O que nos aproxima e o que nos afasta? Faço essa pergunta referindo-me ao que toca à nossa humanidade. O que nos torna um ser-humano? Essa é a questão que me faço.
Pensando conjuntamente a Sartre, poderia dizer que um ser humano é o ser cuja existência não precede a essência. Mas o que isso significa? Que somos os únicos seres cuja capacidade reflexiva nos impede de coincidirmos completamente com nós próprios. Daí a famosa liberdade sartreana de termos sempre esse intervalo que nos permite alguma escolha.
A linguagem se anuncia enquanto questão para mim precisamente nesse ponto. Afinal, refletimos ao pensarmos e pensamos através da linguagem. Mas a complexidade dessa trama vai muito além disso, uma vez que a linguagem não é só uma via de acesso à reflexão, ela própria é, na realidade, construtora da reflexão, dos objetos e, por que não radicalizarmos ao dizer que, construtora do mundo tal como o conhecemos? A partir dela, se reflete o que se reflete. A partir dela, são criados os objetos os quais nos referimos por meio dela. Assim, com essa breve divagação, retomo a questão: o que nos torna um ser-humano?
O documentário brasileiro “Ilha das Flores”, dirigido e roteirizado por Jorge Furtado e lançado em 1989, durante o processo de redemocratização do Brasil, nos responde afirmando que seres-humanos são seres 1. dotados de telencéfalo altamente desenvolvido, 2. de polegares opositores e, 3. de liberdade.
O curta-metragem me parece produzido tendo como base um pressuposto: não existem obviedades. Como se apresentasse um recorte da vida humana na Terra a um visitante de um planeta desconhecido, o documentário se inicia apresentando um ser-humano e reitera, inúmeras vezes, que seres-humanos são os seres que se distinguem de outros como os porcos ou as galinhas por conta da presença de um telencéfalo altamente desenvolvido e de um polegar opositor. Nesse movimento, nós espectadores somos convocados a nos posicionarmos deste mesmo modo, como estrangeiros, e assim somos empurrados a desnaturalização de nossa existência tal como ela acontece.
Apesar de integrarmos, enquanto seres-humanos, uma espécie em comum, às condições materiais e os sentidos que criamos através da linguagem nos relegam incontáveis distinções.
Desse modo, os seres humanos, além de serem os seres que contam com a presença de um telencéfalo altamente desenvolvido e de um polegar opositor, também são seres mergulhados em uma cultura e que produzem, a partir dela e através dela, sentidos. Inventam assim isto que chamamos de “lixo”, de “comida”, de “dinheiro”.
O dinheiro, que como nos conta o curta-metragem, foi provavelmente inventado no século VII antes de Cristo, é hoje um dos elementos centrais para pensarmos a produção da impossibilidade de acesso àquilo que deveria ser direito compartilhado por todos aqueles que possuem telencéfalo altamente desenvolvido e polegares opositores.
No final da década de 40, após os horrores da Segunda Guerra, foi elaborada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a “Declaração de direitos humanos”. Dotada de 30 artigos, o primeiro afirma “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Repito: livres, iguais em dignidade e iguais em direitos.
A distância entre os discursos e a materialidade se anuncia mais uma vez aqui.
Assistindo ao curta, também não pude deixar de pensar no “É isto um homem?” do Primo Levi.
“Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome, sem mais força para lembrar, vazios os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos”.
A reflexão que me fica a partir desse filme e dos remetimentos ocorridos a partir dele é que os genocídios permanecem ocorrendo, a fome segue sendo uma realidade material cada vez mais concreta e presente, a liberdade Material, apesar de ser apresentada como o que distingue os seres humanos dos outros animais e como um direito, parece cada vez mais abstrata e ilusória.
Enfim, apenas divagações soltas que me ocorreram a partir dessa obra. Termino triste por pensar na produção da desigualdade por parte desse governo que aumenta os índices da insegurança alimentar no Brasil, triste por pensar na atualidade desse filme de 1989...
Ilha das Flores
4.5 1,0KO que nos aproxima e o que nos afasta? Faço essa pergunta referindo-me ao que toca à nossa humanidade. O que nos torna um ser-humano? Essa é a questão que me faço.
Pensando conjuntamente a Sartre, poderia dizer que um ser humano é o ser cuja existência não precede a essência. Mas o que isso significa? Que somos os únicos seres cuja capacidade reflexiva nos impede de coincidirmos completamente com nós próprios. Daí a famosa liberdade sartreana de termos sempre esse intervalo que nos permite alguma escolha.
A linguagem se anuncia enquanto questão para mim precisamente nesse ponto. Afinal, refletimos ao pensarmos e pensamos através da linguagem. Mas a complexidade dessa trama vai muito além disso, uma vez que a linguagem não é só uma via de acesso à reflexão, ela própria é, na realidade, construtora da reflexão, dos objetos e, por que não radicalizarmos ao dizer que, construtora do mundo tal como o conhecemos? A partir dela, se reflete o que se reflete. A partir dela, são criados os objetos os quais nos referimos por meio dela. Assim, com essa breve divagação, retomo a questão: o que nos torna um ser-humano?
O documentário brasileiro “Ilha das Flores”, dirigido e roteirizado por Jorge Furtado e lançado em 1989, durante o processo de redemocratização do Brasil, nos responde afirmando que seres-humanos são seres 1. dotados de telencéfalo altamente desenvolvido, 2. de polegares opositores e, 3. de liberdade.
O curta-metragem me parece produzido tendo como base um pressuposto: não existem obviedades. Como se apresentasse um recorte da vida humana na Terra a um visitante de um planeta desconhecido, o documentário se inicia apresentando um ser-humano e reitera, inúmeras vezes, que seres-humanos são os seres que se distinguem de outros como os porcos ou as galinhas por conta da presença de um telencéfalo altamente desenvolvido e de um polegar opositor. Nesse movimento, nós espectadores somos convocados a nos posicionarmos deste mesmo modo, como estrangeiros, e assim somos empurrados a desnaturalização de nossa existência tal como ela acontece.
Apesar de integrarmos, enquanto seres-humanos, uma espécie em comum, às condições materiais e os sentidos que criamos através da linguagem nos relegam incontáveis distinções.
Desse modo, os seres humanos, além de serem os seres que contam com a presença de um telencéfalo altamente desenvolvido e de um polegar opositor, também são seres mergulhados em uma cultura e que produzem, a partir dela e através dela, sentidos. Inventam assim isto que chamamos de “lixo”, de “comida”, de “dinheiro”.
O dinheiro, que como nos conta o curta-metragem, foi provavelmente inventado no século VII antes de Cristo, é hoje um dos elementos centrais para pensarmos a produção da impossibilidade de acesso àquilo que deveria ser direito compartilhado por todos aqueles que possuem telencéfalo altamente desenvolvido e polegares opositores.
No final da década de 40, após os horrores da Segunda Guerra, foi elaborada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a “Declaração de direitos humanos”. Dotada de 30 artigos, o primeiro afirma “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Repito: livres, iguais em dignidade e iguais em direitos.
A distância entre os discursos e a materialidade se anuncia mais uma vez aqui.
Assistindo ao curta, também não pude deixar de pensar no “É isto um homem?” do Primo Levi.
“Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos,
frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos”.
A reflexão que me fica a partir desse filme e dos remetimentos ocorridos a partir dele é que os genocídios permanecem ocorrendo, a fome segue sendo uma realidade material cada vez mais concreta e presente, a liberdade Material, apesar de ser apresentada como o que distingue os seres humanos dos outros animais e como um direito, parece cada vez mais abstrata e ilusória.
Enfim, apenas divagações soltas que me ocorreram a partir dessa obra. Termino triste por pensar na produção da desigualdade por parte desse governo que aumenta os índices da insegurança alimentar no Brasil, triste por pensar na atualidade desse filme de 1989...
Influenza
3.5 3Impressionante! Muito bom.
29/10/21