A cena inicial do filme “Heartstone” é sintomática. Estamos na Islândia. Alguns garotos estão esperando para pescar peixes. Um deles avista um cardume. Todos pegam suas iscas. Eles pescam alguns peixes. São extremamente violentos para matá-los. De repente, um deles pesca um peixe-pedra. Um bicho de aparência horrível. Eles chutam, pisam, esmagam o animal. É sobre isso que fala o filme. Sobre essa espécie de horror que o diferente causa. Essa socialização marcada por princípios estruturantes daquilo que se supõe ser masculino e heterossexual já faz parte do cotidiano daqueles garotos, mesmo que não tenham se dado conta. Eles estão sempre brigando, batendo em algo ou alguém, se bolinando, masturbando, se agredindo, se xingando. Mas a sociedade vigia meninos e meninas, exigindo capacidades, características e qualidades diferentes de ambos e produzem medo distintos também. Se os meninos temem ser vistos como gays, as meninas sofrem com o estigma de putas. É tudo sobre sexo. É tudo sobre não ser mais visto como digno de respeito ou admiração. Esse cenário padronizado de sexualidade produz muito sofrimento, já que somos máquinas desejantes e ficamos divididos entre seguir nossos desejos ou se encaixar naquilo que a sociedade espera de todos. Um rumor de que o pai de alguém deu em cima de um outro homem, a dificuldade de lidar com os parceiros sexuais da mãe ainda jovem, que é taxada de puta pelos moradores e próprios filhos, cumprem o papel de alertar os mais novos. Quem ousar sair dos papéis previamente definidos (no momento em que o médico disse o sexo do bebê) sofrerá as conseqüências. O filosófo e pensador queer Paul Beatriz Preciado escreveu que “se você não é heterossexual, é a morte que te espera”. Essas normas regulamentam o desejo de todos e são passados de geração em geração, com o auxílio dos filmes, novelas, músicas, escolas, igrejas, etc, etc... Mas o que fazer com o desejo?
Thor e Christian são amigos e estão naquela fase de se descobrirem sexualmente. Dão em cima de duas garotas e até começam a ter algum envolvimento com elas. Mas um deles se descobrirá apaixonado pelo amigo. Como lidar com a situação? Existem muitos filmes com essa temática, mas esse se destaca pela maneira com que mostra essa descoberta e suas conseqüências. É um filme poético, de delicadas metáforas. A cena final (que não revelarei aqui) se casa perfeitamente com a do início e é uma das mais fortes e belas que já vi. “Heartstone” se transforma assim num filme de resistência, num grito desesperado debaixo d’água de um garoto que se descobre diferente dos demais. É um final interessante que se coaduna com o pensamento da filósofa Judith Butler: “As normas nos dizem o que devemos fazer para ser um homem ou uma mulher. Nós devemos a todo instante negociar com elas. Alguns de nós as adoram e as encarnam apaixonadamente. Outros a rejeitam. Alguns detestam mas se conformam. Outros brincam de ambivalência... Eu me interesso pela distância entre as normas e as diferentes formas de se responder a ela.”
O diretor Bruce La Bruce é conhecido por seus filmes polêmicos, mas “Gerontophilia”, justamente com uma temática bastante provocativa, consegue ser uma obra sensível, delicada, beirando o poético. Lake é um garoto que namora uma menina feminista. Ele também cuida da mãe com problemas de alcoolismo e que só se relaciona com homens que a maltratam. Um dia, a mãe consegue emprego num asilo e o leva para trabalhar lá também. Lake se assusta com o tratamento dispensando aos idosos. Todos sentem nojo do que fazem. Menos ele. Nesse lugar incomum, Lake conhece Sr. Peabody, um idoso de 81 anos de idade. Estabelecem uma relação de amizade que aos poucos evolui para um namoro. Sim. Gerontofilia é o nome que se dá para denominar quem se sente atraído por pessoas muito mais velhas. Mas o diretor não está interessado em categorizar a relação surgida entre esses dois seres. Muito pelo contrário. Bruce La Bruce mostra essa delicada relação de maneira não fetichista. Tudo é construído aos poucos e é impossível não se envolver com a história apresentada. Lake e Sr. Peabody são tão bonitos juntos, que pelo menos no meu entendimento, não há patologia nenhuma ali. Há amor. Há beleza.
“Acha que pode saber de algo antes de acontecer? Algo bom ou ruim, não importa, mas é como se o ar mudasse ou... algo dentro de você.”
Não sei se estou ficando louco, mas vendo esse filme chamado “Departure” (“Partida”) me peguei pensando várias e várias vezes em “A Chegada”, filme de Denis Villeneuve que está em cartaz nos cinemas. Ambos os filmes parecem falar dessa capacidade humana de prosseguir mesmo quando nada sai como pensamos. Só que aqui a linguagem a ser apreendida não é a de um alienígena, mas a do desejo. A linguagem do nosso desejo. Daí, que “Departure” é um filme denso. Não consegui ver tudo de uma vez. Não sei bem porque... Mas vi um pedaço. Parei. Fiz outras coisas. Depois, voltei renovado para o filme. O enredo é bastante simples e tem apenas três personagens. Um outro importante personagem aparece mais pro final, mas basicamente esses três dominam a cena. Uma mãe e um filho viajam para a casa de verão da família. Eles têm que providenciar alguns documentos e organizar a casa para que seja vendida. Ao mexer nos móveis, fotos, disco ambos vão se dando conta do fracasso das relações estabelecidas entre eles. O pai ausente também faz parte dessa espécie de solidão em família. Até que Elliot, o filho, conhece Clément e tornam-se amigos. Mas Elliot deseja-o. A mãe do garoto quando conhece o amigo do filho também se sente atraída por ele. E a esperança que esse desejo se concretize dá um novo fôlego para os dois, mãe e filho. A metáfora evocada aqui é a de que ambos estão se afogando no vazio de suas vidas e a chegada de Clément pode ser a salvação. Mas também ele está insatisfeito com sua vida. Também ele tem sonhos, expectativas e desejos. Como concatenar tantas faltas, tantos desejos? A chegada do pai só faz aumentar a tensão daqueles corpos, daquelas mentes. Também ele tem seus desejos. Também ele é obrigado a lidar com isso. Todos parecem estar feridos. Como se alguma coisa ficasse sempre faltando e nada nem ninguém é capaz de suprir essa sensação. A idealização de um impossível idílio amoroso é prova cabal do fracasso da humanidade. Será da aceitação disso que poderá brotar alguma saída.
"Precisamos ensinar a diferença entre uma arma e uma ferramenta. As coisas podem ficar confusas quando o mesmo objeto pode ser usado de ambas as formas."
Se na história bíblica, as múltiplas linguagens foram criadas por Deus para confundir os humanos, em “A Chegada” são decifradas para unificar os povos. Se outrora era punição, agora se torna a única possibilidade de salvação. Sim. O diretor Dennis Villeneuve concebe uma obra com ares mitológicos. Uma Torre de Babel hipercontemporânea às avessas. Não é algo para se levar ao pé da letra. É metáfora. É metonímia. É hipérbole. É alegoria. Se Baudrillard estiver mesmo com a razão e estivermos vivendo numa amnésia de imagens, onde quanto mais falamos sobre as coisas, menos elas existam, então, é chegada à hora de resgatar o significado das palavras, ressignificando assim o sentido de estarmos vivos. Palavra não mais como verbo, mas como carne. Por não vivermos no presente, não podemos adivinhar o futuro, nem justificar o passado. Esse talvez seja nosso erro. Não vivemos a história enquanto história. Habitamos uma espécie de limbo individual e coletivo que “ecoa” às relações mediatizadas, como numa singular Caverna de Platão. Somos todos ainda prisioneiros dessa tal caverna. Apegados às tradições, aos hábitos, aos falsos julgamentos, aos limites dos nossos país e conhecimentos, esquecemos que é necessário sim botar a cara no sol, botar nosso bloco na rua e se dar conta que a vida é maior que o que a gente supunha. Essa ritualística é necessária para se confrontar com a alteridade. Onde o outro é também eu, refletido nesse espelho de palavras, olhares e afeto.
“A Chegada” é exemplar em demonstrar como a sociedade se perde nessa ânsia de aniquilar aquilo que não entende logo de cara. Daí que aqueles alienígenas podem ser tantas coisas. O que justificaria o estado de violência latente no mundo. Aqueles alienígenas podem ser mulheres numa sociedade misógina e patriarcal. Podem ser negros convivendo com o racismo institucionalizado. Gays, travestis e transexuais expulsos do “paraíso” e mortos (primeiro de maneira simbólica e depois concretamente). Podem representar a questão dos imigrantes ilegais. E tantas e tantas outras coisas. E é por isso que se faz necessário retomar algumas perguntas suscitadas por Baudrillard: Onde está a alteridade? Qual é o Outro? Onde está o Outro? O Outro se transforma em nossa destinação fatal. "O Outro é o que me dá a possibilidade de não me repetir ao infinito". Essa é a beleza de um filme como esse. Ao resgatar o significado das coisas e da memória, estanca o estado de apagamento da História que estamos vivenciando.
”Nerve” é uma distopia que bebe na fonte de George Orwell, aqui atualizada em reality show online, ao vivo, onde todos participam, sejam como observadores ou jogadores. É preciso decidir logo de cara. É um jogo. Mas vai além. É também uma espécie contemporânea de exorcismo diário com inspiração nas arenas romanas. A velha tática do pão e circo mediatizada pelas telas dos celulares. Sim. Se antes tínhamos o teatro, agora temos as telas. Tudo se torna virtual. Não há mais espaço para ambigüidade. Restando apenas a aparência. O estado de simulacro. A produção incessante de imagens busca transformar-nos numa sociedade permissiva e apaziguada. Essa é a hiper-realidade. O filósofo francês Jean Baudrillard escreveu que todo o paradigma da sensibilidade humana mudou com o advento da informática. Nosso olhar foi afetado por essa intransponibilidade da comunicação abstrata. “Criam assim uma dimensão que já não é exatamente humana, uma dimensão excêntrica que corresponde a uma despolarização do espaço e a uma indistinção do corpo”. Mas, talvez, a metáfora já não sirva mais aqui. Precisamos da lente de aumento. Precisamos da hipérbole. Só ela pode dar conta desse estado de agonia, desespero e tédio. Daí que “Nerve” é uma olhar cínico e desesperançado do nosso presente. O desespero pelo reconhecimento do olhar virtual do outro faz com que aqueles adolescentes arrisquem suas vidas na tentativa de cumprir os pedidos esdrúxulos de uma platéia ávida pelo caos e pelo clichê da beleza. Sim. O que vemos é uma fábula moderna. Uma espécie de Clube da Luta para adolescentes. Um episódio de “Black Mirror”.
“Onde Vamos Invadir Agora?” é um legítimo filme de Michael Moore. Só que mais amadurecido, mas não se engane, o olhar sarcástico para o estilo americano de vida continua ali. Só que dessa vez, há uma importante mudança. Moore não mais mostra as vicissitudes da sociedade americana, mas opta por “invadir” vários países e “roubar” deles boas ideias para alguns problemas dos EUA. É uma grande sacada, pois brinca com a sanha americana por dominar o mundo. E é assim que o filme é levado quase que o tempo todo. É uma grande tiração de sarro, mas ao mesmo tempo, é muito sério. O que mais impressiona no documentário é que as ideias dos outros países para enfrentar velhos “problemas” dos EUA são bastante simples. Não há soluções mágicas. O que existe é apenas um olhar atento para o humano, para o coletivo. A dignidade humana deve ser respeitada em todas as esferas da sociedade. E nesse ponto que nós, brasileiros, podemos ver que somos uma versão piorada dos americanos. Nosso complexo de vira-lata faz com que copiemos até mesmo os erros americanos. O que Moore descobre ao invadir lugares como Alemanha, França, Eslovénia, Noruega, Islândia, Itália ou Portugal é que é possível sim um outro tratamento para assuntos como educação, saúde, trabalho e assuntos “polêmicos” como descriminalização do aborto, despenalização do consumo de drogas, tratamento digno aos presos, corrupção, redistribuição de rendas, igualdade de gêneros e tantos outros. Tudo muito simples. Tudo perfeitamente aplicável em qualquer outro lugar do mundo. Por que então isso não é feito? Ora, cada país possui um contexto sociológico e é aí que o bicho pega. E é aqui também o maior Calcanhar de Aquiles do filme. Esses aspectos não são levados em conta pelo diretor. No entanto, algo fica muito claro em toda a filmografia de Moore, a idealização dos Estados Unidos como terra das oportunidades, da liberdade e da justiça social é à base de todos os problemas elencados pelo diretor. E é justamente essa imagem idealizada da sociedade americana que faz com que países como o Brasil copie esse pensamento liberal. A responsabilização do individuo pelo sucesso ou fracasso de sua vida é uma terrível violência simbólica que passa despercebida nesse tipo de sociedade. É justamente da aceitação dessa espécie de violência que brotam todos os outros problemas. O Calcanhar de Aquiles de Michael Moore é também esse. Ao não levar em conta as devidas contextualizações de cada país, seu filme cai por vezes num simplismo barato. Mas é aqui que o cinismo e a figura do cineasta ajudam a contar essa história. No final das contas, Moore é uma representação do americano médio. Um Homer Simpson, obeso, meio decadente, meio bobão, meio cínico. O que fica como reflexão é que precisamos discutir urgentemente como cada sociedade se percebe. Esse é o ponto fundamental. É a estrutura sob a qual cada sociedade constrói seus mitos que fundamenta todas as outras decisões. E isso fica como responsabilidade nossa. Já que Moore esconde esse aspecto em seu documentário.
“Qual o limite para não te perder? (...) De quantas formas você quer que a gente te perca?”
Se em “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert concebe um filme absolutamente emocional. Aqui em “Mãe Só Há Uma” pega um caminho oposto. Talvez porque o enredo seja quase novelesco. Não sei. O fato é que aqui a coisa é mais palpável. Corpórea, eu diria. Corpos que se repelem. Corpos que se amam. Que quase se tocam. Que lutam entre si. Corpos que desejam. Corpos que não aceitam a normatividade supersocial. Que questionam rótulos. Pierre é um adolescente de 17 anos que tem sua vida virada de cabeça para baixo quando descobre que foi roubado quando era um bebê pela mulher que se diz ser sua mãe. Começa aqui a trajetória desses corpos desejantes. Um “Quadrilha” de Drummond hipercontemporâneo. Começa com o desejo de Aracy de ser mãe. No filme não fica claro por qual motivo ela rouba não só Pierre como também uma outra menina. Talvez ela tenha querido muito ser mãe e não conseguiu. Mas por que roubar e não adotar crianças? Ela deseja ser mãe ou é uma psicopata sem coração? A motivação importa menos aqui. O que importa é o desejo. E como Deleuze “descobriu” somos máquinas desejantes. E se assim é, todos somos máquinas ou ainda tudo é máquina. E o útero nada mais que uma máquina de fazer bebês. E o que fazer quando essa máquina falha? Quando nosso desejo é frustrado? Talvez Aracy queira acreditar em sua própria mentira. Talvez tantas coisas. E Muylaert acerta em não fechar nenhuma questão.
A questão do desejo também passa pelo desesperos dos pais biológicos em encontrar esse filho sequestrado, de receber dele o carinho roubado durante anos. Mas é aqui que entra toda construção social da sociedade. Como sempre são esperadas algumas condutas socialmente aceitas daquele filho. Pierre é como se fosse um bebê para eles. E novamente o desejo acaba em frustração. Pierre é um garoto com uma sexualidade fluida. Passa batom. Usa calcinha. Vestidos. Pinta as unhas. Transa com mulheres. Beija homens. Em suma, não se encaixa nos gêneros heteronormativos. Judith Butler em seus estudos sobre a Teoria Queer escreveu que mesmo antes de um corpo vir ao mundo ele já é marcado por um gênero denominado inteligível e toda expectativa dos pais e da sociedade viriam daí. Toda a performance esperada pelos pais biológicos de Pierre é essencialmente masculina. Querem que ele goste de futebol, de boliche, de camisa social. Será através da reiteração de atos contrários ao esperado que o garoto vai reconstruindo sua sexualidade. Que é só dele. E essencialmente corpórea e “falha” aos olhos da sociedade. Se tudo para Deleuze é produção, os corpos criam e negam identidade. Identidade aqui em todos os sentidos. Não só de gênero. Quem é aquele garoto agora? Quais são seus referências e afetos se dele foi roubado tudo? E por isso que as perguntas do pai que abre esse texto são tão fortes. Porque a gente quer segurança. A sociedade exige isso. Mas viver é inseguro. Não há segurança nenhuma. Nunca houve. Nem haverá. Tudo porque não existem certezas. E é aqui o maior acerto do filme. Tudo é líquido. Só o afeto construído que não. É ele quem faz com que Pierre tenha vontade de reencontrar a mãe que o roubou ou a irmã que também foi entregue a família biológica? Ou ele também desejaria a segurança de outrora? Ou ao desejar algo que não seja real, ele estaria julgando como insuficiente sua atual realidade? Novamente perguntas que ficam em aberto. Expectativas frustradas também nossas. Talvez inconscientemente também almejamos o novelesco, a fábula. Assim fomos educados. Por isso é tão brilhante que a diretora frustre com quase todas nossas expectativas. Ao negarmos o real, impedimos que o desejo produza novos arranjos. E todos os personagens do filme caem nisso. Há uma cena simbólica nesse sentido. O irmão biológico de Pierre está na escola, é hora do recreio, dois amigos incitam-no a falar com a garota de quem ele aparentemente está gostando. Ele toma coragem e vai. Eles conversam um pouco e garota logo sai. Dizendo não querer ser vista com ele, porque os outros iriam caçoar dela. O garoto fica sozinho no banco. E outra garota senta ali. Eles conversam um pouco. Ela aparentemente gosta dele. Ele abandona a garota com a mesma desculpa que recebera momentos antes. A garota fica sozinha. E chama por um amigo dele. O Amigo senta. Eles conversam. O garoto aparentemente gosta dela. E assim vai... Esse é só um exemplo, mas é recorrente esse estado de desejo como falta quase lacaniana.
Pierre até o momento de ser arrancado de sua vida, agia nesse sentido: produzindo, desestruturando, negando os discursos normativos e as relações de poder. Mas ao se instalar naquela outra casa, algo morre. Metáfora perfeita para o nascimento de uma criança. Que quando nasce já vem ao mundo com uma série de planos dos outros. É isso que fazemos com todos os bebês. Matamos! Matamos seus potenciais! Matamos sua originalidade! Triste! O que pode salvar alguma coisa é ainda a capacidade revolucionária que os corpos possuem de se buscarem, de se quererem. O que pode salvar alguma coisa é o toque e o afeto entre dois quase desconhecidos. Mas não seríamos todos nós desconhecidos não só dos outros, mas, sobretudo, de si mesmos?
“Que tempos são estes, em que temos de defender o óbvio?” Bertolt Brecht
É impossível assistir “Aquarius” sem pensar nas características de quem possui esse signo no zodíaco. Os aquarianos são libertários e gostam de ser diferente. São daqueles que quando estão todos indo para uma direção, eles vão pra outro lado. Detestam ser iguais. Adoram ser do contra. São rebeldes. Assim é Clara. A protagonista do filme. Clara é tudo isso e muito mais. É uma personagem e tanto. Cravada para os nossos tempos atuais. Clara é resistência. Mas sem perder a ternura. Jamais. É um filme sobre afetos. Sobre a memória. Clara é resiliente. Essa é sua característica principal. Ela não se dobra. Não é boazinha. Não é servil. Ao longo da obra, acompanhamo-la num périplo muito pessoal. Ela só quer continuar morando em seu apartamento de frente para o mar. Ouvindo seus discos de vinil. O problema é que uma construtora comprou todos os outros apartamentos e pretende erguer ali um daqueles mega empreendimentos. Clara recusa todas as propostas e investidas. Como uma espécie contemporânea de Bartleby de Melville responde que “preferiria não”, e por isso, sofrerá as conseqüências. Claro que essas conseqüências nunca se dão no plano da violência física, mas num território absolutamente simbólico. Daí que é muito importante destacar que a maioria dessas violências é praticada por um garoto, neto do dono da empreiteira. Rapaz bonito, cordial, educado no exterior e com um sorriso sempre estampado no rosto. O filme é sobre esses dois Brasis. Diego é um personagem-símbolo assim como Clara. Para Diego não basta apenas ser rico. Ele tem que ostentar. Tem que empreender. E por mais que nossa sociedade seja notoriamente injusta, acredita no mérito pessoal. Ele é o típico filho do dono. E é exatamente por isso que as violências sofridas por Clara nunca se dão fisicamente. Diego acredita no convencimento. A reprodução de toda espécie de privilégio e injustiça social depende dessa legitimação. Numa sociedade capitalista como a nossa, importa mais aparentar ser uma coisa do que ser a coisa propriamente dita. Sim. A tal Sociedade do Espetáculo descrita pelo filósofo francês Guy Debord.
”Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição. A ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. O reino do capital fictício atinge o máximo de amplitude ao exigir que a vida se torne ficção de vida. A alienação do ser toma o lugar do próprio ser. A aparência se impõe por cima da existência.”
E isso tudo o filme retrata muito bem. O controle da situação está nas mãos de uns poucos que dominam não só o mercado, mas também o campo político e, sobretudo, jornais, editoras, emissoras de televisão, universidades e tribunais. O professor Jessé Souza escreve em seu livro "A Tolice da Inteligência Brasileira" que é o sequestro da imensa maioria dos intelectuais brasileiros pelos donos do poder que cria o clima ideal para o convencimento, legitimação e manutenção das injustiças sociais.
"A dominação social material e concreta de todos os dias só efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado”.
Preste atenção em toda a dinâmica das relações sociais dos poderosos no filme. É sempre o fulano que é filho ou neto de alguém que trabalha nas empresas do pai ou do avô. Essa visão patrimonialista é a gênese de toda desigualdade no nosso país. Aqui é tudo meio misturado. E todas as relações parecem uma extensão de nossa casa. Aqui pra tudo se dá um jeitinho. Diego é o representante desse tipinho desprezível. São os donos do mundo. Aqueles para quem parece não existir nenhuma lei e nenhum impedimento. Outro personagem sintomático nesse sentido é a empregada de Clara cujo filho morreu vítima de um atropelamento e ninguém fez nada. De quantas injustiças como essa é feito o nosso país? Mas esquecemos com a mesma facilidade que fingimos nos comover. O sistema exige isso. Seja produtivo. Não pense. Trabalhe. Não sinta. Trabalhe. Não ame. Trabalhe. Pra quê? Para manter as coisas como elas são.
O diretor Kleber Mendonça Filho toca o dedo na ferida de nossas raízes e mazelas mais brasileiras. E por isso Clara é tão importante. Somos tão fascinados pelo novo. Já não temos nenhuma memória. Formamos uma legião de desmemoriados. E bregas até o talo. Colonizados até a alma. O nome do suposto novo edifício não deixa nenhuma dúvida disso. Mais do que a capacidade de resistir, o que mais impressiona em Clara é fazer tudo isso com amor e curiosidade. Ela não rejeita o futuro. Seu tempo é o hoje, o agora. Só que isso não significa ter quer abrir mão de sua visão de mundo, de sua experiência. Temos muito que aprender com ela.
"O que você veio fazer aqui? Responde pra mim! Foi tua mãe que mandou você aqui? Tu é o que é? Um teleguiado da tua mãe? Que porra é essa? Tu faz o que? Tu faz tudo o que ela manda? Hein? Olha pra mim quando falo com você! Que porra que é essa? O que tá te faltando, moleque? Tu tá pelado? Não tem roupa? Tá passando fome? Tá sem casa pra morar? Hein? Tua mãe tá faltando alguma coisa pra ela? O que vocês querem? Os quatro grudados o tempo todo.Vai pra lá, vai todo mundo junto! Vai pra cá, vai todo mundo junto! Eu não sou assim. As pessoas precisam de culpa. As pessoas precisam de uma manada. Elas precisam estar todas juntas. Você vê essas manifestações ai? Eu não entro nessa porra. Eu tenho a minha opinião. Você entende isso? Porra, você tem que ter uma vida. Você é um garoto esperto! Não parece mais tu é. A gente não escolhe nosso destino. É o destino que escolhe a gente. Presta atenção! Existe a vida. Existe a morte. E existe a sorte. É só isso que existe."
“Ponto Zero” é um filme nacional dos mais interessantes. Parente próximo de “Os Famosos e os Duendes da Morte”, outro grande filme brasileiro. Tanto lá quanto aqui acompanhamos a solidão de garotos adolescentes num mundo todo feito contra eles. E ambos os filmes utilizam-se do onírico para dar conta dessa fase da vida tão complicada. São filmes belíssimos e crudelíssimos mostrando um possível e necessário rito de passagem. Mas “Ponto Zero” é ainda mais estranho e particular. É um filme bem intimista e pessoal. Cada um fará sua leitura da obra. A complexidade brota do estado de desespero de Ênio, um menino extremamente calado, que sofre bullying na escola e ainda tem que lidar com as brigas constantes de seus pais em casa. Aliás, o ambiente tanto escolar quanto familiar são mostrados como sendo bastante claustrofóbicos. Os pais são omissos e só pensam neles. A irmã mais velha é ausente e barulhenta. Isso só faz aumentar o silêncio e a solidão do garoto. O pai é machista e abandona a família para se dedicar às suas amantes. A mãe é insegura e carente, apresentando um nítido comportamento doentio. Um nítido caso de relacionamento abusivo. Mas ela não consegue romper esse ciclo e até usa o filho para vigiar o pai e aplacar um pouco sua carência. Ao garoto pouco ou quase nada resta. Por isso, a opção do diretor José Pedro Goulart em se refugiar no onírico. Não há saída. Todo processo de socialização do garoto é apresentado de maneira original. E o mergulho no lúdico é uma tentativa desesperada de encontrar alguma resposta, algum chão firme, algum afeto verdadeiro. “Ponto Zero” afinal é sobre isso. O sentimento de inadequação e a incomunicabilidade de um mundo que está ao contrário e só você reparou.
“Holding The Man” é baseado numa autobiografia, mas mesmo sabendo disso, o filme apresenta um enredo que beira o novelesco, mas isso não chega a ser um demérito, graças à direção sensível de Neil Armfield e a entrega do elenco. Fiquei pensando muito numa frase do sociólogo francês Jean Baudrillard:
”Amar alguém é isolá-lo do mundo, é apagar seus vestígios, é destituí-lo de sua sombra, arrastá-lo para um futuro mortal. É girar a sua volta como um astro morto e absorve-lo numa luz negra. Tudo se passa numa exorbitante exigência de exclusividade sobre um ser humano, qualquer que seja. Certamente é nisso que está a paixão: é que seu objeto é interiorizado como finalidade ideal e sabemos que só objeto ideal quando está morto.”
“Perfeitos Desconhecidos” é um daqueles filmes que quando começa você não dá muita coisa, mas ele vai esquentando, esquentando e de repente, PIMBA, torna-se uma grande obra. A questão levantada aqui é que os celulares (seus aplicativos e a internet) seriam como a caixa-preta de nossas vidas. E então, um dia, num jantar entre amigos, eles decidem numa brincadeira perigosa, que enquanto durar o jantar, eles deverão atender as ligações no viva voz e responder as mensagens recebida diante do olhar de todos. Lógico vai que dar merda. E dá. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu que o principal atrativo do mundo virtual é que ele não apresenta nenhuma contradição. “O mundo on-line (...) cria uma multiplicação infinita de possibilidades de contatos plausíveis e factíveis. Ele faz isso reduzindo a duração desses contatos e, por conseguinte, enfraquecendo os laços, muitas vezes impondo o tempo – em flagrante oposição à sua contrapartida off-line, que, como é sabido, se apóia no esforço continuado de fortalecer os vínculos, limitando severamente o número de contatos à medida que eles se ampliam e se aprofundam”. Sim. A vida tida como real exige algumas coisas que no contato virtual são desnecessárias. Sempre se pode deletar, bloquear ou coisa do gênero. Mas o que se perde nessa espécie contemporânea de contato? Estamos preparados para essa enxurrada de informações, solicitações, mensagens, selfies, nudes, etc, etc, etc... Ou indo além; estamos preparados para a verdade de nós mesmos? Ou temos medo? Ou fomos socializados todos pelo medo e para a mentira? A intimidade e o afeto nas relações (seja de amor, amizade, ou qualquer outra coisa, não importa) provocam-nos desconfiança. Não fomos preparados para isso. Isso exigiria autoconhecimento. Que por sua vez exigiria solidão e silêncio. Mas, temos medo dessas coisas. E então continuamos mentindo. E os aplicativos e redes sociais alimentam ainda mais essa nossa triste faceta. Queremos ser vistos. Notados. Não importa a que preço. Viramos presas fáceis demais. Buscamos curtidas e seguidores, alimentamos aqueles papinhos que não levam a nada no whatsapp. Tudo por carência. Tudo porque temos baixa autoestima. Queremos ser como as celebridades. Mas ninguém fala sobre a solidão desses “artistas”. Ninguém fala sobre a solidão de ninguém. Mentimos que somos felizes o tempo todo. Mas a verdade é que tudo (ou quase tudo) que fazemos on-line é absolutamente irrelevante. O fato é que vivemos uma crise. E Bauman identifica-a como “bastante ligada ao enfraquecimento, à desintegração e à decadência de todas as relações inter-humanas”. Algo que Saramago no livro “O Homem Duplicado” já havia identificado:
”O que de todo não compreende... é que, ao se desenvolverem as tecnologias de comunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com sua avenida ilusórias, tão dissimulado no que expressa quanto no que dissimula.”
“Hoje, tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Em “A Frente Fria que a Chuva Traz”, o diretor Neville D'Almeida concebe um filme caricatura de nossos tempos. O que fazer? O que resta? O que fazer após a orgia? A frase que abre esse texto foi escrito pelo sociólogo francês Jean Baudrillard e ele mesmo responde. O que nos resta é simular a orgia. Fingir. Repetir todas as coisas e cenas porque elas já aconteceram. É exatamente isso que vemos nesse filme. Jovens endinheirados que buscam numa festa na laje de um favela do Rio de Janeiro algo que os faça sair do marasmo de suas vidas. Sexo. Drogas. E não mais rock’n roll. A moda agora é sertanejo universitário. Mas nada disso parece aplacar o tédio daqueles jovens. Então, tome mais sexo, mais drogas de todos os tipos, e mais música de gosto duvidoso. Se precisar, eles contratam até o astro musical do momento. Figura emblemática que saiu da favela, mas que agora se veste de maneira esdrúxula e finge viver numa eterna adolescência. Qualquer semelhança com o cantor Latino não será mera coincidência. Mas nem isso... Nem isso... A única figura que pode tirar aqueles garotos e aquelas garotas desse estado de inércia é Amsterdan. Uma garota que não nasceu rica, mas que é aceita na rodinha, por ser bonita, descolada e conhecer os lugares onde se consegue drogas com facilidade. Será ela que de uma maneira catártica jogará algumas verdades na cara de todos eles. Não que ela seja exemplo de alguma coisa. Mas sua dignidade vem de um estranho estado de consciência. Ela não mente pra si mesmo como todos os outros. Ela é. E isso se seduz num primeiro momento, também assusta. De certa forma, essa personagem é um paradoxo dos nossos tempos. Ela continua e continuará a existir num estado de total indiferença, com sua sexualidade anônima, despida de qualquer reflexão. Logo aqueles rapazes e garotas vão casar, ter filhos, constituir família. Tornar-se-ão dia após dia um pouco mais careta, um tanto mais moralista e a vida seguirá seu curso. Mas e Amsterdan?
“Sem dúvida, aqueles eram anos felizes, pena que nenhum de nós sabia. “
Daniele Luchetti concebe um filme que discute questões bastante pertinentes e contemporâneas. “Anos Felizes” mostra através do olhar ingênuo de um dos filhos do casal toda a dinâmica de um relacionamento entre um homem e uma mulher nos anos 70. E não só isso. Ele, um artista, que tem inúmeros casos extraconjugais. Ela, uma mulher que se dedica aos filhos e ao marido, e extremamente ciumenta. Na realidade, Guido é um homem como tanto outros (ousaria dizer a maioria): quer tudo pra si e pouco, ou quase nada, ou nada para sua esposa. É egocêntrico, mimado, manipulador. Serena é extremamente submissa e manipulada por ele. Até que o filme entre em rota de colisão. Serena descobre o feminismo e a possibilidade de libertação desse relacionamento abusivo. Mas não será nada fácil. Visto que ela precisa se encontrar como pessoa, além dos papéis de mãe, esposa, dona de casa. É uma jornada interessante. Que mostra toda a força escondida daquela mulher e toda a fraqueza daquele homem megalomaníaco. É uma discussão muito pertinente nesse tempo em que a quase totalidade dos homens não sabe como lidar com essa mulher contemporânea. Afinal, a socialização desses garotos ainda é extremamente machista e o resultado é esse que estamos vendo ai. Muitos desencontros e pouquíssimos encontros. E nem falo aqui do amor romântico, mas daquela capacidade que todos carregamos dentro de si de poder se encarar e encarar os outros de frente. Falo da urgente necessidade de resgatarmos nossa potência amorosa e criativa. Resgatar um olhar ingênuo para as coisas e pessoas, como o de uma criança. É desse olhar que o filme nos fala. Dessa capacidade de buscar beleza no caos. Sim. Enquanto subia os letreiros, fiquei pensando num trecho do livro “Água Viva” da Clarice Lispector:
"Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico - a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me."
“Desde Allá” (na tradução brasileira ficou “De Longe Te Observo) é um filme magnífico que vai se construindo pouco a pouco diante do olhar do espectador. Armando é um homem de pouco mais de 50 anos que busca saciar seu desejo dando dinheiro para meninos pobres na cidade de Caracas (Venezuela). Um dia, ele conhece Elder, que o rejeita, o rouba e até o agride. Armando continua a procurar Elder e uma estranha relação começa entre esses dois. O mais interessante aqui é que o diretor Lorenzo Vigas não entrega tudo de mão beijada ao espectador. Muito pelo contrário. O filme é construído, sobretudo, nos silêncios e lacunas da história dos dois personagens. Quem são eles? Sabemos muito pouco. Apenas o que é mostrado. E uma ou outra informação que eles soltam. Mas nenhum dos dois é confiável. Então, vem a genialidade do diretor. Ele nos coloca dentro da obra. Estamos perdidos. Como aqueles personagens. E tudo se torna maior pela escolha estética da direção. O filme é frio. Com uma pegada bastante distanciada. Quase documental. Vigas concebe um filme platônico. Onde o eu é sempre ameaçado por um desejo (sexo, poder, dinheiro, status), e como é insaciável, deve-se subordiná-lo a razão. Desejo versus Razão. E não só daqueles dois, mas de toda uma sociedade cristã. A merda toda começa ai. Da institucionalização de uma moral que nega o corpo, que nega o desejo e que busca na culpa (do outro ou de si mesmo) um possível caminho de salvação. Daí que mesmo quando o filme se encaminha para um possível entendimento entre esses dois seres tão díspares, tememos pelas peças que o destino possa nos pregar. Outro tema bem interessante levantado pelo filme é a questão da paternidade. Aparentemente o que liga Armando e Elder é um passado abusivo. Mas nunca temos muitas certezas de nada. Tudo é sugerido muito sutilmente e como espectador temos que permanecer como um analista diante de seu analisando: sem desejo, sem memória. Porque se assim não o fizermos corremos o risco de tentar entender, julgar, moralizar. Não é essa a questão. Outro ponto interessantíssimo é a maneira como a situação social dos personagens é escancarada. Há uma hierarquia implícita, quase invisível nas relações abordadas pelo filme. Essa talvez seja a maior chave para alcançar a beleza dessa obra.
“Penso como Antonin Artaud: ‘Há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer a sua época’.”
Que mulher incrível era Nise da Silveira! Que filme incrível! Olha, tô aqui sem palavras e com um orgulho imenso dessa mulher ser brasileira e desse filme ser brasileiro. Assistam, gente! Assistam correndo! É uma obra que tem que ser conhecida e sobretudo, falada, discutida, e trazida cada vez mais pra nossa realidade. Num mundo cada vez mais cruel, precisamos da arte para não morrermos da verdade!
Inspirado num caso real e com produção executiva de ninguém mais, ninguém menos que David Lynch, o filme "Meu Filho, olha o que fizeste" de Werner Herzog é um mergulho na mente perturbada de um homem que pouco a pouco vai enlouquecendo após ouvir um chamamento divino. A edição em flashback remonta episódios da vida dele de maneira a encaixar as peças desse quebra-cabeça. Como alguém enlouquece assim da noite para o dia? A ausência do pai. A mãe superprotetora. A namorada extremamente compreensiva. Os ensaios da peça de teatro "Orestes" promovem a metalinguagem perfeita para o enredo do filme. Tanto na peça grega, quanto no filme, o final é o mesmo: o matricídio. Mas, afinal o que esse desejo absolutamente esconde? Herzog parece não buscar nenhuma resposta. Como grande cineasta que é, à ele interessa apenas o enigma.
"Sei lá... acho que amar é coisa de outros tempos, né? Dos tempos daqueles velhinhos que a gente conheceu aquele dia lá naquela festa que você me levou..."
Sim. "Ponte Aérea" fala dessa impossibilidade amorosa que atualmente vivemos. É um filme bastante contemporâneo. É um filme jovem também. Que retrata a indecisão de um homem e uma mulher sem a solidez de outrora. Agora tudo é rápido demais. Corrido demais. Frio demais. Não temos mais tempo. Temos todo o tempo do mundo, mas não temos mais nenhum tempo. Tudo parece já ter sido vivido, vivenciado, visto, postado, compartilhado, curtido. O que sobra? É sobre essa sensação de pós-orgia diagnosticada por Baudrillard e Bauman que a diretora Julia Rezende parece se debruçar. Seu olhar feminino e absurdamente atual das relações humanas torna essa comédia romântica algo bastante original. Bruno e Amanda se conhecem de maneira inusitada e iniciam uma relação bastante inusitada. Eles são muito diferentes. Ela, uma workaholic. Ele, um artista. Ela, paulista. Ele, carioca. São nesses desencontros até mesmo clichês que o filme realiza certa beleza incomum. Como se quisesse capturar algo que não existe mais, que talvez nunca existiu e que nunca existirá, mas que de alguma forma muito doida sobrevive quando nos descobrimos apaixonados por alguém. O amor talvez seja isso; uma invenção. Assim como a arte. E precisamos disso para não morrermos da verdade, tédio e medo.
Quem nunca estando numa relação de amizade misturou as coisas e se apaixonou pelo(a) amigo(a)? Quem nunca se permitiu ficar num relacionamento completamente abusivo? Quem nunca achou que não merecia ser amado? O filme "Those People" dirigido por Joey Kuhn aborda todos esses temas com o diferencial de retratá-los em relações homossexuais. Charlie e Sebastien são amigos desde criança. Sebastien possui um personalidade bastante obscura e parece querer seduzir e chamar a atenção de todo mundo o tempo todo. Já Charlie é mais introspectivo e sensível. Ambos possuem segredos e intimidades que só compartilham um com o outro e parecem se dar muito bem. Mas algo ali incomoda. Charlie é completamente apaixonado por Sebastien e este parece usar do sentimento do amigo para dominá-lo. Um dia, Charlie conhece um pianista mais velho e inicia um relacionamento com esse homem. Pouco a pouco, vai se distanciando da influência de Sebastien, mas será que vai conseguir libertar-se desse sentimento assim tão facilmente? O filme retrata o conflito de Charlie de maneira bastante delicada e não romantiza nem demoniza ninguém. Todos são humanos e parecem ter justificativas bastante plausíveis para agirem como agem. Acompanhamos a trajetória de cada personagem com absoluta curiosidade e algum nervosismo, pq conhecemos aqueles personagens bem de perto e já passamos por aquelas mesmíssimas situações. O desenrolar da trama é bastante inteligente e parece não querer responder todas as questões. Coisa que deveria ser o papel de toda boa arte.
Nos primeiros minutos do filme "Éden", a personagem de Leandra Leal perde o marido assassinado na Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. Ela está grávida, e é levada pelo irmão para participar de um culto evangélico. Visivelmente deslocada no começo, vai aos poucos cedendo ao processo de evangelização e até se converter emocionada ao final do culto. A cena é emblemática e é maravilhosamente interpretada por Leandra, por João Miguel que vive o Pastor Naldo, e pelo irmão vivido pelo Julio Andrade. A partir dessa conversão acompanhamos a via sacra de Karine em busca de alguma (im)possível redenção. O périplo dela é explorado pelo pastor oportunista, que vê naquele drama da moça, uma possibilidade de sensibilizar os fieis para sua Igreja. A manipulação da fé é mostrada de maneira contundente e corajosa, sem muito meios termos, nem sutilezas. A exploração messiânica é a base de todo nosso culturalismo. Foi assim com os índios. Foi assim com os negros. E com o liberalismo econômico, a prática mudou um pouco de figura, passando a ter os pobres como público alvo. O Éden já não podia mais ser pós-morte. A urgência do consumo exigiu o discurso sofresse uma mudança drástica. O paraíso não é aqui. Nem nunca será. Mas tem de ser vendido como se fosse. O consumo ou ter condições de ter alguns bens consumo é sagrado. O discurso é marketing. O dinheiro torna-se um deus. E em nome dele se pode tudo. Ou quase tudo. A trajetória de Karine é ao contrário disso. É uma história humana, demasiado humana.
O diretor Piero Messina faz sua estreia com um filme denso, misterioso, permeado por longos silêncios e dolorosas ausências. O enredo extremamente simples é esmiuçado em todo seu potencial por deslumbrantes imagens e nas vigorosas interpretações de Juliette Binoche e Lou de Laâge. Tudo se passa após a morte do filho de Anna, que ao receber a visita da namorada dele, decide omitir o ocorrido para desfrutar um pouco mais da companhia da menina. Pouco a pouco, vamos conhecendo essas duas personagens, mas mais pelo que elas escondem, do que pelo que mostram. O diretor é extremamente hábil na construção de climas, e a fotografia e a escolha de alguns posicionamentos de câmera que ampliam a sensação de vazio e solidão, transformam a casa num personagem importantíssimo. Os dias passam e o moço nunca retorna ao lar. A situação torna-se quase insustentável, mas sabiamente a direção faz com que essas mulheres de gerações diferentes encontrem maneiras de conviverem juntas. Há um jogo de aproximação, ora repulsa. A tensão sexual também é sugerida. Juliette Binoche concebe uma personagem misteriosa, com expressões faciais sutis e certeiras. É uma grande atriz num grande momento de sua carreira. A jovem atriz Lou de Laâge (do ótimo filme “Respire”) se sai muitíssimo bem numa personagem difícil, que passa por grandes transformações em cena. Conforme o enredo avança, Anna engendra cada vez mais Jeanne em suas mentiras, mas o diretor deixa a coisa tão dúbia, que por vezes parece que Anna realmente acredita que uma hora o filho vai voltar. O tempo de convivência aproxima as duas mulheres revelando um pouco mais sobre suas carências e desejos. O que está em jogo realmente?
Vou confessar uma coisa: Amo esse tipo de filme. Sei lá, eles me tocam de alguma forma e eu não me julgo por isso. Mentira! Me julgo. Às vezes, muitas vezes, me pego pensando: "Caramba, vc é tão problematizador e se pega chorando num filme desses". Mas no outro segundo já respondo pra mim mesmo: "Já que sou. O jeito é ser". Sim. Gostei muito de "Song One". É um filme simples, mas bastante interessante e com uma premissa um pouquinho diferente da maioria das comédias românticas. Achei a maneira como os protagonistas se conhecem bastante original. Franny é uma antropóloga que está trabalhando no Marrocos, quando recebe uma ligação de sua mãe dizendo que seu irmão sofreu um acidente e que está em coma. Ela e o irmão estavam brigados e não se falavam há uns seis meses e ela agora se culpa por isso. A briga se deu pq ela não aceitou a decisão do irmão de largar a faculdade e ser músico. Movida por essa culpa, ela inicia uma jornada de reencontro com esse irmão. Ouve suas músicas, vídeos. Lê seu diário. E descobre que ele era fã de um cantor chamado James Forrester, que está se apresentando na cidade, e que o irmão tinha até comprado ingressos para assisti-lo. Ela vai no show ... e o filme começa e você já pode deduzir o que acontece. Sim. Mas o que surpreende aqui é a ótima interpretação da Anne Hathaway e do Johnny Flynn, que convencem como protagonistas e nos envolvem nesse romance. A trilha sonora é maravilhosa e tem uma cena importantíssima com um cara cantando "O Leãozinho" do Caetano Veloso, que é a coisa mais fofa dessa mundo. Ai ai...
"Quando eu estava no exército recebi um medalha por matar dois homens e a dispensa por amar um."
O documentário "A Estranha História de "Não Pergunte Não Fale" é excelente, justamente por apresentar um registro histórico da evolução dos direitos dos gays nos EUA e de como se deu a revogação de uma lei que proibia que homens gays e mulheres lésbicas servissem ao exército. Sim. É chocante ouvir os depoimentos de soldados dispensados simplesmente por sua condição sexual. Mas o que mais me provocou revolta e indignação é ouvir as falas de senadores, deputados e outros políticos que apresentam teorias estapafúrdias para justificarem sua homofobia. É chocante. Vil. Absurdo. Nojento. Outro ponto interessante levantado pelo documentário é de como se deu a formação de uma identidade gay como resposta a repressão. Mais um excelente documentário com o selo HBO.
É incrível como o cinema francês consegue falar sobre temas clichês sem cair no comum, no vulgar, no batido. "O Novato" é exemplar nesse sentido. O filme retrata adolescentes num ambiente escolar. Sim. Poderia ser tudo aquilo que já vimos retratado milhares de vezes no cinema. Mas o olhar do artista é que pode modificar a realidade. O diretor Rudi Rosenberg faz uma belíssima ode à alteridade. Concebendo um filme delicado sobre a opressão vivenciada pelos jovens em busca do reconhecimento alheio, o que vemos ali é um microcosmos da sociedade adulta. É ali que se fomenta o ódio ao diferente, ao fora dos padrões, aquele que não se enquadra. É preciso todo um rito de passagem que simboliza o momento de aceitação de si mesmo. É dessa desconstrução necessária que o mundo anda precisando. Toda a beleza errática daqueles meninos e meninas considerados "losers" pelos demais é um grande alento para nossas consciências. Que me fez lembrar de um trecho do poema "Ultimatum" de Álvaro de Campos:
"O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!
O que aí está não pode durar, porque não é nada!
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!"
"Talvez fosse diferente se não tivesse me afastado de você."
Acabei de assistir ao filme "Cidades de Papel" e gostei muito. Sim. Devo ser muito bobo mesmo. Pq amo esse tipo de filme. E esse aqui ao contrário do que muitos podem pensar não é uma história de amor. Não. Não é sobre isso. E talvez essa visão possa explicar o fato de muita gente tê-lo detestado. Expectativas! É exatamente disso que o filme trata. De como é perigoso a gente idealizar uma pessoa, seja ela quem for. Pq no fundo no fundo, ela é só uma pessoa. Com medos, inseguranças, desejos... O filme é um rito de passagem da adolescência para a vida adulta. Como tantos outros por aí. Mas esse tem um sabor especial de autoconhecimento. Que amores são como trilhos de um trem. Podemos andar juntos um tempo, o tempo que for bom para ambos, mas que podemos também seguirmos nossas trajetórias separados, sem que isso diminua em nada o afeto que sentimos por esse alguém que compartilhou desses momentos conosco.
Corações de Pedra
3.9 185A cena inicial do filme “Heartstone” é sintomática. Estamos na Islândia. Alguns garotos estão esperando para pescar peixes. Um deles avista um cardume. Todos pegam suas iscas. Eles pescam alguns peixes. São extremamente violentos para matá-los. De repente, um deles pesca um peixe-pedra. Um bicho de aparência horrível. Eles chutam, pisam, esmagam o animal. É sobre isso que fala o filme. Sobre essa espécie de horror que o diferente causa. Essa socialização marcada por princípios estruturantes daquilo que se supõe ser masculino e heterossexual já faz parte do cotidiano daqueles garotos, mesmo que não tenham se dado conta. Eles estão sempre brigando, batendo em algo ou alguém, se bolinando, masturbando, se agredindo, se xingando. Mas a sociedade vigia meninos e meninas, exigindo capacidades, características e qualidades diferentes de ambos e produzem medo distintos também. Se os meninos temem ser vistos como gays, as meninas sofrem com o estigma de putas. É tudo sobre sexo. É tudo sobre não ser mais visto como digno de respeito ou admiração. Esse cenário padronizado de sexualidade produz muito sofrimento, já que somos máquinas desejantes e ficamos divididos entre seguir nossos desejos ou se encaixar naquilo que a sociedade espera de todos. Um rumor de que o pai de alguém deu em cima de um outro homem, a dificuldade de lidar com os parceiros sexuais da mãe ainda jovem, que é taxada de puta pelos moradores e próprios filhos, cumprem o papel de alertar os mais novos. Quem ousar sair dos papéis previamente definidos (no momento em que o médico disse o sexo do bebê) sofrerá as conseqüências. O filosófo e pensador queer Paul Beatriz Preciado escreveu que “se você não é heterossexual, é a morte que te espera”. Essas normas regulamentam o desejo de todos e são passados de geração em geração, com o auxílio dos filmes, novelas, músicas, escolas, igrejas, etc, etc... Mas o que fazer com o desejo?
Thor e Christian são amigos e estão naquela fase de se descobrirem sexualmente. Dão em cima de duas garotas e até começam a ter algum envolvimento com elas. Mas um deles se descobrirá apaixonado pelo amigo. Como lidar com a situação? Existem muitos filmes com essa temática, mas esse se destaca pela maneira com que mostra essa descoberta e suas conseqüências. É um filme poético, de delicadas metáforas. A cena final (que não revelarei aqui) se casa perfeitamente com a do início e é uma das mais fortes e belas que já vi. “Heartstone” se transforma assim num filme de resistência, num grito desesperado debaixo d’água de um garoto que se descobre diferente dos demais. É um final interessante que se coaduna com o pensamento da filósofa Judith Butler: “As normas nos dizem o que devemos fazer para ser um homem ou uma mulher. Nós devemos a todo instante negociar com elas. Alguns de nós as adoram e as encarnam apaixonadamente. Outros a rejeitam. Alguns detestam mas se conformam. Outros brincam de ambivalência... Eu me interesso pela distância entre as normas e as diferentes formas de se responder a ela.”
Gerontophilia
3.4 109O diretor Bruce La Bruce é conhecido por seus filmes polêmicos, mas “Gerontophilia”, justamente com uma temática bastante provocativa, consegue ser uma obra sensível, delicada, beirando o poético. Lake é um garoto que namora uma menina feminista. Ele também cuida da mãe com problemas de alcoolismo e que só se relaciona com homens que a maltratam. Um dia, a mãe consegue emprego num asilo e o leva para trabalhar lá também. Lake se assusta com o tratamento dispensando aos idosos. Todos sentem nojo do que fazem. Menos ele. Nesse lugar incomum, Lake conhece Sr. Peabody, um idoso de 81 anos de idade. Estabelecem uma relação de amizade que aos poucos evolui para um namoro. Sim. Gerontofilia é o nome que se dá para denominar quem se sente atraído por pessoas muito mais velhas. Mas o diretor não está interessado em categorizar a relação surgida entre esses dois seres. Muito pelo contrário. Bruce La Bruce mostra essa delicada relação de maneira não fetichista. Tudo é construído aos poucos e é impossível não se envolver com a história apresentada. Lake e Sr. Peabody são tão bonitos juntos, que pelo menos no meu entendimento, não há patologia nenhuma ali. Há amor. Há beleza.
Departure
3.4 44“Acha que pode saber de algo antes de acontecer? Algo bom ou ruim, não importa, mas é como se o ar mudasse ou... algo dentro de você.”
Não sei se estou ficando louco, mas vendo esse filme chamado “Departure” (“Partida”) me peguei pensando várias e várias vezes em “A Chegada”, filme de Denis Villeneuve que está em cartaz nos cinemas. Ambos os filmes parecem falar dessa capacidade humana de prosseguir mesmo quando nada sai como pensamos. Só que aqui a linguagem a ser apreendida não é a de um alienígena, mas a do desejo. A linguagem do nosso desejo. Daí, que “Departure” é um filme denso. Não consegui ver tudo de uma vez. Não sei bem porque... Mas vi um pedaço. Parei. Fiz outras coisas. Depois, voltei renovado para o filme. O enredo é bastante simples e tem apenas três personagens. Um outro importante personagem aparece mais pro final, mas basicamente esses três dominam a cena. Uma mãe e um filho viajam para a casa de verão da família. Eles têm que providenciar alguns documentos e organizar a casa para que seja vendida. Ao mexer nos móveis, fotos, disco ambos vão se dando conta do fracasso das relações estabelecidas entre eles. O pai ausente também faz parte dessa espécie de solidão em família. Até que Elliot, o filho, conhece Clément e tornam-se amigos. Mas Elliot deseja-o. A mãe do garoto quando conhece o amigo do filho também se sente atraída por ele. E a esperança que esse desejo se concretize dá um novo fôlego para os dois, mãe e filho. A metáfora evocada aqui é a de que ambos estão se afogando no vazio de suas vidas e a chegada de Clément pode ser a salvação. Mas também ele está insatisfeito com sua vida. Também ele tem sonhos, expectativas e desejos. Como concatenar tantas faltas, tantos desejos? A chegada do pai só faz aumentar a tensão daqueles corpos, daquelas mentes. Também ele tem seus desejos. Também ele é obrigado a lidar com isso. Todos parecem estar feridos. Como se alguma coisa ficasse sempre faltando e nada nem ninguém é capaz de suprir essa sensação. A idealização de um impossível idílio amoroso é prova cabal do fracasso da humanidade. Será da aceitação disso que poderá brotar alguma saída.
A Chegada
4.2 3,4K Assista Agora"Precisamos ensinar a diferença entre uma arma e uma ferramenta. As coisas podem ficar confusas quando o mesmo objeto pode ser usado de ambas as formas."
Se na história bíblica, as múltiplas linguagens foram criadas por Deus para confundir os humanos, em “A Chegada” são decifradas para unificar os povos. Se outrora era punição, agora se torna a única possibilidade de salvação. Sim. O diretor Dennis Villeneuve concebe uma obra com ares mitológicos. Uma Torre de Babel hipercontemporânea às avessas. Não é algo para se levar ao pé da letra. É metáfora. É metonímia. É hipérbole. É alegoria. Se Baudrillard estiver mesmo com a razão e estivermos vivendo numa amnésia de imagens, onde quanto mais falamos sobre as coisas, menos elas existam, então, é chegada à hora de resgatar o significado das palavras, ressignificando assim o sentido de estarmos vivos. Palavra não mais como verbo, mas como carne. Por não vivermos no presente, não podemos adivinhar o futuro, nem justificar o passado. Esse talvez seja nosso erro. Não vivemos a história enquanto história. Habitamos uma espécie de limbo individual e coletivo que “ecoa” às relações mediatizadas, como numa singular Caverna de Platão. Somos todos ainda prisioneiros dessa tal caverna. Apegados às tradições, aos hábitos, aos falsos julgamentos, aos limites dos nossos país e conhecimentos, esquecemos que é necessário sim botar a cara no sol, botar nosso bloco na rua e se dar conta que a vida é maior que o que a gente supunha. Essa ritualística é necessária para se confrontar com a alteridade. Onde o outro é também eu, refletido nesse espelho de palavras, olhares e afeto.
“A Chegada” é exemplar em demonstrar como a sociedade se perde nessa ânsia de aniquilar aquilo que não entende logo de cara. Daí que aqueles alienígenas podem ser tantas coisas. O que justificaria o estado de violência latente no mundo. Aqueles alienígenas podem ser mulheres numa sociedade misógina e patriarcal. Podem ser negros convivendo com o racismo institucionalizado. Gays, travestis e transexuais expulsos do “paraíso” e mortos (primeiro de maneira simbólica e depois concretamente). Podem representar a questão dos imigrantes ilegais. E tantas e tantas outras coisas. E é por isso que se faz necessário retomar algumas perguntas suscitadas por Baudrillard: Onde está a alteridade? Qual é o Outro? Onde está o Outro? O Outro se transforma em nossa destinação fatal. "O Outro é o que me dá a possibilidade de não me repetir ao infinito". Essa é a beleza de um filme como esse. Ao resgatar o significado das coisas e da memória, estanca o estado de apagamento da História que estamos vivenciando.
Nerve: Um Jogo Sem Regras
3.3 1,2K Assista Agora”Nerve” é uma distopia que bebe na fonte de George Orwell, aqui atualizada em reality show online, ao vivo, onde todos participam, sejam como observadores ou jogadores. É preciso decidir logo de cara. É um jogo. Mas vai além. É também uma espécie contemporânea de exorcismo diário com inspiração nas arenas romanas. A velha tática do pão e circo mediatizada pelas telas dos celulares. Sim. Se antes tínhamos o teatro, agora temos as telas. Tudo se torna virtual. Não há mais espaço para ambigüidade. Restando apenas a aparência. O estado de simulacro. A produção incessante de imagens busca transformar-nos numa sociedade permissiva e apaziguada. Essa é a hiper-realidade. O filósofo francês Jean Baudrillard escreveu que todo o paradigma da sensibilidade humana mudou com o advento da informática. Nosso olhar foi afetado por essa intransponibilidade da comunicação abstrata. “Criam assim uma dimensão que já não é exatamente humana, uma dimensão excêntrica que corresponde a uma despolarização do espaço e a uma indistinção do corpo”. Mas, talvez, a metáfora já não sirva mais aqui. Precisamos da lente de aumento. Precisamos da hipérbole. Só ela pode dar conta desse estado de agonia, desespero e tédio. Daí que “Nerve” é uma olhar cínico e desesperançado do nosso presente. O desespero pelo reconhecimento do olhar virtual do outro faz com que aqueles adolescentes arrisquem suas vidas na tentativa de cumprir os pedidos esdrúxulos de uma platéia ávida pelo caos e pelo clichê da beleza. Sim. O que vemos é uma fábula moderna. Uma espécie de Clube da Luta para adolescentes. Um episódio de “Black Mirror”.
O Invasor Americano
4.2 75 Assista Agora“Onde Vamos Invadir Agora?” é um legítimo filme de Michael Moore. Só que mais amadurecido, mas não se engane, o olhar sarcástico para o estilo americano de vida continua ali. Só que dessa vez, há uma importante mudança. Moore não mais mostra as vicissitudes da sociedade americana, mas opta por “invadir” vários países e “roubar” deles boas ideias para alguns problemas dos EUA. É uma grande sacada, pois brinca com a sanha americana por dominar o mundo. E é assim que o filme é levado quase que o tempo todo. É uma grande tiração de sarro, mas ao mesmo tempo, é muito sério. O que mais impressiona no documentário é que as ideias dos outros países para enfrentar velhos “problemas” dos EUA são bastante simples. Não há soluções mágicas. O que existe é apenas um olhar atento para o humano, para o coletivo. A dignidade humana deve ser respeitada em todas as esferas da sociedade. E nesse ponto que nós, brasileiros, podemos ver que somos uma versão piorada dos americanos. Nosso complexo de vira-lata faz com que copiemos até mesmo os erros americanos. O que Moore descobre ao invadir lugares como Alemanha, França, Eslovénia, Noruega, Islândia, Itália ou Portugal é que é possível sim um outro tratamento para assuntos como educação, saúde, trabalho e assuntos “polêmicos” como descriminalização do aborto, despenalização do consumo de drogas, tratamento digno aos presos, corrupção, redistribuição de rendas, igualdade de gêneros e tantos outros. Tudo muito simples. Tudo perfeitamente aplicável em qualquer outro lugar do mundo. Por que então isso não é feito? Ora, cada país possui um contexto sociológico e é aí que o bicho pega. E é aqui também o maior Calcanhar de Aquiles do filme. Esses aspectos não são levados em conta pelo diretor. No entanto, algo fica muito claro em toda a filmografia de Moore, a idealização dos Estados Unidos como terra das oportunidades, da liberdade e da justiça social é à base de todos os problemas elencados pelo diretor. E é justamente essa imagem idealizada da sociedade americana que faz com que países como o Brasil copie esse pensamento liberal. A responsabilização do individuo pelo sucesso ou fracasso de sua vida é uma terrível violência simbólica que passa despercebida nesse tipo de sociedade. É justamente da aceitação dessa espécie de violência que brotam todos os outros problemas. O Calcanhar de Aquiles de Michael Moore é também esse. Ao não levar em conta as devidas contextualizações de cada país, seu filme cai por vezes num simplismo barato. Mas é aqui que o cinismo e a figura do cineasta ajudam a contar essa história. No final das contas, Moore é uma representação do americano médio. Um Homer Simpson, obeso, meio decadente, meio bobão, meio cínico. O que fica como reflexão é que precisamos discutir urgentemente como cada sociedade se percebe. Esse é o ponto fundamental. É a estrutura sob a qual cada sociedade constrói seus mitos que fundamenta todas as outras decisões. E isso fica como responsabilidade nossa. Já que Moore esconde esse aspecto em seu documentário.
Mãe Só Há Uma
3.5 407 Assista Agora“Qual o limite para não te perder? (...) De quantas formas você quer que a gente te perca?”
Se em “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert concebe um filme absolutamente emocional. Aqui em “Mãe Só Há Uma” pega um caminho oposto. Talvez porque o enredo seja quase novelesco. Não sei. O fato é que aqui a coisa é mais palpável. Corpórea, eu diria. Corpos que se repelem. Corpos que se amam. Que quase se tocam. Que lutam entre si. Corpos que desejam. Corpos que não aceitam a normatividade supersocial. Que questionam rótulos. Pierre é um adolescente de 17 anos que tem sua vida virada de cabeça para baixo quando descobre que foi roubado quando era um bebê pela mulher que se diz ser sua mãe. Começa aqui a trajetória desses corpos desejantes. Um “Quadrilha” de Drummond hipercontemporâneo. Começa com o desejo de Aracy de ser mãe. No filme não fica claro por qual motivo ela rouba não só Pierre como também uma outra menina. Talvez ela tenha querido muito ser mãe e não conseguiu. Mas por que roubar e não adotar crianças? Ela deseja ser mãe ou é uma psicopata sem coração? A motivação importa menos aqui. O que importa é o desejo. E como Deleuze “descobriu” somos máquinas desejantes. E se assim é, todos somos máquinas ou ainda tudo é máquina. E o útero nada mais que uma máquina de fazer bebês. E o que fazer quando essa máquina falha? Quando nosso desejo é frustrado? Talvez Aracy queira acreditar em sua própria mentira. Talvez tantas coisas. E Muylaert acerta em não fechar nenhuma questão.
A questão do desejo também passa pelo desesperos dos pais biológicos em encontrar esse filho sequestrado, de receber dele o carinho roubado durante anos. Mas é aqui que entra toda construção social da sociedade. Como sempre são esperadas algumas condutas socialmente aceitas daquele filho. Pierre é como se fosse um bebê para eles. E novamente o desejo acaba em frustração. Pierre é um garoto com uma sexualidade fluida. Passa batom. Usa calcinha. Vestidos. Pinta as unhas. Transa com mulheres. Beija homens. Em suma, não se encaixa nos gêneros heteronormativos. Judith Butler em seus estudos sobre a Teoria Queer escreveu que mesmo antes de um corpo vir ao mundo ele já é marcado por um gênero denominado inteligível e toda expectativa dos pais e da sociedade viriam daí. Toda a performance esperada pelos pais biológicos de Pierre é essencialmente masculina. Querem que ele goste de futebol, de boliche, de camisa social. Será através da reiteração de atos contrários ao esperado que o garoto vai reconstruindo sua sexualidade. Que é só dele. E essencialmente corpórea e “falha” aos olhos da sociedade. Se tudo para Deleuze é produção, os corpos criam e negam identidade. Identidade aqui em todos os sentidos. Não só de gênero. Quem é aquele garoto agora? Quais são seus referências e afetos se dele foi roubado tudo? E por isso que as perguntas do pai que abre esse texto são tão fortes. Porque a gente quer segurança. A sociedade exige isso. Mas viver é inseguro. Não há segurança nenhuma. Nunca houve. Nem haverá. Tudo porque não existem certezas. E é aqui o maior acerto do filme. Tudo é líquido. Só o afeto construído que não. É ele quem faz com que Pierre tenha vontade de reencontrar a mãe que o roubou ou a irmã que também foi entregue a família biológica? Ou ele também desejaria a segurança de outrora? Ou ao desejar algo que não seja real, ele estaria julgando como insuficiente sua atual realidade? Novamente perguntas que ficam em aberto. Expectativas frustradas também nossas. Talvez inconscientemente também almejamos o novelesco, a fábula. Assim fomos educados. Por isso é tão brilhante que a diretora frustre com quase todas nossas expectativas. Ao negarmos o real, impedimos que o desejo produza novos arranjos. E todos os personagens do filme caem nisso. Há uma cena simbólica nesse sentido. O irmão biológico de Pierre está na escola, é hora do recreio, dois amigos incitam-no a falar com a garota de quem ele aparentemente está gostando. Ele toma coragem e vai. Eles conversam um pouco e garota logo sai. Dizendo não querer ser vista com ele, porque os outros iriam caçoar dela. O garoto fica sozinho no banco. E outra garota senta ali. Eles conversam um pouco. Ela aparentemente gosta dele. Ele abandona a garota com a mesma desculpa que recebera momentos antes. A garota fica sozinha. E chama por um amigo dele. O Amigo senta. Eles conversam. O garoto aparentemente gosta dela. E assim vai... Esse é só um exemplo, mas é recorrente esse estado de desejo como falta quase lacaniana.
Pierre até o momento de ser arrancado de sua vida, agia nesse sentido: produzindo, desestruturando, negando os discursos normativos e as relações de poder. Mas ao se instalar naquela outra casa, algo morre. Metáfora perfeita para o nascimento de uma criança. Que quando nasce já vem ao mundo com uma série de planos dos outros. É isso que fazemos com todos os bebês. Matamos! Matamos seus potenciais! Matamos sua originalidade! Triste! O que pode salvar alguma coisa é ainda a capacidade revolucionária que os corpos possuem de se buscarem, de se quererem. O que pode salvar alguma coisa é o toque e o afeto entre dois quase desconhecidos. Mas não seríamos todos nós desconhecidos não só dos outros, mas, sobretudo, de si mesmos?
Aquarius
4.2 1,9K Assista Agora“Que tempos são estes, em que temos de defender o óbvio?”
Bertolt Brecht
É impossível assistir “Aquarius” sem pensar nas características de quem possui esse signo no zodíaco. Os aquarianos são libertários e gostam de ser diferente. São daqueles que quando estão todos indo para uma direção, eles vão pra outro lado. Detestam ser iguais. Adoram ser do contra. São rebeldes. Assim é Clara. A protagonista do filme. Clara é tudo isso e muito mais. É uma personagem e tanto. Cravada para os nossos tempos atuais. Clara é resistência. Mas sem perder a ternura. Jamais. É um filme sobre afetos. Sobre a memória. Clara é resiliente. Essa é sua característica principal. Ela não se dobra. Não é boazinha. Não é servil. Ao longo da obra, acompanhamo-la num périplo muito pessoal. Ela só quer continuar morando em seu apartamento de frente para o mar. Ouvindo seus discos de vinil. O problema é que uma construtora comprou todos os outros apartamentos e pretende erguer ali um daqueles mega empreendimentos. Clara recusa todas as propostas e investidas. Como uma espécie contemporânea de Bartleby de Melville responde que “preferiria não”, e por isso, sofrerá as conseqüências. Claro que essas conseqüências nunca se dão no plano da violência física, mas num território absolutamente simbólico. Daí que é muito importante destacar que a maioria dessas violências é praticada por um garoto, neto do dono da empreiteira. Rapaz bonito, cordial, educado no exterior e com um sorriso sempre estampado no rosto. O filme é sobre esses dois Brasis. Diego é um personagem-símbolo assim como Clara. Para Diego não basta apenas ser rico. Ele tem que ostentar. Tem que empreender. E por mais que nossa sociedade seja notoriamente injusta, acredita no mérito pessoal. Ele é o típico filho do dono. E é exatamente por isso que as violências sofridas por Clara nunca se dão fisicamente. Diego acredita no convencimento. A reprodução de toda espécie de privilégio e injustiça social depende dessa legitimação. Numa sociedade capitalista como a nossa, importa mais aparentar ser uma coisa do que ser a coisa propriamente dita. Sim. A tal Sociedade do Espetáculo descrita pelo filósofo francês Guy Debord.
”Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição. A ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. O reino do capital fictício atinge o máximo de amplitude ao exigir que a vida se torne ficção de vida. A alienação do ser toma o lugar do próprio ser. A aparência se impõe por cima da existência.”
E isso tudo o filme retrata muito bem. O controle da situação está nas mãos de uns poucos que dominam não só o mercado, mas também o campo político e, sobretudo, jornais, editoras, emissoras de televisão, universidades e tribunais. O professor Jessé Souza escreve em seu livro "A Tolice da Inteligência Brasileira" que é o sequestro da imensa maioria dos intelectuais brasileiros pelos donos do poder que cria o clima ideal para o convencimento, legitimação e manutenção das injustiças sociais.
"A dominação social material e concreta de todos os dias só efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado”.
Preste atenção em toda a dinâmica das relações sociais dos poderosos no filme. É sempre o fulano que é filho ou neto de alguém que trabalha nas empresas do pai ou do avô. Essa visão patrimonialista é a gênese de toda desigualdade no nosso país. Aqui é tudo meio misturado. E todas as relações parecem uma extensão de nossa casa. Aqui pra tudo se dá um jeitinho. Diego é o representante desse tipinho desprezível. São os donos do mundo. Aqueles para quem parece não existir nenhuma lei e nenhum impedimento. Outro personagem sintomático nesse sentido é a empregada de Clara cujo filho morreu vítima de um atropelamento e ninguém fez nada. De quantas injustiças como essa é feito o nosso país? Mas esquecemos com a mesma facilidade que fingimos nos comover. O sistema exige isso. Seja produtivo. Não pense. Trabalhe. Não sinta. Trabalhe. Não ame. Trabalhe. Pra quê? Para manter as coisas como elas são.
O diretor Kleber Mendonça Filho toca o dedo na ferida de nossas raízes e mazelas mais brasileiras. E por isso Clara é tão importante. Somos tão fascinados pelo novo. Já não temos nenhuma memória. Formamos uma legião de desmemoriados. E bregas até o talo. Colonizados até a alma. O nome do suposto novo edifício não deixa nenhuma dúvida disso. Mais do que a capacidade de resistir, o que mais impressiona em Clara é fazer tudo isso com amor e curiosidade. Ela não rejeita o futuro. Seu tempo é o hoje, o agora. Só que isso não significa ter quer abrir mão de sua visão de mundo, de sua experiência. Temos muito que aprender com ela.
Ponto Zero
3.3 44"O que você veio fazer aqui? Responde pra mim! Foi tua mãe que mandou você aqui? Tu é o que é? Um teleguiado da tua mãe? Que porra é essa? Tu faz o que? Tu faz tudo o que ela manda? Hein? Olha pra mim quando falo com você! Que porra que é essa? O que tá te faltando, moleque? Tu tá pelado? Não tem roupa? Tá passando fome? Tá sem casa pra morar? Hein? Tua mãe tá faltando alguma coisa pra ela? O que vocês querem? Os quatro grudados o tempo todo.Vai pra lá, vai todo mundo junto! Vai pra cá, vai todo mundo junto! Eu não sou assim. As pessoas precisam de culpa. As pessoas precisam de uma manada. Elas precisam estar todas juntas. Você vê essas manifestações ai? Eu não entro nessa porra. Eu tenho a minha opinião. Você entende isso? Porra, você tem que ter uma vida. Você é um garoto esperto! Não parece mais tu é. A gente não escolhe nosso destino. É o destino que escolhe a gente. Presta atenção! Existe a vida. Existe a morte. E existe a sorte. É só isso que existe."
“Ponto Zero” é um filme nacional dos mais interessantes. Parente próximo de “Os Famosos e os Duendes da Morte”, outro grande filme brasileiro. Tanto lá quanto aqui acompanhamos a solidão de garotos adolescentes num mundo todo feito contra eles. E ambos os filmes utilizam-se do onírico para dar conta dessa fase da vida tão complicada. São filmes belíssimos e crudelíssimos mostrando um possível e necessário rito de passagem. Mas “Ponto Zero” é ainda mais estranho e particular. É um filme bem intimista e pessoal. Cada um fará sua leitura da obra. A complexidade brota do estado de desespero de Ênio, um menino extremamente calado, que sofre bullying na escola e ainda tem que lidar com as brigas constantes de seus pais em casa. Aliás, o ambiente tanto escolar quanto familiar são mostrados como sendo bastante claustrofóbicos. Os pais são omissos e só pensam neles. A irmã mais velha é ausente e barulhenta. Isso só faz aumentar o silêncio e a solidão do garoto. O pai é machista e abandona a família para se dedicar às suas amantes. A mãe é insegura e carente, apresentando um nítido comportamento doentio. Um nítido caso de relacionamento abusivo. Mas ela não consegue romper esse ciclo e até usa o filho para vigiar o pai e aplacar um pouco sua carência. Ao garoto pouco ou quase nada resta. Por isso, a opção do diretor José Pedro Goulart em se refugiar no onírico. Não há saída. Todo processo de socialização do garoto é apresentado de maneira original. E o mergulho no lúdico é uma tentativa desesperada de encontrar alguma resposta, algum chão firme, algum afeto verdadeiro. “Ponto Zero” afinal é sobre isso. O sentimento de inadequação e a incomunicabilidade de um mundo que está ao contrário e só você reparou.
O Amor é Para Todos
4.0 333“Holding The Man” é baseado numa autobiografia, mas mesmo sabendo disso, o filme apresenta um enredo que beira o novelesco, mas isso não chega a ser um demérito, graças à direção sensível de Neil Armfield e a entrega do elenco. Fiquei pensando muito numa frase do sociólogo francês Jean Baudrillard:
”Amar alguém é isolá-lo do mundo, é apagar seus vestígios, é destituí-lo de sua sombra, arrastá-lo para um futuro mortal. É girar a sua volta como um astro morto e absorve-lo numa luz negra. Tudo se passa numa exorbitante exigência de exclusividade sobre um ser humano, qualquer que seja. Certamente é nisso que está a paixão: é que seu objeto é interiorizado como finalidade ideal e sabemos que só objeto ideal quando está morto.”
Perfeitos Desconhecidos
4.2 99 Assista Agora“Perfeitos Desconhecidos” é um daqueles filmes que quando começa você não dá muita coisa, mas ele vai esquentando, esquentando e de repente, PIMBA, torna-se uma grande obra. A questão levantada aqui é que os celulares (seus aplicativos e a internet) seriam como a caixa-preta de nossas vidas. E então, um dia, num jantar entre amigos, eles decidem numa brincadeira perigosa, que enquanto durar o jantar, eles deverão atender as ligações no viva voz e responder as mensagens recebida diante do olhar de todos. Lógico vai que dar merda. E dá. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu que o principal atrativo do mundo virtual é que ele não apresenta nenhuma contradição. “O mundo on-line (...) cria uma multiplicação infinita de possibilidades de contatos plausíveis e factíveis. Ele faz isso reduzindo a duração desses contatos e, por conseguinte, enfraquecendo os laços, muitas vezes impondo o tempo – em flagrante oposição à sua contrapartida off-line, que, como é sabido, se apóia no esforço continuado de fortalecer os vínculos, limitando severamente o número de contatos à medida que eles se ampliam e se aprofundam”. Sim. A vida tida como real exige algumas coisas que no contato virtual são desnecessárias. Sempre se pode deletar, bloquear ou coisa do gênero. Mas o que se perde nessa espécie contemporânea de contato? Estamos preparados para essa enxurrada de informações, solicitações, mensagens, selfies, nudes, etc, etc, etc... Ou indo além; estamos preparados para a verdade de nós mesmos? Ou temos medo? Ou fomos socializados todos pelo medo e para a mentira? A intimidade e o afeto nas relações (seja de amor, amizade, ou qualquer outra coisa, não importa) provocam-nos desconfiança. Não fomos preparados para isso. Isso exigiria autoconhecimento. Que por sua vez exigiria solidão e silêncio. Mas, temos medo dessas coisas. E então continuamos mentindo. E os aplicativos e redes sociais alimentam ainda mais essa nossa triste faceta. Queremos ser vistos. Notados. Não importa a que preço. Viramos presas fáceis demais. Buscamos curtidas e seguidores, alimentamos aqueles papinhos que não levam a nada no whatsapp. Tudo por carência. Tudo porque temos baixa autoestima. Queremos ser como as celebridades. Mas ninguém fala sobre a solidão desses “artistas”. Ninguém fala sobre a solidão de ninguém. Mentimos que somos felizes o tempo todo. Mas a verdade é que tudo (ou quase tudo) que fazemos on-line é absolutamente irrelevante. O fato é que vivemos uma crise. E Bauman identifica-a como “bastante ligada ao enfraquecimento, à desintegração e à decadência de todas as relações inter-humanas”. Algo que Saramago no livro “O Homem Duplicado” já havia identificado:
”O que de todo não compreende... é que, ao se desenvolverem as tecnologias de comunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com sua avenida ilusórias, tão dissimulado no que expressa quanto no que dissimula.”
A Frente Fria que a Chuva Traz
2.5 152 Assista Agora“Hoje, tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Em “A Frente Fria que a Chuva Traz”, o diretor Neville D'Almeida concebe um filme caricatura de nossos tempos. O que fazer? O que resta? O que fazer após a orgia? A frase que abre esse texto foi escrito pelo sociólogo francês Jean Baudrillard e ele mesmo responde. O que nos resta é simular a orgia. Fingir. Repetir todas as coisas e cenas porque elas já aconteceram. É exatamente isso que vemos nesse filme. Jovens endinheirados que buscam numa festa na laje de um favela do Rio de Janeiro algo que os faça sair do marasmo de suas vidas. Sexo. Drogas. E não mais rock’n roll. A moda agora é sertanejo universitário. Mas nada disso parece aplacar o tédio daqueles jovens. Então, tome mais sexo, mais drogas de todos os tipos, e mais música de gosto duvidoso. Se precisar, eles contratam até o astro musical do momento. Figura emblemática que saiu da favela, mas que agora se veste de maneira esdrúxula e finge viver numa eterna adolescência. Qualquer semelhança com o cantor Latino não será mera coincidência. Mas nem isso... Nem isso... A única figura que pode tirar aqueles garotos e aquelas garotas desse estado de inércia é Amsterdan. Uma garota que não nasceu rica, mas que é aceita na rodinha, por ser bonita, descolada e conhecer os lugares onde se consegue drogas com facilidade. Será ela que de uma maneira catártica jogará algumas verdades na cara de todos eles. Não que ela seja exemplo de alguma coisa. Mas sua dignidade vem de um estranho estado de consciência. Ela não mente pra si mesmo como todos os outros. Ela é. E isso se seduz num primeiro momento, também assusta. De certa forma, essa personagem é um paradoxo dos nossos tempos. Ela continua e continuará a existir num estado de total indiferença, com sua sexualidade anônima, despida de qualquer reflexão. Logo aqueles rapazes e garotas vão casar, ter filhos, constituir família. Tornar-se-ão dia após dia um pouco mais careta, um tanto mais moralista e a vida seguirá seu curso. Mas e Amsterdan?
Anos felizes
3.5 9“Sem dúvida, aqueles eram anos felizes, pena que nenhum de nós sabia. “
Daniele Luchetti concebe um filme que discute questões bastante pertinentes e contemporâneas. “Anos Felizes” mostra através do olhar ingênuo de um dos filhos do casal toda a dinâmica de um relacionamento entre um homem e uma mulher nos anos 70. E não só isso. Ele, um artista, que tem inúmeros casos extraconjugais. Ela, uma mulher que se dedica aos filhos e ao marido, e extremamente ciumenta. Na realidade, Guido é um homem como tanto outros (ousaria dizer a maioria): quer tudo pra si e pouco, ou quase nada, ou nada para sua esposa. É egocêntrico, mimado, manipulador. Serena é extremamente submissa e manipulada por ele. Até que o filme entre em rota de colisão. Serena descobre o feminismo e a possibilidade de libertação desse relacionamento abusivo. Mas não será nada fácil. Visto que ela precisa se encontrar como pessoa, além dos papéis de mãe, esposa, dona de casa. É uma jornada interessante. Que mostra toda a força escondida daquela mulher e toda a fraqueza daquele homem megalomaníaco. É uma discussão muito pertinente nesse tempo em que a quase totalidade dos homens não sabe como lidar com essa mulher contemporânea. Afinal, a socialização desses garotos ainda é extremamente machista e o resultado é esse que estamos vendo ai. Muitos desencontros e pouquíssimos encontros. E nem falo aqui do amor romântico, mas daquela capacidade que todos carregamos dentro de si de poder se encarar e encarar os outros de frente. Falo da urgente necessidade de resgatarmos nossa potência amorosa e criativa. Resgatar um olhar ingênuo para as coisas e pessoas, como o de uma criança. É desse olhar que o filme nos fala. Dessa capacidade de buscar beleza no caos. Sim. Enquanto subia os letreiros, fiquei pensando num trecho do livro “Água Viva” da Clarice Lispector:
"Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico - a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me."
De Longe Te Observo
3.4 86 Assista Agora“Desde Allá” (na tradução brasileira ficou “De Longe Te Observo) é um filme magnífico que vai se construindo pouco a pouco diante do olhar do espectador. Armando é um homem de pouco mais de 50 anos que busca saciar seu desejo dando dinheiro para meninos pobres na cidade de Caracas (Venezuela). Um dia, ele conhece Elder, que o rejeita, o rouba e até o agride. Armando continua a procurar Elder e uma estranha relação começa entre esses dois. O mais interessante aqui é que o diretor Lorenzo Vigas não entrega tudo de mão beijada ao espectador. Muito pelo contrário. O filme é construído, sobretudo, nos silêncios e lacunas da história dos dois personagens. Quem são eles? Sabemos muito pouco. Apenas o que é mostrado. E uma ou outra informação que eles soltam. Mas nenhum dos dois é confiável. Então, vem a genialidade do diretor. Ele nos coloca dentro da obra. Estamos perdidos. Como aqueles personagens. E tudo se torna maior pela escolha estética da direção. O filme é frio. Com uma pegada bastante distanciada. Quase documental. Vigas concebe um filme platônico. Onde o eu é sempre ameaçado por um desejo (sexo, poder, dinheiro, status), e como é insaciável, deve-se subordiná-lo a razão. Desejo versus Razão. E não só daqueles dois, mas de toda uma sociedade cristã. A merda toda começa ai. Da institucionalização de uma moral que nega o corpo, que nega o desejo e que busca na culpa (do outro ou de si mesmo) um possível caminho de salvação. Daí que mesmo quando o filme se encaminha para um possível entendimento entre esses dois seres tão díspares, tememos pelas peças que o destino possa nos pregar. Outro tema bem interessante levantado pelo filme é a questão da paternidade. Aparentemente o que liga Armando e Elder é um passado abusivo. Mas nunca temos muitas certezas de nada. Tudo é sugerido muito sutilmente e como espectador temos que permanecer como um analista diante de seu analisando: sem desejo, sem memória. Porque se assim não o fizermos corremos o risco de tentar entender, julgar, moralizar. Não é essa a questão. Outro ponto interessantíssimo é a maneira como a situação social dos personagens é escancarada. Há uma hierarquia implícita, quase invisível nas relações abordadas pelo filme. Essa talvez seja a maior chave para alcançar a beleza dessa obra.
Nise: O Coração da Loucura
4.3 656 Assista Agora“Penso como Antonin Artaud: ‘Há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer a sua época’.”
Que mulher incrível era Nise da Silveira! Que filme incrível! Olha, tô aqui sem palavras e com um orgulho imenso dessa mulher ser brasileira e desse filme ser brasileiro. Assistam, gente! Assistam correndo! É uma obra que tem que ser conhecida e sobretudo, falada, discutida, e trazida cada vez mais pra nossa realidade. Num mundo cada vez mais cruel, precisamos da arte para não morrermos da verdade!
Meu Filho, Olha o Que Fizeste!
3.3 45Inspirado num caso real e com produção executiva de ninguém mais, ninguém menos que David Lynch, o filme "Meu Filho, olha o que fizeste" de Werner Herzog é um mergulho na mente perturbada de um homem que pouco a pouco vai enlouquecendo após ouvir um chamamento divino. A edição em flashback remonta episódios da vida dele de maneira a encaixar as peças desse quebra-cabeça. Como alguém enlouquece assim da noite para o dia? A ausência do pai. A mãe superprotetora. A namorada extremamente compreensiva. Os ensaios da peça de teatro "Orestes" promovem a metalinguagem perfeita para o enredo do filme. Tanto na peça grega, quanto no filme, o final é o mesmo: o matricídio. Mas, afinal o que esse desejo absolutamente esconde? Herzog parece não buscar nenhuma resposta. Como grande cineasta que é, à ele interessa apenas o enigma.
Ponte Aérea
3.5 401 Assista Agora"Sei lá... acho que amar é coisa de outros tempos, né? Dos tempos daqueles velhinhos que a gente conheceu aquele dia lá naquela festa que você me levou..."
Sim. "Ponte Aérea" fala dessa impossibilidade amorosa que atualmente vivemos. É um filme bastante contemporâneo. É um filme jovem também. Que retrata a indecisão de um homem e uma mulher sem a solidez de outrora. Agora tudo é rápido demais. Corrido demais. Frio demais. Não temos mais tempo. Temos todo o tempo do mundo, mas não temos mais nenhum tempo. Tudo parece já ter sido vivido, vivenciado, visto, postado, compartilhado, curtido. O que sobra? É sobre essa sensação de pós-orgia diagnosticada por Baudrillard e Bauman que a diretora Julia Rezende parece se debruçar. Seu olhar feminino e absurdamente atual das relações humanas torna essa comédia romântica algo bastante original. Bruno e Amanda se conhecem de maneira inusitada e iniciam uma relação bastante inusitada. Eles são muito diferentes. Ela, uma workaholic. Ele, um artista. Ela, paulista. Ele, carioca. São nesses desencontros até mesmo clichês que o filme realiza certa beleza incomum. Como se quisesse capturar algo que não existe mais, que talvez nunca existiu e que nunca existirá, mas que de alguma forma muito doida sobrevive quando nos descobrimos apaixonados por alguém. O amor talvez seja isso; uma invenção. Assim como a arte. E precisamos disso para não morrermos da verdade, tédio e medo.
Those People
3.3 179"Você acha que não merece amor?"
Quem nunca estando numa relação de amizade misturou as coisas e se apaixonou pelo(a) amigo(a)? Quem nunca se permitiu ficar num relacionamento completamente abusivo? Quem nunca achou que não merecia ser amado? O filme "Those People" dirigido por Joey Kuhn aborda todos esses temas com o diferencial de retratá-los em relações homossexuais. Charlie e Sebastien são amigos desde criança. Sebastien possui um personalidade bastante obscura e parece querer seduzir e chamar a atenção de todo mundo o tempo todo. Já Charlie é mais introspectivo e sensível. Ambos possuem segredos e intimidades que só compartilham um com o outro e parecem se dar muito bem. Mas algo ali incomoda. Charlie é completamente apaixonado por Sebastien e este parece usar do sentimento do amigo para dominá-lo. Um dia, Charlie conhece um pianista mais velho e inicia um relacionamento com esse homem. Pouco a pouco, vai se distanciando da influência de Sebastien, mas será que vai conseguir libertar-se desse sentimento assim tão facilmente? O filme retrata o conflito de Charlie de maneira bastante delicada e não romantiza nem demoniza ninguém. Todos são humanos e parecem ter justificativas bastante plausíveis para agirem como agem. Acompanhamos a trajetória de cada personagem com absoluta curiosidade e algum nervosismo, pq conhecemos aqueles personagens bem de perto e já passamos por aquelas mesmíssimas situações. O desenrolar da trama é bastante inteligente e parece não querer responder todas as questões. Coisa que deveria ser o papel de toda boa arte.
Éden
2.9 29Nos primeiros minutos do filme "Éden", a personagem de Leandra Leal perde o marido assassinado na Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. Ela está grávida, e é levada pelo irmão para participar de um culto evangélico. Visivelmente deslocada no começo, vai aos poucos cedendo ao processo de evangelização e até se converter emocionada ao final do culto. A cena é emblemática e é maravilhosamente interpretada por Leandra, por João Miguel que vive o Pastor Naldo, e pelo irmão vivido pelo Julio Andrade. A partir dessa conversão acompanhamos a via sacra de Karine em busca de alguma (im)possível redenção. O périplo dela é explorado pelo pastor oportunista, que vê naquele drama da moça, uma possibilidade de sensibilizar os fieis para sua Igreja. A manipulação da fé é mostrada de maneira contundente e corajosa, sem muito meios termos, nem sutilezas. A exploração messiânica é a base de todo nosso culturalismo. Foi assim com os índios. Foi assim com os negros. E com o liberalismo econômico, a prática mudou um pouco de figura, passando a ter os pobres como público alvo. O Éden já não podia mais ser pós-morte. A urgência do consumo exigiu o discurso sofresse uma mudança drástica. O paraíso não é aqui. Nem nunca será. Mas tem de ser vendido como se fosse. O consumo ou ter condições de ter alguns bens consumo é sagrado. O discurso é marketing. O dinheiro torna-se um deus. E em nome dele se pode tudo. Ou quase tudo. A trajetória de Karine é ao contrário disso. É uma história humana, demasiado humana.
A Espera
3.7 59 Assista AgoraO diretor Piero Messina faz sua estreia com um filme denso, misterioso, permeado por longos silêncios e dolorosas ausências. O enredo extremamente simples é esmiuçado em todo seu potencial por deslumbrantes imagens e nas vigorosas interpretações de Juliette Binoche e Lou de Laâge. Tudo se passa após a morte do filho de Anna, que ao receber a visita da namorada dele, decide omitir o ocorrido para desfrutar um pouco mais da companhia da menina. Pouco a pouco, vamos conhecendo essas duas personagens, mas mais pelo que elas escondem, do que pelo que mostram. O diretor é extremamente hábil na construção de climas, e a fotografia e a escolha de alguns posicionamentos de câmera que ampliam a sensação de vazio e solidão, transformam a casa num personagem importantíssimo. Os dias passam e o moço nunca retorna ao lar. A situação torna-se quase insustentável, mas sabiamente a direção faz com que essas mulheres de gerações diferentes encontrem maneiras de conviverem juntas. Há um jogo de aproximação, ora repulsa. A tensão sexual também é sugerida. Juliette Binoche concebe uma personagem misteriosa, com expressões faciais sutis e certeiras. É uma grande atriz num grande momento de sua carreira. A jovem atriz Lou de Laâge (do ótimo filme “Respire”) se sai muitíssimo bem numa personagem difícil, que passa por grandes transformações em cena. Conforme o enredo avança, Anna engendra cada vez mais Jeanne em suas mentiras, mas o diretor deixa a coisa tão dúbia, que por vezes parece que Anna realmente acredita que uma hora o filho vai voltar. O tempo de convivência aproxima as duas mulheres revelando um pouco mais sobre suas carências e desejos. O que está em jogo realmente?
Uma Canção
3.2 275Vou confessar uma coisa: Amo esse tipo de filme. Sei lá, eles me tocam de alguma forma e eu não me julgo por isso. Mentira! Me julgo. Às vezes, muitas vezes, me pego pensando: "Caramba, vc é tão problematizador e se pega chorando num filme desses". Mas no outro segundo já respondo pra mim mesmo: "Já que sou. O jeito é ser". Sim. Gostei muito de "Song One". É um filme simples, mas bastante interessante e com uma premissa um pouquinho diferente da maioria das comédias românticas. Achei a maneira como os protagonistas se conhecem bastante original. Franny é uma antropóloga que está trabalhando no Marrocos, quando recebe uma ligação de sua mãe dizendo que seu irmão sofreu um acidente e que está em coma. Ela e o irmão estavam brigados e não se falavam há uns seis meses e ela agora se culpa por isso. A briga se deu pq ela não aceitou a decisão do irmão de largar a faculdade e ser músico. Movida por essa culpa, ela inicia uma jornada de reencontro com esse irmão. Ouve suas músicas, vídeos. Lê seu diário. E descobre que ele era fã de um cantor chamado James Forrester, que está se apresentando na cidade, e que o irmão tinha até comprado ingressos para assisti-lo. Ela vai no show ... e o filme começa e você já pode deduzir o que acontece. Sim. Mas o que surpreende aqui é a ótima interpretação da Anne Hathaway e do Johnny Flynn, que convencem como protagonistas e nos envolvem nesse romance. A trilha sonora é maravilhosa e tem uma cena importantíssima com um cara cantando "O Leãozinho" do Caetano Veloso, que é a coisa mais fofa dessa mundo. Ai ai...
A Estranha História De Não Pergunte Não Fale
4.0 16"Quando eu estava no exército recebi um medalha por matar dois homens e a dispensa por amar um."
O documentário "A Estranha História de "Não Pergunte Não Fale" é excelente, justamente por apresentar um registro histórico da evolução dos direitos dos gays nos EUA e de como se deu a revogação de uma lei que proibia que homens gays e mulheres lésbicas servissem ao exército. Sim. É chocante ouvir os depoimentos de soldados dispensados simplesmente por sua condição sexual. Mas o que mais me provocou revolta e indignação é ouvir as falas de senadores, deputados e outros políticos que apresentam teorias estapafúrdias para justificarem sua homofobia. É chocante. Vil. Absurdo. Nojento. Outro ponto interessante levantado pelo documentário é de como se deu a formação de uma identidade gay como resposta a repressão. Mais um excelente documentário com o selo HBO.
O Novato
3.8 41É incrível como o cinema francês consegue falar sobre temas clichês sem cair no comum, no vulgar, no batido. "O Novato" é exemplar nesse sentido. O filme retrata adolescentes num ambiente escolar. Sim. Poderia ser tudo aquilo que já vimos retratado milhares de vezes no cinema. Mas o olhar do artista é que pode modificar a realidade. O diretor Rudi Rosenberg faz uma belíssima ode à alteridade. Concebendo um filme delicado sobre a opressão vivenciada pelos jovens em busca do reconhecimento alheio, o que vemos ali é um microcosmos da sociedade adulta. É ali que se fomenta o ódio ao diferente, ao fora dos padrões, aquele que não se enquadra. É preciso todo um rito de passagem que simboliza o momento de aceitação de si mesmo. É dessa desconstrução necessária que o mundo anda precisando. Toda a beleza errática daqueles meninos e meninas considerados "losers" pelos demais é um grande alento para nossas consciências. Que me fez lembrar de um trecho do poema "Ultimatum" de Álvaro de Campos:
"O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!
O que aí está não pode durar, porque não é nada!
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!"
Cidades de Papel
3.0 1,3K Assista Agora"Talvez fosse diferente se não tivesse me afastado de você."
Acabei de assistir ao filme "Cidades de Papel" e gostei muito. Sim. Devo ser muito bobo mesmo. Pq amo esse tipo de filme. E esse aqui ao contrário do que muitos podem pensar não é uma história de amor. Não. Não é sobre isso. E talvez essa visão possa explicar o fato de muita gente tê-lo detestado. Expectativas! É exatamente disso que o filme trata. De como é perigoso a gente idealizar uma pessoa, seja ela quem for. Pq no fundo no fundo, ela é só uma pessoa. Com medos, inseguranças, desejos... O filme é um rito de passagem da adolescência para a vida adulta. Como tantos outros por aí. Mas esse tem um sabor especial de autoconhecimento. Que amores são como trilhos de um trem. Podemos andar juntos um tempo, o tempo que for bom para ambos, mas que podemos também seguirmos nossas trajetórias separados, sem que isso diminua em nada o afeto que sentimos por esse alguém que compartilhou desses momentos conosco.