"No gueto você carrega a verdade no coração. Enquanto a realidade se esconde lá fora." Um lugar ao sol. A dificuldade de se reerguer socialmente. Retrato que evoca o senso naturalista como forma de desconstrução: o jovem que sai da prisão e tenta se estabelecer novamente no mundo que não teve êxito. Como agir "certo" de agora em diante? John Boyega (diferente no tom da atuação do que fez em "Star Wars: O Despertar da Força") mostra o homem carregado de dores e traumas, tentando se estabilizar no mundo que não parece o acolher integralmente. O homem com filho, que tenta se desvencilhar do crime e das agruras deste universo que ainda o agride. A direção é eficaz, ainda que o filme tenha um formato mais televisivo e um tanto "quadrado". Ainda assim, é interessante como traço de reflexão social que faz.
Ainda que de caráter religioso e sem manter dentro de seu roteiro qualquer chance de diálogo terreno ou filosófico, poderia ser uma produção interessante já que exibe a trajetória da líder religiosa dissidente do protestantismo, Jacobina Mentz. O filme tenta recontar sua trajetória e vivências, de mulher comum para alguém considerada "enviada por Deus", praticamente uma "Joana D'Arc" brasileira. Infelizmente, temos um filme extremamente vagabundo - desde a péssima direção de Fábio Barreto que coloca todos em formato folhetinesco, em um tom "over" e cenas constrangedoras de tão mal delineadas. Letícia Spiller exibe a própria caricatura, fora do tom, sem saber o ponto exato de sua atuação, mais parecendo uma mulher insana e impulsionada pela loucura. A precária direção de arte, a trilha sonora que soa amadora e fora do senso dramático, somada à uma falta de montagem evidente: colocam essa obra num cruel caminho. Muito ruim. Lamentável, já que a história poderia proporcionar algo mais sensível e intrigante, já que é uma situação real e contundente, caso fosse bem trabalhada.
"Passei a vida a me penitenciar por coisas que nunca deveria ter feito". Irônico como temos a forte persona da Joan Crawford que só surge em cena após meia hora de narrativa e promove a força na submersão do público com a obra de romance passional. Eis a mulher astuta e inteligente que atrai os olhares do jovem violinista (um John Garfield excelente em cena!). O que temos são situações que exploram os abalos emocionais da relação de ambos; a tal atração que pode se estabelecer entre os dois; a dominância e passividade. A direção de Jean Negulesco se preocupa bastante com o talento musical e inspiração artística da figura masculina do violinista, tendo que o grande protagonista do filme parece ser o violino. São inúmeras sequências em que o personagem toca para os demais personagens, fascinando não só a apaixonada madame alcoólatra da Crawford, mas a nós também. Compreendemos a dificuldade de sintonia entre o casal que não consegue se entender, visto que a "música" parece, além da admiração mútua, um forte empecilho para que ambos se acertem. Ela cobra do músico uma presença que parece impossível, já que ele opta por amar mais sua música que o embalo do amor da mulher devota. Tanto que vemos nos olhares de angústia e desespero de Crawford a dificuldade em lidar com o aprendizado do amor. Amargo e bonito.
Traz a questão dolorosa da violência doméstica enfrentada pela personagem da Naura Schneider. Interessante como o filme mostra a inicial relação amorosa da mulher com o homem que se converte no seu pior algoz - um Domingos Montagner centrado na atuação, através da figura errônea e machista de um ser humano em crescente progresso da agressividade. Pena que o filme invista no "foco narrativo" através da personalidade deste indivíduo, deixando o papel feminino para o segundo plano. Só visualizamos as cenas e indagações da mulher oprimida pelo marido, através da ótica dos anseios e insinuações deste homem que pune e tolhe qualquer liberdade da esposa. A direção de Marcos Schechtman - mesmo rendendo-se ao tom folhetinesco, por vezes - afirma o contexto em que se baseou a situação que levou à adoção da "Lei Maria da Penha", numa condução correta de cenas das situações do casal versus o julgamento do marido agressor. Enquanto narrativa, é quadrada. Mas, tem seu fundamento por ser bem interpretado e ter um cenário reflexivo para os abusos tão constantes que ainda são vivenciados por tantas mulheres na intimidade do lar.
Como lidar com a realidade dolorosa ao redor? J. A. Bayona promove a experiência lúdica através das percepções do protagonista. O menino deslocado, vítima de bullying, que sofre com a mãe vitimada de câncer (Felicity Jones, contida e melancólica), a falta da presença constante da figura paterna e tendo que aprender a ser educado pela avó que parece autoritária (Sigourney Weaver). Aí reside a superfície do filme, já que, na realidade, o roteiro investe na "fantasia" como forma de demonstrar o coração atormentado e a dificuldade do garoto de lidar com os problemas que vivencia. Sua raiva, ódio e conflitos tem a representação alegórica de uma árvore com quem ele dialoga (voz de Liam Neeson). Nada mais que a metáfora da "fuga da realidade" para acalentar a alma do menino que precisa lidar com o luto iminente, diante da perda física materna, da instabilidade emotiva, da carência juvenil. Bayona traça o efeito subjetivo no espectador, tal qual Guillermo Del Toro o fez em "O Labirinto do Fauno", onde a Ofélia recriava seu universo particular sensorial para escapar das agruras de sua real vivência. E aqui temos o Conor, na defesa interpretativa de Lewis MacDougall, com seus olhos tristes e melancolia visíveis, onde destranca seus próprios monstros internos para fugir da dor de viver.
Como suportar a dor sozinho? O silêncio que reina e faz morada entre a casa melancólica de um casal. Sob o "elefante branco" conjugal que é representado por um estupro como elemento destrutivo, a direção precisa de Marco Dutra age no microcosmo. Tanto Dieckmann e Sbaraglia representam um casal destroçado pelo tempo, esfriamento e ausência de diálogos. A tal cumplicidade parece ser tão oculta quanto os segredos a dois. Se nela habita a quieta-inquietude, que não quer falar sobre o estupro que sofreu - nele coexistem conflitos maiores, já que, além de testemunha do ato brutal sofrido pela esposa, não consegue assumir sua passividade e se atormenta por nada ter feito. O que choca não é só o estupro propriamente, mas o silêncio que fragiliza e destroça esses dois indivíduos. A tal incomunicabilidade cruel e traiçoeira que condiciona o casamento no estado da solidão. Temos um roteiro que pouco a pouco destranca os anseios e perspectivas de ambos os lados em sua narrativa, elevando o filme à atmosfera de claustrofóbico. É como se nós fossemos também cúmplices daquela situação limite que se estabelece entre eles. Se vemos em Dieckmann o olhar perdido de uma mulher no auge do desamparo diante de um trauma, é através de Sbaraglia que sensos como medo, paranoia e desesperança humana são trazidos à tona numa forte atuação. "Da mesma maneira que aprendi a conviver com o medo constante, também aprendi a disfarçá-lo. Por muito tempo, achei que havia dominado a tal ponto a dissimulação do medo que nenhum traço dele restava para os outros no meu rosto, nos meus gestos e na minha voz".
Estudo sobre a maldade humana ou psicopatia em função do meio que é influenciado. Sob a fotografia monocromática, com sombras e contrastes fortes, temos a estreia de Nicolas Pesce no diálogo sobre a maldade humana. Dividido em três capítulos, as perspectivas sombrias da vida de Francisca, que cresce sob uma situação mórbida que vivência dentro de casa com sua mãe e seu pai - e verbaliza por toda sua trajetória humana. Pouco se deve dizer, mas o fato é que o filme tem um apuro técnico assombroso e, além de sua transparência minimalista de construção dramática, é também um horror psicológico muito bem trabalhado - ainda que sutil, pois externa a violência sem mostrar de forma propriamente explícita. Loucura, desequilíbrio e solidão são trabalhados através da figura da protagonista em enquadramentos perfeitos. O rebusco fotográfico e o cuidado cênico é belíssimo, funcional para uma trama que utiliza-se de silêncios e até poucos diálogos para mostrar suas intenções. Enquanto thriller, deve-se dizer que é um trabalho cruel e de proporção que causa desconforto, por ser indigesto. Belo debut de um cineasta que, por sinal, foi destaque no Festival de Sundance. Altamente perturbador.
Drama de proporções intimistas, mas que falha. Emily VanCamp é uma auxiliar numa editora de livros que tem o tino para a escrita e sonha em ter uma sucedida carreira como escritora. Sua trajetória tem uma virada quando é convidada a participar da produção do lançamento de um livro de um antigo cliente de seu pai. É quando a narrativa assume a provocativa: vemos fragmentos de seu passado com as ações na atualidade, na intenção de desconstruir a personagem e seus dilemas. O ponto de partida é até intrigante, ainda mais que a história assume contornos maliciosos em cima da protagonista. O que será que houve no passado dessa mulher? Entretanto, a frágil e sem personalidade direção de Marya Cohn não segura bem as cenas e a apática atuação de VanCamp torna tudo pouco envolvente. O que fica mais visível é a situação do "passado" da personagem, nas sequências onde vemos a jovem com então 15 anos envolvida com o tal escritor (Michael Nyqvist, maior destaque do filme) que a seduz e a torna a própria personagem de seu livro - refletindo na vida da garota, traumas profundos e cicatrizantes por tantos anos e um comportamento propenso ao sexo e angústias internas. Um tema muito interessante, mas feito sem esmero e ousadia, tornando o resultado ultra morno. Faltou sal diante de um filme que poderia debater tantos temas envoltos na sombra da sexualidade da protagonista.
Documentário simples e eficaz que mostra a trajetória de uma garota que , após sofrer um derrame cerebral, passa a vivenciar a realidade de forma peculiar. Interessante a linguagem que é a narrativa, tendo seus diálogos e condução através da própria jovem que precisa readaptar-se ao mundo com suas limitações e novas sensações. Não é à toa que temos uma montagem que nos aproxima de suas perspectivas, induzindo cores e formas e efeitos para que tenhamos uma noção de sua subjetividade e intimidade. A mente recria mundos e visões, ao passo que conduz esse ser humano em um ambiente até então novo e estranho. "O silêncio em minha mente não existe. Me sinto mais próxima da minha consciência. Uma proximidade maior do meu eu que é a minha essência. Preciso estar à vontade com a sutil entre quem eu era antes e quem sou agora."
Não só desconstrói a zona por trás do ambiente jornalístico, o circo midiático em função da necessidade do ibope; não só expõe o lado cruel sobre o meio de produção de notícias e mecanismo de sedução televisiva que armam-se do sensacionalismo evidente para atrair a massa; mas, temos um estudo de personagem em cima da persona complexa da jornalista Christine Chubbuck que se suicidou "ao vivo" em 1974. A construção narrativa firma as suas perspectivas, anseios, desconfortos psicológicos e problemas emocionais que vão desde a certa dificuldade de socialização - ironicamente para alguém que lida com meios de comunicação -, à angústia interna e inquietação comportamental, sendo que o filme promove reflexões em cima de suas vivências, tanto dentro do ambiente profissional na articulação de seu trabalho como jornalista, como recorre à atmosfera familiar. Tanto que haviam lacunas na sua relação com sua mãe - que por sinal a chamava pelo nome, como espécie de elo incorreto e indevido. Sob uma direção bastante cuidada, Antônio Campos tenta investigar as circunstâncias e obscuridade na alma atormentada desta mulher. Depressiva ou com tendências à distúrbios emotivos, a narrativa consegue recriar a figura desta estranha e complexa pessoa. Por isso mesmo, é louvável a caracterização em cena de Rebecca Hall - desde a sua postura física, tons de voz e gestos que exprimem a personalidade conflituosa consigo mesma; ao olhar nervoso e, por vezes, dotado de um psicótico desespero. Uma composição muito sólida e que devia ser reconhecida nas premiações destes últimos meses. Enquanto o filme assume a degradação da Christine, percebemos o quanto triste é esta realidade, já que pode ocorrer com qualquer um próximo de nós. Doloroso filme.
A odisseia do desejo. Ou o embalo da liberdade das escolhas. Ou a mulher que move-se pelos anseios do corpo. A representação do sexo, sem amarras, em uma sociedade machista e preconceituosa com a liberdade que acaba por ser vista como libertinagem. Não é à toa que temos a protagonista, uma engenheira especialista em cargueiros, que trabalha constantemente em um navio do qual é habitado por homens. Temos a linguagem naturalista de uma direção que entende o que quer debater. Lucie Borleteau coloca a figura da mulher diante dos homens que quer se envolver, na libido desenfreada e na forma consciente de mostrar que qualquer mulher tem direito ao seu prazer individual, sem que seja condicionada à posição de "vagabunda" por gostar de muito sexo. Tal pensamento ridículo e machista, tão presente em nosso social, aqui é também exposto. Alice cria seu próprio conflito ao se envolver com outros homens, inclusive um ex-antigo-amor, sendo que oficialmente tem um namorado à espera na terra (o ótimo Anders Danielsen Lie, o marcante protagonista de "Oslo, 31 de Agosto"). Um filme que mostra como o amor não está atrelado ao desejo e como as relações atuais não se resumem, somente, aos contextos monogâmicos. Bela atuação de Ariane Labed que imprime todo o erotismo e o tom humano de sua personagem, tão próxima de nós com seus dilemas e verdades do desejo.
O encontro de duas almas que precisam de afago e acolhimento de um mundo que parece não compreender as individualidades e belezas artísticas de cada um. Através destes dois humanos é que a ilusão faz sua odisseia romântica. Sim, além de quaisquer referências aos clássicos e aos tempos áureos de uma Hollywood de Ouro, temos um filme que exibe a mais pura história de amar-pra-ser-amado nesta atualidade tão carente. Um ode ao amor que é expresso através de diálogos e indagações musicadas, sob um jazz que nos envolve e nos delicia. E se a direção plástica e também precisa de Damien Chazelle nos possibilidade momentos de catarses emotivas, deve-se a um formato de personalidade e exímia química em cena entre dois passionais em cada frame: se temos a imponência e o charme de um Ryan Gosling transparente e desnudo em cena, é Emma Stone que responde com toda sua fúria feminina e carisma interpretativo. São sonhadores nítidos sob uma câmera que perscruta e concebe takes sem cortes, acentuando as faces e olhares e gestos, no tom mais real possível dessa pulsação da paixão ficcional. Um misto técnico e de essência sentimentalista, por vezes enérgico e em outros momentos melancólico, temos um filme que aborda como é preciso percorrer os sonhos com todos os impulsos necessários para não sermos riscados de uma sociedade que parece nos renegar ao fracasso. Um conto lúdico de amor e aprendizado a dois e como é bom ver que somos mais sólidos quando temos uma mão para nós guiar.
O filme que não conseguiu ser. A premissa é até atrativa: a reunião de quatro irmãos que, diante da mãe em estado terminal, decidem se despedir - debatendo a herança e, inclusive, a questão da eutanásia. Os primeiros 25 minutos assumem um tom ultra intimista, com direção discreta, num cenário melancólico, feito um drama de filmes independentes. Tudo se converte quando o tom do roteiro se altera em um suspense capenga, onde temos a tensão que ocorre assim que homens mascarados decidem invadir a casa. Copiando contextos já batidos em trocentos filmes - inclusive, relembrando "Os Estranhos" ou "Violência Gratuita" de Michael Haneke -, a direção cria momentos constrangedores sem sentido algum. E o pior, a "justificativa" de tudo soa desconexa e sem ser sólida. Lamentável.
Paul Verhoeven toca na ferida ao desnudar a persona complexa e significativa da Mulher da atualidade, personificada por uma Isabelle Huppert em pleno domínio cênico. Sua Michèle sofre abuso sexual, violentada pela insegurança social, sendo ela mesma vitimizada pelo colapso emocional que sofre. É quando novas tônicas são articuladas e a obvialidade de suas intenções mais secretas são reveladas, num jogo ardiloso em que máscaras e anseios sexuais são apresentados. Verhoeven prova que seu discurso cinematográfico não é de fácil avaliação, já que o ser humano preserva em si o oculto da índole, o fetiche imoderado e a persona tão ambígua de uma mulher que, ironicamente, se transfigura numa fêmea ainda mais feminina e permissiva aos desejos. Insinua as questões dos papeis de "vítima vs agressor", mas também inverte tais sensos. Huppert exibe a sua leoa em pele de cordeiro, a mulher que enfrenta seus demônios e que vivencia os próprios limites do corpo e alma. Há uma aproximação de sua Michèle com a frieza, o caráter manipulador e até a libido desenfreada de sua personagem em "A Professora de Piano" de Michael Haneke: dois panoramas sobre a erotização oriunda de situações consideradas perversas/pervertidas. É mais que um filme sobre o estupro, é o diálogo sobre o jogo de vítima e dominadora erótica. "Elle" percorre a natureza feminina, de forma elegante, mas cruel.
Retrato contundente sobre a juventude sem perspectivas e submersa na desordem comportamental. Andrea Arnold promove seu olhar naturalista, onde a câmera parece perscrutar cada segundo, numa tela quadrada, como se filmada num smartphone qualquer, exibindo a tal desconstrução social do seio juvenil de uma América desolada. Remove-se a cortina do "sonho americano". Sob uma fotografia sempre ensolarada, como se o dia nunca fosse entregue à noite, encontramos a protagonista - defendida com verdade por Sasha Lane -, que livra-se da vida desregrada e sem laços familiares, para embarcar junto à uma comunidade de inquietos jovens intolerantes com mesmas vivências que a dela, em busca de dinheiro fácil e acolhimento ilusório social. Reflexos de uma sociedade juvenil, cada vez mais, repletos de nômades que abdicam de suas histórias e casas físicas para um mundo que nem sempre é acolhedor. Eis a peregrinação da humanidade. Fora de seus antigos lares, temos a exibição de uma juventude que se reestrutura pelas ruas e por transeuntes, sem limites nas zonas das estradas. Sexo, drogas, criminalidades? Arnold reforça o contraste entre os protagonistas sem perspectivas e as ricas comunidades do interior americano. Um filme que desvirtua a nova geração e também mostra que, talvez, sempre existiu tal contexto. Só que temos um olhar mais forte quanto a esse universo persistente
"Existem meios para a fuga, mas será que existem lugares para onde se possa fugir?". Sob o véu fotográfico monocromático, temos os diálogos das amizades e de pessoas em busca de afagos existenciais. Uns que se cruzam, outros que se ajustam, num emaranhado de encontros e diálogos entre jovens. Baseado no romance "Reino das Medas", de Reinaldo Santos Neves, o terreno narrativo aqui explora o senso "gente como a gente", sob um tom quase documental de tão tangível. São pessoas boêmias num retrato urbano consciente. Há tons indagadores que levam pra gente a reflexão de mundo ao redor. "Por que as coisas não poderiam ser mais leves?”, diz um dos personagens em dado momento. Taí, é difícil respirar mesmo em um mundo nem sempre acolhedor.
Portman recria o período conturbado do Estado de Israel com a eclosão das divergências entre Judeus e Árabes. É neste cenário melancólico e desolador que intimista narrativa percorre a vida tediosa e sem muitas perspectivas da protagonista, que não consegue dialogar afetivamente com o marido e mantém uma afetiva relação de cumplicidade com seu filho (o escritor Amos Oz, narrador). É interessante como Portman tem segurança na direção, ainda que seu roteiro por vezes pareça circular muito no mesmo ambiente, sem ousar mais além. Entretanto, é visível o quanto a atriz soube adaptar o livro homônimo de Oz, explorando a sua infância e relação com a mãe, uma mulher abalada pelo domínio britânico na Palestina em 1945. Há cenas bem subjetivas e que exploram os anseios e delírios da protagonista, dando voz ao sufocante cotidiano desta mulher que parece não se adequar à vida que tem.
Sob o terreno inseguro do caos da guerra entre Iraque e Irã, mãe e filha confrontam sua liberdade reduzida, diante do temor da morte, em um apartamento fechado, onde a narrativa fecunda seu cenário de tensão em pleno Teerã em 1988. Diante de inúmeros bombardeios e ameaças do terrorismo ao redor, confrontamos com as duas um outro mistério que ronda o ambiente familiar. Uma ameaça sobrenatural que é capaz de potencializar ainda mais o pânico. Ou será que existem mistérios por aí? Temos um horror psicológico e que efetua a subjetividade ao mostrar os efeitos da Guerra, a representação da Mulher tolhida pela sociedade, onde o medo e a falta de opções impedem-na de caminhar. Babak Anvari evidencia o mito dos Jinns, que são seres típicos da mitologia árabe pré-islâmica, acentuando-os como forte traço cultural do Oriente Médio. Assim, conhecemos mais sobre esse senso da cultura de guerra, ao passo que se estabelece um roteiro que estuda o microcosmo familiar. Ou seja, coexistem duas propostas de interpretação dentro do roteiro, que mesmo modesto e simples, consegue firmar efeitos de reflexões, dando conta do recado.
Entre duas possibilidades amorosas. Ou a trajetória das dúvidas sentimentais. Ou a mulher que cansa de ser a outra e decide ser dona de seu destino emocional. Joan Crawford, excelente em cena, representa a mulher dividida entre o ardor do amor ao machista e casado advogado Dana Andrews e a gentileza do cavalheiro Henry Fonda, um veterano de guerra protetor e disposto a ampará-la. E então, dar vazão à emoção ou investir numa relação mais sólida e segura? Através de um roteiro que evita as maiores prestações melodramáticas, através de diálogos detalhados entre os personagens sobre amor, fragilidades, afetos e também o descaso sentimental. A direção de Otto Preminger prioriza o triângulo, dando espaço para os conflitos e as personalidades de cada um deles. Sem nunca condicionar a trama com brigas e discussões calorosas, mas, diálogos que constroem suas perspectivas. Há certas sutilezas e questões que ficam subtendidas, como termos a constante presença da "chuva" durante as cenas. Uma analogia à insegurança e tempestade emocional que perpassa dentro do coração da protagonista. Um filme sóbrio que fala sobre sermos ou não substituídos, como a humanidade tanto vivencia: hoje e sempre.
O mistério que é preservado num silencioso internato de garotas. É quando a deslocada, introspectiva e reservada protagonista percebe que pé trás dos lençóis brancos e da aparente calmaria do ambiente, existem sombras que pairam nos olhares ao redor e falas mudas que correspondem aos segredos. Por que, pouco a pouco, começam a desaparecer cada uma das garotas? A direção correta adorna essa ambientação de 1930 e formata a situação de vivência das internas e suas relações com algo soturno que é demonstrado. Sutil e sem sortear sustos fáceis, temos até uma certa elegância narrativa neste filme coreano.
Toma lá, dá cá. A vingança que se come friamente. Dormindo com o inimigo. Joan Crawford é intensa na atuação, a atriz de teatro que reina nos palcos e escolhe quem quer. Quando ela esnoba o candidato ao seu par numa peça, um Jack Palance em busca de sucesso, o destino reserva as surpresas traiçoeiras. A direção astuta de David Miller não tem pressa em detalhar essa aproximação posterior dos dois. É quando sabemos que o tal homem, em segredo, quer se vingar por te sido preterido e parte para seduzir a dama do teatro que logo se atira ao desejo e sentimento. A criação do suspense é lenta e aos poucos vemos como temos um estudo da falta de caráter humana e dissimulação, já que a atuação fria e cínica de Palance contribui para vermos o quanto ardiloso e manipulador ele age para destruir a frágil Crawford. Ainda que o roteiro tome atitudes um tanto "envelhecidas", é coeso. Bem fotografado em jogos de sombras e luzes, a narrativa se torna mais dinâmica do meio pro final através de mudanças no tom das perspectivas. E não deixa de ser intrigante.
Revisto. E é sempre uma catarse. Al Pacino, total elétrico e inspirado em cena, personifica a sociedade tão vitimada pelo estresse do sistema, da falta de maiores oportunidades e compreensão humana. A desconstrução do aparente "bandido" é bem delineada em 120 minutos de projeção. O circo midiático que ferve e se fecha em torno do banco, do qual o herói de 15 minutos da TV, faz reféns, externa em nós não só a indignação, mas a identificação com algo tão parte de nosso cotidiano. E se a direção de Sidney Lumet articula a perfeita sincronia do cinema com a realidade, o grande roteiro - vencedor do Oscar - nos concebe reflexões sobre política, homossexualidade e também o quanto podre é o sistema do jornalismo da televisão. Um texto atual e ainda pertinente. Um dialogo cinematográfico de grande beleza e que jamais perde a força. "Attica! Attica! Attica!". Imperecível obra de arte!
Indícios da maldade. Ou a psicopatia no cotidiano. Em tempos em que desconhecemos as intenções por trás das máscaras de cada um, encontramos um filme que usa de métodos já trabalhados em vários outros. Mas, encontra diálogo dentro de seu tom modesto e humano. A babá misteriosa que tem uma noite para cuidar de três crianças que foram deixadas pelos pais em comemoração do casamento, demonstra a personalidade fria e obscura em pequenos diálogos e modulações de olhares e insinuações. A direção induz na personalidade dessa mulher sombria, sem colocar sustos fáceis, nem mesmo a violência é tão explícita, felizmente o horror é subjetivo - como na cena em que ela coloca as crianças em frente a um aquário onde uma cobra tenta matar um ratinho indefeso, sob seu gélido olhar astuto e de prazer. Há um "dito pelo não dito" que deixa o filme mais intrigante do que é. Nada memorável ou diferente do que já foi muito debatido por aí, mas, ao menos, não ofende à inteligência e encontra bom tom real do "gente como a gente".
"Um fóssil nada mais é que uma vida que não teve saída. E não deu para partir. Até hoje me pergunto se fui embora na hora certa. Será que não fui tarde demais? Eu saí de Peixe de Pedra, mas esse Peixe nunca me abandonou. Fui embora e nunca mais voltei. Mas, também não parei em mais lugar nenhum. Talvez por medo de fossilizar em outro canto. Ou por não pertencer mais à arqueologia de nenhum lugar que não fosse lá onde minha consciência permanece congelada no tempo". Esse momento do filme resume tudo.
Sonhos Imperiais
3.5 63"No gueto você carrega a verdade no coração. Enquanto a realidade se esconde lá fora." Um lugar ao sol. A dificuldade de se reerguer socialmente. Retrato que evoca o senso naturalista como forma de desconstrução: o jovem que sai da prisão e tenta se estabelecer novamente no mundo que não teve êxito. Como agir "certo" de agora em diante? John Boyega (diferente no tom da atuação do que fez em "Star Wars: O Despertar da Força") mostra o homem carregado de dores e traumas, tentando se estabilizar no mundo que não parece o acolher integralmente. O homem com filho, que tenta se desvencilhar do crime e das agruras deste universo que ainda o agride. A direção é eficaz, ainda que o filme tenha um formato mais televisivo e um tanto "quadrado". Ainda assim, é interessante como traço de reflexão social que faz.
A Paixão de Jacobina
1.9 31Ainda que de caráter religioso e sem manter dentro de seu roteiro qualquer chance de diálogo terreno ou filosófico, poderia ser uma produção interessante já que exibe a trajetória da líder religiosa dissidente do protestantismo, Jacobina Mentz. O filme tenta recontar sua trajetória e vivências, de mulher comum para alguém considerada "enviada por Deus", praticamente uma "Joana D'Arc" brasileira. Infelizmente, temos um filme extremamente vagabundo - desde a péssima direção de Fábio Barreto que coloca todos em formato folhetinesco, em um tom "over" e cenas constrangedoras de tão mal delineadas. Letícia Spiller exibe a própria caricatura, fora do tom, sem saber o ponto exato de sua atuação, mais parecendo uma mulher insana e impulsionada pela loucura. A precária direção de arte, a trilha sonora que soa amadora e fora do senso dramático, somada à uma falta de montagem evidente: colocam essa obra num cruel caminho. Muito ruim. Lamentável, já que a história poderia proporcionar algo mais sensível e intrigante, já que é uma situação real e contundente, caso fosse bem trabalhada.
Acordes do Coração
3.9 18"Passei a vida a me penitenciar por coisas que nunca deveria ter feito". Irônico como temos a forte persona da Joan Crawford que só surge em cena após meia hora de narrativa e promove a força na submersão do público com a obra de romance passional. Eis a mulher astuta e inteligente que atrai os olhares do jovem violinista (um John Garfield excelente em cena!). O que temos são situações que exploram os abalos emocionais da relação de ambos; a tal atração que pode se estabelecer entre os dois; a dominância e passividade. A direção de Jean Negulesco se preocupa bastante com o talento musical e inspiração artística da figura masculina do violinista, tendo que o grande protagonista do filme parece ser o violino. São inúmeras sequências em que o personagem toca para os demais personagens, fascinando não só a apaixonada madame alcoólatra da Crawford, mas a nós também. Compreendemos a dificuldade de sintonia entre o casal que não consegue se entender, visto que a "música" parece, além da admiração mútua, um forte empecilho para que ambos se acertem. Ela cobra do músico uma presença que parece impossível, já que ele opta por amar mais sua música que o embalo do amor da mulher devota. Tanto que vemos nos olhares de angústia e desespero de Crawford a dificuldade em lidar com o aprendizado do amor. Amargo e bonito.
Vidas Partidas
3.3 34 Assista AgoraTraz a questão dolorosa da violência doméstica enfrentada pela personagem da Naura Schneider. Interessante como o filme mostra a inicial relação amorosa da mulher com o homem que se converte no seu pior algoz - um Domingos Montagner centrado na atuação, através da figura errônea e machista de um ser humano em crescente progresso da agressividade. Pena que o filme invista no "foco narrativo" através da personalidade deste indivíduo, deixando o papel feminino para o segundo plano. Só visualizamos as cenas e indagações da mulher oprimida pelo marido, através da ótica dos anseios e insinuações deste homem que pune e tolhe qualquer liberdade da esposa. A direção de Marcos Schechtman - mesmo rendendo-se ao tom folhetinesco, por vezes - afirma o contexto em que se baseou a situação que levou à adoção da "Lei Maria da Penha", numa condução correta de cenas das situações do casal versus o julgamento do marido agressor. Enquanto narrativa, é quadrada. Mas, tem seu fundamento por ser bem interpretado e ter um cenário reflexivo para os abusos tão constantes que ainda são vivenciados por tantas mulheres na intimidade do lar.
Sete Minutos Depois da Meia-Noite
4.1 992 Assista AgoraComo lidar com a realidade dolorosa ao redor? J. A. Bayona promove a experiência lúdica através das percepções do protagonista. O menino deslocado, vítima de bullying, que sofre com a mãe vitimada de câncer (Felicity Jones, contida e melancólica), a falta da presença constante da figura paterna e tendo que aprender a ser educado pela avó que parece autoritária (Sigourney Weaver). Aí reside a superfície do filme, já que, na realidade, o roteiro investe na "fantasia" como forma de demonstrar o coração atormentado e a dificuldade do garoto de lidar com os problemas que vivencia. Sua raiva, ódio e conflitos tem a representação alegórica de uma árvore com quem ele dialoga (voz de Liam Neeson). Nada mais que a metáfora da "fuga da realidade" para acalentar a alma do menino que precisa lidar com o luto iminente, diante da perda física materna, da instabilidade emotiva, da carência juvenil. Bayona traça o efeito subjetivo no espectador, tal qual Guillermo Del Toro o fez em "O Labirinto do Fauno", onde a Ofélia recriava seu universo particular sensorial para escapar das agruras de sua real vivência. E aqui temos o Conor, na defesa interpretativa de Lewis MacDougall, com seus olhos tristes e melancolia visíveis, onde destranca seus próprios monstros internos para fugir da dor de viver.
O Silêncio do Céu
3.5 226 Assista AgoraComo suportar a dor sozinho? O silêncio que reina e faz morada entre a casa melancólica de um casal. Sob o "elefante branco" conjugal que é representado por um estupro como elemento destrutivo, a direção precisa de Marco Dutra age no microcosmo. Tanto Dieckmann e Sbaraglia representam um casal destroçado pelo tempo, esfriamento e ausência de diálogos. A tal cumplicidade parece ser tão oculta quanto os segredos a dois. Se nela habita a quieta-inquietude, que não quer falar sobre o estupro que sofreu - nele coexistem conflitos maiores, já que, além de testemunha do ato brutal sofrido pela esposa, não consegue assumir sua passividade e se atormenta por nada ter feito. O que choca não é só o estupro propriamente, mas o silêncio que fragiliza e destroça esses dois indivíduos. A tal incomunicabilidade cruel e traiçoeira que condiciona o casamento no estado da solidão. Temos um roteiro que pouco a pouco destranca os anseios e perspectivas de ambos os lados em sua narrativa, elevando o filme à atmosfera de claustrofóbico. É como se nós fossemos também cúmplices daquela situação limite que se estabelece entre eles. Se vemos em Dieckmann o olhar perdido de uma mulher no auge do desamparo diante de um trauma, é através de Sbaraglia que sensos como medo, paranoia e desesperança humana são trazidos à tona numa forte atuação. "Da mesma maneira que aprendi a conviver com o medo constante, também aprendi a disfarçá-lo. Por muito tempo, achei que havia dominado a tal ponto a dissimulação do medo que nenhum traço dele restava para os outros no meu rosto, nos meus gestos e na minha voz".
Os Olhos de Minha Mãe
3.6 180 Assista AgoraEstudo sobre a maldade humana ou psicopatia em função do meio que é influenciado. Sob a fotografia monocromática, com sombras e contrastes fortes, temos a estreia de Nicolas Pesce no diálogo sobre a maldade humana. Dividido em três capítulos, as perspectivas sombrias da vida de Francisca, que cresce sob uma situação mórbida que vivência dentro de casa com sua mãe e seu pai - e verbaliza por toda sua trajetória humana. Pouco se deve dizer, mas o fato é que o filme tem um apuro técnico assombroso e, além de sua transparência minimalista de construção dramática, é também um horror psicológico muito bem trabalhado - ainda que sutil, pois externa a violência sem mostrar de forma propriamente explícita. Loucura, desequilíbrio e solidão são trabalhados através da figura da protagonista em enquadramentos perfeitos. O rebusco fotográfico e o cuidado cênico é belíssimo, funcional para uma trama que utiliza-se de silêncios e até poucos diálogos para mostrar suas intenções. Enquanto thriller, deve-se dizer que é um trabalho cruel e de proporção que causa desconforto, por ser indigesto. Belo debut de um cineasta que, por sinal, foi destaque no Festival de Sundance. Altamente perturbador.
A Garota do Livro
3.1 147 Assista AgoraDrama de proporções intimistas, mas que falha. Emily VanCamp é uma auxiliar numa editora de livros que tem o tino para a escrita e sonha em ter uma sucedida carreira como escritora. Sua trajetória tem uma virada quando é convidada a participar da produção do lançamento de um livro de um antigo cliente de seu pai. É quando a narrativa assume a provocativa: vemos fragmentos de seu passado com as ações na atualidade, na intenção de desconstruir a personagem e seus dilemas. O ponto de partida é até intrigante, ainda mais que a história assume contornos maliciosos em cima da protagonista. O que será que houve no passado dessa mulher? Entretanto, a frágil e sem personalidade direção de Marya Cohn não segura bem as cenas e a apática atuação de VanCamp torna tudo pouco envolvente. O que fica mais visível é a situação do "passado" da personagem, nas sequências onde vemos a jovem com então 15 anos envolvida com o tal escritor (Michael Nyqvist, maior destaque do filme) que a seduz e a torna a própria personagem de seu livro - refletindo na vida da garota, traumas profundos e cicatrizantes por tantos anos e um comportamento propenso ao sexo e angústias internas. Um tema muito interessante, mas feito sem esmero e ousadia, tornando o resultado ultra morno. Faltou sal diante de um filme que poderia debater tantos temas envoltos na sombra da sexualidade da protagonista.
My Beautiful Broken Brain
3.9 40 Assista AgoraDocumentário simples e eficaz que mostra a trajetória de uma garota que , após sofrer um derrame cerebral, passa a vivenciar a realidade de forma peculiar. Interessante a linguagem que é a narrativa, tendo seus diálogos e condução através da própria jovem que precisa readaptar-se ao mundo com suas limitações e novas sensações. Não é à toa que temos uma montagem que nos aproxima de suas perspectivas, induzindo cores e formas e efeitos para que tenhamos uma noção de sua subjetividade e intimidade. A mente recria mundos e visões, ao passo que conduz esse ser humano em um ambiente até então novo e estranho. "O silêncio em minha mente não existe. Me sinto mais próxima da minha consciência. Uma proximidade maior do meu eu que é a minha essência. Preciso estar à vontade com a sutil entre quem eu era antes e quem sou agora."
Christine
3.7 212 Assista AgoraNão só desconstrói a zona por trás do ambiente jornalístico, o circo midiático em função da necessidade do ibope; não só expõe o lado cruel sobre o meio de produção de notícias e mecanismo de sedução televisiva que armam-se do sensacionalismo evidente para atrair a massa; mas, temos um estudo de personagem em cima da persona complexa da jornalista Christine Chubbuck que se suicidou "ao vivo" em 1974. A construção narrativa firma as suas perspectivas, anseios, desconfortos psicológicos e problemas emocionais que vão desde a certa dificuldade de socialização - ironicamente para alguém que lida com meios de comunicação -, à angústia interna e inquietação comportamental, sendo que o filme promove reflexões em cima de suas vivências, tanto dentro do ambiente profissional na articulação de seu trabalho como jornalista, como recorre à atmosfera familiar. Tanto que haviam lacunas na sua relação com sua mãe - que por sinal a chamava pelo nome, como espécie de elo incorreto e indevido. Sob uma direção bastante cuidada, Antônio Campos tenta investigar as circunstâncias e obscuridade na alma atormentada desta mulher. Depressiva ou com tendências à distúrbios emotivos, a narrativa consegue recriar a figura desta estranha e complexa pessoa. Por isso mesmo, é louvável a caracterização em cena de Rebecca Hall - desde a sua postura física, tons de voz e gestos que exprimem a personalidade conflituosa consigo mesma; ao olhar nervoso e, por vezes, dotado de um psicótico desespero. Uma composição muito sólida e que devia ser reconhecida nas premiações destes últimos meses. Enquanto o filme assume a degradação da Christine, percebemos o quanto triste é esta realidade, já que pode ocorrer com qualquer um próximo de nós. Doloroso filme.
Fidelio - A Odisséia de Alice
3.3 10 Assista AgoraA odisseia do desejo. Ou o embalo da liberdade das escolhas. Ou a mulher que move-se pelos anseios do corpo. A representação do sexo, sem amarras, em uma sociedade machista e preconceituosa com a liberdade que acaba por ser vista como libertinagem. Não é à toa que temos a protagonista, uma engenheira especialista em cargueiros, que trabalha constantemente em um navio do qual é habitado por homens. Temos a linguagem naturalista de uma direção que entende o que quer debater. Lucie Borleteau coloca a figura da mulher diante dos homens que quer se envolver, na libido desenfreada e na forma consciente de mostrar que qualquer mulher tem direito ao seu prazer individual, sem que seja condicionada à posição de "vagabunda" por gostar de muito sexo. Tal pensamento ridículo e machista, tão presente em nosso social, aqui é também exposto. Alice cria seu próprio conflito ao se envolver com outros homens, inclusive um ex-antigo-amor, sendo que oficialmente tem um namorado à espera na terra (o ótimo Anders Danielsen Lie, o marcante protagonista de "Oslo, 31 de Agosto"). Um filme que mostra como o amor não está atrelado ao desejo e como as relações atuais não se resumem, somente, aos contextos monogâmicos. Bela atuação de Ariane Labed que imprime todo o erotismo e o tom humano de sua personagem, tão próxima de nós com seus dilemas e verdades do desejo.
La La Land: Cantando Estações
4.1 3,6K Assista AgoraO encontro de duas almas que precisam de afago e acolhimento de um mundo que parece não compreender as individualidades e belezas artísticas de cada um. Através destes dois humanos é que a ilusão faz sua odisseia romântica. Sim, além de quaisquer referências aos clássicos e aos tempos áureos de uma Hollywood de Ouro, temos um filme que exibe a mais pura história de amar-pra-ser-amado nesta atualidade tão carente. Um ode ao amor que é expresso através de diálogos e indagações musicadas, sob um jazz que nos envolve e nos delicia. E se a direção plástica e também precisa de Damien Chazelle nos possibilidade momentos de catarses emotivas, deve-se a um formato de personalidade e exímia química em cena entre dois passionais em cada frame: se temos a imponência e o charme de um Ryan Gosling transparente e desnudo em cena, é Emma Stone que responde com toda sua fúria feminina e carisma interpretativo. São sonhadores nítidos sob uma câmera que perscruta e concebe takes sem cortes, acentuando as faces e olhares e gestos, no tom mais real possível dessa pulsação da paixão ficcional. Um misto técnico e de essência sentimentalista, por vezes enérgico e em outros momentos melancólico, temos um filme que aborda como é preciso percorrer os sonhos com todos os impulsos necessários para não sermos riscados de uma sociedade que parece nos renegar ao fracasso. Um conto lúdico de amor e aprendizado a dois e como é bom ver que somos mais sólidos quando temos uma mão para nós guiar.
Mercy
2.0 118 Assista AgoraO filme que não conseguiu ser. A premissa é até atrativa: a reunião de quatro irmãos que, diante da mãe em estado terminal, decidem se despedir - debatendo a herança e, inclusive, a questão da eutanásia. Os primeiros 25 minutos assumem um tom ultra intimista, com direção discreta, num cenário melancólico, feito um drama de filmes independentes. Tudo se converte quando o tom do roteiro se altera em um suspense capenga, onde temos a tensão que ocorre assim que homens mascarados decidem invadir a casa. Copiando contextos já batidos em trocentos filmes - inclusive, relembrando "Os Estranhos" ou "Violência Gratuita" de Michael Haneke -, a direção cria momentos constrangedores sem sentido algum. E o pior, a "justificativa" de tudo soa desconexa e sem ser sólida. Lamentável.
Elle
3.8 886Paul Verhoeven toca na ferida ao desnudar a persona complexa e significativa da Mulher da atualidade, personificada por uma Isabelle Huppert em pleno domínio cênico. Sua Michèle sofre abuso sexual, violentada pela insegurança social, sendo ela mesma vitimizada pelo colapso emocional que sofre. É quando novas tônicas são articuladas e a obvialidade de suas intenções mais secretas são reveladas, num jogo ardiloso em que máscaras e anseios sexuais são apresentados. Verhoeven prova que seu discurso cinematográfico não é de fácil avaliação, já que o ser humano preserva em si o oculto da índole, o fetiche imoderado e a persona tão ambígua de uma mulher que, ironicamente, se transfigura numa fêmea ainda mais feminina e permissiva aos desejos. Insinua as questões dos papeis de "vítima vs agressor", mas também inverte tais sensos. Huppert exibe a sua leoa em pele de cordeiro, a mulher que enfrenta seus demônios e que vivencia os próprios limites do corpo e alma. Há uma aproximação de sua Michèle com a frieza, o caráter manipulador e até a libido desenfreada de sua personagem em "A Professora de Piano" de Michael Haneke: dois panoramas sobre a erotização oriunda de situações consideradas perversas/pervertidas. É mais que um filme sobre o estupro, é o diálogo sobre o jogo de vítima e dominadora erótica. "Elle" percorre a natureza feminina, de forma elegante, mas cruel.
Docinho da América
3.5 215 Assista AgoraRetrato contundente sobre a juventude sem perspectivas e submersa na desordem comportamental. Andrea Arnold promove seu olhar naturalista, onde a câmera parece perscrutar cada segundo, numa tela quadrada, como se filmada num smartphone qualquer, exibindo a tal desconstrução social do seio juvenil de uma América desolada. Remove-se a cortina do "sonho americano". Sob uma fotografia sempre ensolarada, como se o dia nunca fosse entregue à noite, encontramos a protagonista - defendida com verdade por Sasha Lane -, que livra-se da vida desregrada e sem laços familiares, para embarcar junto à uma comunidade de inquietos jovens intolerantes com mesmas vivências que a dela, em busca de dinheiro fácil e acolhimento ilusório social. Reflexos de uma sociedade juvenil, cada vez mais, repletos de nômades que abdicam de suas histórias e casas físicas para um mundo que nem sempre é acolhedor. Eis a peregrinação da humanidade. Fora de seus antigos lares, temos a exibição de uma juventude que se reestrutura pelas ruas e por transeuntes, sem limites nas zonas das estradas. Sexo, drogas, criminalidades? Arnold reforça o contraste entre os protagonistas sem perspectivas e as ricas comunidades do interior americano. Um filme que desvirtua a nova geração e também mostra que, talvez, sempre existiu tal contexto. Só que temos um olhar mais forte quanto a esse universo persistente
As Horas Vulgares
2.8 11"Existem meios para a fuga, mas será que existem lugares para onde se possa fugir?". Sob o véu fotográfico monocromático, temos os diálogos das amizades e de pessoas em busca de afagos existenciais. Uns que se cruzam, outros que se ajustam, num emaranhado de encontros e diálogos entre jovens. Baseado no romance "Reino das Medas", de Reinaldo Santos Neves, o terreno narrativo aqui explora o senso "gente como a gente", sob um tom quase documental de tão tangível. São pessoas boêmias num retrato urbano consciente. Há tons indagadores que levam pra gente a reflexão de mundo ao redor. "Por que as coisas não poderiam ser mais leves?”, diz um dos personagens em dado momento. Taí, é difícil respirar mesmo em um mundo nem sempre acolhedor.
De Amor e Trevas
3.6 88 Assista AgoraPortman recria o período conturbado do Estado de Israel com a eclosão das divergências entre Judeus e Árabes. É neste cenário melancólico e desolador que intimista narrativa percorre a vida tediosa e sem muitas perspectivas da protagonista, que não consegue dialogar afetivamente com o marido e mantém uma afetiva relação de cumplicidade com seu filho (o escritor Amos Oz, narrador). É interessante como Portman tem segurança na direção, ainda que seu roteiro por vezes pareça circular muito no mesmo ambiente, sem ousar mais além. Entretanto, é visível o quanto a atriz soube adaptar o livro homônimo de Oz, explorando a sua infância e relação com a mãe, uma mulher abalada pelo domínio britânico na Palestina em 1945. Há cenas bem subjetivas e que exploram os anseios e delírios da protagonista, dando voz ao sufocante cotidiano desta mulher que parece não se adequar à vida que tem.
Sob a Sombra
3.4 338 Assista AgoraSob o terreno inseguro do caos da guerra entre Iraque e Irã, mãe e filha confrontam sua liberdade reduzida, diante do temor da morte, em um apartamento fechado, onde a narrativa fecunda seu cenário de tensão em pleno Teerã em 1988. Diante de inúmeros bombardeios e ameaças do terrorismo ao redor, confrontamos com as duas um outro mistério que ronda o ambiente familiar. Uma ameaça sobrenatural que é capaz de potencializar ainda mais o pânico. Ou será que existem mistérios por aí? Temos um horror psicológico e que efetua a subjetividade ao mostrar os efeitos da Guerra, a representação da Mulher tolhida pela sociedade, onde o medo e a falta de opções impedem-na de caminhar. Babak Anvari evidencia o mito dos Jinns, que são seres típicos da mitologia árabe pré-islâmica, acentuando-os como forte traço cultural do Oriente Médio. Assim, conhecemos mais sobre esse senso da cultura de guerra, ao passo que se estabelece um roteiro que estuda o microcosmo familiar. Ou seja, coexistem duas propostas de interpretação dentro do roteiro, que mesmo modesto e simples, consegue firmar efeitos de reflexões, dando conta do recado.
Êxtase de Amor
3.7 17Entre duas possibilidades amorosas. Ou a trajetória das dúvidas sentimentais. Ou a mulher que cansa de ser a outra e decide ser dona de seu destino emocional. Joan Crawford, excelente em cena, representa a mulher dividida entre o ardor do amor ao machista e casado advogado Dana Andrews e a gentileza do cavalheiro Henry Fonda, um veterano de guerra protetor e disposto a ampará-la. E então, dar vazão à emoção ou investir numa relação mais sólida e segura? Através de um roteiro que evita as maiores prestações melodramáticas, através de diálogos detalhados entre os personagens sobre amor, fragilidades, afetos e também o descaso sentimental. A direção de Otto Preminger prioriza o triângulo, dando espaço para os conflitos e as personalidades de cada um deles. Sem nunca condicionar a trama com brigas e discussões calorosas, mas, diálogos que constroem suas perspectivas. Há certas sutilezas e questões que ficam subtendidas, como termos a constante presença da "chuva" durante as cenas. Uma analogia à insegurança e tempestade emocional que perpassa dentro do coração da protagonista. Um filme sóbrio que fala sobre sermos ou não substituídos, como a humanidade tanto vivencia: hoje e sempre.
The Silenced
3.1 116O mistério que é preservado num silencioso internato de garotas. É quando a deslocada, introspectiva e reservada protagonista percebe que pé trás dos lençóis brancos e da aparente calmaria do ambiente, existem sombras que pairam nos olhares ao redor e falas mudas que correspondem aos segredos. Por que, pouco a pouco, começam a desaparecer cada uma das garotas? A direção correta adorna essa ambientação de 1930 e formata a situação de vivência das internas e suas relações com algo soturno que é demonstrado. Sutil e sem sortear sustos fáceis, temos até uma certa elegância narrativa neste filme coreano.
Precipícios d'Alma
4.2 44Toma lá, dá cá. A vingança que se come friamente. Dormindo com o inimigo. Joan Crawford é intensa na atuação, a atriz de teatro que reina nos palcos e escolhe quem quer. Quando ela esnoba o candidato ao seu par numa peça, um Jack Palance em busca de sucesso, o destino reserva as surpresas traiçoeiras. A direção astuta de David Miller não tem pressa em detalhar essa aproximação posterior dos dois. É quando sabemos que o tal homem, em segredo, quer se vingar por te sido preterido e parte para seduzir a dama do teatro que logo se atira ao desejo e sentimento. A criação do suspense é lenta e aos poucos vemos como temos um estudo da falta de caráter humana e dissimulação, já que a atuação fria e cínica de Palance contribui para vermos o quanto ardiloso e manipulador ele age para destruir a frágil Crawford. Ainda que o roteiro tome atitudes um tanto "envelhecidas", é coeso. Bem fotografado em jogos de sombras e luzes, a narrativa se torna mais dinâmica do meio pro final através de mudanças no tom das perspectivas. E não deixa de ser intrigante.
Um Dia de Cão
4.2 734 Assista AgoraRevisto. E é sempre uma catarse. Al Pacino, total elétrico e inspirado em cena, personifica a sociedade tão vitimada pelo estresse do sistema, da falta de maiores oportunidades e compreensão humana. A desconstrução do aparente "bandido" é bem delineada em 120 minutos de projeção. O circo midiático que ferve e se fecha em torno do banco, do qual o herói de 15 minutos da TV, faz reféns, externa em nós não só a indignação, mas a identificação com algo tão parte de nosso cotidiano. E se a direção de Sidney Lumet articula a perfeita sincronia do cinema com a realidade, o grande roteiro - vencedor do Oscar - nos concebe reflexões sobre política, homossexualidade e também o quanto podre é o sistema do jornalismo da televisão. Um texto atual e ainda pertinente. Um dialogo cinematográfico de grande beleza e que jamais perde a força. "Attica! Attica! Attica!". Imperecível obra de arte!
Emelie
2.4 218Indícios da maldade. Ou a psicopatia no cotidiano. Em tempos em que desconhecemos as intenções por trás das máscaras de cada um, encontramos um filme que usa de métodos já trabalhados em vários outros. Mas, encontra diálogo dentro de seu tom modesto e humano. A babá misteriosa que tem uma noite para cuidar de três crianças que foram deixadas pelos pais em comemoração do casamento, demonstra a personalidade fria e obscura em pequenos diálogos e modulações de olhares e insinuações. A direção induz na personalidade dessa mulher sombria, sem colocar sustos fáceis, nem mesmo a violência é tão explícita, felizmente o horror é subjetivo - como na cena em que ela coloca as crianças em frente a um aquário onde uma cobra tenta matar um ratinho indefeso, sob seu gélido olhar astuto e de prazer. Há um "dito pelo não dito" que deixa o filme mais intrigante do que é. Nada memorável ou diferente do que já foi muito debatido por aí, mas, ao menos, não ofende à inteligência e encontra bom tom real do "gente como a gente".
Big Jato
3.4 76"Um fóssil nada mais é que uma vida que não teve saída. E não deu para partir. Até hoje me pergunto se fui embora na hora certa. Será que não fui tarde demais? Eu saí de Peixe de Pedra, mas esse Peixe nunca me abandonou. Fui embora e nunca mais voltei. Mas, também não parei em mais lugar nenhum. Talvez por medo de fossilizar em outro canto. Ou por não pertencer mais à arqueologia de nenhum lugar que não fosse lá onde minha consciência permanece congelada no tempo". Esse momento do filme resume tudo.