esse com mais firmeza.
Ademais, Sedução da Carne é curioso no sentido de estabelecer dois registros. Um da natureza, documental, câmera na mão, sustentado na história. Após o corte da montagem, vem outra cena, que sucede em performances de monólogos teatrais dirigidos a um papagaio e vigiados por um pedaço de carne. Consigo enxergar um divã poderoso de confissão e memória. Gosto também como Bressane não tem vergonha da sua câmera, não esconde a linha nem o palco. Então, se a história em si recebe um trato experimental, a forma é direta no sentido de evidenciar do que está falando. A união disso com o fundo em branco e a obsessão das falas da moça me encantaram demais.
E eu realmente gostei de tudo que ele simboliza, da força da atriz e das experimentações visuais com a carne.
Não tiro nada do que eu disse, mas eu realmente preciso ler mais e assistir mais sobre Bressane, e voltar nesse aqui com mais firmeza.
Assistindo a dor dos outros
3.9 2Escrevi sobre esse curta documentário para o Plano Aberto, na cobertura do Festival Ecrã 2020.
www*planoaberto*com*br*critica/assistindo-a-dor-dos-outros
Sertânia
3.8 27Sertânia é um filme de tristezas. Me pego pensando nisso ao lembrar da cena da menina surda e o drama de Antão ao contar a tristeza de Jesuíno.
O sargento que ilustra a réplica da Santa Ceia enquanto seus homens contam as lendas por trás da sua vida. Mas é Jesuíno, o inabalável e destemido que se emociona com o mais cruel destino que Deus poderia dar na vida de alguém. Como não ver toda a seca do sertão e o desalento de quem está passando fome? Como não falar e protestar por água nas terras do nordeste? E tudo que entristece.
Como se revoltar e batalhar contra os macacos que Jesuíno jura a morte como o bom cangaço que é? Nas memórias de Antão, ele lembra toda sua trajetória. E o mais interessante é como nosso herói nunca mudou seus ideias em toda sua vida. Se ele largou o governo para lutar contra a República, ele larga a bandidagem para proteger os inocentes. Ainda assim é um home que parece sempre em busca de algo e que nem a morte vai deixar ele não encontrar esse algo.
Interrompe cada ciclo para reconfigurar sua história, através dos cortes de Sarno na montagem, consegue muito bem trazer esse aspecto da memória do flashback alinhada com o desespero do quase-morte. A câmera se mistura com o inchaço da terra, com o céu escuro e cinzento, esse branco e escuro que ilumina e quase deixa a gente cego, um preto e branco que rememora o tempo do Cinema Novo; mas não por esse anacronismo, mas por combinar perfeitamente toda a estética abandonada do sertão, pois não precisamos das cores para sentir a violência ou a tristeza que se passa ali. Acho que nesse sentido, combina muito bem com a questão de ser o flashback delirante, tudo ali dá a impressão de um conto sendo contado por alguém que viveu a situação. Histórias antigas que se repetem, virando filme na nossa frente.
O experimental se dá aqui pela trilha vibrante, a montagem da memória, esse delírio que não altera, mas que transmite o sufoco e a ideia de reconstrução de personagem, para que conheçamos quem estamos morrendo, ter a simpatia através da sua própria vida. Me impressionou bastante pelo fato de exprimir toda a potência cinematográfica que a gente poderia ter somente hoje, e unir com uma história tão antiga quanto o próprio sertão. Meio que traz uma jornada do herói nordestina, corrompida pelo que trai o sertão.
me empresto aqui com a opinião de alguns colegas que resume bem: a filmagem de Sarno nunca chama atenção diretamente para o próprio filme, é uma coisa única dali, que te carrega o tempo no espaço, no chão, na trama, é foda!
Nem mesmo quando o filme se quebra ele se perde. É totalmente explícito as intervenções do diretor, da produção, dos figurantes. Mas acho que encaixou perfeitamente com todo o momento. Ao invés de mostrar que sabe, a câmera não deixa de se mover mesmo com a presença do equipamento e as falas soltas justificam a presença da quebra da quarta parede.
É muito foda também como a montagem não deixa de atacar o real inimigo dali. Entre a rachadura do Sertão, entra o modernismo e a linha de trabalho. Atirar em quem? Quem é o culpado? O futuro está aonde? São cenas de um mesmo mundo que se dividem. E quando o Geraldo coloca logo depois das ordens do capitão, aquilo gera um significado tão grande na gente que o impacto é fudido.
Potência única a cena do saqueamento. Você entende ali toda a raiva que desencadeia no Antão, e seu impasse com o Sargento, seu destino predestinado. É uma coisa totalmente bagunçada, mas que o diretor controla perfeitamente. Emula um grito teatral de socorro, de ajuda, o clamor de salvação. Enfim, a tristeza encarnada no fundo do coração de Antão.
Acho que também traz uma diversão repentina em certas ações. Você vê ali a perdição dos governantes, a pose do Antonio Conselheiro, as danças. É bem doido os caras dançando para não ir no inferno e logo quem fica distante? Antão, que depois de ir para o inferno, ver seu pai morrer, volta, é morto e o filme acaba como? Numa dança junina celebrando o Brasil, que apesar de todos os seus problemas, segue brasileiro!
Juventude Transviada
3.9 546 Assista AgoraPapéis sociais corrompidos e disputas internas preenchem Rebel Without a Case. Desde os jovens até os adultos, estão em conflito com aquilo que querem demonstrar para a sociedade, e isso gera a confusão de tudo.
O plano inicial é muito lindo, Jimmy bebâdo, deitado frente à câmara agarrando um símbolo de inocência. Logo em seguida, vai para delegacia e conhecemos os três personagens e o fundo de suas histórias. Tem até um certo ar de elegância por exibir vestes limpas e gestos tolos em um cenário de podridão e abandono, mas sustentados na falsa ideia de boa família. Judy não tem a atenção do pai e desabafa ali, assim como Jimmy descontente com a atitude de seu pai e Platão (um pensador com a arma na mão) está abandonado nas mãos da empregada. O trio à todo momento vai portar um personagem pela honra, seja ela feminina, a do macho ou a do garoto que quer apenas alguns amigos. Irônico é a salvação vir logo do juizado de menores e tem até um certo aspecto de proteção nesse sentido, com a polícia ordenando e comandando o clímax.
Gosto que esses jovens tentam agir como adultos fora de casa, e dentro dela que a inocência sai do corpo e se agarram nos pais. Mas na casa abandonada, o senso de família infantil aparece, tentando imitar um casal feliz.
E todos os plots de ação acontecem dentro do planetário. Por fim, acho que todo o longa entrega uma tensão bastante assustadora no sentido de tratar os jovens de maneira madura num momento de escolhas mortais. As cenas possuem um ritmo de real perigo, ainda que os personagens achem que estão apenas brincando, sentimentos medo e apreensão por suas vidas. É o valentão voltando da jaula.
Black is... Black Ain't
4.6 3Marlon Riggs define o indefinível numa América traçada por diferentes cores, gestos, valores e culturas numa mesma comunidade. É através dos conflitos da própria raça que ele busca as respostas para as questões que uniram o povo por uma luta em comum. Marlon se coloca dentro do documentário já em uma posição de afeto e intervenção, parte o trabalho é de sua equipe para registro do seu espírito vivo, a outra é o próprio entrevistando e filmando. Pode-se interpretar todas aquelas falas e diálogos como as lembranças e memórias que o Marlon teve na cama antes de morrer, suas reflexões e pensamentos sobre o que divide e une a gente como comunidade.
Gosto que os relatos trazem memórias e lembranças de um tempo árduo e triste, contam sobre disputas, conflitos, masculinidade, suas origens, machismo, repressão. Tentam explicar como que cada valor define e se coloca no homem negro, como ele chega a ser um ser humano através da vivência de fatores negados durante mais de cem anos. Mas mais do que isso, os relatos são cotidianos e demonstram certa compaixão em transmitir o verdadeiro diálogo, uma certeza que antes e depois os entrevistados colocaram um sorriso no rosto somente pela sensação de fazer parte daquilo, muito maior que eles.
A narrativa vai e volta, através de uma edição metafórica pelas performances de dança, poesia, transição de planos e recortes fotográficos cuja única divisão se dá pelos diálogos. Uma entrada que vai sem parar numa história que sai do individuo de modo a definir o coletivo. O mais interessante é como cada um ali responde sobre um assunto através de uma perspectiva para a comunidade negra, o corte entre diferentes noções já cria um discurso tanto de descontrole das narrativas na medida que rompe com o usual, e por outro lado como definidor de uma divisão plural de um mesmo povo. É a história pelos mais diversos personagens.
Cabe também a própria indefinição no retrato dos entrevistados, diversos, seja na cor, orientação sexual ou gênero. O ponto da África dentro da América é o mais forte, em 10 minutos uma diversidade de opiniões, com um registro ímpar de uma pequena comunidade a recriar a vivência.
O título te chama pela definição e a forma sustenta pela indefinição.
Trash Humpers
3.0 105 Assista AgoraÉ caos por todo lado, é documentação da liberdade utópica e reacionária do verdadeiro estilo de vida americano que as almas mais podres desejam alcançar. Velho e degradante, no visual e na aparência, Trash Humpers pinga o nojo da situação por onde passa, é difícil de enxergar um propósito além da liberdade doentia de viver e destruir. Mas não é uma destruição do mundo nem sequer pegadinhas como o Jackass faz, é uma tiração de sarro da própria vida e de um mundo desconhecido, assim como dos materiais envolvidos, já conhecidos e usados por essas velhas criaturas. Os personagens de fora do espectro da máscara tem umas aparições tão marcantes, mas que dividem a degradação ao lado dos velhos. É um racista que se diverte com suas piadas, um mendigo que vive cantando - e o que não seria a trupe se não os próprios esquecidos da cidade?
Em um dado momento, uma das personagens compara a vida deles com a dos outros morando em suas casas. Sugere um conflito de conquistas, como se o que eles alcançaram é o verdadeiro fim daqueles que vivem para trabalhar.
No fim, Trash Humper é uma coleção divertida, assustadora e caótica da vida de criaturas americanas num território desconhecido. E também é tudo aquilo em cima.
Filmes para rever sempre.
off: fico absurdamente com a review do Maicon - "they're just vibing" adiciono - they're TRULY vibing
Enigma do Poder
3.5 40New Rose Hotel possui um aspecto muito interessante de memória. As gravações de vigilância à todo momento dão um toque de registro de todos os acontecimentos que a dupla persegue, ao mesmo tempo a encenação dos diálogos traz uma noção não do aqui e agora, mas de uma lembrança passada. Tudo entra em conflito nos minutos finais, se confundindo cada vez mais dentro da cabeça do personagem do Willem Dafoe. As transições quase se esvaicendo na tela dão essa impressão também, de algo que está para trás, um passado que não dá para recuperar, mas acontecendo ali no presente. O Fox é velho, mas persiste em continuar no trabalho, e quer curtir a vida como um jovem, com toda sua influência e poder, ele não aceita sua derrota e assim se joga do pedestal quando é perseguido. Se importa com dinheiro e não com vidas humanas, ainda que trate de algo envolvendo a ciência que nunca é muito bem explicado.
Ainda mais pela missão que eles estão realizado, tem um certo distanciamento, onde nunca dividem os mesmos espaços das conquistas, sempre indicando um certo fiasco e desaparecimento. É bastante curiosa a cena em que eles fazem a transação com aquele grupo de empresários, tão fácil e rápida.
E palmas para a fudida trilha sonora do filme, vibe video game total.
Sedução e Vingança
3.7 151 Assista AgoraFerrara parte do trauma, paranóia e medo para raiva e obsessão. A falta de fala da personagem entrega feições absurdas, do desespero ao controle. A estilização do Ferrara me lembrou bastante Vestida para Matar do De Palma, nessa questão da perseguição, dos próximos assassinatos; mas ao mesmo tempo tem uma crueza no ato muito particular da própria raiva da protagonista, do próprio desejo em tirar a vida dos alvos. A sequência inicial dos estupros é desconfortante, mas a composição, tanto em questão sonora quanto de montagem, provoca todas as piores sensações em tela, na medida em que trabalha o "enquanto" do ataque e o ato, a ida ao mercado e o roubo, o beco e o desespero.
São duas cenas importantíssimas que estabelecem os motivos e traumatizam Thana, guiando sua jornada durante o filme. Acho que o filme não coloca o ato como o responsável por mudar a personagem, de forma boba e gratuita. Ao mostrar as ruas com os caras perseguindo e assediando, enxergar que a potência da voz das suas amigas os afastam, ela se vê sem recursos, até que sofre o ataque, se safa e reconhece ali a sua força. Após, tem um misto de preocupação e controle, onde ela vai aprendendo e despistando.
Com a atuação excelente da protagonista, o som estilizado ao máximo, estridente, sinistro, indicando pistas e trabalhando muito bem os sentidos da própria protagonista; transmitindo seus pensamentos, quase até como se falassem por ela, Ms. 45 entrega um pequeno conto de uma jornada de vingança poderosa e destruidora.
Feminismo radical no seu extremo. E o final mostra muito bem isso. A despedida para com a "irmã", enquanto o cachorro volta e a dona do condomínio a ataca - ironicamente a chama de bruxa, e ela vestida de freira.
Batalha Real
3.6 588 Assista AgoraAinda que a influência de Batalha Real permaneça viva nos games e nas produções do gênero em séries e no cinema, a criação de Kinji Fukasaku permanece única 20 anos depois por saber brincar com o lugar comum sem cair numa paródia de horror exagerada, situada em um melodrama juvenil político. O filme se consagrou como uma das maiores bilheterias japonesas de todos os tempos, e chegou até a ser confiscado e proibido em 2013 na Alemanha, reconhecido como um perigo para os adolescentes. Se a influência consagra Hollywood e o capital, a distopia política assusta e diz mais sobre o Estado que vivemos do que a própria ficção.
Crítica completa aqui: https:// www * planoaberto *com * br/critica/batalha-real-2000/
Decameron
3.8 79Parece um filme do Monty Phython sem muita experimentação.
Tem uma sátira muito boa dos bons constumes religiosos, do quanto o sexo deveria ser sagrado e aqui é tratado de forma banal. Ainda o pecado, a pior coisa para o cristão, é temido numa cena e noutra é normalizado. Ele não divide as histórias e a gente vai sabendo o foco no decorrer dos personagens. Aí o que amplifica é os pequenos clímax e as filmagens externas dos grandes espaços, engana muito bem em nos fazer acreditar naquele recorte de tempo e espaço.
Gosto da simplicidade em meio ao grotesco que ele tira o riso. Pequenas fábulas adultas de perversão religiosa.
Indianara
4.1 16 Assista AgoraÉ um tocante retrato de uma figura desconhecida, mas cujo tamanho político é enorme para um grupo de pessoas marginalizadas, e mais especificamente, as residentes da casa que ela abriga. A opção pelo documentário observacional entrega uma trajetória, uma jornada que vai desde o impeachment da ex-presidente Dilma até a eleição de Jair Bolsonaro, sem focar nos atos políticos, o trabalho se encarrega de registar as passagens de vida e luta da personagem. Cotidiano se mistura com a potência da militância dentro da sua vida, a relação conjugal e a luta pela ocupação da Casa-Nem. O audiovisual aqui se encarrega principalmente de potencializar as emoções, articula a trilha sonora triste com um momento de impacto e destruição para Indianara e as pessoas ao seu redor, assim como o próprio país. Um olho onipresente que mesmo um pouco distante dos personagens, quase como um extenso tele-documentário, captura as mais diversas expressões dos personagens. Sarais, festas, casamento e protestos. Consegue transmitir muito bem todos os lados de Indianara e recorta nessa jornada os fenômenos políticos brasileiros e como eles atingiram a camada dessa população. Não somente isso, mas como eles vivem e lutam por seus direitos. Acho que longe de querer explicar ou engrandecer a figura de Indianara, se sucede como um baita registro histórico. Gosto que ele faz a gente se acostumar com o terreno que Indianara abriga, reside e se envolve e logo depois a porrada que ela toma do sistema, as duras que ela enfrenta.
O Verão de Sam
3.7 66Summer of Sam parece muito com um filme de aparências. Do The Righ Thing para os ítalo-americanos.
O retrato ítalo-americano de Spike Lee parece dizer que cada núcleo esconde algo, sobre uma facha do macho, do durão, responsável, protetor e conservador. Traficante que quer acabar com o crime, punk stripper que não aceita ser chamado de gay, marido que trai casualmente - e todos aceitam. O Filho de Sam desperta a ira naquela região que finge ser pacífica, provoca medo nos semelhantes, algo que eles dificilmente fazem, sempre intimidando os estrangeiros e negros. A aparição de Lee como personagem dá um tom cômico, mas certeiro para a trama. Quase um amador na câmera, ele tenta tirar o real do povo e jogar na tela de alguma forma. O final é estarrecedor e é um ponto chave do filme, unindo tramas e sub conscientes distantes. O real inimigo versus quem queremos que morra. O verdadeiro Filho de Sam que se acha o salvador da pátria.
É o filme mais cru e sexual de Lee, perversão e santidade andam lado a lado, personalidades distintas e em conflito. Tem o melhor uso da câmera na grua, hipnotizante e completamente imerso no personagem, caindo na droga e na sua própria busca por si. A fotografia estourada de Sam cai muito bem com a divisão de cenários. Por fim, acho que o filme se sucede muito bem nessa divisão de mundo e aparências.