Esse filme só poderia ser "filmado" assim. Sua perfeição só existe porque cada escolha formal reforça tudo que ele busca representar. Cada frase enunciada durante sua curta duração não teria sentido se as imagens do filme tivessem movimento, afinal esse movimento não poderia existir agora (enquanto acompanhamos um homem que só existe em função do passado, cuja existência presente se baseia em suas memórias). O movimento pertence ao passado, à época em que o protagonista viveu os felizes momentos de sua infância. Agora sobrou o resto: entre as lacunas da memória ficam os detalhes específicos, apresentados como fotos, que marcaram ao ponto de assombrar o resto da sua vida. No cenário pós-apocalíptico que o filme traz, a memória e a capacidade de lembrar aparecem como um fantasma, especificamente quando se trata da lembrança de um passado melhor. Quando o protagonista ganha a chance de viver o passado mais uma vez (mentalmente, porque seu corpo permanece no mesmo lugar) graças a uma espécie de máquina do tempo, ele se apega a tudo que encontra nessa viagem, sobretudo a uma certa mulher, do mesmo modo que James Stewart se apaixona por um fantasma em Vertigo. Conhecemos o rosto daquela mulher como o resquício que ele se tornou na memória do protagonista. Dessa mulher sobrou só uma foto, mas a máquina do tempo permite que ela progressivamente se torne mais que isso. Quando o sonho de permanecer nesse passado parece possível, é a primeira e única vez no filme em que as imagens se movimentam. Nesse ponto não tem mais volta: a existência do protagonista no presente, sua existência real, não faz sentido - e a questão é que, pra quem viveu escorado em suas lembranças, ela nunca fez: ele próprio se torna o fantasma que já era desde o início.
As imagens, as situações, os lugares, são mais visualizados mentalmente por conta da beleza do texto do que pelas imagens que o filme realmente mostra. Estas só propõem um sentimento similar a querer conhecer um lugar lindo mas só ter acesso pelo google maps: sem nenhum envolvimento emocional para além da simples curiosidade. É impossível ser a mesma experiência da visita de fato, e o filme também não chega perto da experiência de conhecer um lugar à distância pela imaginação (como a leitura do texto narrado possibilitaria), independente de quantos zooms aconteçam pra dar mais consistência às imagens mostradas. Em todo caso, na pandemia, isso até sai em benefício do filme porque realça os contrastes existentes: entre antigas gerações e as novas, entre o sentimento de uma viagem real que nesse contexto é muito difícil e a falta de sentimento em uma viagem pela tela do computador.
À frase introdutória de que, para alguns, os problemas sociais são ignorados como um elefante na sala, segue-se uma série de assassinatos. O filme durante toda duração não faz mais que mostrar, portanto, aquilo que é ignorado, sem impor de forma alguma qualquer juízo de valor. Na falta de causas e consequências, diálogos ou trilha sonora, os acontecimentos são reduzidos ao seu único aspecto necessário e objetivo: as mortes. O diretor, através da edição, anula qualquer vestígio de subjetividade da sua parte: assim como os cortes não são suficientemente frequentes a ponto de despertar um sentimento similar ao provocado em filmes de ação (os quais, geralmente, também não refletem sobre as inúmeras mortes que mostram, mas utilizam uma edição frenética pra torná-las agradáveis de se ver), por outro lado, também, os planos-sequência não são tão longos e detalhados a ponto de chamarem atenção para si por uma espécie de virtuosismo técnico. A frieza da fotografia mantém a mesma indiferença diante dos problemas que o diretor aponta como existentes na sociedade, apenas acompanhando o percurso dos assassinos e depois por um considerável tempo mostrando a vítima, sem qualquer estilização, quase sem cores ou qualquer coisa que poderia despertar, visualmente, o mínimo de prazer na experiência. Mesmo um possível suspense, que até existe nos primeiros momentos por conta da dúvida em relação ao que pode vir a seguir (e em relação a que caráter o filme tem), desaparece logo que os assassinatos começam a se repetir inúmeras vezes sem alguma clara mudança.
Assim, a intenção de chamar atenção pra algo que é ignorado atinge seu limite já nos primeiros minutos, mas é alongada durante mais meia hora sem que nada diferente seja feito, e nenhuma nova impressão ou reflexão seja possibilitada.
A Pista
4.4 185Esse filme só poderia ser "filmado" assim. Sua perfeição só existe porque cada escolha formal reforça tudo que ele busca representar. Cada frase enunciada durante sua curta duração não teria sentido se as imagens do filme tivessem movimento, afinal esse movimento não poderia existir agora (enquanto acompanhamos um homem que só existe em função do passado, cuja existência presente se baseia em suas memórias). O movimento pertence ao passado, à época em que o protagonista viveu os felizes momentos de sua infância. Agora sobrou o resto: entre as lacunas da memória ficam os detalhes específicos, apresentados como fotos, que marcaram ao ponto de assombrar o resto da sua vida.
No cenário pós-apocalíptico que o filme traz, a memória e a capacidade de lembrar aparecem como um fantasma, especificamente quando se trata da lembrança de um passado melhor. Quando o protagonista ganha a chance de viver o passado mais uma vez (mentalmente, porque seu corpo permanece no mesmo lugar) graças a uma espécie de máquina do tempo, ele se apega a tudo que encontra nessa viagem, sobretudo a uma certa mulher, do mesmo modo que James Stewart se apaixona por um fantasma em Vertigo.
Conhecemos o rosto daquela mulher como o resquício que ele se tornou na memória do protagonista. Dessa mulher sobrou só uma foto, mas a máquina do tempo permite que ela progressivamente se torne mais que isso. Quando o sonho de permanecer nesse passado parece possível, é a primeira e única vez no filme em que as imagens se movimentam. Nesse ponto não tem mais volta: a existência do protagonista no presente, sua existência real, não faz sentido - e a questão é que, pra quem viveu escorado em suas lembranças, ela nunca fez: ele próprio se torna o fantasma que já era desde o início.
A casa é a viagem
5.0 1As imagens, as situações, os lugares, são mais visualizados mentalmente por conta da beleza do texto do que pelas imagens que o filme realmente mostra. Estas só propõem um sentimento similar a querer conhecer um lugar lindo mas só ter acesso pelo google maps: sem nenhum envolvimento emocional para além da simples curiosidade.
É impossível ser a mesma experiência da visita de fato, e o filme também não chega perto da experiência de conhecer um lugar à distância pela imaginação (como a leitura do texto narrado possibilitaria), independente de quantos zooms aconteçam pra dar mais consistência às imagens mostradas.
Em todo caso, na pandemia, isso até sai em benefício do filme porque realça os contrastes existentes: entre antigas gerações e as novas, entre o sentimento de uma viagem real que nesse contexto é muito difícil e a falta de sentimento em uma viagem pela tela do computador.
Elephant
3.6 22À frase introdutória de que, para alguns, os problemas sociais são ignorados como um elefante na sala, segue-se uma série de assassinatos. O filme durante toda duração não faz mais que mostrar, portanto, aquilo que é ignorado, sem impor de forma alguma qualquer juízo de valor. Na falta de causas e consequências, diálogos ou trilha sonora, os acontecimentos são reduzidos ao seu único aspecto necessário e objetivo: as mortes. O diretor, através da edição, anula qualquer vestígio de subjetividade da sua parte: assim como os cortes não são suficientemente frequentes a ponto de despertar um sentimento similar ao provocado em filmes de ação (os quais, geralmente, também não refletem sobre as inúmeras mortes que mostram, mas utilizam uma edição frenética pra torná-las agradáveis de se ver), por outro lado, também, os planos-sequência não são tão longos e detalhados a ponto de chamarem atenção para si por uma espécie de virtuosismo técnico.
A frieza da fotografia mantém a mesma indiferença diante dos problemas que o diretor aponta como existentes na sociedade, apenas acompanhando o percurso dos assassinos e depois por um considerável tempo mostrando a vítima, sem qualquer estilização, quase sem cores ou qualquer coisa que poderia despertar, visualmente, o mínimo de prazer na experiência.
Mesmo um possível suspense, que até existe nos primeiros momentos por conta da dúvida em relação ao que pode vir a seguir (e em relação a que caráter o filme tem), desaparece logo que os assassinatos começam a se repetir inúmeras vezes sem alguma clara mudança.
Assim, a intenção de chamar atenção pra algo que é ignorado atinge seu limite já nos primeiros minutos, mas é alongada durante mais meia hora sem que nada diferente seja feito, e nenhuma nova impressão ou reflexão seja possibilitada.
Vinil Verde
3.7 172 Assista AgoraLendas Urbanas do SBT
Antoine e Colette
4.1 103 Assista AgoraA lição que fica é: se for fazer um filme autobiográfico, observe antes se sua vida é interessante o suficiente