Para quem nem sequer assistiu a um filme do Godard, despender tempo com séries é um sacrilégio. Não bastasse essa dívida com os clássicos, conheço muito bem o poder viciante que as ditas possuem - “Breaking Bad” me capturou a ponto de ser quase impossível interromper o início automático dos episódios conectados. Chernobyl, da qual traço agora algumas linhas, foge um pouco a essa questão temporal longínqua, embora seja igualmente contaminante (ops). Tecnicamente uma minissérie, com pouco mais de 5 horas, o que na prática não a faz muito maior que um “...E o Vento Levou”, épico que deve ter algo perto disso. O que me levou a acompanhar a bem-sucedida investida do HBO, para além de suas avaliações positivas e do fato de ter atingido o topo do ranking do IMDB, foram as minhas memórias do acidente e a possibilidade de confrontá-las com uma recuperação investigativa. Tinha 9 anos em 1986 e certamente não compreendi a dimensão da distante tragédia mas, quando do episódio do Césio-137 de Goiânia, um ano depois, meu pavor sobre radioatividade se consolidou - desse fato lembro como se fosse hoje. Em ambos os casos o fascínio inicial pela luz azul, encantável e letal, que consumia as pessoas e transformava inclusive seus corpos em perigo potencial. Vem dessa época minha visão de que o planeta é frágil e de que o apocalipse é logo ali – seja fria a guerra, seja ela quente. E receoso até de uma radiografia. Mas então ocorre que vou assistindo ao primeiro capítulo, mais ou menos situado pelos conhecimentos prévios, pensando ingenuamente que não seria surpreendido, quando então sou convidado, sem sutileza alguma, a conceber que a coisa toda fora muito pior, e que, inimaginavelmente, poderia ser definitivamente pior. É com esse realismo que Chernobyl, a minissérie, é levada a efeito. Obtido com interpretações irretocáveis, sem dúvida, mas ainda mais com a reconstrução do cenário, apoiado por todos os elementos secundários que proporcionalmente foram afetados pela radiação e pela burocracia estatal. Os atos heroicos relatados configuraram mais uma campanha para fortalecer a alma russa – essa, independentemente das falhas humanas individuais, é historicamente marcada pela entrega do corpo à humanidade. Para contribuir com a contenção do que chegou a equivaler a uma Hiroshima a cada meia hora, foi necessário o sacrifício irremediável de pisar no lugar mais perigoso da terra.
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Chernobyl
4.7 1,4K Assista AgoraPara quem nem sequer assistiu a um filme do Godard, despender tempo com séries é um sacrilégio. Não bastasse essa dívida com os clássicos, conheço muito bem o poder viciante que as ditas possuem - “Breaking Bad” me capturou a ponto de ser quase impossível interromper o início automático dos episódios conectados. Chernobyl, da qual traço agora algumas linhas, foge um pouco a essa questão temporal longínqua, embora seja igualmente contaminante (ops). Tecnicamente uma minissérie, com pouco mais de 5 horas, o que na prática não a faz muito maior que um “...E o Vento Levou”, épico que deve ter algo perto disso.
O que me levou a acompanhar a bem-sucedida investida do HBO, para além de suas avaliações positivas e do fato de ter atingido o topo do ranking do IMDB, foram as minhas memórias do acidente e a possibilidade de confrontá-las com uma recuperação investigativa. Tinha 9 anos em 1986 e certamente não compreendi a dimensão da distante tragédia mas, quando do episódio do Césio-137 de Goiânia, um ano depois, meu pavor sobre radioatividade se consolidou - desse fato lembro como se fosse hoje. Em ambos os casos o fascínio inicial pela luz azul, encantável e letal, que consumia as pessoas e transformava inclusive seus corpos em perigo potencial. Vem dessa época minha visão de que o planeta é frágil e de que o apocalipse é logo ali – seja fria a guerra, seja ela quente. E receoso até de uma radiografia.
Mas então ocorre que vou assistindo ao primeiro capítulo, mais ou menos situado pelos conhecimentos prévios, pensando ingenuamente que não seria surpreendido, quando então sou convidado, sem sutileza alguma, a conceber que a coisa toda fora muito pior, e que, inimaginavelmente, poderia ser definitivamente pior. É com esse realismo que Chernobyl, a minissérie, é levada a efeito. Obtido com interpretações irretocáveis, sem dúvida, mas ainda mais com a reconstrução do cenário, apoiado por todos os elementos secundários que proporcionalmente foram afetados pela radiação e pela burocracia estatal. Os atos heroicos relatados configuraram mais uma campanha para fortalecer a alma russa – essa, independentemente das falhas humanas individuais, é historicamente marcada pela entrega do corpo à humanidade. Para contribuir com a contenção do que chegou a equivaler a uma Hiroshima a cada meia hora, foi necessário o sacrifício irremediável de pisar no lugar mais perigoso da terra.