"Assim, concluindo, vamos dar um exemplo artístico que encena essa passagem de Freud a Jung: o romance de ficção científica "Solaris" [1962", de Stanislav Lem, e sua adaptação para o cinema, feita por Andrei Tarkóvski em 1972. Tanto o livro quanto o filme narram a mesma história: a do psicólogo de uma agência espacial, Kelvin, que é enviado a uma nave espacial semi-abandonada que sobrevoa um planeta recém-descoberto, Solaris, onde fatos estranhos vêm acontecendo recentemente (cientistas enlouquecem, têm alucinações e se matam). Solaris é um planeta cuja superfície é oceânica, fluida e se move incessantemente. De tempos em tempos, ela assume formas reconhecíveis, não apenas complexas estruturas geométricas, mas também corpos infantis gigantes ou edifícios humanos. Embora todas as tentativas de comunicação com o planeta fracassem, Kelvin acaba por compreender que Solaris é um cérebro gigantesco que, de alguma maneira, lê nossos pensamentos e materializa nossas fantasias mais profundas. É aqui que devemos rejeitar a leitura junguiana de "Solaris": o xis da questão de Solaris não é apenas projeção-materialização dos ímpetos internos não reconhecidos do sujeito (homem) -muito mais crucial do que isso é que, para que essa "projeção" possa acontecer, é preciso que a Outra Coisa impenetrável (o planeta Solaris) já exista. Assim, o verdadeiro enigma é a presença dessa Coisa. O problema com Tarkóvski é que fica claro que ele próprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do herói é apenas a externalização e/ou projeção da jornada iniciática interna rumo às profundezas de sua psique. Formando um contraste claro com isso, o livro de Lem focaliza a presença inerte e externa do planeta Solaris, dessa "Coisa que pensa" (usando a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro é justamente que Solaris permanece um Outro impenetrável, sem nenhuma comunicação possível conosco. É verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questão subjacente a esse ato permanece totalmente impenetrável: por que ele o faz? Como resposta puramente mecânica? Para brincar conosco de maneira demoníaca? Para nos ajudar -ou forçar- a confrontar nossa verdade negada?"
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Solaris
4.2 369 Assista Agora"Assim, concluindo, vamos dar um exemplo artístico que encena essa passagem de Freud a Jung: o romance de ficção científica "Solaris" [1962", de Stanislav Lem, e sua adaptação para o cinema, feita por Andrei Tarkóvski em 1972. Tanto o livro quanto o filme narram a mesma história: a do psicólogo de uma agência espacial, Kelvin, que é enviado a uma nave espacial semi-abandonada que sobrevoa um planeta recém-descoberto, Solaris, onde fatos estranhos vêm acontecendo recentemente (cientistas enlouquecem, têm alucinações e se matam). Solaris é um planeta cuja superfície é oceânica, fluida e se move incessantemente. De tempos em tempos, ela assume formas reconhecíveis, não apenas complexas estruturas geométricas, mas também corpos infantis gigantes ou edifícios humanos. Embora todas as tentativas de comunicação com o planeta fracassem, Kelvin acaba por compreender que Solaris é um cérebro gigantesco que, de alguma maneira, lê nossos pensamentos e materializa nossas fantasias mais profundas. É aqui que devemos rejeitar a leitura junguiana de "Solaris": o xis da questão de Solaris não é apenas projeção-materialização dos ímpetos internos não reconhecidos do sujeito (homem) -muito mais crucial do que isso é que, para que essa "projeção" possa acontecer, é preciso que a Outra Coisa impenetrável (o planeta Solaris) já exista. Assim, o verdadeiro enigma é a presença dessa Coisa. O problema com Tarkóvski é que fica claro que ele próprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do herói é apenas a externalização e/ou projeção da jornada iniciática interna rumo às profundezas de sua psique. Formando um contraste claro com isso, o livro de Lem focaliza a presença inerte e externa do planeta Solaris, dessa "Coisa que pensa" (usando a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro é justamente que Solaris permanece um Outro impenetrável, sem nenhuma comunicação possível conosco. É verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questão subjacente a esse ato permanece totalmente impenetrável: por que ele o faz? Como resposta puramente mecânica? Para brincar conosco de maneira demoníaca? Para nos ajudar -ou forçar- a confrontar nossa verdade negada?"