E vamos lá, o novo filme tão esperado de Cacá Diegues... uma coprodução entre o Brasil, França e Portugal, com grandes benefícios de auxílio tanto franceses (CNC) quanto brasileiros (BRDE, FCA, Ancine). A França tem o privilégio de ver o filme em cartaz desde quarta passada e não é de se estranhar : quando se vê os créditos rolarem no final percebe-se a quantidade de franceses trabalhando tanto nos efeitos especiais quanto em outras instâncias da produção.
Apesar de O GRANDE CIRCO MISTICO ter sido concebido como um musical nos anos 80 com as memoráveis composições de E. Lobo e C. Buarque, C. Diegues optou por produzir a sua adaptação cinematográfica com o "realismo mágico" que lhe interessa no cinema e as músicas que pontuam apenas os grandes momentos da saga familiar circense atravessando a história do nosso Brasil. Sempre elogiado pelos franceses, Diegues leva seu filme à terra do Champagne cujo glamour tradicional aparece no filme por meio da participação da talentosa Catherine Mouchet na pele de uma imperatriz. Dessa vez seu filme foi ofuscado no festival de Cannes ainda que tenha sido exibido em sessão especial. Percebe-se que a critica na imprensa francesa esta dividida :
Le Monde comenta que o diretor perdeu de alguma forma a sua veia política (e na situação em que se encontra nosso Brasil, atenção), lançando um olhar interessante para o risco de Diegues ao tratar muitos personagens, inspirado pelos filmes de Fellini, que no seu circo místico nem sempre se mostram profundos e ainda por cima exploram sem limites os corpos femininos. Na tradição do elogio ao cinéma d'auteur, Télérama e outros veículos de crítica de entretenimento descrevem o filme como uma expressão pessoal do cineasta que conta com uma certa frieza voltada para os personagens e as tragédias vividas pelas suas diferentes gerações, assim como uma homenagem à arte barroca que se manifesta na nossa cultura. A gestação dos personagens femininos funciona como um fio condutor entre as gerações, mas isso não impede ao meu ver o risco de reproduzir futilidades em sequências que se desdobram rápido demais para alcançar a própria reflexão... Entretanto, tiraremos o chapéu para o trabalho na imagem, uma verdadeira caixinha de surpresas. Diegues se inscreve no momento presente do nosso cinema em que novos artistas também buscam formas nem sempre naturalistas para se expressar.
Uma pérola homoerótica à la giallo dos anos 1970 trazida dos becos obscuros italianos para uma Paris glamurosa e setentista no auge da produçäo pornográfica gay (pédé* em francês) e do cruising pré-HIV me deixou com a cara no chäo. Interessante ver em entrevistas do diretor como ele entende a importância de trazer para o stilo do giallo a corporalidade homoerótica que foi muitas vezes exploradas no cinema de Dario Argento, por exemplo, como o desvio da norma. Neste filme de Yann Gonzalez que celebra esta estética tipicamente italiana e kitsch, a ideia do diretor era de criar um fluxo de continuidade na relaçäo dos personages transviados com seus corpos de forma que esta experiência da sexualidade seja colocada em cena como uma norma em si mesma e näo mais como um desvio. Se ele obteve sucesso ou näo, esta é a discussäo. Um filme impactante que precisa ser revisto. E este cartaz näo faz jus de forma alguma a todo o imaginário pornográfico que evoca UN COUTEAU DANS LE CŒUR.
Masculinidade frágil.... esse dois ! Seria muito fácil ignorar o potencial do filme por conta da sua enorme misoginia... Mas as patifarias dos dois canastrões protagonistas, a participação à la Marquês de Sade da icônica Isabelle Huppert e o retrato de uma velha França decadende relutando em prol da boa moral mostra que Les Valseuses tem algo a nos dizer....
...E assim, repentinamente, eis-me aqui à flor da pele e em fragmentos desconectados como o universo fílmico da cineasta KELLY REICHARDT, lembrando-me da importância política que é compartilhar na rede um filme feito por uma mulher com o olhar dela da condição feminina e da sociedade em que ela está inserida. Filme absolutamente essencial. Diante dos vossos olhos, esta experiência cinematográfica revela um registro do tempo moderno, recusando o encadeamento rocambolesco de intrigas, assim como a manipulação afetiva e se expressando na continuidade dos sentimentos dessas mulheres, nas sutilezas que o espaço delas pode fornecer. Como observar uma rosa que perde suas pétalas, cada uma delas tem um tempo absolutamente singular de tocar a terra. Algo que não pode ser forjado, menos ainda imitado.
Uma aventura misteriosa pela matéria bruta que alimenta a linguagem lynchiana, o documentário David Lynch The Art Life se configura numa substância instrínseca a duas ordens, o tempo e o espaço do artista. A mémoria de uma infância provida de afeto e gradualmente transformada pelos eventos oníricos das cidades em que morou, lugares de uma beleza traumática e perturbadora. O universo lynchiano se integra ao filme nas pinceladas brutas do mestre e o aspecto perturbador dessas pinturas é aliado a uma imagem fílmica que retoma os principais temas de seus filmes: as sombras e o que elas parecem esconder de nós, o movimento twinpeaksiano das árvores, a peculiaridade das coisas, a sensibilidade erótica no medo, a impressão de sonhar acordado. David Lynch revisita o símbolo do porão que ele descreve ao longo do documentário – um espaço escuro e meio sujo onde ele admira a decomposição de frutas, bichos e afins – lugar ao qual ele parece nos convidar com um sorriso provocador. A metáfora da substância em constante apodrecimento no seio da sociedade americana e da cultura de vitrine do american way of life, o medo...
Transmitido ontem ao vivo simultaneamente em 200 cinemas de toda a França e com uma cobertura jornalística, o biopic em homenagem à DALIDA veio para eternizar ainda mais o quanto ela foi e sempre será divina. Honrado estou de ter feito parte deste momento audiovisual memorável para as chansons françaises e de poder compartilhar algumas impressões a respeito dessa avant-première flamboyante à altura da musa egípcia e de como ela sempre conseguirá enfeitiçar ouvintes das mais variadas faixas etárias.
Dalida cantava em mais de um idioma e conquistou um recorde absoluto de shows no palco do Olympia em Paris, o berço do seu sucesso dos anos 50 até os anos 80. Conquistou o carinho das pessoas que a descreviam como um ser verdadeiramente iluminado. Não era apenas sua beleza enigmática que conseguia atrair para si todos os olhares. Ela era diferente, dizia Orlando, seu irmão. Tinha algo a respeito da sua generosidade e do seu caráter perseverante que não podia se decifrar. A personalidade extravagente e a vida amorosa rocambolesca eram alguns do elementos que recheavam as interpretações dalidescas de uma intensidade maior do que a vida. Ela colocou fim aos seus dias numa noite de sábado em maio de 1987, deixando-nos a nota de que a vida lhe era insurportável e um pedido de perdão.
No tapete vermelho do Olympia, Lisa Azuelos comenta que talvez a principal motivação do filme seja de libertar Dalida deste perdão e de nos lembrar do aspecto atemporal presente nas canções que ela interpretava, de "Bambino" à "Je suis malade", passando por "Il venait d'avoir 18 ans" e o hit dançante "Laissez-moi danser". Canções que os franceses sabem cantar até sem ver a letra, mas que são lembradas também em outros países. Isto é ser um artista lendário? Foram reflexões como estas que evoca Azuelos nesta homenagem à memória de Dalida, uma mulher que passou pelo mundo como um furacão, deixando os traços de um sucesso incomensurável e os destroços de uma vida sentimental solitária, da incompletude que a tormentava... de l'amour... et de l'amour...
problemático: as pessoas com o dedinho da problematização e sensíveis à misoginia vão hesitar entre a primeira parte e a segunda, imagino. não é um filme fácil de assistir. ele constrói representações machistas do amor lésbico. e pior, fetichizadas. no entanto, sabendo que se trata aqui de um diretor sempre muito particular nas suas propostas estéticas, talvez seja preciso colocar de lado durante três horas esta questão para poder apreciar uma montagem de múltiplas perspectivas, a exploração cuidadosa dos espaços e re-significante dos objetos. numa entrevista, o diretor comenta algumas questões que quis abordar: os conflitos entre japão e coréia é um deles.
tem uma declaração fantástica de Park Chan-Wook numa revista francesa - ele diz que fazer um filme tão erótico pra ele representa uma experimentação em sua carreira e uma forma de visitar o clássico erótico japonês império dos sentidos pra poder se vingar dele. se vingar do fato de que o japão fez muito mais filmes eróticos que a coréia: risos. e muito desse filme se funda na disputa política entre estes países. uma criada coreana que quer dar a volta na herdeira japonesa. 아가씨 - agassí: só eu amei essa palavra?
Aka All about NOMI MALONE. Segura esta referência. Showgirls é um filme que será redescoberto agora com a versão restaurada voltando para o cinema no mundo todo. É o camp anos 90 do American Dream que revela uma obscura e irônica perspectiva do show business, antes ignorada pela crítica no lançamento e hoje pronta para ser apreciada em toda sua perversão. Fama, inveja, sexismo, violência física e psicológica. Até Cahiers du Cinéma, talvez a maior ou mais significativa revista de cinema de todos os tempos, separou no número de setembro um espaço para mencionar a volta desta obra infame para as telonas francesas. Tomara que a nova cópia também seja distribuída no Brasil.
Sabotado pelos eventos factuais de terrorismo na França, NOCTURAMA é um filme controverso que retrata a noite de luxo de jovens dentro de uma grande loja de departamento após um atentado em quatro partes. Condenado pela crítica francesa pelo vazio político na concepção fílmica, o filme de Bertrand Bonello parece representar uma juventude em toda vitalidade e engajamento, inconstante e efêmera. Tanto os personagens como a estética pretensiosa remetem a outros filmes do gênero. Não parece haver motivo para os atentados, menos ainda uma ligação entre o luxo e o consumismo que une os jovens terroristas. Apesar de se tornar uma peça virtuosa de entretenimento, Nocturama termina como o céu nocturno que não viu estrela brilhar. É obscuro, porém opaco.
O cinema de Guiraudie, contemplativo e intenso, consegue transitar por diferentes camadas de linguagem com o rigor de um artista paisagista. Ele parece pintar quando filma a natureza. E mesmo se tratando de elementos tão naturais para todos nós, a obra não cessa de nos surpreender, fazendo-nos sentar durante a sessão para apreciar um filme de cujo título se depreende a ideia de permanecer na vertical. Seria a verticalidade rumo à redenção? Algo que me tocou particularmente na sessão foi o sentimento paterno do protagonista. Algo que na iminência da perda causa dor e representa um pouco daquilo que todos nós não queremos perder. A natureza nos filmes de Guiraurdie é um personagem - per se - cuja magnificência estará sempre registrada nos anais do cinema autoral.
De uma audácia infinita, palavras da crítica cinematográfica do jornal francês Le Monde. TONY ERDMANN faz parte de um dos filmes mais comentados do ano. Considerado pela Cahiers du Cinéma como uma obra imperdível dentro do cinema contemporâneo. Todos falam desse filme que arrancou gargalhadas, sejam elas do cômico ou do desconforto, nas sessões dos jornalistas em Cannes. Um filme que se aventura pelo absurdo, criando uma narrativa de estética realista. E mostrando que a fantasia em toda sua eficácia fílmica se torna uma ferramenta acima da lógica. Uma reflexão sobre o lugar do cinema e da imaginação num mundo robotizado. O que dizer do cartaz? Esta cena no filme merece um movimento cinematográfico só para estudá-la. Magnífíco em toda sua concepção.
É o primeiro filme de Houda Benyamina e conseguiu ofuscar diversos filmes no cenário mundial. É muito mais do que um filme sobre a marginalidade e a vida na periferia. Essa emocionante obra, no abismo conflituoso entre a cultura árabe e a francesa, numa periferia parisiense, mostra uma representação feminina dentro da marginalidade e as possibilidades de confronto a uma hierarquia social que a ignora e a invisibiliza. Filme de impacto político e estético. O uso da música religiosa árabe em contra-ponto com o hip hop é magnífico. DIVINES cria uma exercício sublime de mostrar o que se pode fazer numa sociedade orientada para o consumo quando se é alguém completamente excluído por este mesmo sistema que o seduz, mas que lhe permite apenas os postos de inferioridade. Bravo!
O slogan francês "O que teria feito você no lugar dela?" faz você querer ir correndo para o cinema assistir ao filme. Um excelente thriller de Frédérick Mermoud pleno de sutilezas e de força dramatúrgica. O que me fascinou foi o simbólico uso da personagem-chave loira. Elemento hitchcockiano característico de farsas e grandes surpresas no decorrer da história. E a escolha deliciosa do título remete a cor do carro dirigido pelo parceiro da mesma loira, automóvel dos anos 70 em tom de marrom. Concepção engenhosa de personagens revela a profundidade por trás da perda.
Um chefe de obras, como dizem os franceses. O elemento que mais me fascina na sessão é o estado de ser humano em procura de algo. Isso vai muito além de encontrá-lo ou não. Está expresso tal detalhe no título original - The Searchers. O uso da carta no filme é astuto, pois as correspondências levavam dias para chegar e a cronologia fílmica se expressa nessa demora. Na espera de algo que está por acontecer. Domínio total de linguagem de cinema. Se tudo isso já é um prazer da alma, imagina de quebra ver no cinema, podendo admirar as tomadas magníficas em todos seus ângulos e enquadramentos, podendo louvar a trilha de Max Steiner.... redenção no oeste !
De uma delicadeza infinita. Ainda estou sem fôlego de ter assistido a uma pre-estreia com a presença do Ozon comentando o filme no desfecho. O novo filme de Ozon foi inspirado por uma peça de teatro, conta com a emoção de um pós-guerra e o reflexo disso na vida de uma famìlia alemã mutilada pela perda. Remete à Fassbinder e às chaves de suspense hitchcockianas. Tudo isso embalado na astúcia dramatúrgica que já possui uma trajetória no cinema. Digno do adjetivo 'ozoniano'. Imperdível.
"BARBIE BOY" (curta, 13 min, 2013) é a história de Bobby, um garoto de sete anos cujo brinquedo favorito é a boneca Barbie. Depois de um comentário do seu pai, Bobby se permite uma dúvida e começa a flanar nas suas introspecções e angústias. Decide pelo ritual de passagem. O curta dirigido e idealizado por Nick Corporon problematiza os papéis de gênero na infância, coloca pontos de interrogação para o pai e para o filho. Relutei a princípio, mas percebo agora a importância no fato do curta mostrar que até pelo ponto de vista da criança pode haver reflexão. RESPEITO às escolhas dos outros, acima de tudo, com ou sem boneca. :-)
Quatro homens que nunca mais serão os mesmos depois de uma experiência tão desafiadora na natureza, uma odisseia selvagem à luz de um mundo sem regras. "Deliverance" | 1972 | talvez seja um daqueles filmes menos falados dos anos 70 que quando assistidos nos provam como tal época foi forte para um cinema de aventura específico, rico em complexidade humana e de uma vontade de mostrar a violência que não se via nas décadas anteriores. Chegou à minha atenção via indicação de Blanche Devereaux, uma das personagens do seriado "The Golden Girls" que é, curiosamente, grande fã de Burt Reynolds, um dos símbolos sexuais dos anos 70/80 nos EUA. Ainda não tinha me convencido até que fui ler curiosidades sobre o filme e me deparei na wiki.en com a expressão "male rape" e vi que existe esta nomenclatura em inglês para quando um estupro acontece com um homem. Fato que prendeu minha atenção completamente e me fez procurar o filme na mesma hora, queria entender como um filme que tem a cara do Oscar, que me pareceu tão heteronormativo, iria tratar um assunto assim e..... aqui estou eu tricotando elogios para o surto de sensibilidade que ele demonstra em todos aspectos na hora de abordar este obscuro mundo que é o desejo na mente do ser humano, o desejo de viver, de amar, de ter, de se desfazer, de sentir, de tocar, de poder, de crer, de falar, de tudo, de nada e de que mais você quiser. É um filme que vai estar comigo sempre como uma boa lembrança desta época em minha vida, as representações da natureza, da vida, da morte, da força da amizade. Algo que poucos filmes conseguiriam depois com a mesma força. Grande história !
É um dos filmes citados em "The Celluloid Closet" [1996] por se tratar da adaptação de um livro cuja trama original envolvia homofobia. Contudo, a censura do Hays Code na época considerava a cláusula de "perversão sexual" e impediu que tal assunto fosse tratado abertamente. Roteiro mudou o tema para racismo/anti-semitismo. E o que penso ser o mais interessante da sessão me remete - justamente - aquele documentário sobre a trajetória iconográfica de LGBT's no cinema, que citei no começo deste comentário.
Uma sábia comentarista mostra a importância para o espectador de se ver representado no filme, principalmente se for parte de uma minoria. É reconfortante se projetar nas histórias contadas na telona. Apesar do filme partir de um tema completamente diferente, não consigo deixar de apontar o quanto restou de masculinidade posta em questionamento do tema inicial. Pode ser o meu olhar sendo guiado pelo desejo de ver aquilo que foi censurado, mas percebam também como os homens preenchem a tela e as mulheres estão sempre em lugares insignificantes para a história.
E como o personagem de Robert Ryan parece dominar os outros com um apelo extremamente masculino. Lembrar de cenas como quando ele segura o papel do endereço, a cilada de seu personagem. O papel cai, o outro protagonista abaixa para pegar. A câmera mostra Ryan de cima em contra-plongée, a visão que temos é de um deus grego que atiça tanto para o desejo, quanto para a morte. Não conseguimos apenas odiá-lo por ser anti-semita abertamente - e homofóbico no imaginário -, uma atração voltada a ele vai também estar presente, pois o filme se mostra provocante ao representá-lo de maneira tão sedutora.
A discussão sobre um filme como esta pérola de Robert Wise pertencer ou não ao mundo noiresco pode se estender eternamente, pois começaremos pelo fato de que noir é um conceito cunhado por críticos franceses - a posteriori, então dificilmente seria válido pensá-lo como gênero, senão muito mais como um apanhado de filmes que podem ao mesmo tempo compartilhar elementos parecidos e divergir na substância da trama, talvez um subgênero para o thriller, o horror, o (melo)drama criminal, etc.
Muitos acadêmicos partem desta premissa para mostrar como Mildred Pierce (1945) pode ser tão noiresco quanto The Set-Up (1949) e este por sua vez como Out of The Past (1947) e Murder My Sweet (1944), filmes que geralmente são tido como noirs quintessenciais. Isto é, The Set-Up não possui o lugar típico da mulher-aracnídea que seduz o anti-heroi para cair na sua teia, menos ainda um detetive cínico para torcer o braço dos criminosos com astúcia e superioridade, mas não é menos noir por isso e é certamente uma das grandes referências de Raging Bull (1980), o clássico de Scorsese.
Esta preciosidade de apenas 72 min possui a substância que contamina os principais filmes noirescos e o período sombrio que fizeram os franceses cunhar o infame termo da escuridão - o pessimismo da guerra e do pós-guerra, uma atmosfera cínica e fatalista, uma cilada e um personagem subjugado diante de um destino com o qual ele nada pode. Tudo isso explode na tela com um realismo enorme, a partir de recursos simples e respeitando os silêncios que tal construção demanda. O boxeador de Ryan parece representar uma sociedade que sofre constantemente com os golpes que recebe, sem entender como o seu próprio mal se engendrou. Faz parte do universo noiresco a projeção do espectador num protagonista desiludido com a vida, homens fracassados que carregam uma dor existencial - a memória de suas próprias falhas.
Construído com um sopro de chiaroscuro e malabares jazzísticos, The Set-Up possui momentos de alta tensão que envelheceram muito bem. Carrega os charmes técnicos comuns aos filmes da RKO, foi um filme no qual Wise teve a possibilidade de experimentar, vale mencionar a importância tremenda dos filmes B para o universo noiresco, algo crucial, pois aqui os diretores descansavam das exigências constantes que os produtores e os chefões impunham nas produções luxuosas.
Robert Ryan aparece correndo desesperado pelos corredores do ringue de box. Sozinho e apavorado com a violência que o espera. Como se não bastassem os sorrisos maliciosos e o gozo primitivo que a luta desperta nas pessoas, a questão-chave que o filme parece tratar é justamente que aquela violência não se limita ao ringue. É a violência simbólica ou não do cotidiano, é quando a mulher grita para o boxeador matar o outro, ou quando o gordinho morre de comer, saciando-se com os carboidratos e também com a dor do derrotado. É um discurso que parece encarnar em todos os takes do esquema e a personagem de Audrey Totter não passa de um adorno, é o prêmio de consolação que não basta e não responde as questões existenciais do protagonista.
NORA PRENTISS. Adoro quando o nome de uma personagem se torna título de uma história. Geralmente, isto pode ser um plano perigoso, pois ele pode sugerir também que aquela é a persona mais importante da narrativa. O caso do filme de Vincent Sherman (diretor de clássicos dos 'women's pictures' como Joan Crawford em "Harriet Craig" ou Bette Davis em "Mr. Skeffington") brinca com a ironia do título. Ela poderia ser a personagem mais emblemática se não fosse pela rocambolesca trama de identidade do personagem masculino central, interpretado por Kent Smith. É um caso de melodrama noiresco típico! O personagem principal parece viver uma existência insuportável da qual ele não consegue se livrar. A heroína romântica aparenta ser mais perfeita do que é, uma amante e cantora de bares que se recusa a ser amante de um homem casado. Ele mostra para ela que ter pudor não leva ninguém a nada no universo decadente e embriagante que conhecemos, a noite em São Francisco. Cidade famosa por ter sido o palco de paixões fulminantes e delírios cujo trajeto tem apenas um ponto de chegada, a morte. O zig-zag das ruelas na cidade e o sentimento labiríntico ecoaria em inúmeros filmes, vide as desgraças de "Vertigo" (1958) ou o relógio em contagem regressiva de "D.O.A" (1950), tramoias que sabem como utilizar do urbano, na costa oeste dos EUA, para arquitetar uma intriga. Nora Prentiss é um exemplo de novelão policialesco que utiliza artifícios clássicos do film-noir e não se perde na própria cilada, pois a mensagem que carrega em si é uma lição de moral, extremamente irônica e condizente com os filmes lançados no pós-guerra, em que o indivíduo é a própria representação de uma sociedade que ele detesta, rotineira, enfadonha, hipócrita e moralista. A sua tentativa de se livrar dela é o sacrifício de sua própria vida, pois ele nada pode com algo que o engoliria sem mastigar. É pessimista e trágico como o contexto social que o país vivia no pós-guerra.
Feminina, passional, ardente, delirante, absurda. Madame X, o título culminante de vários folhetins familiares que Lana Turner estrelou entre 1950-60's uma homenagem nostálgica aos "Women's Pictures" e faz notar uma das grandes estrelas hollywoodianas, amada e admirada por todos em função de um talento incomum às lágrimas, mas que sofria de uma vida pessoal maldita. Este novelesco raconto adaptado de uma peça francesa articula os elementos do melodrama, sendo sirkiano sem de fato ter sido dirigido por Douglas Sirk, representando a dor de seus personagens pelos símbolos de seres humanos prisioneiros de seus erros. Aparentemente livres e fugitivos de seu amargor, a mulher vivida por Turner parece estar numa prisão existencial, sufocada até pelos objetos ao seu redor. Sirk é referenciado em cada enquadramento, na iluminação expressionista, no uso de Consolation nº3 de Franz Liszt [vide Tudo que o céu permite, 1955], no estilo de atuação e por aí vai. O dedo de Hunter traz aqui um agrado ao público que era devoto dessas histórias durante décadas de repressão feminina. Imagine que com estas histórias donas de casa puderam sublimar na cadeira do cinema a vontade de matar o marido e ficar com o seguro, vendo suas estrelas sofrendo por amor, consumando angústia com inúmeros amores que ferviam na tela. Se falarmos de temporalidade, o filme tropeça ao apressar o relato sem freios na primeira metade do filme. Essa vontade de tudo relatar, como quem vira a taça de gin com barbitúricos sem medo de morrer. Engasgou fatalmente, pois não conseguiu o potencial sofisticado de identificação que os filmes anteriores puderam desfrutar. A morte do gênero parece estar aqui como no enterro de Annie Johnson em Imitação da vida,1959. Ao deitar-se na cama da miséria, Madame X parece levar consigo este grande prazer que é o Technicolor folhetinesco.
Espetáculo lindo de imagens este trabalho de Guilherme Coelho com Dira, Daniel e Marina. Estavam lindos ontem pre-estreando o filme na abertura da 18ª mostra de Tiradentes. Um destaque lançado neste afluente prolífico de nossa produção independente. É um filme na cabeça de personagens cheios de brasilidade, desvelando suas mentes e emoções num contexto natural paraense. Em meio a uma aventura selvagem que representa suas próprias entranhas, um homem louco de desejo se aventura em busca pela poesia de sua vida que parece ter se esgotado.
O Grande Circo Místico
2.2 139E vamos lá, o novo filme tão esperado de Cacá Diegues... uma coprodução entre o Brasil, França e Portugal, com grandes benefícios de auxílio tanto franceses (CNC) quanto brasileiros (BRDE, FCA, Ancine). A França tem o privilégio de ver o filme em cartaz desde quarta passada e não é de se estranhar : quando se vê os créditos rolarem no final percebe-se a quantidade de franceses trabalhando tanto nos efeitos especiais quanto em outras instâncias da produção.
Apesar de O GRANDE CIRCO MISTICO ter sido concebido como um musical nos anos 80 com as memoráveis composições de E. Lobo e C. Buarque, C. Diegues optou por produzir a sua adaptação cinematográfica com o "realismo mágico" que lhe interessa no cinema e as músicas que pontuam apenas os grandes momentos da saga familiar circense atravessando a história do nosso Brasil. Sempre elogiado pelos franceses, Diegues leva seu filme à terra do Champagne cujo glamour tradicional aparece no filme por meio da participação da talentosa Catherine Mouchet na pele de uma imperatriz. Dessa vez seu filme foi ofuscado no festival de Cannes ainda que tenha sido exibido em sessão especial. Percebe-se que a critica na imprensa francesa esta dividida :
Le Monde comenta que o diretor perdeu de alguma forma a sua veia política (e na situação em que se encontra nosso Brasil, atenção), lançando um olhar interessante para o risco de Diegues ao tratar muitos personagens, inspirado pelos filmes de Fellini, que no seu circo místico nem sempre se mostram profundos e ainda por cima exploram sem limites os corpos femininos. Na tradição do elogio ao cinéma d'auteur, Télérama e outros veículos de crítica de entretenimento descrevem o filme como uma expressão pessoal do cineasta que conta com uma certa frieza voltada para os personagens e as tragédias vividas pelas suas diferentes gerações, assim como uma homenagem à arte barroca que se manifesta na nossa cultura. A gestação dos personagens femininos funciona como um fio condutor entre as gerações, mas isso não impede ao meu ver o risco de reproduzir futilidades em sequências que se desdobram rápido demais para alcançar a própria reflexão... Entretanto, tiraremos o chapéu para o trabalho na imagem, uma verdadeira caixinha de surpresas. Diegues se inscreve no momento presente do nosso cinema em que novos artistas também buscam formas nem sempre naturalistas para se expressar.
Faca no Coração
3.4 68 Assista AgoraUma pérola homoerótica à la giallo dos anos 1970 trazida dos becos obscuros italianos para uma Paris glamurosa e setentista no auge da produçäo pornográfica gay (pédé* em francês) e do cruising pré-HIV me deixou com a cara no chäo. Interessante ver em entrevistas do diretor como ele entende a importância de trazer para o stilo do giallo a corporalidade homoerótica que foi muitas vezes exploradas no cinema de Dario Argento, por exemplo, como o desvio da norma. Neste filme de Yann Gonzalez que celebra esta estética tipicamente italiana e kitsch, a ideia do diretor era de criar um fluxo de continuidade na relaçäo dos personages transviados com seus corpos de forma que esta experiência da sexualidade seja colocada em cena como uma norma em si mesma e näo mais como um desvio. Se ele obteve sucesso ou näo, esta é a discussäo. Um filme impactante que precisa ser revisto. E este cartaz näo faz jus de forma alguma a todo o imaginário pornográfico que evoca UN COUTEAU DANS LE CŒUR.
Corações Loucos
3.8 25Masculinidade frágil.... esse dois ! Seria muito fácil ignorar o potencial do filme por conta da sua enorme misoginia... Mas as patifarias dos dois canastrões protagonistas, a participação à la Marquês de Sade da icônica Isabelle Huppert e o retrato de uma velha França decadende relutando em prol da boa moral mostra que Les Valseuses tem algo a nos dizer....
Twin Peaks (3ª Temporada)
4.4 622 Assista AgoraJá está disponível na Netflix ! ;o)
Ready to enter this place
both wonderful
and strange.
Certas Mulheres
3.1 76 Assista Agora...E assim, repentinamente, eis-me aqui à flor da pele e em fragmentos desconectados como o universo fílmico da cineasta KELLY REICHARDT, lembrando-me da importância política que é compartilhar na rede um filme feito por uma mulher com o olhar dela da condição feminina e da sociedade em que ela está inserida. Filme absolutamente essencial. Diante dos vossos olhos, esta experiência cinematográfica revela um registro do tempo moderno, recusando o encadeamento rocambolesco de intrigas, assim como a manipulação afetiva e se expressando na continuidade dos sentimentos dessas mulheres, nas sutilezas que o espaço delas pode fornecer. Como observar uma rosa que perde suas pétalas, cada uma delas tem um tempo absolutamente singular de tocar a terra. Algo que não pode ser forjado, menos ainda imitado.
David Lynch: A Vida de Um Artista
4.0 45Uma aventura misteriosa pela matéria bruta que alimenta a linguagem lynchiana, o documentário David Lynch The Art Life se configura numa substância instrínseca a duas ordens, o tempo e o espaço do artista. A mémoria de uma infância provida de afeto e gradualmente transformada pelos eventos oníricos das cidades em que morou, lugares de uma beleza traumática e perturbadora. O universo lynchiano se integra ao filme nas pinceladas brutas do mestre e o aspecto perturbador dessas pinturas é aliado a uma imagem fílmica que retoma os principais temas de seus filmes: as sombras e o que elas parecem esconder de nós, o movimento twinpeaksiano das árvores, a peculiaridade das coisas, a sensibilidade erótica no medo, a impressão de sonhar acordado. David Lynch revisita o símbolo do porão que ele descreve ao longo do documentário – um espaço escuro e meio sujo onde ele admira a decomposição de frutas, bichos e afins – lugar ao qual ele parece nos convidar com um sorriso provocador. A metáfora da substância em constante apodrecimento no seio da sociedade americana e da cultura de vitrine do american way of life, o medo...
Souvenir
3.3 49 Assista AgoraJoli garçon... JE DIS OUI.
Dalida
4.0 22 Assista AgoraTransmitido ontem ao vivo simultaneamente em 200 cinemas de toda a França e com uma cobertura jornalística, o biopic em homenagem à DALIDA veio para eternizar ainda mais o quanto ela foi e sempre será divina. Honrado estou de ter feito parte deste momento audiovisual memorável para as chansons françaises e de poder compartilhar algumas impressões a respeito dessa avant-première flamboyante à altura da musa egípcia e de como ela sempre conseguirá enfeitiçar ouvintes das mais variadas faixas etárias.
Dalida cantava em mais de um idioma e conquistou um recorde absoluto de shows no palco do Olympia em Paris, o berço do seu sucesso dos anos 50 até os anos 80. Conquistou o carinho das pessoas que a descreviam como um ser verdadeiramente iluminado. Não era apenas sua beleza enigmática que conseguia atrair para si todos os olhares. Ela era diferente, dizia Orlando, seu irmão. Tinha algo a respeito da sua generosidade e do seu caráter perseverante que não podia se decifrar. A personalidade extravagente e a vida amorosa rocambolesca eram alguns do elementos que recheavam as interpretações dalidescas de uma intensidade maior do que a vida. Ela colocou fim aos seus dias numa noite de sábado em maio de 1987, deixando-nos a nota de que a vida lhe era insurportável e um pedido de perdão.
No tapete vermelho do Olympia, Lisa Azuelos comenta que talvez a principal motivação do filme seja de libertar Dalida deste perdão e de nos lembrar do aspecto atemporal presente nas canções que ela interpretava, de "Bambino" à "Je suis malade", passando por "Il venait d'avoir 18 ans" e o hit dançante "Laissez-moi danser". Canções que os franceses sabem cantar até sem ver a letra, mas que são lembradas também em outros países. Isto é ser um artista lendário? Foram reflexões como estas que evoca Azuelos nesta homenagem à memória de Dalida, uma mulher que passou pelo mundo como um furacão, deixando os traços de um sucesso incomensurável e os destroços de uma vida sentimental solitária, da incompletude que a tormentava... de l'amour... et de l'amour...
A Criada
4.4 1,3K Assista Agoraproblemático: as pessoas com o dedinho da problematização e sensíveis à misoginia vão hesitar entre a primeira parte e a segunda, imagino. não é um filme fácil de assistir. ele constrói representações machistas do amor lésbico. e pior, fetichizadas. no entanto, sabendo que se trata aqui de um diretor sempre muito particular nas suas propostas estéticas, talvez seja preciso colocar de lado durante três horas esta questão para poder apreciar uma montagem de múltiplas perspectivas, a exploração cuidadosa dos espaços e re-significante dos objetos. numa entrevista, o diretor comenta algumas questões que quis abordar: os conflitos entre japão e coréia é um deles.
tem uma declaração fantástica de Park Chan-Wook numa revista francesa - ele diz que fazer um filme tão erótico pra ele representa uma experimentação em sua carreira e uma forma de visitar o clássico erótico japonês império dos sentidos pra poder se vingar dele. se vingar do fato de que o japão fez muito mais filmes eróticos que a coréia: risos. e muito desse filme se funda na disputa política entre estes países. uma criada coreana que quer dar a volta na herdeira japonesa. 아가씨 - agassí: só eu amei essa palavra?
Showgirls
3.0 210 Assista AgoraAka All about NOMI MALONE. Segura esta referência. Showgirls é um filme que será redescoberto agora com a versão restaurada voltando para o cinema no mundo todo. É o camp anos 90 do American Dream que revela uma obscura e irônica perspectiva do show business, antes ignorada pela crítica no lançamento e hoje pronta para ser apreciada em toda sua perversão. Fama, inveja, sexismo, violência física e psicológica. Até Cahiers du Cinéma, talvez a maior ou mais significativa revista de cinema de todos os tempos, separou no número de setembro um espaço para mencionar a volta desta obra infame para as telonas francesas. Tomara que a nova cópia também seja distribuída no Brasil.
Nocturama
3.2 45Sabotado pelos eventos factuais de terrorismo na França, NOCTURAMA é um filme controverso que retrata a noite de luxo de jovens dentro de uma grande loja de departamento após um atentado em quatro partes. Condenado pela crítica francesa pelo vazio político na concepção fílmica, o filme de Bertrand Bonello parece representar uma juventude em toda vitalidade e engajamento, inconstante e efêmera. Tanto os personagens como a estética pretensiosa remetem a outros filmes do gênero. Não parece haver motivo para os atentados, menos ainda uma ligação entre o luxo e o consumismo que une os jovens terroristas. Apesar de se tornar uma peça virtuosa de entretenimento, Nocturama termina como o céu nocturno que não viu estrela brilhar. É obscuro, porém opaco.
Na Vertical
3.2 55O cinema de Guiraudie, contemplativo e intenso, consegue transitar por diferentes camadas de linguagem com o rigor de um artista paisagista. Ele parece pintar quando filma a natureza. E mesmo se tratando de elementos tão naturais para todos nós, a obra não cessa de nos surpreender, fazendo-nos sentar durante a sessão para apreciar um filme de cujo título se depreende a ideia de permanecer na vertical. Seria a verticalidade rumo à redenção? Algo que me tocou particularmente na sessão foi o sentimento paterno do protagonista. Algo que na iminência da perda causa dor e representa um pouco daquilo que todos nós não queremos perder. A natureza nos filmes de Guiraurdie é um personagem - per se - cuja magnificência estará sempre registrada nos anais do cinema autoral.
As Faces de Toni Erdmann
3.8 257 Assista AgoraDe uma audácia infinita, palavras da crítica cinematográfica do jornal francês Le Monde. TONY ERDMANN faz parte de um dos filmes mais comentados do ano. Considerado pela Cahiers du Cinéma como uma obra imperdível dentro do cinema contemporâneo. Todos falam desse filme que arrancou gargalhadas, sejam elas do cômico ou do desconforto, nas sessões dos jornalistas em Cannes. Um filme que se aventura pelo absurdo, criando uma narrativa de estética realista. E mostrando que a fantasia em toda sua eficácia fílmica se torna uma ferramenta acima da lógica. Uma reflexão sobre o lugar do cinema e da imaginação num mundo robotizado. O que dizer do cartaz? Esta cena no filme merece um movimento cinematográfico só para estudá-la. Magnífíco em toda sua concepção.
Divinas
4.2 219 Assista AgoraÉ o primeiro filme de Houda Benyamina e conseguiu ofuscar diversos filmes no cenário mundial. É muito mais do que um filme sobre a marginalidade e a vida na periferia. Essa emocionante obra, no abismo conflituoso entre a cultura árabe e a francesa, numa periferia parisiense, mostra uma representação feminina dentro da marginalidade e as possibilidades de confronto a uma hierarquia social que a ignora e a invisibiliza. Filme de impacto político e estético. O uso da música religiosa árabe em contra-ponto com o hip hop é magnífico. DIVINES cria uma exercício sublime de mostrar o que se pode fazer numa sociedade orientada para o consumo quando se é alguém completamente excluído por este mesmo sistema que o seduz, mas que lhe permite apenas os postos de inferioridade. Bravo!
Moca
3.5 8O slogan francês "O que teria feito você no lugar dela?" faz você querer ir correndo para o cinema assistir ao filme. Um excelente thriller de Frédérick Mermoud pleno de sutilezas e de força dramatúrgica. O que me fascinou foi o simbólico uso da personagem-chave loira. Elemento hitchcockiano característico de farsas e grandes surpresas no decorrer da história. E a escolha deliciosa do título remete a cor do carro dirigido pelo parceiro da mesma loira, automóvel dos anos 70 em tom de marrom. Concepção engenhosa de personagens revela a profundidade por trás da perda.
Rastros de Ódio
4.1 266 Assista AgoraUm chefe de obras, como dizem os franceses. O elemento que mais me fascina na sessão é o estado de ser humano em procura de algo. Isso vai muito além de encontrá-lo ou não. Está expresso tal detalhe no título original - The Searchers. O uso da carta no filme é astuto, pois as correspondências levavam dias para chegar e a cronologia fílmica se expressa nessa demora. Na espera de algo que está por acontecer. Domínio total de linguagem de cinema. Se tudo isso já é um prazer da alma, imagina de quebra ver no cinema, podendo admirar as tomadas magníficas em todos seus ângulos e enquadramentos, podendo louvar a trilha de Max Steiner.... redenção no oeste !
Frantz
4.1 120 Assista AgoraDe uma delicadeza infinita. Ainda estou sem fôlego de ter assistido a uma pre-estreia com a presença do Ozon comentando o filme no desfecho. O novo filme de Ozon foi inspirado por uma peça de teatro, conta com a emoção de um pós-guerra e o reflexo disso na vida de uma famìlia alemã mutilada pela perda. Remete à Fassbinder e às chaves de suspense hitchcockianas. Tudo isso embalado na astúcia dramatúrgica que já possui uma trajetória no cinema. Digno do adjetivo 'ozoniano'. Imperdível.
Barbie Boy
4.1 3"BARBIE BOY" (curta, 13 min, 2013) é a história de Bobby, um garoto de sete anos cujo brinquedo favorito é a boneca Barbie. Depois de um comentário do seu pai, Bobby se permite uma dúvida e começa a flanar nas suas introspecções e angústias. Decide pelo ritual de passagem. O curta dirigido e idealizado por Nick Corporon problematiza os papéis de gênero na infância, coloca pontos de interrogação para o pai e para o filho. Relutei a princípio, mas percebo agora a importância no fato do curta mostrar que até pelo ponto de vista da criança pode haver reflexão. RESPEITO às escolhas dos outros, acima de tudo, com ou sem boneca. :-)
Amargo Pesadelo
3.9 199 Assista AgoraQuatro homens que nunca mais serão os mesmos depois de uma experiência tão desafiadora na natureza, uma odisseia selvagem à luz de um mundo sem regras. "Deliverance" | 1972 | talvez seja um daqueles filmes menos falados dos anos 70 que quando assistidos nos provam como tal época foi forte para um cinema de aventura específico, rico em complexidade humana e de uma vontade de mostrar a violência que não se via nas décadas anteriores. Chegou à minha atenção via indicação de Blanche Devereaux, uma das personagens do seriado "The Golden Girls" que é, curiosamente, grande fã de Burt Reynolds, um dos símbolos sexuais dos anos 70/80 nos EUA. Ainda não tinha me convencido até que fui ler curiosidades sobre o filme e me deparei na wiki.en com a expressão "male rape" e vi que existe esta nomenclatura em inglês para quando um estupro acontece com um homem. Fato que prendeu minha atenção completamente e me fez procurar o filme na mesma hora, queria entender como um filme que tem a cara do Oscar, que me pareceu tão heteronormativo, iria tratar um assunto assim e..... aqui estou eu tricotando elogios para o surto de sensibilidade que ele demonstra em todos aspectos na hora de abordar este obscuro mundo que é o desejo na mente do ser humano, o desejo de viver, de amar, de ter, de se desfazer, de sentir, de tocar, de poder, de crer, de falar, de tudo, de nada e de que mais você quiser. É um filme que vai estar comigo sempre como uma boa lembrança desta época em minha vida, as representações da natureza, da vida, da morte, da força da amizade. Algo que poucos filmes conseguiriam depois com a mesma força. Grande história !
Rancor
3.7 13É um dos filmes citados em "The Celluloid Closet" [1996] por se tratar da adaptação de um livro cuja trama original envolvia homofobia. Contudo, a censura do Hays Code na época considerava a cláusula de "perversão sexual" e impediu que tal assunto fosse tratado abertamente. Roteiro mudou o tema para racismo/anti-semitismo. E o que penso ser o mais interessante da sessão me remete - justamente - aquele documentário sobre a trajetória iconográfica de LGBT's no cinema, que citei no começo deste comentário.
Uma sábia comentarista mostra a importância para o espectador de se ver representado no filme, principalmente se for parte de uma minoria. É reconfortante se projetar nas histórias contadas na telona. Apesar do filme partir de um tema completamente diferente, não consigo deixar de apontar o quanto restou de masculinidade posta em questionamento do tema inicial. Pode ser o meu olhar sendo guiado pelo desejo de ver aquilo que foi censurado, mas percebam também como os homens preenchem a tela e as mulheres estão sempre em lugares insignificantes para a história.
E como o personagem de Robert Ryan parece dominar os outros com um apelo extremamente masculino. Lembrar de cenas como quando ele segura o papel do endereço, a cilada de seu personagem. O papel cai, o outro protagonista abaixa para pegar. A câmera mostra Ryan de cima em contra-plongée, a visão que temos é de um deus grego que atiça tanto para o desejo, quanto para a morte. Não conseguimos apenas odiá-lo por ser anti-semita abertamente - e homofóbico no imaginário -, uma atração voltada a ele vai também estar presente, pois o filme se mostra provocante ao representá-lo de maneira tão sedutora.
Punhos de Campeão
4.0 21A discussão sobre um filme como esta pérola de Robert Wise pertencer ou não ao mundo noiresco pode se estender eternamente, pois começaremos pelo fato de que noir é um conceito cunhado por críticos franceses - a posteriori, então dificilmente seria válido pensá-lo como gênero, senão muito mais como um apanhado de filmes que podem ao mesmo tempo compartilhar elementos parecidos e divergir na substância da trama, talvez um subgênero para o thriller, o horror, o (melo)drama criminal, etc.
Muitos acadêmicos partem desta premissa para mostrar como Mildred Pierce (1945) pode ser tão noiresco quanto The Set-Up (1949) e este por sua vez como Out of The Past (1947) e Murder My Sweet (1944), filmes que geralmente são tido como noirs quintessenciais. Isto é, The Set-Up não possui o lugar típico da mulher-aracnídea que seduz o anti-heroi para cair na sua teia, menos ainda um detetive cínico para torcer o braço dos criminosos com astúcia e superioridade, mas não é menos noir por isso e é certamente uma das grandes referências de Raging Bull (1980), o clássico de Scorsese.
Esta preciosidade de apenas 72 min possui a substância que contamina os principais filmes noirescos e o período sombrio que fizeram os franceses cunhar o infame termo da escuridão - o pessimismo da guerra e do pós-guerra, uma atmosfera cínica e fatalista, uma cilada e um personagem subjugado diante de um destino com o qual ele nada pode. Tudo isso explode na tela com um realismo enorme, a partir de recursos simples e respeitando os silêncios que tal construção demanda. O boxeador de Ryan parece representar uma sociedade que sofre constantemente com os golpes que recebe, sem entender como o seu próprio mal se engendrou. Faz parte do universo noiresco a projeção do espectador num protagonista desiludido com a vida, homens fracassados que carregam uma dor existencial - a memória de suas próprias falhas.
Construído com um sopro de chiaroscuro e malabares jazzísticos, The Set-Up possui momentos de alta tensão que envelheceram muito bem. Carrega os charmes técnicos comuns aos filmes da RKO, foi um filme no qual Wise teve a possibilidade de experimentar, vale mencionar a importância tremenda dos filmes B para o universo noiresco, algo crucial, pois aqui os diretores descansavam das exigências constantes que os produtores e os chefões impunham nas produções luxuosas.
Robert Ryan aparece correndo desesperado pelos corredores do ringue de box. Sozinho e apavorado com a violência que o espera. Como se não bastassem os sorrisos maliciosos e o gozo primitivo que a luta desperta nas pessoas, a questão-chave que o filme parece tratar é justamente que aquela violência não se limita ao ringue. É a violência simbólica ou não do cotidiano, é quando a mulher grita para o boxeador matar o outro, ou quando o gordinho morre de comer, saciando-se com os carboidratos e também com a dor do derrotado. É um discurso que parece encarnar em todos os takes do esquema e a personagem de Audrey Totter não passa de um adorno, é o prêmio de consolação que não basta e não responde as questões existenciais do protagonista.
A Sentença
4.2 4NORA PRENTISS. Adoro quando o nome de uma personagem se torna título de uma história. Geralmente, isto pode ser um plano perigoso, pois ele pode sugerir também que aquela é a persona mais importante da narrativa. O caso do filme de Vincent Sherman (diretor de clássicos dos 'women's pictures' como Joan Crawford em "Harriet Craig" ou Bette Davis em "Mr. Skeffington") brinca com a ironia do título. Ela poderia ser a personagem mais emblemática se não fosse pela rocambolesca trama de identidade do personagem masculino central, interpretado por Kent Smith. É um caso de melodrama noiresco típico! O personagem principal parece viver uma existência insuportável da qual ele não consegue se livrar. A heroína romântica aparenta ser mais perfeita do que é, uma amante e cantora de bares que se recusa a ser amante de um homem casado. Ele mostra para ela que ter pudor não leva ninguém a nada no universo decadente e embriagante que conhecemos, a noite em São Francisco. Cidade famosa por ter sido o palco de paixões fulminantes e delírios cujo trajeto tem apenas um ponto de chegada, a morte. O zig-zag das ruelas na cidade e o sentimento labiríntico ecoaria em inúmeros filmes, vide as desgraças de "Vertigo" (1958) ou o relógio em contagem regressiva de "D.O.A" (1950), tramoias que sabem como utilizar do urbano, na costa oeste dos EUA, para arquitetar uma intriga. Nora Prentiss é um exemplo de novelão policialesco que utiliza artifícios clássicos do film-noir e não se perde na própria cilada, pois a mensagem que carrega em si é uma lição de moral, extremamente irônica e condizente com os filmes lançados no pós-guerra, em que o indivíduo é a própria representação de uma sociedade que ele detesta, rotineira, enfadonha, hipócrita e moralista. A sua tentativa de se livrar dela é o sacrifício de sua própria vida, pois ele nada pode com algo que o engoliria sem mastigar. É pessimista e trágico como o contexto social que o país vivia no pós-guerra.
Madame X
3.9 30Feminina, passional, ardente, delirante, absurda. Madame X, o título culminante de vários folhetins familiares que Lana Turner estrelou entre 1950-60's uma homenagem nostálgica aos "Women's Pictures" e faz notar uma das grandes estrelas hollywoodianas, amada e admirada por todos em função de um talento incomum às lágrimas, mas que sofria de uma vida pessoal maldita. Este novelesco raconto adaptado de uma peça francesa articula os elementos do melodrama, sendo sirkiano sem de fato ter sido dirigido por Douglas Sirk, representando a dor de seus personagens pelos símbolos de seres humanos prisioneiros de seus erros. Aparentemente livres e fugitivos de seu amargor, a mulher vivida por Turner parece estar numa prisão existencial, sufocada até pelos objetos ao seu redor. Sirk é referenciado em cada enquadramento, na iluminação expressionista, no uso de Consolation nº3 de Franz Liszt [vide Tudo que o céu permite, 1955], no estilo de atuação e por aí vai. O dedo de Hunter traz aqui um agrado ao público que era devoto dessas histórias durante décadas de repressão feminina. Imagine que com estas histórias donas de casa puderam sublimar na cadeira do cinema a vontade de matar o marido e ficar com o seguro, vendo suas estrelas sofrendo por amor, consumando angústia com inúmeros amores que ferviam na tela. Se falarmos de temporalidade, o filme tropeça ao apressar o relato sem freios na primeira metade do filme. Essa vontade de tudo relatar, como quem vira a taça de gin com barbitúricos sem medo de morrer. Engasgou fatalmente, pois não conseguiu o potencial sofisticado de identificação que os filmes anteriores puderam desfrutar. A morte do gênero parece estar aqui como no enterro de Annie Johnson em Imitação da vida,1959. Ao deitar-se na cama da miséria, Madame X parece levar consigo este grande prazer que é o Technicolor folhetinesco.
Órfãos do Eldorado
3.1 36 Assista AgoraEspetáculo lindo de imagens este trabalho de Guilherme Coelho com Dira, Daniel e Marina. Estavam lindos ontem pre-estreando o filme na abertura da 18ª mostra de Tiradentes. Um destaque lançado neste afluente prolífico de nossa produção independente. É um filme na cabeça de personagens cheios de brasilidade, desvelando suas mentes e emoções num contexto natural paraense. Em meio a uma aventura selvagem que representa suas próprias entranhas, um homem louco de desejo se aventura em busca pela poesia de sua vida que parece ter se esgotado.