No último capítulo de “Os Dez Mandamentos”, Moisés passa a liderança do povo hebreu para Josué, sobe até o cume do monte Nebo, vê a Terra Prometida e se entrega aos braços de Deus (“Estou pronto, meu Senhor”...). Após isso, inicia-se uma nova fase na história de Israel. Esse é o ponto de partida do livro de Josué e de “A Terra Prometida”, novela que poderia ser resumida em “um curioso encontro do épico bíblico com fantasia e ingredientes tipicamente folhetinescos”. Mas como você já deve ter percebido pelo tamanho desse textão, esse não é um mero resumo acerca da obra de Renato Modesto.
O livro de Josué começa por aquela que se tornou um ícone das mensagens de incentivo, quando Deus encoraja o novo líder israelita a não temer os desafios titânicos que lhe aguardam. Porém Renato Modesto escolhe iniciar a trama pelo cerco à Jericó, pouco antes de um grande feito, a queda das intransponíveis muralhas da cidade cananeia, ser realizado aos olhos de todos. Mas antes que possamos presenciar tal milagre, e de forma a prender a atenção do espectador, a trama retrocede alguns meses e somos apresentados a uma Israel ainda acampada no lado moabita do rio Jordão. A maior parte do povo está preocupada com Moisés, desaparecido há semanas, e custa a aceitar que Josué é seu novo líder. Não bastando os desafios à sua frente, muitos dos seus até mesmo o confrontam acerca de sua legitimidade e capacidade de levá-los a concretizar o sonho que cultivam há quase 40 anos; um excelente contexto para compreendermos o emocional de Josué naquele momento. E é ao final do 1º capítulo que os céus se abrem e Deus chama por Josué para surpresa e júbilo do mesmo, e inicia o 2º capítulo encorajando-o tal como relatam as primeiras linhas do livro.
Todas as adaptações bíblicas que a RecordTV produziu e coproduziu desde 2010 (a maioria escrita por Vivian de Oliveira, autora de “Os Dez Mandamentos”) seguiu uma fórmula clara: não modificar o que diz a Bíblia, apenas criar em volta, dando base e contexto para o material a ser transposto. Renato Modesto, naturalmente e assim como já havia feito em vários episódios de “Milagres de Jesus”, não abandona a fórmula aqui, mas, de forma surpreendente, passa por cima dela ali e acolá. Tais decisões não dão à narrativa sentidos diferentes dos bíblicos, mas são escolhas que autores anteriores não teriam feito, preferindo seguir à risca o material original. É o caso do desenrolar da missão dos espiões em Jericó envolvendo a cumplicidade da prostituta Raabe, e também o destino de um personagem apenas brevemente citado no livro.
Na trama folhetinesca, após a divina injeção de ânimo, Josué é firme para se impor como o líder escolhido por Deus e se torna mais confiante e seguro. Mas, por conviver com milhares de pessoas ainda céticas, sem contar os fortes e específicos opositores, o guerreiro teme em não poucos momentos. O povo ainda tem na cabeça as grandiosidades dos feitos realizados por Deus por meio de Moisés, como a invocação das pragas no Egito e a abertura do Mar Vermelho. Por isso, é muito acertada a decisão de Renato Modesto ao colocar Josué encarando esses fatos de certa forma como uma cobrança, já que para finalmente pisar em Canaã, a Terra Prometida, eles precisam atravessar milhões de pessoas pelo rio Jordão em época de cheia, incluindo animais, tendas e incontáveis objetos. A cena em que Josué sonha que tenta abrir o rio usando um cajado tal como fez Moisés, mas fracassa e decepciona a todos, é simplesmente perfeita nesse sentido. Mas esse milagre era necessário, pois por ele Deus provaria ao povo que estava com Josué, seu escolhido, encerrando – teoricamente – as oposições. E a sequência, dividida em uns 2 capítulos, é tão emocionante quanto pede o momento, pois também marca a chegada dos hebreus, após 40 anos de espera, à Terra Prometida.
O livro de Josué é um livro essencialmente bélico, e relata como foi a conquista de Canaã pelo exército de Israel sob a liderança de Josué. Ele pode ser divido em 4 “episódios” principais. O primeiro, até então o único adaptado em toda a história do audiovisual, é sobre as proezas da tomada de Jericó. O segundo, sobre o reino de Ai e a primeira derrota dos israelitas em anos. O terceiro, sobre o maior desafio de Israel ao enfrentar uma coalisão de 5 reinos cananeus. E o quarto episódio do livro é um resumo de todas as seguintes conquistas dos hebreus até a repartição de Canaã entre as tribos israelitas e o falecimento de Josué. Ou seja, já na narrativa literária percebe-se os meandros de um arco narrativo com potencial, indo de uma grande dificuldade, passando pela queda, até o desafio maior do que tudo já visto; nada menos que épico. Renato Modesto entendeu esse potencial e faz questão dos 3 primeiros “episódios” serem o foco da maior parte dos 179 capítulos. Porém, de forma inteligente e acertada, e a fim de não mudar boa parte do elenco de um capítulo para o outro (um perigo enorme dado o comportamento do público médio), os personagens do reino de Ai já são apresentados antes mesmo do capítulo 10, e os correspondentes ao terceiro “episódio” ainda quando Ai está em cena. O caráter episódico não se perde de todo, mas as tramas se diluem agradavelmente. Um outro personagem também estabelece algumas dessas ligações entre “episódios”, trata-se do Arauto, vivido com doçura e uma dose certa de humor por Danilo Sacramento, e vale menção.
Ao adaptar essa importante etapa da história de Israel para a TV brasileira, Renato Modesto fez questão de se inspirar em diversos elementos fantasiosos da cultura pop. Talmal, um dos anaquins (os gigantes do cânone bíblico), é introduzido em uma história de mistério e, ao longo dos capítulos, desenvolve uma bonita amizade com algumas crianças e um menosprezado guerreiro. Falando em crianças, temos também os polêmicos Lagartos Gosmentos, um bando de meninos de rua que, bem... não poucas vezes ludibria até mesmo o exército de um grande reino. E a principal diversão dos monarcas desse reino é um torneio onde lutadores de todos os tipos, tamanhos, vestimentas e nomes se confrontam até à morte. O autor, além de brincar com uma história totalmente inspirada nas dezenas de variações de “Betty, a Feia”, também insere um mistério na forma de um cavaleiro mascarado exímio com as flechas e que se faz presente em algumas situações de grande perigo; são momentos que evocam clichês de filmes e séries de super-herói. Também os contos de fada lhe serviram de inspiração, a começar pela principal mocinha (porque toda novela precisa delas, não é?), Aruna, vivida por uma Thaís Melchior ciente de que sua personagem é uma versão da Cinderela. Os núcleos dos feiticeiros são os que mais lembram elementos da Idade Média. A novela é bíblica e, para mim e para muitos, baseada em relatos factuais, mas não hesita em ter, por exemplo, uma personagem, a feiticeira Ravena (Flávia Monteiro), espiando o passado por meio sobrenatural e invocando chamas pelas mãos. Apesar de parecer absurdo no contexto, não é, e respeita a mitologia.
Outro lado da trama é o folhetim propriamente dito. Novelas são narrativas essencialmente melodramáticas, e por essa razão é curioso que o livro de Josué tenha sido adaptado para esse meio onde as emoções humanas vão à flor da pele. Mas a compensação é feita, e, portanto, não faltam os núcleos de romances proibidos, intrigas familiares, fofocas e de humor. As intrigas palacianas, presente em qualquer história de trono que se preze, encontra aqui o lugar perfeito para se desenrolar à vontade, e Modesto não perde a oportunidade; um deleite para uma mente criativa.
Quanto à equipe de direção, comandada por Alexandre Avancini (que também assinou a direção geral da ótima “José do Egito” e de “Os Dez Mandamentos”), é um trabalho adequado, mas deveras acomodado. São raros os planos em internas que variam de uma câmera indo suavemente para os lados sobre um trilho. É um pouco mais interessante nas externas, mas Avancini poderia, e muito, arriscar mais. Sobre os efeitos especiais, ao contrário do que se poderia esperar depois de a Casablanca assumir a produção, arrisco dizer que algumas vezes são melhores que aqueles produzidos internacionalmente na novela anterior. O resultado final da abertura do rio Jordão, totalmente produzida aqui, é melhor acabada que a abertura do Mar Vermelho, produzida pela Stargate Studios (responsável por alguns dos efeitos especiais de “The Walking Dead” e “Heroes”). Por outro lado, a chuva de fogo que ocorre na batalha “final”, e realizada em terras tupiniquins, não convence como a excelente chuva de meteoros no Egito, assinada pela Stargate. Na trilha sonora, Daniel Figueiredo mais uma vez demonstra seu talento e criatividade ao compor melodias (lindíssimas) diferentes das de “Os Dez Mandamentos”, mas que mantém a mesma identidade.
Em relação ao elenco, vale algumas menções (boas e más). O protagonista Sidney Sampaio já se mostra esforçado desde “Os Dez Mandamentos”, e os poucos problemas que tenho com a composição do personagem dizem mais respeito às escolhas de Renato Modesto como autor. Sidney está bem, e sua postura adequada em nada lembra o cara jovem que ele é. Mas um trabalho de entonação na voz a fim de ilustrar as passagens de tempo, assim como fez Leonardo Brício em “Rei Davi”, seria muito bem-vindo. Sidney teve a oportunidade de interpretar um grande personagem por quase duas novelas inteiras, e será sempre e merecidamente lembrado por isso. Milhem Cortaz, conhecido pelos tipos maus (como se esquecer do espumante Abbas de “Sansão e Dalila”?) e corruptos (seu personagem nos dois “Tropa de Elite” virou até meme), vive aqui Calebe, guerreiro de boa conduta e temente aos mandamentos divinos. Mas o ator não deixa de empregar seus maneirismos ao personagem, e, apesar de alguns estranhamentos, o resultado é bem bom. Paloma Bernardi faz o que pode, mas sua personagem Samara, a grande vilã, é irritante demais – no mal sentido – e tem tempo de tela em excesso. Cristiana Oliveira é melhor agraciada, e consegue ilustrar com sucesso a hipocrisia e cinismo de muitos grupos extremistas atuais. Juliana Silveira faz jus à sua boa caracterização, Priscila Uba confere uma adequada dimensão zen para sua sonhadora Tirda, Rafaela Mandelli parece limitada, embora possa ser sua personagem, Raymundo de Souza faz bem todas as facetas de seu Quemuel, Gabriel Gracindo e Cláudio Gabriel basicamente repetem o que fizeram em “A História de Ester” e “Sansão e Dalila” respectivamente, Paulo César Grande perfeito no estereótipo do ogro de bom coração, Roberto Frota despeja toda sua experiência, Frederico Volkmann é destaque entre os mais novos, Leonardo Miggiorin some quando seu esforçado porém desprezado Otniel está em cena, Pedro Henrique Moutinho tem o personagem provavelmente mais bem escrito da novela toda e responde à altura, Kadu Moliterno dispensa palavras, Rafael Sardão ótimo, embora pareça que Renato Modesto não percebeu isso, André Ramiro injustiçado com um personagem que não serve para nada e Igor Rickli, Roberto Bomtempo e Mário Frias sabem fazer o público passar raiva com seus personagens que ocupam posições de poder. Mas o maior destaque de todos é Miriam Freeland no papel da heroína bíblica e mocinha Raabe. Um show de atuação, um enorme talento que, porém, é realmente aproveitado só nos primeiros 70 capítulos. Infelizmente faltou história para a personagem após a virada que a trama sofre, mas a atriz está sempre à frente do texto.
Alexandre Avancini em breve retornará às produções bíblicas com a macrossérie (???) “Jezabel”, porém esperemos que ele se reinvente e agrade tanto quanto em “José do Egito” e na 1º temporada de “Os Dez Mandamentos”. Mas não se pode deixar de mencionar a última aparição de Josué e Aruna, uma longa sequência sem cortes; ponto generoso para os atores, para o autor e, principalmente, para Avancini. E espero muito que ele tenha dirigido essa cena tão importante para não estar direcionando o elogio ao diretor errado. Quanto ao Renato Modesto, deixo aqui o que ele mesmo disse acerca de sua trama. “A mensagem principal, no sentido mais simbólico, que eu procuro passar com a novela, é uma mensagem de otimismo. Eu sempre digo que a história de Josué e dos hebreus é a história de todos nós. Todos nós, na vida, temos que ultrapassar rio Jordão, temos que derrubar muralhas de Jericó. Todos nós enfrentamos grandes desafios, de grandes dificuldades. E, para superar os desafios da vida, precisamos ter muita perseverança, muita coragem, muita fé. Para mim, a grande mensagem da novela é essa. Uma mensagem de perseverança”.
Alguns dizem que a RecordTV foi ousada na decisão de contar a saga de Moisés e a libertação do povo hebreu do cativeiro egípcio. Mas essa é a história que todos conhecem, que está no imaginário popular: o bebê abandonado que volta para os braços da mãe, o príncipe do Egito, a sarça ardente, as pragas, o Mar Vermelho... E pronto. A 1a temporada da novela é excelente (veja bem, estamos falando de uma novela vírgula diária vírgula nacional), a audiência foi um sucesso e a repercussão não poderia ser melhor. Mas os filmes e séries que também narram esta história praticamente nada falam sobre o que vem depois do épico clímax entre as paredes de água, afinal, a jornada por um deserto com poucos eventos grandiosos e sem vilões tão grandes como o faraó (no lugar, reinos um tanto genéricos) não tem o mesmo apelo. Essa trama seria pouco atrativa em um longa-metragem e, acredito eu, fria e sem sal em uma série americana. Já a novela resolveu embrenhar-se por esse caminho. Não é uma decisão ainda mais arriscada? Então coube a Vívian de Oliveira e sua equipe de 5 colaboradores adaptar o texto bíblico e não é preciso dizer que muito se criou a fim de preencher os mais de 60 capítulos. Depois de um primeiro capítulo arrebatador, a trama em volta do núcleo moabita se intensifica e todas as movimentações ficam confusas demais. Moabe é o último obstáculo no deserto, então é abordada antes para que o confronto, lá na frente, ganhe peso. O núcleo hebreu, por sua vez, se desenvolve bem. E com a proximidade do conflito civil de Corá, Datã e Abirão e seus 250 seguidores contra Moisés a trama fica mais interessante. A passagem de tempo de quase 40 anos é sentida nos diálogos e situações, mas não na aparência dos personagens. Com poucas exceções, maquiagem e perucas de velhinhos são motivo de vergonha alheia. Depois dessa passagem temporal restam apenas 9 capítulos para as batalhas, encerramento de tramas e principais eventos bíblicos, como as águas da rocha e o triângulo Balaque, Balaão e jumenta(!). E sim, depois da enrolação nas primeiras dezenas de capítulos essa dezena final fica um tanto corrida. Tratando-se de uma temporada desenvolvida às pressas (inicialmente a jornada pelo deserto ocuparia os 20 primeiros capítulos de "A Terra Prometida") os efeitos visuais estão ótimos. A terra se abrindo é o ápice e a decisão de usar efeitos práticos é muito acertada. No quesito atuação Guilherme Winter está ainda mais à vontade, e nas cenas de discurso mostra uma faceta de liderança de Moisés que foi pouco explorada na temporada passada. Falar de Giselle Itié, Petrônio Gontijo, Denise Del Vecchio, Larissa Maciel, Renato Livera, Rayana Carvalho, Paulo Figueiredo e Vitor Hugo é desnecessário; suas performances continuam incríveis. Há outros excelentes no elenco, mas estes se destacam. As ótimas surpresas são Leonardo Vieira como o feiticeiro Balaão, Paulo Vilela na pele do amável Natan, Dudu Azevedo como o dissimulado príncipe Zur e Daniel Alvim interpretando o rei Balaque, embora este só surpreenda mesmo na última fase. Enquanto Marcela Barrozo quase se torna protagonista como Betânia, Paulo Reis não tem muito o que fazer no papel de Eldade, só ser o amigão de todo mundo. O abuso de câmeras lentas é muito irritante, e espero que isso seja bem menos utilizado em "A Terra Prometida". Aliás, o último capítulo é bastante gratificante pra quem acompanhou toda a saga. Enquanto Moisés passa o bastão para Josué, vivido pelo esforçado Sidney Sampaio, a novela naturalmente deixa o gancho para "A Terra Prometida", mas fechando a história de Moisés de forma correta e emocionante.
Melhor novela que já vi. Apesar de toda repercussão em cima dos efeitos especiais, eles só funcionam porque o roteiro da equipe de Vivian de Oliveira, ao longo de dezenas de capítulos, consegue criar no público uma empatia enorme pelos personagens. Não fosse isso, seriam apenas espetáculos visuais vazios. Agora o jeito é esperar a Netflix disponibilizar a segunda temporada.
A Terra Prometida
4.0 14No último capítulo de “Os Dez Mandamentos”, Moisés passa a liderança do povo hebreu para Josué, sobe até o cume do monte Nebo, vê a Terra Prometida e se entrega aos braços de Deus (“Estou pronto, meu Senhor”...). Após isso, inicia-se uma nova fase na história de Israel. Esse é o ponto de partida do livro de Josué e de “A Terra Prometida”, novela que poderia ser resumida em “um curioso encontro do épico bíblico com fantasia e ingredientes tipicamente folhetinescos”. Mas como você já deve ter percebido pelo tamanho desse textão, esse não é um mero resumo acerca da obra de Renato Modesto.
O livro de Josué começa por aquela que se tornou um ícone das mensagens de incentivo, quando Deus encoraja o novo líder israelita a não temer os desafios titânicos que lhe aguardam. Porém Renato Modesto escolhe iniciar a trama pelo cerco à Jericó, pouco antes de um grande feito, a queda das intransponíveis muralhas da cidade cananeia, ser realizado aos olhos de todos. Mas antes que possamos presenciar tal milagre, e de forma a prender a atenção do espectador, a trama retrocede alguns meses e somos apresentados a uma Israel ainda acampada no lado moabita do rio Jordão. A maior parte do povo está preocupada com Moisés, desaparecido há semanas, e custa a aceitar que Josué é seu novo líder. Não bastando os desafios à sua frente, muitos dos seus até mesmo o confrontam acerca de sua legitimidade e capacidade de levá-los a concretizar o sonho que cultivam há quase 40 anos; um excelente contexto para compreendermos o emocional de Josué naquele momento. E é ao final do 1º capítulo que os céus se abrem e Deus chama por Josué para surpresa e júbilo do mesmo, e inicia o 2º capítulo encorajando-o tal como relatam as primeiras linhas do livro.
Todas as adaptações bíblicas que a RecordTV produziu e coproduziu desde 2010 (a maioria escrita por Vivian de Oliveira, autora de “Os Dez Mandamentos”) seguiu uma fórmula clara: não modificar o que diz a Bíblia, apenas criar em volta, dando base e contexto para o material a ser transposto. Renato Modesto, naturalmente e assim como já havia feito em vários episódios de “Milagres de Jesus”, não abandona a fórmula aqui, mas, de forma surpreendente, passa por cima dela ali e acolá. Tais decisões não dão à narrativa sentidos diferentes dos bíblicos, mas são escolhas que autores anteriores não teriam feito, preferindo seguir à risca o material original. É o caso do desenrolar da missão dos espiões em Jericó envolvendo a cumplicidade da prostituta Raabe, e também o destino de um personagem apenas brevemente citado no livro.
Na trama folhetinesca, após a divina injeção de ânimo, Josué é firme para se impor como o líder escolhido por Deus e se torna mais confiante e seguro. Mas, por conviver com milhares de pessoas ainda céticas, sem contar os fortes e específicos opositores, o guerreiro teme em não poucos momentos. O povo ainda tem na cabeça as grandiosidades dos feitos realizados por Deus por meio de Moisés, como a invocação das pragas no Egito e a abertura do Mar Vermelho. Por isso, é muito acertada a decisão de Renato Modesto ao colocar Josué encarando esses fatos de certa forma como uma cobrança, já que para finalmente pisar em Canaã, a Terra Prometida, eles precisam atravessar milhões de pessoas pelo rio Jordão em época de cheia, incluindo animais, tendas e incontáveis objetos. A cena em que Josué sonha que tenta abrir o rio usando um cajado tal como fez Moisés, mas fracassa e decepciona a todos, é simplesmente perfeita nesse sentido. Mas esse milagre era necessário, pois por ele Deus provaria ao povo que estava com Josué, seu escolhido, encerrando – teoricamente – as oposições. E a sequência, dividida em uns 2 capítulos, é tão emocionante quanto pede o momento, pois também marca a chegada dos hebreus, após 40 anos de espera, à Terra Prometida.
O livro de Josué é um livro essencialmente bélico, e relata como foi a conquista de Canaã pelo exército de Israel sob a liderança de Josué. Ele pode ser divido em 4 “episódios” principais. O primeiro, até então o único adaptado em toda a história do audiovisual, é sobre as proezas da tomada de Jericó. O segundo, sobre o reino de Ai e a primeira derrota dos israelitas em anos. O terceiro, sobre o maior desafio de Israel ao enfrentar uma coalisão de 5 reinos cananeus. E o quarto episódio do livro é um resumo de todas as seguintes conquistas dos hebreus até a repartição de Canaã entre as tribos israelitas e o falecimento de Josué. Ou seja, já na narrativa literária percebe-se os meandros de um arco narrativo com potencial, indo de uma grande dificuldade, passando pela queda, até o desafio maior do que tudo já visto; nada menos que épico. Renato Modesto entendeu esse potencial e faz questão dos 3 primeiros “episódios” serem o foco da maior parte dos 179 capítulos. Porém, de forma inteligente e acertada, e a fim de não mudar boa parte do elenco de um capítulo para o outro (um perigo enorme dado o comportamento do público médio), os personagens do reino de Ai já são apresentados antes mesmo do capítulo 10, e os correspondentes ao terceiro “episódio” ainda quando Ai está em cena. O caráter episódico não se perde de todo, mas as tramas se diluem agradavelmente. Um outro personagem também estabelece algumas dessas ligações entre “episódios”, trata-se do Arauto, vivido com doçura e uma dose certa de humor por Danilo Sacramento, e vale menção.
Ao adaptar essa importante etapa da história de Israel para a TV brasileira, Renato Modesto fez questão de se inspirar em diversos elementos fantasiosos da cultura pop. Talmal, um dos anaquins (os gigantes do cânone bíblico), é introduzido em uma história de mistério e, ao longo dos capítulos, desenvolve uma bonita amizade com algumas crianças e um menosprezado guerreiro. Falando em crianças, temos também os polêmicos Lagartos Gosmentos, um bando de meninos de rua que, bem... não poucas vezes ludibria até mesmo o exército de um grande reino. E a principal diversão dos monarcas desse reino é um torneio onde lutadores de todos os tipos, tamanhos, vestimentas e nomes se confrontam até à morte. O autor, além de brincar com uma história totalmente inspirada nas dezenas de variações de “Betty, a Feia”, também insere um mistério na forma de um cavaleiro mascarado exímio com as flechas e que se faz presente em algumas situações de grande perigo; são momentos que evocam clichês de filmes e séries de super-herói. Também os contos de fada lhe serviram de inspiração, a começar pela principal mocinha (porque toda novela precisa delas, não é?), Aruna, vivida por uma Thaís Melchior ciente de que sua personagem é uma versão da Cinderela. Os núcleos dos feiticeiros são os que mais lembram elementos da Idade Média. A novela é bíblica e, para mim e para muitos, baseada em relatos factuais, mas não hesita em ter, por exemplo, uma personagem, a feiticeira Ravena (Flávia Monteiro), espiando o passado por meio sobrenatural e invocando chamas pelas mãos. Apesar de parecer absurdo no contexto, não é, e respeita a mitologia.
Outro lado da trama é o folhetim propriamente dito. Novelas são narrativas essencialmente melodramáticas, e por essa razão é curioso que o livro de Josué tenha sido adaptado para esse meio onde as emoções humanas vão à flor da pele. Mas a compensação é feita, e, portanto, não faltam os núcleos de romances proibidos, intrigas familiares, fofocas e de humor. As intrigas palacianas, presente em qualquer história de trono que se preze, encontra aqui o lugar perfeito para se desenrolar à vontade, e Modesto não perde a oportunidade; um deleite para uma mente criativa.
Quanto à equipe de direção, comandada por Alexandre Avancini (que também assinou a direção geral da ótima “José do Egito” e de “Os Dez Mandamentos”), é um trabalho adequado, mas deveras acomodado. São raros os planos em internas que variam de uma câmera indo suavemente para os lados sobre um trilho. É um pouco mais interessante nas externas, mas Avancini poderia, e muito, arriscar mais. Sobre os efeitos especiais, ao contrário do que se poderia esperar depois de a Casablanca assumir a produção, arrisco dizer que algumas vezes são melhores que aqueles produzidos internacionalmente na novela anterior. O resultado final da abertura do rio Jordão, totalmente produzida aqui, é melhor acabada que a abertura do Mar Vermelho, produzida pela Stargate Studios (responsável por alguns dos efeitos especiais de “The Walking Dead” e “Heroes”). Por outro lado, a chuva de fogo que ocorre na batalha “final”, e realizada em terras tupiniquins, não convence como a excelente chuva de meteoros no Egito, assinada pela Stargate. Na trilha sonora, Daniel Figueiredo mais uma vez demonstra seu talento e criatividade ao compor melodias (lindíssimas) diferentes das de “Os Dez Mandamentos”, mas que mantém a mesma identidade.
Em relação ao elenco, vale algumas menções (boas e más). O protagonista Sidney Sampaio já se mostra esforçado desde “Os Dez Mandamentos”, e os poucos problemas que tenho com a composição do personagem dizem mais respeito às escolhas de Renato Modesto como autor. Sidney está bem, e sua postura adequada em nada lembra o cara jovem que ele é. Mas um trabalho de entonação na voz a fim de ilustrar as passagens de tempo, assim como fez Leonardo Brício em “Rei Davi”, seria muito bem-vindo. Sidney teve a oportunidade de interpretar um grande personagem por quase duas novelas inteiras, e será sempre e merecidamente lembrado por isso. Milhem Cortaz, conhecido pelos tipos maus (como se esquecer do espumante Abbas de “Sansão e Dalila”?) e corruptos (seu personagem nos dois “Tropa de Elite” virou até meme), vive aqui Calebe, guerreiro de boa conduta e temente aos mandamentos divinos. Mas o ator não deixa de empregar seus maneirismos ao personagem, e, apesar de alguns estranhamentos, o resultado é bem bom. Paloma Bernardi faz o que pode, mas sua personagem Samara, a grande vilã, é irritante demais – no mal sentido – e tem tempo de tela em excesso. Cristiana Oliveira é melhor agraciada, e consegue ilustrar com sucesso a hipocrisia e cinismo de muitos grupos extremistas atuais. Juliana Silveira faz jus à sua boa caracterização, Priscila Uba confere uma adequada dimensão zen para sua sonhadora Tirda, Rafaela Mandelli parece limitada, embora possa ser sua personagem, Raymundo de Souza faz bem todas as facetas de seu Quemuel, Gabriel Gracindo e Cláudio Gabriel basicamente repetem o que fizeram em “A História de Ester” e “Sansão e Dalila” respectivamente, Paulo César Grande perfeito no estereótipo do ogro de bom coração, Roberto Frota despeja toda sua experiência, Frederico Volkmann é destaque entre os mais novos, Leonardo Miggiorin some quando seu esforçado porém desprezado Otniel está em cena, Pedro Henrique Moutinho tem o personagem provavelmente mais bem escrito da novela toda e responde à altura, Kadu Moliterno dispensa palavras, Rafael Sardão ótimo, embora pareça que Renato Modesto não percebeu isso, André Ramiro injustiçado com um personagem que não serve para nada e Igor Rickli, Roberto Bomtempo e Mário Frias sabem fazer o público passar raiva com seus personagens que ocupam posições de poder. Mas o maior destaque de todos é Miriam Freeland no papel da heroína bíblica e mocinha Raabe. Um show de atuação, um enorme talento que, porém, é realmente aproveitado só nos primeiros 70 capítulos. Infelizmente faltou história para a personagem após a virada que a trama sofre, mas a atriz está sempre à frente do texto.
Alexandre Avancini em breve retornará às produções bíblicas com a macrossérie (???) “Jezabel”, porém esperemos que ele se reinvente e agrade tanto quanto em “José do Egito” e na 1º temporada de “Os Dez Mandamentos”. Mas não se pode deixar de mencionar a última aparição de Josué e Aruna, uma longa sequência sem cortes; ponto generoso para os atores, para o autor e, principalmente, para Avancini. E espero muito que ele tenha dirigido essa cena tão importante para não estar direcionando o elogio ao diretor errado. Quanto ao Renato Modesto, deixo aqui o que ele mesmo disse acerca de sua trama. “A mensagem principal, no sentido mais simbólico, que eu procuro passar com a novela, é uma mensagem de otimismo. Eu sempre digo que a história de Josué e dos hebreus é a história de todos nós. Todos nós, na vida, temos que ultrapassar rio Jordão, temos que derrubar muralhas de Jericó. Todos nós enfrentamos grandes desafios, de grandes dificuldades. E, para superar os desafios da vida, precisamos ter muita perseverança, muita coragem, muita fé. Para mim, a grande mensagem da novela é essa. Uma mensagem de perseverança”.
Shalom.
Os Dez Mandamentos - Nova Temporada
3.8 11Alguns dizem que a RecordTV foi ousada na decisão de contar a saga de Moisés e a libertação do povo hebreu do cativeiro egípcio. Mas essa é a história que todos conhecem, que está no imaginário popular: o bebê abandonado que volta para os braços da mãe, o príncipe do Egito, a sarça ardente, as pragas, o Mar Vermelho... E pronto. A 1a temporada da novela é excelente (veja bem, estamos falando de uma novela vírgula diária vírgula nacional), a audiência foi um sucesso e a repercussão não poderia ser melhor. Mas os filmes e séries que também narram esta história praticamente nada falam sobre o que vem depois do épico clímax entre as paredes de água, afinal, a jornada por um deserto com poucos eventos grandiosos e sem vilões tão grandes como o faraó (no lugar, reinos um tanto genéricos) não tem o mesmo apelo. Essa trama seria pouco atrativa em um longa-metragem e, acredito eu, fria e sem sal em uma série americana. Já a novela resolveu embrenhar-se por esse caminho. Não é uma decisão ainda mais arriscada?
Então coube a Vívian de Oliveira e sua equipe de 5 colaboradores adaptar o texto bíblico e não é preciso dizer que muito se criou a fim de preencher os mais de 60 capítulos. Depois de um primeiro capítulo arrebatador, a trama em volta do núcleo moabita se intensifica e todas as movimentações ficam confusas demais. Moabe é o último obstáculo no deserto, então é abordada antes para que o confronto, lá na frente, ganhe peso. O núcleo hebreu, por sua vez, se desenvolve bem. E com a proximidade do conflito civil de Corá, Datã e Abirão e seus 250 seguidores contra Moisés a trama fica mais interessante.
A passagem de tempo de quase 40 anos é sentida nos diálogos e situações, mas não na aparência dos personagens. Com poucas exceções, maquiagem e perucas de velhinhos são motivo de vergonha alheia. Depois dessa passagem temporal restam apenas 9 capítulos para as batalhas, encerramento de tramas e principais eventos bíblicos, como as águas da rocha e o triângulo Balaque, Balaão e jumenta(!). E sim, depois da enrolação nas primeiras dezenas de capítulos essa dezena final fica um tanto corrida.
Tratando-se de uma temporada desenvolvida às pressas (inicialmente a jornada pelo deserto ocuparia os 20 primeiros capítulos de "A Terra Prometida") os efeitos visuais estão ótimos. A terra se abrindo é o ápice e a decisão de usar efeitos práticos é muito acertada. No quesito atuação Guilherme Winter está ainda mais à vontade, e nas cenas de discurso mostra uma faceta de liderança de Moisés que foi pouco explorada na temporada passada. Falar de Giselle Itié, Petrônio Gontijo, Denise Del Vecchio, Larissa Maciel, Renato Livera, Rayana Carvalho, Paulo Figueiredo e Vitor Hugo é desnecessário; suas performances continuam incríveis. Há outros excelentes no elenco, mas estes se destacam. As ótimas surpresas são Leonardo Vieira como o feiticeiro Balaão, Paulo Vilela na pele do amável Natan, Dudu Azevedo como o dissimulado príncipe Zur e Daniel Alvim interpretando o rei Balaque, embora este só surpreenda mesmo na última fase. Enquanto Marcela Barrozo quase se torna protagonista como Betânia, Paulo Reis não tem muito o que fazer no papel de Eldade, só ser o amigão de todo mundo.
O abuso de câmeras lentas é muito irritante, e espero que isso seja bem menos utilizado em "A Terra Prometida". Aliás, o último capítulo é bastante gratificante pra quem acompanhou toda a saga. Enquanto Moisés passa o bastão para Josué, vivido pelo esforçado Sidney Sampaio, a novela naturalmente deixa o gancho para "A Terra Prometida", mas fechando a história de Moisés de forma correta e emocionante.
Os Dez Mandamentos
3.9 55Melhor novela que já vi. Apesar de toda repercussão em cima dos efeitos especiais, eles só funcionam porque o roteiro da equipe de Vivian de Oliveira, ao longo de dezenas de capítulos, consegue criar no público uma empatia enorme pelos personagens. Não fosse isso, seriam apenas espetáculos visuais vazios.
Agora o jeito é esperar a Netflix disponibilizar a segunda temporada.